domingo, novembro 27, 2005

Os Filhos da Terra

Muitos anos atrás (eu era criança), li na revista Istoé uma crítica que nunca mais esqueci, a respeito do filme A Guerra do Fogo, do diretor francês Jean-Jacques Annaud, inspirado no romance de mesmo nome, do belga J. H. Rosny. A crítica começava com uma reflexão sobre o fenômeno da nostalgia coletiva que parecia estar atingindo a humanidade, que, vivendo num mundo cheio de engenhocas tecnológicas mirabolantes (tanto quanto se podia falar tal coisa na década de 80), passava a sentir saudades do passado, o que, depois de produções como Excalibur e Conan, o Bárbaro, fez com que A Guerra do Fogo, que vai ainda mais fundo no passado e nos leva de volta à pré-história, tivesse se tornado um grande sucesso de público. De fato, ao menos para certo tipo de pessoas (incluo-me), existe um fascínio todo especial nesse mundo primitivo por onde se deslocavam nossos ancestrais, lutando dia a dia por uma precária sobrevivência em meio a uma natureza hostil. Embora hoje pareça difícil acreditar, houve um tempo em que a humanidade era apenas mais uma espécie, ou espécies, que, como qualquer outro animal, lutava com todas as armas para escapar da implacável lei da seleção natural, que elimina sumariamente da face do planeta as espécies que não se adaptam satisfatoriamente às condições de vida de cada era. Com um agravante: por ter inteligência, o homem também buscava compreender a razão de ser disso tudo, questão essa que jamais preocupou os mamutes ou os tigres de dentes de sabre. E não havia ciência para explicar os porquês das coisas: tudo era mistério, e o homem estava perpetuamente à mercê de forças que não dominava ou sequer compreendia.

Valendo-se de uma grande quantidade de novos dados arqueológicos que não eram conhecidos na época de Rosny, a escritora norte-americana Jean M. Auel decidiu dedicar-se a um projeto extremamente ambicioso, a saga dos Filhos da Terra, do qual Ayla, a Filha das Cavernas, é o primeiro volume. O título original do livro era The Clan of the Cave Bear - literalmente, 'O Clã do Urso da Caverna'. A saga, hoje, conta com pelo menos cinco volumes, mas, a partir do segundo, O Vale dos Cavalos, já começa a descambar para o mais elementar romance sentimental, com o impressionante painel do mundo pré-histórico servindo apenas de pretexto. Ayla, a Filha das Cavernas, entretanto, contém uma das narrativas mais poderosas e convincentes que já tive oportunidade de ler, onde os terrores e mistérios do mundo pré-histórico, e o esforço heróico do homem para lidar com a realidade que esse mundo lhe impunha, assumem dimensões épicas.

Todos nós já vimos aquela clássica gravura que ilustra a evolução da espécie humana, mostrando alguns dos nossos ancestrais andando em fila. Iniciando com algo parecido com um gibão, ela apresenta várias espécies primitivas e (se a memória não me trai) passa pelo homem de Neanderthal segurando uma ferramenta de pedra, pelo Cro-Magnon de lança ao ombro, e termina com o homem moderno, novamente de mãos vazias, como a sugerir que sua mais importante arma e ferramenta é o próprio cérebro. Não se trata de uma imagem totalmente incorreta, mas tem a falha de dar a impressão de que cada espécie se sucedia à anterior em linha reta, sem desvios ou ramificações, o que, é claro, não foi o caso: por vezes, ao longo das eras, até três ou quatro espécies diferentes de seres humanos tiveram de partilhar o mesmo ambiente. Na Europa pós-Era Glacial, há cerca de 35 mil anos, onde está ambientada a narrativa de Auel, conviviam duas espécies: o homem de Cro-Magnon - praticamente idêntico a você e a mim - e o homem de Neanderthal.


Este último, que muita gente pensa que era um semimacaco, na realidade possuía uma cultura bastante complexa, o que este livro retrata magnificamente. O fio condutor é a história de Ayla, uma menina da espécie Cro-Magnon, que, após ficar órfã durante um terremoto, é encontrada e adotada por um clã de neandertalenses - o Clã do Urso da Caverna, assim autodenominado porque, na religião em que acreditam, o Urso da Caverna é o mais poderoso de todos os espíritos, e é à sua proteção que eles se confiam. Para servir de ponte entre o mundo dos homens e o dos espíritos, cada clã tem um feiticeiro - o mog-ur -, que adota como totem o próprio Urso da Caverna.

São justamente Creb, o mog-ur do clã, e sua irmã Iza, a curandeira, que passam a fazer as vezes de pais para Ayla. Creb, aleijado desde a infância, nunca foi capaz de caçar, mas esse fato, que teria significado desgraça e vergonha para a maioria dos homens daquele povo, acabou proporcionando-lhe uma posição única em sua sociedade: sem precisar preocupar-se com as atividades comuns dos outros homens, pôde dedicar todo o seu tempo à meditação e à observação da natureza, e assim tornou-se o mais poderoso feiticeiro que o clã jamais teve. Graças à sua sensibilidade privilegiada, ele logo percebe que as diferenças entre aquela estranha criança e o povo que a adotou vão muito além da aparência.

É particularmente interessante a passagem em que Creb tenta ensinar a Ayla os segredos dos números - e fica espantado ao ver a menina "pegar" instantaneamente conceitos que ele próprio só conseguiu dominar após muitos anos de meditação profunda. Ocorre que Ayla, como todos de sua espécie, tem uma conformação cerebral diferente da de Creb e seu povo: enquanto o Homem de Neanderthal tinha a parte traseira do cérebro muito desenvolvida, o de Cro-Magnon desenvolveu mais a parte frontal. O resultado disso é que o neandertalense devia ter uma memória prodigiosa, mas era fraco em raciocínio abstrato, o que tornaria muito difícil imaginar qualquer número maior do que os que pudesse contar com os dedos, e quase impossível executar operações aritméticas. Já nós, não temos tanta facilidade para memorizar, mas, em compensação, desenvolvemos a matemática e o pensamento criativo, que tornaram possíveis todas as invenções. É importante salientar, entretanto, que isso não significa que sejamos mais "inteligentes" que aqueles nossos parentes hoje extintos: simplesmente, nossa inteligência se desenvolveu numa direção, e a deles, em outra.

Ayla é ensinada a portar-se e a trabalhar como fazem as mulheres dos clãs, tendo que superar inúmeras dificuldades para adequar suas diferenças ao tipo de comportamento que é esperado dela. O livro é cheio de detalhes fascinantes sobre a vida diária entre os neandertalenses, desde a procura e o tratamento das ervas medicinais até a fabricação de artefatos de sílex. As cenas de caçadas são espetaculares - a inteligência do homem triunfando sobre a força bruta do bisão, do mamute, do urso. As cerimônias religiosas oficiadas por Creb (em geral, assistidas apenas pelos homens) transmitem um sentido indescritível de profundo mistério, que não deixa de ser impressionante nem mesmo para a mente moderna "esclarecida", desde que se tenha alguma sensibilidade e não se queira julgar por padrões atuais a mentalidade de homens que viveram há 35 mil anos.

É também muito digna de nota a habilidade com que Auel desenha a personalidade de Ayla, que, por mais que se esforce sinceramente para agir como uma boa mulher dos clãs, não consegue deixar de transgredir tabus, porque a natureza simplesmente não a fez para viver como vive o povo que a acolheu, e esse problema segue num crescendo, até tornar impossível a sua permanência no clã onde se criou. Talvez esse conflito cultural seja parte do que falta aos livros seguintes da série, deixando um vazio que a autora procurou preencher com problemas românticos e muitas cenas de sexo. De qualquer forma, Ayla, a Filha das Cavernas, é uma leitura que recomendo plenamente.