sábado, agosto 13, 2005

A Última Legião


O escritor italiano Valerio Massimo Manfredi escolheu como seu "chão" o mundo antigo, tendo-se notabilizado entre nós com sua belíssima trilogia Aléxandros (para quem não sabe, é sobre Alexandre, o Grande, sendo o título a forma original do nome do grande conquistador – a tônica é no e e o x pronuncia-se ks), sobre a qual ainda espero escrever meus comentários. Não obstante, foi com A Última Legião que tive meu primeiro contato com a obra de Manfredi, e foi este o livro que me levou a considerá-lo um nome no qual se deve prestar atenção entre os expoentes atuais no campo da ficção histórica.

Experimentem pegar diversos livros, ou, mais ainda, filmes, cuja ação seja ambientada na Roma antiga, e ler as sinopses nas orelhas e contracapas. Em quase todos se leem coisas como "um retrato vivo e marcante da Roma antiga da época da decadência". Isso me irrita profundamente, pois demonstra apenas que quem escreve essas sinopses não entende coisíssima alguma de História. Seja qual for o período que o livro ou filme focalize – as Guerras Púnicas, a época de Júlio César, a perseguição aos cristãos sob Nero ou o tempo de Marco Aurélio e Cômodo – as sinopses sempre falam em "época da decadência", como se a civilização romana jamais tivesse feito coisa alguma em toda a sua história a não ser "decair". E foi essa a ideia que se popularizou: Roma como uma civilização de bêbados, loucos e libertinos. Ninguém jamais ouviu falar em Horácio Cocles, que defendeu a Ponte Sublícia, sozinho, contra todo o exército etrusco, ou em Caio Cévola, que queimou a própria mão direita para não entregar ao inimigo informações que prejudicassem seus compatriotas. Mesmo no tempo de Calígula ou de Nero, as orgias e demências desses dois imperadores e de seus protegidos nenhuma diferença faziam para o legionário anônimo que arriscava a vida em alguma fronteira bárbara pela grandeza do Império.

Por outro lado, pode-se dizer que A Última Legião, sim, é um romance que realmente fala sobre a decadência do Império Romano. Não que retrate nobres embriagados ou funcionários corruptos: ele simplesmente narra os acontecimentos de 476 d.C. – ano em que foi deposto Rômulo Augusto, último imperador a governar o Império Romano do Ocidente, acontecimento esse que, por convenção, marca o fim da civilização romana e da Antiguidade, bem como o início da Idade Média (não custa lembrar que o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, com sede em Constantinopla, continuaria a existir por mais mil anos).

O livro é apresentado como se fossem as memórias de Myrdin Emreis, que os romanos chamam de Meridius Ambrosinus – um druida da Bretanha, que no ano fatídico desempenhava as funções de preceptor do imperador, que tinha, à época, apenas 13 anos de idade. Rômulo é filho do general Flávio Orestes, que foi, em tempos, assessor de Átila, conseguindo amenizar, ao menos um pouco, o impulso destruidor que os hunos traziam ao invadirem o Império. Mais tarde, Orestes veio a derrubar o fraco imperador Júlio Nepote, mas, ao invés de colocar o manto imperial sobre os próprios ombros, preferiu nomear o filho, reservando para si o comando supremo do exército. Numa época em que o exército romano era formado basicamente por guerreiros bárbaros recrutados, Orestes decidiu (assim nos conta Manfredi) criar uma unidade especial, à qual chamou Legio Nova Invicta, treinada nos moldes das antigas legiões, cuja força e disciplina levaram Roma a dominar o mundo. Quando o chefe germânico Odoacro – que havia feito carreira servindo ao exército romano – decide se rebelar, a Nova Invicta, depois de lutar bravamente, é massacrada por uma multidão de guerreiros bárbaros sob as ordens do líder rebelde, quase ao mesmo tempo em que a casa de Orestes é atacada por outro bando. Quase todos são mortos, mas o jovem imperador e seu mestre Myrdin, por alguma razão, são poupados e conduzidos vivos ao exílio na ilha de Capri, onde a outrora suntuosa e agora decadente Villa Júpiter, residência de verão construída pelo imperador Tibério, torna-se seu cárcere. É historicamente sabido que Rômulo foi realmente poupado e exilado – mas essa é a última informação que os historiadores podem oferecer sobre ele. Nada mais se sabe sobre sua vida desse ponto em diante, e é precisamente esse momento nebuloso que Manfredi escolhe para começar sua narrativa.

Entre os poucos sobreviventes da Última Legião estão três bravos que ainda não desistiram de considerar a si próprios soldados romanos: o espanhol Rúfio Vatreno, o africano Cornélio Batiato, e o único italiano de nascimento entre eles, Aureliano Ambrósio, conhecido como Aurélio – e deve-se observar que as origens diversas dos três heróis lembram o fato de que ser romano não era realmente uma questão de nacionalidade, mas de cultura, de identificação com uma civilização e suas ideias. Surge então o audacioso plano de seguir o imperador até seu cativeiro em Capri e tentar libertá-lo. Ao destemido trio juntam-se os gregos Orósio e Demétrio, e a jovem Lívia Prisca, exímia arqueira vinda de uma cidade recém-fundada na laguna próxima de Ravena: uma cidade chamada Venetia (pronuncia-se Venécia), construída sobre as águas e onde o único meio de locomoção viável são os barcos. Isso lembra alguma coisa??

Está armado o palco para uma aventura de tirar o fôlego, onde lances de ação vertiginosa se revezam com passagens contemplativas em que os personagens (especialmente o jovem Rômulo, orientado por seu mestre bretão) procuram entender o que se passa com o mundo que os cerca, pois ninguém ainda conseguiu assimilar verdadeiramente a noção de que o Império Romano, que durante séculos pareceu tão perene quanto o céu, não existe mais. Myrdin conduz os companheiros à sua terra natal, na vasta e misteriosa ilha que foi outrora a província mais setentrional do Império, onde ainda os aguarda uma última batalha, e onde a memória de seus feitos, através da bruma dos séculos, irá dar origem a uma nova lenda.

Um detalhe desagradável, mas que não é culpa do autor, é o fato de que, na tradução brasileira, a tentativa de utilizar uma linguagem "de época", que correspondesse melhor ao clima da história, resultou numa infinidade de frases gramaticalmente defeituosas – a triste realidade é que, hoje em dia, praticamente ninguém mais sabe conjugar corretamente os verbos nas pessoas tu e vós.

Para finalizar, uma curiosidade: na nota de agradecimento no começo do livro, o autor "entrega" que já escreveu a história pensando numa futura adaptação para o cinema, o que torna muito lógicas as sequências de ação realmente "visuais" e "cinematográficas" de que o romance está repleto. E quando, meses depois de ter lido A Última Legião, vi no cinema o trailer de Rei Arthur, que estava prestes a ser lançado, confesso que, antes de ficar sabendo do que se tratava, pensei que já fosse o livro de Manfredi transformado em filme!... As paisagens britânicas, aquele guerreiro de elmo e armadura romanos, uma bela arqueira, tudo parecia bater. Leiam o livro e vejam se não me dão razão!... Por fim, faço votos de que o filme A Última Legião não tarde muito a surgir.