domingo, novembro 27, 2005

Os Filhos da Terra

Muitos anos atrás (eu era criança), li na revista Istoé uma crítica que nunca mais esqueci, a respeito do filme A Guerra do Fogo, do diretor francês Jean-Jacques Annaud, inspirado no romance de mesmo nome, do belga J. H. Rosny. A crítica começava com uma reflexão sobre o fenômeno da nostalgia coletiva que parecia estar atingindo a humanidade, que, vivendo num mundo cheio de engenhocas tecnológicas mirabolantes (tanto quanto se podia falar tal coisa na década de 80), passava a sentir saudades do passado, o que, depois de produções como Excalibur e Conan, o Bárbaro, fez com que A Guerra do Fogo, que vai ainda mais fundo no passado e nos leva de volta à pré-história, tivesse se tornado um grande sucesso de público. De fato, ao menos para certo tipo de pessoas (incluo-me), existe um fascínio todo especial nesse mundo primitivo por onde se deslocavam nossos ancestrais, lutando dia a dia por uma precária sobrevivência em meio a uma natureza hostil. Embora hoje pareça difícil acreditar, houve um tempo em que a humanidade era apenas mais uma espécie, ou espécies, que, como qualquer outro animal, lutava com todas as armas para escapar da implacável lei da seleção natural, que elimina sumariamente da face do planeta as espécies que não se adaptam satisfatoriamente às condições de vida de cada era. Com um agravante: por ter inteligência, o homem também buscava compreender a razão de ser disso tudo, questão essa que jamais preocupou os mamutes ou os tigres de dentes de sabre. E não havia ciência para explicar os porquês das coisas: tudo era mistério, e o homem estava perpetuamente à mercê de forças que não dominava ou sequer compreendia.

Valendo-se de uma grande quantidade de novos dados arqueológicos que não eram conhecidos na época de Rosny, a escritora norte-americana Jean M. Auel decidiu dedicar-se a um projeto extremamente ambicioso, a saga dos Filhos da Terra, do qual Ayla, a Filha das Cavernas, é o primeiro volume. O título original do livro era The Clan of the Cave Bear - literalmente, 'O Clã do Urso da Caverna'. A saga, hoje, conta com pelo menos cinco volumes, mas, a partir do segundo, O Vale dos Cavalos, já começa a descambar para o mais elementar romance sentimental, com o impressionante painel do mundo pré-histórico servindo apenas de pretexto. Ayla, a Filha das Cavernas, entretanto, contém uma das narrativas mais poderosas e convincentes que já tive oportunidade de ler, onde os terrores e mistérios do mundo pré-histórico, e o esforço heróico do homem para lidar com a realidade que esse mundo lhe impunha, assumem dimensões épicas.

Todos nós já vimos aquela clássica gravura que ilustra a evolução da espécie humana, mostrando alguns dos nossos ancestrais andando em fila. Iniciando com algo parecido com um gibão, ela apresenta várias espécies primitivas e (se a memória não me trai) passa pelo homem de Neanderthal segurando uma ferramenta de pedra, pelo Cro-Magnon de lança ao ombro, e termina com o homem moderno, novamente de mãos vazias, como a sugerir que sua mais importante arma e ferramenta é o próprio cérebro. Não se trata de uma imagem totalmente incorreta, mas tem a falha de dar a impressão de que cada espécie se sucedia à anterior em linha reta, sem desvios ou ramificações, o que, é claro, não foi o caso: por vezes, ao longo das eras, até três ou quatro espécies diferentes de seres humanos tiveram de partilhar o mesmo ambiente. Na Europa pós-Era Glacial, há cerca de 35 mil anos, onde está ambientada a narrativa de Auel, conviviam duas espécies: o homem de Cro-Magnon - praticamente idêntico a você e a mim - e o homem de Neanderthal.


Este último, que muita gente pensa que era um semimacaco, na realidade possuía uma cultura bastante complexa, o que este livro retrata magnificamente. O fio condutor é a história de Ayla, uma menina da espécie Cro-Magnon, que, após ficar órfã durante um terremoto, é encontrada e adotada por um clã de neandertalenses - o Clã do Urso da Caverna, assim autodenominado porque, na religião em que acreditam, o Urso da Caverna é o mais poderoso de todos os espíritos, e é à sua proteção que eles se confiam. Para servir de ponte entre o mundo dos homens e o dos espíritos, cada clã tem um feiticeiro - o mog-ur -, que adota como totem o próprio Urso da Caverna.

São justamente Creb, o mog-ur do clã, e sua irmã Iza, a curandeira, que passam a fazer as vezes de pais para Ayla. Creb, aleijado desde a infância, nunca foi capaz de caçar, mas esse fato, que teria significado desgraça e vergonha para a maioria dos homens daquele povo, acabou proporcionando-lhe uma posição única em sua sociedade: sem precisar preocupar-se com as atividades comuns dos outros homens, pôde dedicar todo o seu tempo à meditação e à observação da natureza, e assim tornou-se o mais poderoso feiticeiro que o clã jamais teve. Graças à sua sensibilidade privilegiada, ele logo percebe que as diferenças entre aquela estranha criança e o povo que a adotou vão muito além da aparência.

É particularmente interessante a passagem em que Creb tenta ensinar a Ayla os segredos dos números - e fica espantado ao ver a menina "pegar" instantaneamente conceitos que ele próprio só conseguiu dominar após muitos anos de meditação profunda. Ocorre que Ayla, como todos de sua espécie, tem uma conformação cerebral diferente da de Creb e seu povo: enquanto o Homem de Neanderthal tinha a parte traseira do cérebro muito desenvolvida, o de Cro-Magnon desenvolveu mais a parte frontal. O resultado disso é que o neandertalense devia ter uma memória prodigiosa, mas era fraco em raciocínio abstrato, o que tornaria muito difícil imaginar qualquer número maior do que os que pudesse contar com os dedos, e quase impossível executar operações aritméticas. Já nós, não temos tanta facilidade para memorizar, mas, em compensação, desenvolvemos a matemática e o pensamento criativo, que tornaram possíveis todas as invenções. É importante salientar, entretanto, que isso não significa que sejamos mais "inteligentes" que aqueles nossos parentes hoje extintos: simplesmente, nossa inteligência se desenvolveu numa direção, e a deles, em outra.

Ayla é ensinada a portar-se e a trabalhar como fazem as mulheres dos clãs, tendo que superar inúmeras dificuldades para adequar suas diferenças ao tipo de comportamento que é esperado dela. O livro é cheio de detalhes fascinantes sobre a vida diária entre os neandertalenses, desde a procura e o tratamento das ervas medicinais até a fabricação de artefatos de sílex. As cenas de caçadas são espetaculares - a inteligência do homem triunfando sobre a força bruta do bisão, do mamute, do urso. As cerimônias religiosas oficiadas por Creb (em geral, assistidas apenas pelos homens) transmitem um sentido indescritível de profundo mistério, que não deixa de ser impressionante nem mesmo para a mente moderna "esclarecida", desde que se tenha alguma sensibilidade e não se queira julgar por padrões atuais a mentalidade de homens que viveram há 35 mil anos.

É também muito digna de nota a habilidade com que Auel desenha a personalidade de Ayla, que, por mais que se esforce sinceramente para agir como uma boa mulher dos clãs, não consegue deixar de transgredir tabus, porque a natureza simplesmente não a fez para viver como vive o povo que a acolheu, e esse problema segue num crescendo, até tornar impossível a sua permanência no clã onde se criou. Talvez esse conflito cultural seja parte do que falta aos livros seguintes da série, deixando um vazio que a autora procurou preencher com problemas românticos e muitas cenas de sexo. De qualquer forma, Ayla, a Filha das Cavernas, é uma leitura que recomendo plenamente.

sábado, agosto 13, 2005

A Última Legião


O escritor italiano Valerio Massimo Manfredi escolheu como seu "chão" o mundo antigo, tendo-se notabilizado entre nós com sua belíssima trilogia Aléxandros (para quem não sabe, é sobre Alexandre, o Grande, sendo o título a forma original do nome do grande conquistador – a tônica é no e e o x pronuncia-se ks), sobre a qual ainda espero escrever meus comentários. Não obstante, foi com A Última Legião que tive meu primeiro contato com a obra de Manfredi, e foi este o livro que me levou a considerá-lo um nome no qual se deve prestar atenção entre os expoentes atuais no campo da ficção histórica.

Experimentem pegar diversos livros, ou, mais ainda, filmes, cuja ação seja ambientada na Roma antiga, e ler as sinopses nas orelhas e contracapas. Em quase todos se leem coisas como "um retrato vivo e marcante da Roma antiga da época da decadência". Isso me irrita profundamente, pois demonstra apenas que quem escreve essas sinopses não entende coisíssima alguma de História. Seja qual for o período que o livro ou filme focalize – as Guerras Púnicas, a época de Júlio César, a perseguição aos cristãos sob Nero ou o tempo de Marco Aurélio e Cômodo – as sinopses sempre falam em "época da decadência", como se a civilização romana jamais tivesse feito coisa alguma em toda a sua história a não ser "decair". E foi essa a ideia que se popularizou: Roma como uma civilização de bêbados, loucos e libertinos. Ninguém jamais ouviu falar em Horácio Cocles, que defendeu a Ponte Sublícia, sozinho, contra todo o exército etrusco, ou em Caio Cévola, que queimou a própria mão direita para não entregar ao inimigo informações que prejudicassem seus compatriotas. Mesmo no tempo de Calígula ou de Nero, as orgias e demências desses dois imperadores e de seus protegidos nenhuma diferença faziam para o legionário anônimo que arriscava a vida em alguma fronteira bárbara pela grandeza do Império.

Por outro lado, pode-se dizer que A Última Legião, sim, é um romance que realmente fala sobre a decadência do Império Romano. Não que retrate nobres embriagados ou funcionários corruptos: ele simplesmente narra os acontecimentos de 476 d.C. – ano em que foi deposto Rômulo Augusto, último imperador a governar o Império Romano do Ocidente, acontecimento esse que, por convenção, marca o fim da civilização romana e da Antiguidade, bem como o início da Idade Média (não custa lembrar que o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, com sede em Constantinopla, continuaria a existir por mais mil anos).

O livro é apresentado como se fossem as memórias de Myrdin Emreis, que os romanos chamam de Meridius Ambrosinus – um druida da Bretanha, que no ano fatídico desempenhava as funções de preceptor do imperador, que tinha, à época, apenas 13 anos de idade. Rômulo é filho do general Flávio Orestes, que foi, em tempos, assessor de Átila, conseguindo amenizar, ao menos um pouco, o impulso destruidor que os hunos traziam ao invadirem o Império. Mais tarde, Orestes veio a derrubar o fraco imperador Júlio Nepote, mas, ao invés de colocar o manto imperial sobre os próprios ombros, preferiu nomear o filho, reservando para si o comando supremo do exército. Numa época em que o exército romano era formado basicamente por guerreiros bárbaros recrutados, Orestes decidiu (assim nos conta Manfredi) criar uma unidade especial, à qual chamou Legio Nova Invicta, treinada nos moldes das antigas legiões, cuja força e disciplina levaram Roma a dominar o mundo. Quando o chefe germânico Odoacro – que havia feito carreira servindo ao exército romano – decide se rebelar, a Nova Invicta, depois de lutar bravamente, é massacrada por uma multidão de guerreiros bárbaros sob as ordens do líder rebelde, quase ao mesmo tempo em que a casa de Orestes é atacada por outro bando. Quase todos são mortos, mas o jovem imperador e seu mestre Myrdin, por alguma razão, são poupados e conduzidos vivos ao exílio na ilha de Capri, onde a outrora suntuosa e agora decadente Villa Júpiter, residência de verão construída pelo imperador Tibério, torna-se seu cárcere. É historicamente sabido que Rômulo foi realmente poupado e exilado – mas essa é a última informação que os historiadores podem oferecer sobre ele. Nada mais se sabe sobre sua vida desse ponto em diante, e é precisamente esse momento nebuloso que Manfredi escolhe para começar sua narrativa.

Entre os poucos sobreviventes da Última Legião estão três bravos que ainda não desistiram de considerar a si próprios soldados romanos: o espanhol Rúfio Vatreno, o africano Cornélio Batiato, e o único italiano de nascimento entre eles, Aureliano Ambrósio, conhecido como Aurélio – e deve-se observar que as origens diversas dos três heróis lembram o fato de que ser romano não era realmente uma questão de nacionalidade, mas de cultura, de identificação com uma civilização e suas ideias. Surge então o audacioso plano de seguir o imperador até seu cativeiro em Capri e tentar libertá-lo. Ao destemido trio juntam-se os gregos Orósio e Demétrio, e a jovem Lívia Prisca, exímia arqueira vinda de uma cidade recém-fundada na laguna próxima de Ravena: uma cidade chamada Venetia (pronuncia-se Venécia), construída sobre as águas e onde o único meio de locomoção viável são os barcos. Isso lembra alguma coisa??

Está armado o palco para uma aventura de tirar o fôlego, onde lances de ação vertiginosa se revezam com passagens contemplativas em que os personagens (especialmente o jovem Rômulo, orientado por seu mestre bretão) procuram entender o que se passa com o mundo que os cerca, pois ninguém ainda conseguiu assimilar verdadeiramente a noção de que o Império Romano, que durante séculos pareceu tão perene quanto o céu, não existe mais. Myrdin conduz os companheiros à sua terra natal, na vasta e misteriosa ilha que foi outrora a província mais setentrional do Império, onde ainda os aguarda uma última batalha, e onde a memória de seus feitos, através da bruma dos séculos, irá dar origem a uma nova lenda.

Um detalhe desagradável, mas que não é culpa do autor, é o fato de que, na tradução brasileira, a tentativa de utilizar uma linguagem "de época", que correspondesse melhor ao clima da história, resultou numa infinidade de frases gramaticalmente defeituosas – a triste realidade é que, hoje em dia, praticamente ninguém mais sabe conjugar corretamente os verbos nas pessoas tu e vós.

Para finalizar, uma curiosidade: na nota de agradecimento no começo do livro, o autor "entrega" que já escreveu a história pensando numa futura adaptação para o cinema, o que torna muito lógicas as sequências de ação realmente "visuais" e "cinematográficas" de que o romance está repleto. E quando, meses depois de ter lido A Última Legião, vi no cinema o trailer de Rei Arthur, que estava prestes a ser lançado, confesso que, antes de ficar sabendo do que se tratava, pensei que já fosse o livro de Manfredi transformado em filme!... As paisagens britânicas, aquele guerreiro de elmo e armadura romanos, uma bela arqueira, tudo parecia bater. Leiam o livro e vejam se não me dão razão!... Por fim, faço votos de que o filme A Última Legião não tarde muito a surgir.

sábado, abril 30, 2005

Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino

Alguns anos atrás, li um ensaio bastante curioso, de autoria do escritor americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), intitulado O Horror Sobrenatural na Literatura. Publicado postumamente em 1945, o livro pretendia ser um guia para os interessados em conhecer as obras e os autores mais importantes da moderna literatura fantástica ― campo do qual o autor podia falar com conhecimento de causa, pois, para quem não o conhece, Lovecraft, discípulo aplicado de Edgar Allan Poe, é hoje considerado um dos nomes mais importantes da literatura de terror e fantasia de todos os tempos nos Estados Unidos. Esse ensaio era uma leitura muito interessante, mas acabava deixando no leitor (ao menos no leitor brasileiro) um sentimento de frustração, já que a vasta maioria dos trabalhos citados por Lovecraft nunca tinham sido publicados por estas plagas, nem havia perspectiva próxima de que viessem a sê-lo, pois a literatura de imaginação nunca foi considerada, dentro do restrito mercado editorial brasileiro, um campo em que valesse a pena investir, já que não falava ao gosto da maioria do ainda mais restrito público leitor.

Ultimamente, entretanto, pode-se arriscar dizer que a situação está mudando. A tremenda popularidade que a obra de J. R. R. Tolkien começou a ganhar no país por volta de meados dos anos 90, e que estourou de uma vez por todas com o lançamento da vitoriosa trilogia cinematográfica O Senhor dos Anéis, trouxe em sua esteira uma ampliação radical do mercado potencial para a literatura de imaginação como um todo. O estilo que em alguns círculos é chamado de "fantasia medieval", do qual Tolkien é o maior expoente, era praticamente desconhecido no Brasil até há alguns anos ― já agora, a maioria das livrarias tem dezenas de títulos do gênero para oferecer, sendo alguns até de autores nacionais. E não causa estranheza que o leitor já acostumado com a literatura de fantasia através de Tolkien e seus seguidores, tenha maior facilidade em interessar-se pelo lado mais sombrio da ficção fantástica.

Assim, por meio da antologia Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino, eu, e presumo que um bom número de outros leitores do ensaio de Lovecraft, tive por fim o prazer de realmente conhecer diversas das histórias resenhadas com tanto entusiasmo pelo autor americano. O nome do organizador da antologia já há que ser considerado uma recomendação: Calvino, autor de uma obra mundialmente aclamada, tanto como ficcionista quanto como teórico da literatura, escreveu, entre muitas outras coisas, uma pequena pérola intitulada Por Que Ler os Clássicos, livro que deve fazer parte do arsenal de todos os que trabalham na área da literatura ou dos que simplesmente a amam, pois nos abastece com uma fartura de respostas para dar aos onipresentes imbecis (desculpem-me, mas a palavra é essa mesmo) que vêm perguntar "para que serve" ler Homero, Cervantes ou Shakespeare. Com o estofo proporcionado por sua vasta bagagem de conhecimentos sobre literatura universal, Calvino selecionou com rara felicidade uma série de textos que representam o que de melhor se produziu em matéria de ficção fantástica no século XIX.

A antologia contempla desde textos e autores famosos como os americanos Nathaniel Hawthorne (O Jovem Goodman Brown) e Edgar Allan Poe (O Coração Denunciador) até os praticamente desconhecidos, ao menos entre nós, como o polonês Jan Potocki (História do Demoníaco Pacheco), além de cobrir uma surpreendente diversidade de estilos dentro do que se convencionou chamar "horror gótico": temos oportunidade de percorrer desde os exageros emotivos e estilísticos (intencionais?) do romantismo alemão (E. T. A. Hoffmann com o seu O Homem de Areia), passando por climas sombrios como no já citado Goodman Brown de Hawthorne, e indo até coisas que dificilmente seríamos capazes de classificar como "horror", pois o efeito que produzem é bem outro, como no caso da hilária O Nariz, do russo Nikolai Gogol. Há ainda textos nos quais o macabro e o engraçado se entrecruzam de forma magistral, como em A Mão Encantada, de Gérard de Nerval ― aliás, dono de um estilo absolutamente delicioso, cheio de frases pitorescas e tiradas engraçadas. As histórias encadeiam-se umas nas outras sem a menor intenção de ilustrar uma "evolução" da literatura fantástica ao longo do século, mas antes uma variação natural de tons, conforme a índole de cada autor e o ambiente cultural onde seu talento se desenvolveu. Calvino faz questão de nos mostrar tanto autores cujos nomes são automaticamente associados ao conto fantástico ― Poe ou Guy de Maupassant, por exemplo ― quanto aqueles que se celebrizaram em outros ramos da literatura, mas que eventualmente se dedicaram a explorar o campo do insólito: Hans Christian Andersen, Balzac, Walter Scott...

Se tivesse que escolher as melhores histórias do livro, eu apontaria A Vênus de Ille, de Prosper Merimée, que expressa com tremenda força ― mas sempre com sutileza ― a sensação de um horror que ressurge depois de ter ficado adormecido desde a Antiguidade, tudo girando em torno do achado de uma antiga estátua romana; Amour Dure, em que um jovem estudioso de História se vê apaixonado por uma dama bela e terrível, morta há trezentos anos; O Demônio da Garrafa, de Robert Louis Stevenson, que consegue a proeza de manter o leitor acorrentado à narrativa, mesmo lidando com um tema tão batido quanto o que lhe dá título; quanto a Poe e Hawthorne, nem é preciso dizer que seus trabalhos estão entre os melhores.

Mas a melhor história de todas é a que Calvino, sabiamente, reservou para o fim: Em Terra de Cego, do grande H. G. Wells. O conto fala de um vale encravado no meio dos Andes, onde um grupo de exilados, mestiços de espanhóis e índios, se refugiou no século XVI, e onde existe todo o necessário para que uma pequena população humana viva em paz e fartura ― com o inconveniente de que, por alguma razão misteriosa, lá todas as crianças nascem cegas. Devido à erupção de um vulcão que fecha sua única saída, o vale acaba ficando isolado do mundo exterior, e durante três séculos só nascem lá pessoas cegas. Um dia, já no século XIX, Nuñez, um guia de alpinismo, perde-se de seu grupo e é arrastado por uma avalanche para dentro do vale. Por algum tempo ele acredita que, pelo fato de poder ver, será admirado e invejado por aquele bizarro povo cego ("Em terra de cego, quem tem um olho é rei"), mas logo se decepciona: depois de catorze gerações só de cegos, os habitantes do vale esqueceram tudo sobre o mundo exterior. Ao longo dos séculos surgiram entre eles alguns de espírito filosófico que começaram a questionar as lembranças transmitidas pelos ancestrais, passaram a considerá-las meras crendices ("Por que temos que crer em coisas que nenhum de nós nunca viu?"), e acabaram por negá-las completamente e por convencer os demais. Agora, todos ali ignoram completamente que existe um mundo lá fora: para eles, o universo é aquele vale. E não é tudo: palavras como luz e trevas, dia e noite, olhar, ver, simplesmente não existem em seu vocabulário, nem tampouco a palavra cego, pois esqueceram por completo tudo o que diz respeito ao sentido da visão. As histórias de Nuñez sobre o mundo exterior soam para eles como delírios de um louco, assim como tudo o que ele lhes diz sobre poder "ver". A história é uma alegoria extremamente inteligente que critica certos postulados filosóficos e a maneira como geralmente o conhecimento humano é construído.

É claro que nem tudo é perfeito: há coisas sem as quais o livro poderia passar muito bem, como Os Buracos da Máscara, de um tal Jean Lorrain, texto sem pé nem cabeça cujo único mérito é ser curto, e que simplesmente descreve as alucinações da mente de um drogado, ou Os Amigos dos Amigos, de Henry James ― não tenho a menor intenção de pôr em dúvida a importância ou os méritos de James, mas esse conto em particular, a meu ver, não tem por que ser considerado literatura fantástica, já que as brevíssimas menções que faz a aparições fantasmais não passam de um pretexto para páginas e mais páginas descrevendo as inseguranças sentimentais da heroína narradora.

Apesar desses tropeços, cada conto do livro reserva ao leitor uma ou várias surpresas, e, como guia nessa viagem pelo mundo da imaginação visionária, dificilmente poderíamos querer alguém melhor que Ítalo Calvino, que nos situa no contexto através de uma interessantíssima introdução, além de ter escrito para cada história um pequeno prefácio que fornece informações importantes sobre o autor ― embora seja muito incômodo o fato de o organizador, por alguma razão misteriosa, ter decidido várias vezes bancar o desmancha-prazeres, contando ao incauto leitor o final do conto que ele ainda nem começou a ler. Depois de três ou quatro dessas, passei a adotar o expediente de simplesmente pular o prefácio e depois voltar atrás para lê-lo ― após ter terminado o conto, é claro. Recomendo aos demais leitores fazer o mesmo, e basta tomar esse pequeno cuidado para ter garantidos alguns momentos de arrepios inesquecíveis.

domingo, janeiro 23, 2005

Alexandre


Ontem, sábado, fui ao cinema ver Alexandre, de Oliver Stone. Suponho que devamos agradecer a Ridley Scott e a seu excelente Gladiador pelo fato de os filmes épicos (um gênero que, poucos anos atrás, qualquer um teria dito que estava morto) terem voltado com força total, o que eu, pessoalmente, considero um acontecimento muito feliz, embora, claro, a qualidade dessas produções varie, de modo que tivemos desde os ótimos Gladiador e Rei Arthur até aberrações como Troia... Mas vamos ao que interessa.

A primeira coisa que ficou evidente após os primeiros 30 ou 40 minutos assistindo a Alexandre foi que ele dificilmente irá se tornar um campeão de bilheteria, pois não tem os ingredientes que tornam um filme palatável para o grande público: durante a exibição, várias pessoas se levantaram e foram embora. Trata-se de um filme bastante pesado, intenso (o espectador comum dirá simplesmente que é chato), e, para completar, a impressão que tive foi de que quem já não conhecesse previamente ao menos as linhas gerais da trajetória do rei da Macedônia dificilmente entenderia muito bem o que a tela estava mostrando. É óbvio que houve pesquisa séria, e, historicamente, o filme é bastante acurado, o que foi um alívio constatar, pois assim, mesmo que ele não acrescente muito, pelo menos não fará ninguém sair do cinema com noções absurdas. Sabe-se que Alexandre tinha como seu principal herói Aquiles, de quem se acreditava descendente, e confesso que eu estava com fortes receios de que o Alexandre de Colin Farrell se mostrasse digno do Aquiles de Brad Pitt, mas, graças aos "deuses", não foi o que se viu – não graças ao desempenho de Farrell, que não se mostra à altura do papel, mas, de todo jeito, se Alexandre não é um filme brilhante, também não decepciona.

Uma coisa que se deve elogiar é o fato de o filme ter captado com eficiência alguns detalhes sutis mas importantes a respeito do personagem, particularmente seu relacionamento complicado com seus pais e a educação esmerada que recebeu. Pessoalmente, eu gostaria de ter visto o momento em que, ao receber a notícia de mais uma vitória militar de seu pai, o rei Filipe, Alexandre, ainda menino, ter-se-ia voltado para seus companheiros e lamentado: "Meu pai vai conquistar tudo, meninos, e não deixará para nós nenhum feito grandioso!" O que geralmente chama a atenção das pessoas nesse caso é a ambição demonstrada pelo jovem príncipe; a mim, o que mais impressiona é o fato de ele não ter dito "para mim", e sim "para nós", mostrando seu desejo de que seus companheiros de brinquedos de então viessem a ser, no futuro, seus seguidores nos grandes feitos que esperava realizar, pois estava perfeitamente ciente de que, sozinho, nada conseguiria fazer. É essa a maneira de pensar de um verdadeiro líder.

Comentei que o filme mostra a educação cuidadosa dada ao jovem Alexandre, mas aí existe um senão: em certo momento, seu mestre, Aristóteles (interpretado por um envelhecido Christopher Plummer) declara que "apesar de pertencerem a uma raça inferior, os persas governam quatro quintos do mundo conhecido". "Raça inferior"?! Depois dessa, fiquei antevendo a hora em que o velho sábio de Estagira iria bater os calcanhares e gritar heil Hitler! Não vou tentar exibir conhecimentos que não tenho, pois ainda não li as obras de Aristóteles e não sei se uma afirmação dessas encontraria respaldo nelas, mas, à luz de tudo o que sei sobre o pensamento greco-romano, ela é muito estranha. Para os romanos, pelo menos, racismo era um conceito alienígena – e, como eles herdaram boa parte de suas crenças e convicções dos gregos... Não quero dizer com isso que o modo de pensar deles pudesse ser considerado politicamente correto nos dias de hoje; embora não classificassem os seres humanos em superiores e inferiores pela raça, os romanos praticavam o culturalismo, que, para olhos modernos, é quase tão condenável quanto o racismo: a superioridade, para eles, não estava na cor da pele ou dos olhos, mas na educação que a pessoa recebesse. Um homem podia ser negro retinto e ter nascido numa palhoça em qualquer savana empoeirada da África: desde que tivesse uma boa educação clássica e aprendesse a portar-se como um verdadeiro "cidadão", nenhum romano esclarecido se recusaria a tratá-lo como um igual. É verdade, porém, que isso pode dever-se ao fato de os romanos terem tido muito mais contato com povos e culturas exóticas que os gregos, sendo levados pela necessidade a se tornarem mais tolerantes. Agradeço se alguém que me ler puder enviar informações a respeito.

Voltando a falar do filme, achei o elenco bem irregular. Anthony Hopkins, no papel de Ptolomeu, está, como sempre, impecável, mas aparece pouco. Colin Farrell, como Alexandre, parece perdido e desnorteado durante a maior parte do tempo. Angelina Jolie está belíssima e, por que não dizê-lo, venenosa interpretando a ardente e manipuladora rainha Olímpia, mãe de Alexandre, enquanto Val Kilmer encarnou perfeitamente o pai, Felipe, que, apesar de ter sido um bom rei, hábil general e um dos homens mais astutos de sua época, nunca deixou de ser um tipo grosseiro – um "bárbaro", como não se cansava de dizer o célebre orador ateniense Demóstenes, seu inimigo jurado. E Jared Leto, como Heféstion, é pouco mais que uma figura decorativa, apesar da óbvia pretensão do diretor de criar polêmica em torno da discutida relação entre Alexandre e esse seu companheiro de infância: seriam eles amigos fraternos ou "algo mais"? Oliver Stone aposta no "algo mais", o que é, no mínimo, uma iniciativa corajosa.

O filme também mostra o que, segundo os historiadores antigos, causou a perdição de Alexandre: as concessões cada vez maiores que começou a fazer aos costumes orientais com que foi tendo contato ao longo de suas conquistas – concessões essas que dizem respeito tanto a sua vida pessoal quanto ao modo de agir como monarca e comandante militar. Inicialmente um homem comedido em tudo, acostumado desde a infância a uma alimentação frugal, à vida ao ar livre e ao desconforto (a despeito de seu berço real), acabou adotando um modo de vida dissoluto, varando noites e mais noites em orgias e bebendo quantidades enormes de vinho, o que acabaria minando sua saúde e causando sua morte antes de completar 33 anos. Já no relacionamento com seus seguidores, o discurso do general Clito pouco antes de ser assassinado pelo rei num acesso de cólera (essa cena é histórica) traduz perfeitamente o descontentamento que foi crescendo entre os guerreiros de Alexandre: "Lembro-me do tempo em que conversávamos olho no olho, como homens! Agora temos que implorar a funcionários estrangeiros para ter uma palavra com nosso próprio rei!" De fato, Alexandre, que começara sendo tão amado por seus soldados exatamente porque eles sentiam que ele era, antes de mais nada, um deles, passou a distanciar-se cada vez mais de seus homens, exigindo, inclusive, que todos o saudassem com o tradicional ato da prosternação. Para os persas e outros asiáticos, isso era uma simples regra de etiqueta, perfeitamente natural na presença da realeza; já para macedônios e gregos, acostumados a tratar em pé de igualdade com seus líderes, ajoelhar-se diante de um homem, rei ou não, era visto como uma grave indignidade.

Apesar dos defeitos que tem, e dos quais o maior é o próprio Colin Farrell, o filme de Stone, visualmente, beira a perfeição – a cena em que Alexandre enfrenta um elefante de guerra nas florestas da Índia vai ficar impressa em minha mente até o fim dos meus dias, e o predomínio dos tons vermelhos nas tomadas seguintes parece dizer que, depois de tão terrível batalha, tudo parecia, aos olhos de Alexandre, estar envolto numa névoa de sangue. Também merece ser destacada a parte que mostra o esforço desesperado de Alexandre e seus comandantes para evitar que os soldados entrassem em pânico diante de uma carga de elefantes – monstros gigantescos e aterradores, dos quais, no máximo, tinham ouvido falar. Porém, de acordo com os historiadores, não foi essa a primeira vez que o exército de Alexandre enfrentou elefantes, pois o exército persa que já tinham enfrentado e vencido por mais de uma vez também os utilizava.

Detalhe curioso: junto ao leito de morte de Heféstion, tentando animar o amigo moribundo, Alexandre fala das conquistas que projeta para o futuro: depois de conquistar a Ásia, ele almeja a Europa (e quem pode dizer que não o teria conseguido, caso tivesse vivido mais vinte ou trinta anos?). Refere-se à Sicília e aos romanos, a quem considera bons lutadores, mas que tem certeza de poder conquistar. Naquela época, dificilmente alguém poderia imaginar que, um século e meio depois, seriam os descendentes dos mesmos romanos a quem Alexandre sonhava subjugar (e que, na época dele, não passavam de uma tribo bárbara) que conquistariam a Macedônia. A batalha de Pidna, em 168 a. C., pôs fim à Terceira Guerra Macedônica e também à própria Macedônia como reino e Estado independente, tornando-a, na prática, uma província romana. Seu último rei, Perseu (nada a ver com o herói mítico de mesmo nome) foi levado para Roma como prisioneiro e apresentado em correntes no desfile triunfal de seus inimigos vitoriosos.

Houve dois pontos, aliás, que, muito caros a Alexandre, seriam mais tarde retomados pelos romanos. O primeiro foi o sonho de um império universal, que reunisse toda a humanidade (do mundo conhecido na época, claro está) sob um único governo, o que asseguraria uma paz sólida e duradoura; Alexandre não chegou a consegui-lo, já que seu império se desfez quase imediatamente após sua morte. Os romanos chegariam mais perto desse objetivo. O outro ponto era a importância de ter um exército não apenas aguerrido, mas disciplinado e bem treinado: tanto Alexandre quanto os generais de Roma mostrariam, de forma inequívoca, que um exército poderia vencer, mesmo em inferioridade numérica, desde que fosse capaz de atuar como um grupo coeso, reagindo aos comandos como um único organismo e seguindo um plano de batalha engenhoso.

Para terminar meu comentário sobre o filme especificamente, posso dizer que ele pode ser uma experiência interessante para quem já leu sobre Alexandre e conhece sua história - mas quem não a conhece, não é através desse filme que irá conhecer. Há muitos bons livros sobre o personagem; mesmo que vocês não sejam aficionados por livros de História propriamente ditos, há uma ampla variedade de romances, alguns deles fascinantes, que apresentam a vida do jovem conquistador com maior ou menor grau de precisão histórica. Sugiro ler vários deles e confrontá-los com alguma biografia resumida de Alexandre, para ter uma noção de onde um ou outro autor permitiu-se alguma licença poética.