domingo, novembro 25, 2007

As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica

Preenchendo uma velha lacuna no mercado editorial brasileiro, os autores gaúchos A. S. Franchini e Carmen Seganfredo chamaram a si a tarefa de recontar numa linguagem acessível as antigas histórias, lendas e fábulas que a humanidade acumulou ao longo de milênios de experiências e sonhos. O primeiro volume a me chegar às mãos, oriundo dessa parceria, foi este As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica. Já existem vários outros, enfocando as mitologias grega, egípcia, a Bíblia, ou sagas e ciclos específicos, como O Anel dos Nibelungos ou o recente Beowulf. Trata-se de uma sacada publicitária inteligente o fato de a capa deste livro trazer a frase "A mitologia na qual J. R. R. Tolkien se baseou para escrever O Senhor dos Anéis", pois, desde o boom de popularidade que a obra de Tolkien experimentou no Brasil após o lançamento da trilogia cinematográfica alguns anos atrás, isso tem quase o mesmo efeito que teriam, na capa de uma nova edição de algum romance brasileiro, os dizeres "Obra que deu origem à minissérie da TV Globo"... Mas vamos falar do livro.

Para quem já é familiarizado com a mitologia greco-romana, um primeiro contato com a nórdica pode causar um certo estranhamento, pois esta reflete os valores e crenças de um povo cuja mentalidade distava anos-luz da dos habitantes da bacia do Mediterrâneo ― embora curiosas semelhanças, por vezes evidentes demais para serem casuais, também existam. Franchini e Seganfredo tiveram o cuidado de traçar paralelos, sempre que necessário, entre a mitologia nórdica propriamente dita ― aquela originária dos países escandinavos ― e a germânica, das regiões que hoje correspondem à Alemanha e Holanda. Os deuses e os heróis são basicamente os mesmos, com nomes ligeiramente diferentes, e o mesmo se dá com muitas das narrativas, que diferem em pequenos ou grandes detalhes. Por exemplo, na primeira parte do livro está narrada a versão nórdica das aventuras de Sigurd ― o mesmo herói que os alemães chamam de Siegfried e que protagoniza o ciclo d'O Anel dos Nibelungos, que pode ser lido na segunda parte, permitindo que se comparem as duas versões, o que dá lugar a observações curiosíssimas. Tanto em sua versão nórdica quanto na germânica, essa narrativa orbita em torno de um anel amaldiçoado e dotado de estranhos poderes, um objeto capaz de transtornar a mente das criaturas a tal ponto que o desejo de possuí-lo supera qualquer escrúpulo moral ou da razão. Esse é o principal ponto de contato entre a obra de Tolkien e a mitologia nórdica, mas não o único: a espada que é quebrada e depois reforjada faz parte do mesmo mito, assim como o dragão que guarda um tesouro com o maior ciúme e ferocidade, embora este seja para ele completamente inútil. Além disso, as passagens em que o deus supremo Odin aparece sob disfarce humano ― na figura de um velho misterioso portando um cajado e uma espada ― lembram de forma irresistível a figura tolkieniana do mago imortal Gandalf. Coincidência? De jeito nenhum!

Deixando Tolkien um pouco de lado (mas não muito, já que tudo está interligado), também não dá para crer que seja coincidência a maneira como Sigmund, pai de Sigurd/Siegfried, vem a possuir a espada mágica Notung, que será mais tarde empunhada pelo filho: Sigmund a remove do tronco de uma imensa árvore onde fora cravada e de onde centenas de guerreiros já haviam tentado retirá-la, inutilmente, já que só um predestinado poderia possuí-la. Não lembra nada?? Pode ser impossível dizer se a lenda nórdica inspirou a britânica, se foi o contrário, ou se ambas simplesmente tiveram origem em algum arquétipo ou símbolo que está no inconsciente coletivo de todos os povos, mas que esse tema merece profundos estudos, disso não há dúvida. Talvez não se chegue a uma resposta final, mas, ao longo do caminho, esses estudos podem revelar coisas essenciais para nosso autoconhecimento e para a compreensão do mito do herói, que, direta ou indiretamente, inspirou todos os seres humanos que já realizaram algo de notável, em qualquer época.

O livro tem alguns pequenos problemas de língua portuguesa, o que é bem estranho, se considerarmos que a orelha informa que Carmen Seganfredo é "bacharelada em Letras e tradutora", mas isso é uma falha menor e perdoável, se comparada à excelente ideia em que se baseia a obra da dupla de escritores e a pesquisa cuidadosa que obviamente existe por trás de cada capítulo. Jung dizia que "os mitos são sonhos públicos, e os sonhos são mitos privados". Tal como os sonhos (tanto os que temos ao dormir quanto os que criamos de olhos abertos) são peças-chave para a compreensão da mente do indivíduo, conhecer os mitos é essencial para quem nunca se cansa de tentar (só tentar!) compreender esse oceano de contradições, esse universo de grandezas e misérias que é a condição humana.

quinta-feira, outubro 04, 2007

O 13.º Guerreiro


De um livro pouco conhecido de Michael Crichton (autor do blockbuster Jurassic Park, além de outros livros/filmes de sucesso mais discreto, como Congo e Linha do Tempo) originou-se este ótimo filme de aventuras dirigido por John McTiernan e estrelado por Antonio Banderas. Além de adrenalina, o DVD também oferece ao espectador mais atento a questões culturais uma série de detalhes interessantes de se observar. Por sinal, as proporções relativas do sucesso alcançado pelas obras de Crichton adaptadas para a tela reflete a grande e inevitável injustiça da indústria cinematográfica: O 13.º Guerreiro é incomparavelmente mais interessante que todas as correrias de T. Rex e Velociraptors pelo parque.

O título original do livro era Eaters of the Dead - ('Os devoradores de mortos'). Não tive o prazer de lê-lo ainda, mas uma pesquisa a respeito me informou que Crichton utilizou o velho truque de apresentar a história como sendo a transcrição de um "antigo manuscrito", nesse caso de autoria do árabe Ahmad Ibn Fadlan, datado do ano 922. Exilado do "mundo civilizado" (o que, nessa época, significava principalmente os países árabes, que superavam em muito a Europa cristã em matéria de ciência e desenvolvimento cultural), Ahmad é enviado para o norte, para atuar como embaixador num país distante. Mas não chega ao destino: às margens do Volga, encontra um bando de vikings e acaba tendo que acompanhá-los numa arriscada viagem para socorrer um reino ameaçado por um mal antigo e misterioso. Um oráculo determina que a expedição deve ser composta por homens em número idêntico ao dos meses no calendário dos nórdicos - treze - e que o último não deve ser viking. Sobra para Ahmad.

Embora eu seja um apaixonado pela cultura, história e mitologia dos povos nórdicos, não posso me dizer um grande conhecedor. Entretanto, até onde pude ver, o visual do filme é bem cuidado: arquitetura, figurinos, armas e, o mais importante, nada de elmos com chifres, coisa que pertence a uma visão caricata dos vikings. Não que tais capacetes não existissem, mas eram raros e usados somente em cerimônias religiosas ou ocasiões de gala - por exemplo, era bem visto para um chefe comparecer a uma festa importante usando sua melhor roupa e um capacete com chifres. Já em batalha, tal objeto seria apenas um peso desnecessário e um alvo fácil para os golpes do inimigo.

Nota-se que a história do filme é parcialmente inspirada no poema épico Beowulf, um dos mais antigos representantes da literatura inglesa - escrito ainda em anglo-saxão, língua ancestral do inglês moderno, e datado entre os anos 700 e 1000. E, sim, foi escrito na Inglaterra, apesar da temática nórdica, e provavelmente antes das invasões dinamarquesas do século X. É claro que no poema não havia nenhum árabe envolvido, e no filme o nome do herói mudou ligeiramente: Beowulf virou Buliwyf. Além disso, não é ele o protagonista, e sim Ahmad.

O mal que os treze guerreiros são convocados a enfrentar é uma horda de criaturas aparentemente semi-humanas, semi-animais, que se escondem em cavernas e atacam em noites brumosas, matando todos que encontram com incrível brutalidade. Seu número parece ilimitado, de modo que apenas lutar com eles e matá-los é inútil: a parte mais difícil da missão consiste em encontrar um meio de detê-los.


Há diversas sugestões de que o wendol - coletivo que designa os monstros - é na verdade uma raça de origem muito primitiva: num dos lugares por onde semearam a morte, eles perdem um ídolo, uma pequena estátua feminina com seios e nádegas enormes, ou seja, uma deusa representando a fertilidade, tal como era figurada pelo homem de Cro-Magnon há mais de 30 mil anos. São aparentemente governados por uma "rainha-mãe" e pelo companheiro dela, que lidera o wendol nos ataques e usa chifres como insígnia. Tudo elementos de uma simbologia de origem pré-histórica: a Grande Mãe e o Deus Chifrudo...

Mas o mais interessante é o choque de culturas, que o livro deve desenvolver muito mais, já que no filme só há tempo para rápidas pinceladas. Ahmad é um homem culto, sofisticado, que a princípio se choca na presença daqueles "bárbaros", mas aos poucos aprende a reconhecer suas qualidades e a criar laços de amizade com eles. Fica atordoado com a alegria constante e ruidosa dos nórdicos, que brincam e gargalham quase o tempo todo, seja a bordo de um navio a ponto de ir a pique numa tempestade, ou pouco antes de uma batalha em tremenda desvantagem numérica contra um inimigo apavorante. Tanto ele quanto o espectador compreendem um pouco melhor essa atitude quando um dos guerreiros diz a Ahmad mais ou menos isto: "Nosso destino já estava escrito antes de nascermos, e assim também o momento de nossa morte. Esconda-se num buraco se quiser, mas isso não o fará viver nem um minuto a mais. O homem nada ganha com o medo". Essa filosofia fatalista explica a coragem por vezes beirando a insensatez que sempre caracterizou os guerreiros nórdicos, e é idêntica à que norteava os heróis gregos nos poemas homéricos: o homem não escolhe o momento de sua morte, mas pode escolher o modo como irá encará-la.

Enfim, seja com um olhar cultural ou apenas por diversão, recomendo plenamente que O 13.º Guerreiro seja visto. Vale bem mais a pena do que muitos outros filmes sobre os quais se fez bem mais barulho!

quinta-feira, setembro 20, 2007

A História Sem Fim

"(...) É isso precisamente o mais importante. Não percebe? Os homens só não pensarão em visitar Fantasia se pensarem que ela não existe. E tudo depende disso, pois, enquanto não conhecem sua verdadeira natureza, vocês podem fazer deles o que quiserem.
- Fazer deles o quê?
- Tudo o que quiserem. Vocês têm poder sobre eles. E nada tem mais poder sobre o homem do que a mentira. Porque os homens, filhinho, vivem de idéias. E as idéias podem ser dirigidas. Esse poder é o único que conta. É por isso que eu tenho estado do lado do poder e o servi, para poder participar dele... embora de forma diferente da sua e da dos seres iguais a você.
- Eu não quero participar dele!, balbuciou Atreiú.
- Calma, pequeno louco, rosnou o lobisomem. Quando chegar a sua vez de saltar para o Nada, você se transformará também num servidor do poder, desfigurado e sem vontade própria. Quem sabe para o que vai servir. É possível que, com sua ajuda, se possa convencer os homens a comprar o que não necessitam, a odiar o que não conhecem, a acreditar no que os domina ou a duvidar do que os podia salvar. Por seu intermédio, pequenos seres de Fantasia, fazem-se grandes negócios no mundo dos homens, desencadeiam-se guerras, fundam-se impérios...
Gmork contemplou o rapaz durante algum tempo, com os olhos semicerrados, e logo acrescentou:
- Há também uma quantidade de pobres tontos que, naturalmente, se julgam muito inteligentes e pensam servir à verdade, e não encontram nada de melhor para fazer do que dissuadir as crianças da existência de Fantasia. Talvez você possa ser útil a eles.
Atreiú permaneceu de cabeça baixa. Agora ele sabia por que os filhos dos homens já não vinham mais a Fantasia e por que nunca nenhum deles viria para dar um novo nome à imperatriz Criança. Quanto mais se alastrava a destruição em Fantasia, maior era o número de mentiras que entrava no mundo dos homens; precisamente por isso, a cada segundo que passava, diminuía a possibilidade da vinda de um ser humano. Era um círculo vicioso de onde não se podia fugir. Atreiú sabia-o agora."


* * *

Michael Ende (1929-1996) foi um escritor curioso. Filho do pintor Edgar Ende - um dos nomes mais importantes do surrealismo alemão, além de ter sido ativo na política, tendo chegado a ser perseguido por ser opositor do nazismo -, ele também se dedicou à pintura, embora as obras que o tornaram famoso tenham sido as que produziu na máquina de escrever. Não obstante, a lembrança das imagens poderosas e do pensamento profundo e franco do pai influenciaria Michael durante toda a vida, e apareceria tanto em sua pintura quanto em seus livros. Não é por outro motivo que nenhum outro escritor que eu conheça conseguiu transplantar de forma tão eficaz para a literatura a estética própria da pintura surrealista.

Sempre que menciono A História Sem Fim para algum amigo, ouço o comentário inevitável: "Ah, sim, o filme do cachorro voador..." É normal: não dá para negar que Fuchur, o Dragão da Sorte, embora seja descrito no livro como tendo um rosto mais semelhante ao de um leão, ficou mesmo parecendo um cão ao ser recriado no cinema, no já antigo filme The Neverending Story (1984), dirigido pelo mesmo Wolfgang Petersen que recentemente desgraçou o próprio nome ao perpetrar aquela monstruosidade denominada Tróia. Entretanto, por A História Sem Fim, Petersen merece elogios, pois fez um trabalho bastante notável e, no que é essencial, fiel ao espírito da obra. Cuidado, porém: foram produzidos três episódios, dos quais só recomendo assistir ao primeiro. Passem longe dos outros dois!...


O elemento surrealista na escrita de Michael Ende fica mais explícito em outro livro seu, o perturbador O Espelho no Espelho, mas também pode ser observado em A História Sem Fim, que é de longe sua obra mais conhecida. E o autor serviu-se de forma magistral desse elemento como uma ferramenta para expressar seu inconformismo diante de um mundo que ele via a cada dia tornar-se mais banal e mecânico, um mundo do qual a imaginação e a beleza pareciam estar sendo sistematicamente banidas em prol de um racionalismo vazio e autodestrutivo. Esse inconformismo foi a tela sobre a qual Ende pintou A História Sem Fim, que, a um olhar distraído, parece um simples romance infanto-juvenil, mas, aos que se dispuserem a procurar entendê-lo, revela-se uma obra de implicações filosóficas profundas e um vigoroso manifesto a favor dos valores humanos essenciais, tão negligenciados pela sociedade "moderna".

A história começa com um garoto, habitante de uma cidade qualquer da Alemanha, um garoto gorducho, tímido, desajeitado, que vivencia o mesmo pequeno inferno de muitas crianças em todos os lugares do mundo. Ao mesmo tempo em que não é atlético nem popular entre os colegas, não conta com o consolo de ser um estudante brilhante, pois, embora possua uma inteligência toda especial, esta não é valorizada pelo sistema de ensino pelo qual se rege a escola que ele freqüenta (isso soou familiar a alguém? A mim, sim). Para completar seu sofrimento, ele perdeu a mãe há algum tempo, e o pai jamais se recuperou da morte dela, de modo que se formou um abismo entre os dois: o menino está, para quase todos os efeitos, sozinho no mundo.

Esse garoto se chama Bastian Baltasar Bux. Como pouco ou nada no texto de Ende deixa de ter um significado, o nome do personagem deve receber atenção. "Bastian" é um bastião - uma fortaleza solitária que ainda guarda uma chama de imaginação num mundo tão carente disso. O nome do meio também deve ter seu simbolismo, que não consegui decifrar, mas o último é muito fácil: Bux significa livros - a pronúncia é a mesma tanto em alemão (Buchs) quanto em inglês (books). Bastian, pois, é uma esperança para o mundo dos homens, por ser um dos últimos, talvez o último ser humano que ainda conhece o poder da imaginação e a magia dos livros. E é nos livros que o garoto desajustado encontra refúgio e consolo, bem como nas histórias que inventa e "conta a si mesmo".

Certa manhã fria e chuvosa, ao dirigir-se à escola, Bastian acaba tendo que fugir de outro componente de seu calvário cotidiano: aqueles onipresentes garotos cujo maior prazer na vida é atormentar qualquer um que seja "diferente". Aparentemente por acaso, Bastian esconde-se numa pequena loja de livros raros, cujo proprietário, o Sr. Koreander, apesar de absolutamente ranzinza e antipático, digna-se a uma rápida conversa com ele. Pouco depois, sem saber ao certo como isso aconteceu, Bastian acaba furtando da loja um livro intitulado A História Sem Fim - e, a partir daí, encontra-se com um destino que não tem mais volta.

O livro fala de um lugar chamado "Fantasia", que, aos poucos, Bastian descobre ser o mundo infinito criado pela imaginação dos seres humanos. Todos os seres e histórias fabulosas são reais nesse mundo - e não apenas os gnomos, fadas e outras coisinhas simpáticas: por mais de uma vez Ende deixa entrever que em Fantasia também moram as criações mais horripilantes e demoníacas já engendradas pela mente humana.

E Fantasia está em crise. Em quase toda parte surge o misterioso fenômeno conhecido como "o Nada": coisas, criaturas, lugares inteiros simplesmente desaparecem, sem deixar nada em seu lugar - absolutamente nada; um vazio absoluto, a ausência do que quer que seja. Pequeno a princípio, o Nada aumenta sem parar, e vai aos poucos devorando países inteiros. Ao mesmo tempo em que isso acontece, a soberana de Fantasia, a imperatriz Criança (eis aí outro nome cheio de significado) sofre de uma estranha doença que médico algum consegue diagnosticar e muito menos curar.

Para ir em busca de cura para a imperatriz e de salvação para Fantasia, um herói é chamado: um improvável herói, Atreiú (pronuncie Atrêiu), um menino da idade de Bastian, pertencente à raça dos Peles-Verdes, caçadores semi-selvagens que habitam as pradarias de Fantasia e são exímios cavaleiros - é óbvio que, para criar esse povo, Ende inspirou-se nos índios norte-americanos. Atreiú parte para sua Grande Busca e nela vive mil peripécias, enfrenta perigos e sofrimentos. Tudo é acompanhado por Bastian através das páginas do livro, mas, à medida em que vai lendo, ele percebe coisas estranhas: indícios de que sua própria existência é conhecida pelos habitantes de Fantasia, e de que seus gestos podem repercutir no desenrolar da história.

Sem exagero algum, posso dizer que o capítulo IX de A História Sem Fim, que narra o encontro de Atreiú com Gmork, o Lobisomem, e o diálogo entre os dois, é uma das coisas mais impressionantes que já li em minha vida - e, modéstia à parte, eu já li muita coisa. Gmork é um servo dos poderes obscuros que estão por trás da destruição de Fantasia, e revela a Atreiú como tudo funciona: Fantasia está acabando porque os seres humanos do mundo real, cujos sonhos e imaginações são o próprio material do qual Fantasia é feita, esqueceram-se dela e não mais a estão visitando. Ao mesmo tempo, as criaturas fantásticas que são aniquiladas à medida em que o Nada se espalha são lançadas no mundo dos homens, mas terrivelmente deformadas e mutiladas: transformam-se em mentiras, que envenenam o pensamento dos seres humanos e os tornam cada vez mais desesperançados e infelizes, contribuindo para que a destruição de Fantasia aconteça cada vez mais depressa. A única salvação possível seria que um - pelo menos um - ser humano viesse a Fantasia agora.

E Bastian vai. Sua intervenção salva a vida da imperatriz Criança e faz com que Fantasia se recupere, eliminando o Nada. Em gratidão, a imperatriz lhe permite realizar todos os seus sonhos. O garoto desengonçado torna-se um herói admirado por todos em Fantasia. Encontra-se com Atreiú e os dois tornam-se grandes amigos. De agora em diante, Bastian terá que empreender uma jornada por Fantasia em busca da sua "Verdadeira Vontade" e do caminho de volta para seu mundo - e só poderá fazer isso através de seus desejos, passando de um desejo a outro.

Mas há um porém: cada desejo que Bastian tem, ao se realizar, faz com que ele esqueça alguma coisa de sua existência no mundo dos homens. O próprio Bastian não se preocupa com isso, pois a vida que tem agora em Fantasia é mil vezes melhor que a que tinha antes, e ele não tem a menor vontade de retornar à realidade. Mas Atreiú, preocupado com o amigo, sabe que, se ele esquecer tudo sobre sua vida anterior, terá perdido o contato consigo próprio e deixado de ser ele mesmo - e não poderá voltar ao mundo dos homens para ensinar a outros o caminho para Fantasia, de modo que esta ficará novamente em perigo de ser destruída.

Michael Ende não é defensor de um escapismo irresponsável. Sua História Sem Fim, ao mesmo tempo em que alerta para o mal que o abandono da imaginação e do sonho causa às pessoas como indivíduos e à sociedade como um todo, também fala sobre o perigo de querer ficar para sempre em Fantasia e perder o contato com a realidade. É o que se vê no capítulo em que Bastian visita a Cidade dos Antigos Imperadores, onde vivem milhares de seres humanos que trilharam o mesmo caminho que ele e o finalizaram de forma errada: perderam suas últimas recordações do mundo real e ficaram sem saída em Fantasia, incapazes de ter desejos, de modo que o que lhes restou foi um estado de absoluta demência e uma vida aprisionada no instante presente, sem passado e sem futuro.

A História Sem Fim foi um dos livros que mais me marcaram até hoje. Vi o filme aos 11 anos de idade, ganhei o livro cerca de um ano depois e, de lá para cá, pelos meus cálculos, devo tê-lo lido seis ou sete vezes, e cada nova leitura revelou coisas novas, e me despertou pensamentos diferentes. Ende, tal como Bastian, cumpriu com louvor a missão de ensinar a muita gente o caminho para Fantasia, e, como diz o Sr. Koreander a Bastian quando os dois se reencontram no final do livro, "há muitas portas para Fantasia, meu rapaz. Há muitos outros livros mágicos. Muitas pessoas nunca percebem isso. Tudo depende da pessoa em cujas mãos o livro vai parar."

Eu encontrei meu caminho para Fantasia e agradeço por isso não só a Ende, como também a Tolkien, Haggard, Júlio Verne, Weis & Hickman, Poul Anderson, Jack Vance e uma miríade de outros. Hoje tento retribuir o bem que me foi feito, ensinando-o a outras pessoas. Ficarei feliz se este texto apontar o caminho a mais um ou dois que se tornem, como eu, Bastian e Ende, viajantes de Fantasia.

sexta-feira, julho 27, 2007

Lady of the Lake

(Blackmore/Dio)

There's a magical sound slidin' over the ground
Makin' it shiver and shake
And a permanent cry fallin' out of the sky
Slippery and sly like a snake

With a delicate move kind of shifty and smooth
A shadow has covered the light
Then a beam in the shade from a silvery blade
Has shattered the edge of the night

I know she waits below
Only to rise on command
When she comes for me
She's got my life in her hands

When a movement behind hit the side of my mind
I trembled and shook it away
Then another assault and I started to faulter
Fibres of steel turned to clay

With a bubbly turn now the water should churn
And push it way from the core
And a lady in white will bring sun to the night
Brighter than ever before

I know she waits below
Only to rise on command
When she comes to me
She's got my life in her hands
Lady of the lake

There's a magical sound slidin' over the ground
Makin' it shiver and shake
And a permanent cry fallin' out of the sky
Slippery and sly like a snake

With a delicate move kind of shifty and smooth
A shadow has covered the light
Then a beam in the shade from a silvery blade
Has shattered the edge of the night

Straight down I'm swirling around
Blinded and bruised by the strain
There must be some way to see
Diamonds out of the rain

I know she waits below
Only to rise on command
When she comes for me
She's got my life in her hands
Lady of the lake

* * *

Uma de minhas grandes frustrações é não conseguir fazer poesia. Sei que escrevo bem, e, por mais que isso seja inútil neste mundo onde o semianalfabetismo não é obstáculo para uma carreira "bem-sucedida" (conforme a noção corrente de "sucesso"), escrever acabou por tornar-se um dos maiores prazeres que encontro numa vida que oferece tão poucos motivos de satisfação. Mas não há nada como ser capaz de alinhar em versos, com ou sem rima, os nossos sentimentos mais pungentes, jogá-los numa folha de papel, onde já não nos podem machucar, e ali os olhar com a sensação de quem venceu uma luta. Transformar dor em beleza! Mesmo as horrendas tentativas que ocasionalmente já perpetrei fizeram-me um certo bem. Escrever um bom poema deve ser como arrancar um espinho do próprio coração.

Aos que não têm esse dom, resta ler os poemas daqueles que o têm - uma forma de catarse, penso eu. O poema que diz as coisas que gostaríamos de dizer se o conseguíssemos não precisa necessariamente estar em livros, nem num site de poesia. A letra de uma música também é poesia - boa ou ruim, mas poesia -, embora só em momentos especiais a percebamos como tal.

Conheço Lady of the Lake há uns 17 ou 18 anos - o Rainbow, grupo que a compôs e gravou, foi uma das primeiras bandas de rock que ouvi. Seu vocalista e letrista, Ronnie James Dio, passaria depois pelo Black Sabbath, além de fazer uma cultuada carreira solo, e hoje é tido como um dos maiores cantores da história do rock. O guitarrista Ritchie Blackmore, membro fundador do Deep Purple, não é uma figura menos lendária. Considero Lady of the Lake um dos mais belos produtos da breve parceria dos dois.

Lady of the Lake ('A Dama do Lago') é obviamente uma referência tomada às lendas do ciclo arturiano, adaptada por Dio à sua própria e muito particular maneira. São versos bastante obscuros, e, como dizia Renato Russo, qualquer tentativa de interpretação deve ser feita com cuidado, pois pode acabar revelando mais sobre a pessoa que tenta interpretá-la do que sobre a letra em si...

Sempre me pareceu que essa letra quer passar a mensagem de que, não importa que trevas e turbulências enfrentemos, há sempre uma luz para aqueles que sabem para onde olhar - uma luz que pode tornar o mundo (ao menos o mundo particular de cada um) mais belo e significativo, fazê-lo valer a pena. Talvez eu interprete dessa forma porque meu mundo interior sempre me foi muito caro. É muito mais fácil não se sentir sozinho quando se tem uma vida interior intensa, e isso depende apenas da vontade do indivíduo. É simples.

Porém, como às vezes acontece, esses versos ganharam novos significados para mim, num momento em que, ao ouvir a música (calculo que pela 1294.ª vez na minha vida, ou por aí), eu me encontrava num estado melancólico e sentimental, um daqueles momentos em que nem mesmo a vida interior intensa de que eu falava há pouco consegue evitar que um sujeito se sinta dolorosamente sozinho. Então, enquanto Blackmore tocava seu solo, pus-me a me perguntar quem era, afinal de contas, essa Dama do Lago - quem ela era para mim.

Um lago, com suas profundezas sombrias, pode simbolizar muita coisa, desde o desconhecido infinito do universo que me cerca até o outro desconhecido infinito dentro de mim - ou qualquer coisa entre os dois. Quem seria então, quem poderia ser, essa Dama que surge de lá?... Minha intuição a respeito dela era de algo realmente grande e bom - o sol que ela traria para a minha noite, e que me faria ver tudo de uma maneira diferente e mais bela. Mas, independente do que pudesse ter nas mãos quando viesse, como seria ela? Não me pergunto que aparência teria, pergunto-me apenas como me sentiria ao reconhecê-la, ela que com apenas um olhar daria um sentido a tudo. E não precisaria trazer nas mãos a sagrada Excalibur para me entregar: ela, a Dama, sua presença, bastaria para que eu entendesse que a verdadeira Excalibur não precisava ser retirada de uma rocha, nem trazida das profundezas místicas de um lago qualquer - ela sempre teria estado na minha mão, desde o início, sem ser percebida. E a Dama estaria sempre ao meu lado e em meus pensamentos, sua suavidade amplificando minha força, a lembrança de seu sorriso bastando para curar qualquer ferida. Guiado pelo toque delicado de seus dedos, meu braço poderia abater gigantes.

Um belo sonho, e os sonhos são necessários - não importa se podem ou não se realizar. Eles são necessários porque são tudo o que impede que a brutalidade do mundo "real" seque nossa alma e nos transforme em seres triviais e mesquinhos. Porém, naquele momento, ao mesmo tempo em que pela primeira vez encontrava uma resposta, por nebulosa que fosse, sobre quem seria a minha Dama do Lago, também compreendi que ela não podia existir. Pois, a partir do momento em que ganhasse existência real, ela estaria maculada pelo mundo, e já não seria mais a Dama do Lago.

domingo, abril 29, 2007

300



Logo que ele estreou, algumas semanas atrás, corri ao cinema para ver o novo filme sobre a batalha das Termópilas, sobre o qual até quem não tem especial inclinação por épicos da Antigüidade andava curioso – imagine-se então como eu estava. E, para começar com a impressão geral que tive, posso dizer que 300 não me decepcionou, embora também não seja exatamente o que eu estava esperando.

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que, apesar de inspirado num acontecimento histórico real – e extremamente importante –, e de o roteiro seguir os fatos nos pontos principais, 300 é uma fantasia, o que fica evidenciado por uma série de elementos que claramente pertencem ao universo da imaginação: criaturas semi-humanas, como um homem-fera que os Imortais persas atiçam contra os espartanos; um inusitado "rinoceronte de guerra" (elefantes de guerra, tudo bem, realmente existiam e o exército persa os tinha, embora não haja registro de terem sido usados nessa batalha, mas o rinoceronte nem mesmo é suficientemente inteligente para ser domado ou treinado), e por aí vai. E como não mencionar o rei Xerxes, interpretado pelo brasileiro Rodrigo Santoro, que, graças ao milagre dos efeitos visuais, aparece em cena com três metros de altura? Talvez seja melhor dizer que o filme é uma trama histórica temperada com elementos de fantasia, e tudo arquitetado com extrema competência. O elenco corresponde às exigências da história e a sombria fotografia em sépia ajuda a configurar o clima de "armagedom". O que realmente não gostei foi da anêmica e desnecessária trama paralela protagonizada pela rainha Gorgo (Lena Headey), esposa do rei Leônidas (Gerard Butler), que serve apenas para causar irritantes quebras de ritmo e de clima, a cada vez que a ação é transferida do local da batalha para a cidade de Esparta. Mas algo do tipo já era previsível, considerando a completa impossibilidade de Hollywood produzir um filme de grandes proporções sem colocar um romance, ainda que periférico, na trama. A culpa não cabe a Headey, que, além de bonita, é boa atriz.

300, o filme, baseou-se diretamente numa graphic novel – para os não familiarizados com esse termo, trata-se de um "romance gráfico" (numa tradução bem literal, mas não muito acurada), ou seja, um livro em quadrinhos, de autoria de Frank Miller, um nome coroado nesse meio, embora, de momento, eu só me lembre de seu trabalho na Marvel, com o super-herói cego Demolidor. Na adolescência, eu gostava tanto de quadrinhos quanto de livros, já nos últimos anos tenho andado desligado desse universo. Gostaria muito de ler essa graphic novel em particular, espero que agora, aproveitando o embalo do filme, seja relançada. Para ver como é curioso o processo de realimentação que a arte sofre através dos tempos, Miller foi inspirado, para fazer a graphic novel, por um outro filme sobre o mesmo assunto, Os Trezentos de Esparta (1962), baseado diretamente no relato do historiador grego Heródoto (484-425 a.C.).

E sobre o que é tudo isso, afinal de contas? Bem... O evento central é a batalha das Termópilas, ocorrida no desfiladeiro de mesmo nome no verão de 480 a.C., na qual uma força de cerca de 4000 gregos, tendo como ponta-de-lança uma elite de 300 espartanos, enfrentou o exército invasor de Xerxes, rei da Pérsia – um exército de dimensões inconcebíveis para a época, cujo número exato é até hoje alvo de controvérsia, mas certamente não menos de 200 mil soldados; há autores que falam em um ou dois milhões. Embora não tenha sido o primeiro nem o último enfrentamento entre gregos e persas, essa batalha revestiu-se de um significado especial para os gregos daí em diante; Alexandre, ao aniquilar o Império Persa um século e meio depois, dedicou sua vitória aos Trezentos, como uma vingança tardia. E o que teve essa batalha de tão especial?... É uma longa História (com H maiúsculo, mesmo).

A noção que a maioria das pessoas tem a respeito da Grécia é a de uma civilização sábia, totalmente voltada para a razão, a ciência, a arte e a beleza, que nos legou uma herança inestimável de filosofia, monumentos deslumbrantes, uma mitologia fascinante e conceitos sem os quais não é possível imaginar o mundo moderno. E tudo isso é verdade, de modo que a noção não é errônea – é meramente incompleta. A civilização grega tinha um outro lado, talvez não tão belo, mas que da mesma forma fazia parte do que ela era. 300, assim como o episódio histórico que lhe deu origem, mostra um pouco desse outro lado.

A Grécia antiga nunca foi uma nação unificada. Estava dividida em inúmeras cidades-estado, que, apesar de compartilharem a mesma língua, origem étnica e base cultural, eram politicamente independentes umas das outras, e, não raro, rivais entre si. Enquanto outras cidades gregas eram famosas por sua arte, filosofia, ciência, e por seus avançados sistemas políticos, havia uma que era um Estado eminentemente militarista: Esparta.


A partir das reformas realizadas por um certo Licurgo por volta de 700 a.C., tudo na sociedade espartana passou a ser feito em função da guerra. Os meninos nascidos de pais livres eram separados das famílias aos oito anos de idade e ficavam sob a responsabilidade do Estado, sendo submetidos a um duríssimo treinamento que se prolongava até os 21 anos e fazia deles guerreiros praticamente imbatíveis. Como hoplitas (assim chamados por causa do hoplon, grande e pesado escudo circular), integravam as falanges, certamente as mais disciplinadas e bem treinadas unidades militares da Antiguidade até então, e que, como tais, não seriam superadas até o advento das legiões romanas, séculos mais tarde. Nelas, os guerreiros lutavam em linha, lado a lado, cada um protegido em parte pelo próprio escudo, em parte pelo do companheiro à direita; combatendo assim, eram muito poderosos, mas bastava que se abrisse uma brecha na linha para levar toda a tropa ao desastre. Em resumo: se um fraquejasse, punha todos os companheiros em risco. Os soldados espartanos precisavam confiar totalmente uns nos outros. Quanto aos outros gregos, lutavam de forma parecida, mas, ao contrário dos espartanos, não tinham a vantagem de serem treinados para isso durante toda a vida. E eis aí um aspecto não tão glorioso da civilização grega: os espartanos cidadãos só podiam dedicar-se de corpo e alma ao treinamento militar porque o trabalho que mantinha a cidade funcionando era todo feito por escravos (ninguém deve supor que isso queira dizer que nas outras cidades gregas não havia escravidão; de maneira nenhuma!).

Como é fácil imaginar, o ressurgimento da ameaça persa nos anos imediatamente anteriores a 480 a.C. inspirou os gregos divididos a porem de lado suas rivalidades e unirem forças, mas, mesmo assim, naquele verão, a Grécia ainda não estava preparada para enfrentar o invasor. A menos que fosse encontrada uma maneira de atrasar os persas por tempo suficiente para que os exércitos de todas as cidades gregas pudessem se reunir, não haveria como evitar que o país fosse conquistado e passasse a ser mais uma província do vasto Império Persa, que já se estendia do Egito à Índia. Leônidas, rei de Esparta, ouvira uma profecia que dizia que ou sua cidade cairia, ou perderia um rei. Preparou então uma expedição, reunindo trezentos de seus melhores soldados, e certificando-se de que todos tivessem filhos vivos do sexo masculino, para que suas linhagens não fossem extintas  pois sabia que nenhum deles voltaria vivo dessa missão. Nem ele, Leônidas, tampouco.

O lugar chamado Termópilas, ao norte da Grécia, só era conhecido até então por ser um inocente balneário, procurado por pessoas de todo o país por causa de suas fontes de águas termais  aliás, foi daí que lhe veio o nome: Thermopylae, em grego, quer dizer 'Portões Quentes'  no filme, os atores se referem ao lugar como the Hot Gates, versão perfeita e fiel para o inglês; não me perguntem por que a pessoa responsável pelas legendas decidiu traduzir (?) Hot Gates por 'Boca do Inferno'. Leônidas escolheu esse lugar para fazer frente ao inimigo devido à existência de um desfiladeiro estreito que anularia a vantagem numérica dos persas: não importava quantos eles fossem, apenas algumas centenas poderiam entrar de cada vez. Ali os quatro mil gregos lutaram praticamente sem descanso, durante sete dias, contra sucessivas levas de atacantes, matando até suas armas se desmancharem em suas mãos  segundo a narrativa de Heródoto. Talvez tivessem resistido ainda mais tempo, não fosse por um morador da região que, subornado pelos persas, mostrou-lhes uma trilha íngreme pelas montanhas, através da qual parte do exército persa flanqueou os espartanos, que assim ficaram cercados. Quando isso aconteceu, os aliados gregos se retiraram, com a aprovação de Leônidas, que, com os que ainda restavam de seus Trezentos, permaneceu no local, sem ceder uma polegada de terreno, até serem exterminados até o último homem.

Não vou entrar, aqui, em especulações sobre que tipo de determinação sobre-humana pode ter levado todos esses homens a sacrificarem deliberadamente suas vidas numa batalha que desde o início era impossível de ser vencida. Digamos apenas que cada um ali esforçou-se ao máximo por vender a sua vida tão caro quanto possível, e, de fato, calculou-se que cada espartano não tombou sem levar consigo pelo menos vinte persas, ainda que, diante da vastidão do exército inimigo, isso representasse umas poucas folhas arrancadas de uma floresta. O mais importante, portanto, não foi o número de inimigos eliminados, mas os preciosos sete dias que a batalha durou, e que permitiram que o restante do exército espartano, bem como os exércitos das outras cidades gregas, ocupassem posições estratégicas e, durante os meses seguintes, infligissem aos persas um revés após outro, até derrotá-los definitivamente na batalha de Plateia, obrigando-os a abandonar o plano de conquistar a Grécia. A batalha das Termópilas foi um daqueles momentos que podemos considerar verdadeiras "encruzilhadas" na História, pois, se o desfecho tivesse sido outro, tudo o que veio depois poderia ter sido diferente. Se os persas tivessem conquistado a Grécia, coisas como democracia ou o conceito de liberdade individual só nasceriam séculos ou milênios depois  ou, talvez, nunca. É raro, mas há momentos na História em que verdadeiramente o destino de uma civilização inteira repousa nas mãos de um punhado de homens; esse foi um deles, e a civilização a que me refiro não é apenas a Grécia, mas todo o Ocidente. Paradoxalmente, Esparta, a menos democrática das cidades gregas, impediu que a democracia morresse no berço e tornou possível o nascimento das sociedades modernas – que podem não ser perfeitas, mas sem a menor dúvida seriam muito piores sem os legados que a Grécia nos deixou.

Lembrar dessa batalha sempre me faz voltar àquela questão: vale a pena morrer pela liberdade? Acho que a resposta que se espera receber de qualquer pessoa que preze a dignidade humana só pode ser que sim, que, em se tratando da liberdade  a nossa e a dos outros, e a das gerações futuras , nenhum sacrifício é grande demais. Só que a pergunta talvez precise ser reformulada: será que continua valendo a pena, quando você sabe que a maioria das pessoas pelas quais você estará dando sua vida para que elas tenham liberdade, não fará nada que preste com ela?... Se refletirmos mais um pouco nessa direção, acho que acabaremos concluindo que cada um de nós, hoje, tem uma dívida pessoal para com aqueles bravos soldados mortos há quase 2500 anos, e que a única maneira de saldar essa dívida é procurando fazer de nossas vidas a coisa mais digna, útil e interessante que pudermos.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

O Marechal das Trevas

Gilles de Rais (1404-1440), barão de Laval, é um dos personagens mais curiosos – e mais assustadores – da história da França. Seus feitos medonhos, ecoando pelo universo da cultura popular através de histórias contadas em tabernas e ao pé do fogo, deram origem à lenda que o grande escritor Charles Perrault (1628-1703) poria por escrito em seu clássico livro Histórias ou Contos de Outrora, com o título A História de Barba-Azul – uma nota tenebrosa em meio a histórias encantadoras ou engraçadas, como A Bela Adormecida do Bosque ou O Gato de Botas. Se bem que tanto Perrault quanto os irmãos Grimm, e outros autores que recolheram e redigiram tais contos populares, suavizaram grandemente essas histórias, muitas das quais, tal como eram na origem, seriam consideradas hoje pouco apropriadas para se contar a crianças... Mas isso é assunto para outro artigo.

Em O Marechal das Trevas, o jornalista e escritor espanhol Juan Antonio Cébrian, usando de uma prosa ágil em tom de reportagem – que ele prova ser compatível com uma análise histórica apurada, ainda que não tão aprofundada – reconstrói a trajetória do "verdadeiro" Barba-Azul, tendo o cuidado de situar o leitor por meio de uma breve história da Guerra dos Cem Anos, conflito no qual De Rais se destacou como soldado antes de ganhar reputação bem mais sombria graças a seus crimes.

O autor nos informa, por exemplo, dos feitos do rei inglês Henrique V, que, aparentado com os reis franceses (depois de séculos de casamentos políticos, quase todas as famílias reais da Europa eram aparentadas entre si), decidiu fazer valer seu suposto direito ao trono da França e, em 1415, invadiu o país, derrotando o exército francês na histórica batalha de Azincourt. Henrique obrigou o então rei da França, Carlos VI, a reconhecer seus direitos de herdeiro e a dar-lhe sua filha em casamento, de modo que, se Carlos morresse, Henrique seria o próximo a ocupar o trono francês, acumulando-o com o da Inglaterra (o que praticamente faria dele um imperador) e preterindo o direito do filho do rei, o delfim, também chamado Carlos. A propósito desse episódio da Guerra dos Cem Anos, vejam o magnífico filme Henrique V (1989), baseado na peça homônima de Shakespeare, e dirigido e estrelado por Kenneth Branagh.

Inesperadamente, porém, Carlos VI sobreviveu a Henrique V, ainda que por um espaço de poucos meses: o rei inglês faleceu em agosto de 1422, e o francês, em outubro do mesmo ano. Isso criou um impasse: os ingleses, e parte da França que estava do seu lado, coroaram como novo rei (da Inglaterra e da França) o filho de Henrique, então ainda uma criança de colo, com o nome de Henrique VI; já os franceses nacionalistas queriam declarar rei o delfim, como Carlos VII. Havia um empecilho: por uma tradição de séculos, todo rei francês deveria ser coroado na catedral da cidade de Reims, sob pena de não ter sua legitimidade reconhecida pelo povo e pelos nobres – e Reims, como várias outras partes da França, estava nas mãos dos ingleses. O delfim, então, aquartelou-se em seu castelo na cidade de Chinon, juntamente com todo o exército que pôde reunir e os nobres ainda dispostos a lutar por ele – e entre estes, estava Gilles de Rais.

De Rais, durante alguns anos, foi um dos cavaleiros mais admirados da França, e parecia um homem destinado à grandeza. Bonito, culto, guerreiro formidável (com apenas 25 anos de idade, alcançou o altíssimo posto de Marechal da França) e dono de uma das maiores fortunas pessoais da Europa, celebrizou-se pela bravura demonstrada no campo de batalha e ganhou um lugar de honra na corte do delfim. E foi na corte, em Chinon, num dia qualquer de 1429, que Gilles e os outros nobres viram aparecer uma camponesa analfabeta de 17 anos chamada Joana d'Arc, declarando-se enviada pelo próprio Deus para garantir que o delfim fosse coroado rei como era seu direito. Por mais absurdo que isso parecesse, Joana já havia feito profecias que deram certo, o que impediu que suas pretensões fossem sumariamente rejeitadas.

Entre os que desde o início acreditaram nela esteve Gilles de Rais, que mais tarde, em seu julgamento, contaria que só enquanto esteve junto de Joana conheceu a paz de espírito e sentiu a presença de Deus; a pureza e a fé inquebrantável da donzela trouxeram alívio à alma do marechal, já então ensombrecida pelo mal. Gilles lutou ao lado de Joana na batalha de Orléans, pouco depois, e foram as mãos dele que, diante dos olhos dela, puseram a coroa da França na cabeça do delfim, um mês mais tarde, em Reims, recuperada dos ingleses graças ao inexplicável ardor que a liderança daquela garota inspirava aos soldados.

De Rais foi seguidor e protetor de Joana por mais algum tempo, até que o recém-coroado Carlos VII os separasse, designando a cada um diferentes missões. A verdade é que, depois de ter retomado Orléans, tornado possível a coroação do rei, e causado uma reviravolta na guerra a favor da França, Joana tornou-se um incômodo para Carlos e sua corte, de modo que, quando ela foi capturada pelos borgonheses (da região francesa de Borgonha, aliada à Inglaterra), em maio de 1430, o rei não esboçou nenhum esforço para salvá-la, nem mesmo diante da enérgica intercessão do marechal Gilles de Rais. Embora tenha-se tentado dar ao julgamento e à execução de Joana d'Arc a aparência de um processo por crimes religiosos, a verdade é que a Donzela de Domrémy morreu por razões políticas. Depois de um ano de julgamento sob acusação de heresia, a pressão da coroa inglesa fez com que Joana fosse condenada à morte na fogueira, sentença que foi executada na cidade de Rouen, em 30 de maio de 1431. Tinha 19 anos de idade.

Isso foi, de certa forma, o fim para Gilles de Rais; qualquer chance que ele tivesse de dar à sua vida um rumo positivo morreu com Joana. De acordo com o levantamento biográfico feito por Cébrian, Gilles era filho de um casamento político: seus pais nunca coabitaram de fato e deram pouquíssima atenção a ele e a seu irmão, René. Ambos foram criados pelo avô materno, o conde Jean de Craon, que lhes incutiu a noção de que a crueldade era parte integrante da força e da masculinidade. Isso, somado à falta de uma verdadeira família, pode em parte explicar, embora nunca justificar, sua conduta posterior.

Desgostoso após o destino que tivera Joana d'Arc, Gilles abandonou as armas e passou a dividir seu tempo entre os vários castelos que possuía, espalhados pelo interior da França, levando uma vida de luxo excessivo e promovendo quase diariamente festas suntuosas para centenas de convidados. Nem mesmo sua enorme fortuna poderia arcar indefinidamente com tais exageros, e o barão passou a enfrentar problemas financeiros. Sabe-se que procurou renovar sua riqueza tentando obter ouro por meio da alquimia, que ele próprio estudou e praticou, além de empregar especialistas, notadamente o italiano Francesco Prelati, que também se dedicava à feitiçaria. Infelizmente para De Rais, a transformação de metais comuns em ouro era algo que vinha sendo tentado desde a Antiguidade sem sucesso – e não foi com ele que essa história mudou. Chegou-se a aventar a hipótese de que as práticas alquímicas e mágicas teriam levado ao início da carreira de assassino do barão, já que o sangue de crianças era um ingrediente mencionado em inúmeras fórmulas da época, mas sua própria confissão descarta essa ideia: ele já matava por prazer bem antes de dedicar-se a tais práticas.

A última parte de O Marechal das Trevas é uma leitura penosa, pois conta sobre a prisão e o julgamento de De Rais, reproduzindo os depoimentos dele e dos criados que o assistiam em seus crimes, com fartura de detalhes capazes de causar horror até a Jack, o Estripador, que, comparado ao barão de Laval, não passava de um aprendiz. Desconhece-se o número exato de vítimas – na maioria crianças de 8 a 12 anos, de ambos os sexos – que foram raptadas, violentadas e mortas entre os anos de 1431 e 1440; sabe-se que não foram menos de 140, provavelmente cerca de 200, e há cronistas que elevam a conta até perto dos mil. O marechal confessou sem a necessidade de tortura (que na época era considerada um método legítimo de interrogatório em qualquer julgamento, e não apenas nos de bruxaria, como muita gente pensa), demonstrando arrependimento que foi considerado sincero por seus juízes, e pediu um padre para ouvi-lo em confissão, no que foi atendido. Foi levado à forca em 26 de outubro de 1440, e, antes de morrer, dirigiu suas últimas palavras à multidão que comparecera para ver sua execução, e que incluía os pais de muitas crianças que ele assassinara. Suplicou-lhes perdão e pediu que rezassem por sua alma, o que todos fizeram.

O livro tem ainda um apêndice que reproduz A História de Barba-Azul de Perrault e fornece breves resumos a respeito de alguns serial killers modernos que Cébrian considera "herdeiros" de De Rais. A meu ver, O Marechal das Trevas vale a leitura principalmente pela informação histórica que oferece (e ultimamente, não sei por que, ando com uma curiosidade louca a respeito da Guerra dos Cem Anos, de modo que veio a calhar), mas, claro, também é recomendável para os que se interessam pelo estudo dos distúrbios mentais e suas manifestações, inclusive as mais violentas e assustadoras. Mas mesmo esses precisarão ser fortes para encarar a última parte do livro.