quinta-feira, setembro 20, 2007

A História Sem Fim

"(...) É isso precisamente o mais importante. Não percebe? Os homens só não pensarão em visitar Fantasia se pensarem que ela não existe. E tudo depende disso, pois, enquanto não conhecem sua verdadeira natureza, vocês podem fazer deles o que quiserem.
- Fazer deles o quê?
- Tudo o que quiserem. Vocês têm poder sobre eles. E nada tem mais poder sobre o homem do que a mentira. Porque os homens, filhinho, vivem de idéias. E as idéias podem ser dirigidas. Esse poder é o único que conta. É por isso que eu tenho estado do lado do poder e o servi, para poder participar dele... embora de forma diferente da sua e da dos seres iguais a você.
- Eu não quero participar dele!, balbuciou Atreiú.
- Calma, pequeno louco, rosnou o lobisomem. Quando chegar a sua vez de saltar para o Nada, você se transformará também num servidor do poder, desfigurado e sem vontade própria. Quem sabe para o que vai servir. É possível que, com sua ajuda, se possa convencer os homens a comprar o que não necessitam, a odiar o que não conhecem, a acreditar no que os domina ou a duvidar do que os podia salvar. Por seu intermédio, pequenos seres de Fantasia, fazem-se grandes negócios no mundo dos homens, desencadeiam-se guerras, fundam-se impérios...
Gmork contemplou o rapaz durante algum tempo, com os olhos semicerrados, e logo acrescentou:
- Há também uma quantidade de pobres tontos que, naturalmente, se julgam muito inteligentes e pensam servir à verdade, e não encontram nada de melhor para fazer do que dissuadir as crianças da existência de Fantasia. Talvez você possa ser útil a eles.
Atreiú permaneceu de cabeça baixa. Agora ele sabia por que os filhos dos homens já não vinham mais a Fantasia e por que nunca nenhum deles viria para dar um novo nome à imperatriz Criança. Quanto mais se alastrava a destruição em Fantasia, maior era o número de mentiras que entrava no mundo dos homens; precisamente por isso, a cada segundo que passava, diminuía a possibilidade da vinda de um ser humano. Era um círculo vicioso de onde não se podia fugir. Atreiú sabia-o agora."


* * *

Michael Ende (1929-1996) foi um escritor curioso. Filho do pintor Edgar Ende - um dos nomes mais importantes do surrealismo alemão, além de ter sido ativo na política, tendo chegado a ser perseguido por ser opositor do nazismo -, ele também se dedicou à pintura, embora as obras que o tornaram famoso tenham sido as que produziu na máquina de escrever. Não obstante, a lembrança das imagens poderosas e do pensamento profundo e franco do pai influenciaria Michael durante toda a vida, e apareceria tanto em sua pintura quanto em seus livros. Não é por outro motivo que nenhum outro escritor que eu conheça conseguiu transplantar de forma tão eficaz para a literatura a estética própria da pintura surrealista.

Sempre que menciono A História Sem Fim para algum amigo, ouço o comentário inevitável: "Ah, sim, o filme do cachorro voador..." É normal: não dá para negar que Fuchur, o Dragão da Sorte, embora seja descrito no livro como tendo um rosto mais semelhante ao de um leão, ficou mesmo parecendo um cão ao ser recriado no cinema, no já antigo filme The Neverending Story (1984), dirigido pelo mesmo Wolfgang Petersen que recentemente desgraçou o próprio nome ao perpetrar aquela monstruosidade denominada Tróia. Entretanto, por A História Sem Fim, Petersen merece elogios, pois fez um trabalho bastante notável e, no que é essencial, fiel ao espírito da obra. Cuidado, porém: foram produzidos três episódios, dos quais só recomendo assistir ao primeiro. Passem longe dos outros dois!...


O elemento surrealista na escrita de Michael Ende fica mais explícito em outro livro seu, o perturbador O Espelho no Espelho, mas também pode ser observado em A História Sem Fim, que é de longe sua obra mais conhecida. E o autor serviu-se de forma magistral desse elemento como uma ferramenta para expressar seu inconformismo diante de um mundo que ele via a cada dia tornar-se mais banal e mecânico, um mundo do qual a imaginação e a beleza pareciam estar sendo sistematicamente banidas em prol de um racionalismo vazio e autodestrutivo. Esse inconformismo foi a tela sobre a qual Ende pintou A História Sem Fim, que, a um olhar distraído, parece um simples romance infanto-juvenil, mas, aos que se dispuserem a procurar entendê-lo, revela-se uma obra de implicações filosóficas profundas e um vigoroso manifesto a favor dos valores humanos essenciais, tão negligenciados pela sociedade "moderna".

A história começa com um garoto, habitante de uma cidade qualquer da Alemanha, um garoto gorducho, tímido, desajeitado, que vivencia o mesmo pequeno inferno de muitas crianças em todos os lugares do mundo. Ao mesmo tempo em que não é atlético nem popular entre os colegas, não conta com o consolo de ser um estudante brilhante, pois, embora possua uma inteligência toda especial, esta não é valorizada pelo sistema de ensino pelo qual se rege a escola que ele freqüenta (isso soou familiar a alguém? A mim, sim). Para completar seu sofrimento, ele perdeu a mãe há algum tempo, e o pai jamais se recuperou da morte dela, de modo que se formou um abismo entre os dois: o menino está, para quase todos os efeitos, sozinho no mundo.

Esse garoto se chama Bastian Baltasar Bux. Como pouco ou nada no texto de Ende deixa de ter um significado, o nome do personagem deve receber atenção. "Bastian" é um bastião - uma fortaleza solitária que ainda guarda uma chama de imaginação num mundo tão carente disso. O nome do meio também deve ter seu simbolismo, que não consegui decifrar, mas o último é muito fácil: Bux significa livros - a pronúncia é a mesma tanto em alemão (Buchs) quanto em inglês (books). Bastian, pois, é uma esperança para o mundo dos homens, por ser um dos últimos, talvez o último ser humano que ainda conhece o poder da imaginação e a magia dos livros. E é nos livros que o garoto desajustado encontra refúgio e consolo, bem como nas histórias que inventa e "conta a si mesmo".

Certa manhã fria e chuvosa, ao dirigir-se à escola, Bastian acaba tendo que fugir de outro componente de seu calvário cotidiano: aqueles onipresentes garotos cujo maior prazer na vida é atormentar qualquer um que seja "diferente". Aparentemente por acaso, Bastian esconde-se numa pequena loja de livros raros, cujo proprietário, o Sr. Koreander, apesar de absolutamente ranzinza e antipático, digna-se a uma rápida conversa com ele. Pouco depois, sem saber ao certo como isso aconteceu, Bastian acaba furtando da loja um livro intitulado A História Sem Fim - e, a partir daí, encontra-se com um destino que não tem mais volta.

O livro fala de um lugar chamado "Fantasia", que, aos poucos, Bastian descobre ser o mundo infinito criado pela imaginação dos seres humanos. Todos os seres e histórias fabulosas são reais nesse mundo - e não apenas os gnomos, fadas e outras coisinhas simpáticas: por mais de uma vez Ende deixa entrever que em Fantasia também moram as criações mais horripilantes e demoníacas já engendradas pela mente humana.

E Fantasia está em crise. Em quase toda parte surge o misterioso fenômeno conhecido como "o Nada": coisas, criaturas, lugares inteiros simplesmente desaparecem, sem deixar nada em seu lugar - absolutamente nada; um vazio absoluto, a ausência do que quer que seja. Pequeno a princípio, o Nada aumenta sem parar, e vai aos poucos devorando países inteiros. Ao mesmo tempo em que isso acontece, a soberana de Fantasia, a imperatriz Criança (eis aí outro nome cheio de significado) sofre de uma estranha doença que médico algum consegue diagnosticar e muito menos curar.

Para ir em busca de cura para a imperatriz e de salvação para Fantasia, um herói é chamado: um improvável herói, Atreiú (pronuncie Atrêiu), um menino da idade de Bastian, pertencente à raça dos Peles-Verdes, caçadores semi-selvagens que habitam as pradarias de Fantasia e são exímios cavaleiros - é óbvio que, para criar esse povo, Ende inspirou-se nos índios norte-americanos. Atreiú parte para sua Grande Busca e nela vive mil peripécias, enfrenta perigos e sofrimentos. Tudo é acompanhado por Bastian através das páginas do livro, mas, à medida em que vai lendo, ele percebe coisas estranhas: indícios de que sua própria existência é conhecida pelos habitantes de Fantasia, e de que seus gestos podem repercutir no desenrolar da história.

Sem exagero algum, posso dizer que o capítulo IX de A História Sem Fim, que narra o encontro de Atreiú com Gmork, o Lobisomem, e o diálogo entre os dois, é uma das coisas mais impressionantes que já li em minha vida - e, modéstia à parte, eu já li muita coisa. Gmork é um servo dos poderes obscuros que estão por trás da destruição de Fantasia, e revela a Atreiú como tudo funciona: Fantasia está acabando porque os seres humanos do mundo real, cujos sonhos e imaginações são o próprio material do qual Fantasia é feita, esqueceram-se dela e não mais a estão visitando. Ao mesmo tempo, as criaturas fantásticas que são aniquiladas à medida em que o Nada se espalha são lançadas no mundo dos homens, mas terrivelmente deformadas e mutiladas: transformam-se em mentiras, que envenenam o pensamento dos seres humanos e os tornam cada vez mais desesperançados e infelizes, contribuindo para que a destruição de Fantasia aconteça cada vez mais depressa. A única salvação possível seria que um - pelo menos um - ser humano viesse a Fantasia agora.

E Bastian vai. Sua intervenção salva a vida da imperatriz Criança e faz com que Fantasia se recupere, eliminando o Nada. Em gratidão, a imperatriz lhe permite realizar todos os seus sonhos. O garoto desengonçado torna-se um herói admirado por todos em Fantasia. Encontra-se com Atreiú e os dois tornam-se grandes amigos. De agora em diante, Bastian terá que empreender uma jornada por Fantasia em busca da sua "Verdadeira Vontade" e do caminho de volta para seu mundo - e só poderá fazer isso através de seus desejos, passando de um desejo a outro.

Mas há um porém: cada desejo que Bastian tem, ao se realizar, faz com que ele esqueça alguma coisa de sua existência no mundo dos homens. O próprio Bastian não se preocupa com isso, pois a vida que tem agora em Fantasia é mil vezes melhor que a que tinha antes, e ele não tem a menor vontade de retornar à realidade. Mas Atreiú, preocupado com o amigo, sabe que, se ele esquecer tudo sobre sua vida anterior, terá perdido o contato consigo próprio e deixado de ser ele mesmo - e não poderá voltar ao mundo dos homens para ensinar a outros o caminho para Fantasia, de modo que esta ficará novamente em perigo de ser destruída.

Michael Ende não é defensor de um escapismo irresponsável. Sua História Sem Fim, ao mesmo tempo em que alerta para o mal que o abandono da imaginação e do sonho causa às pessoas como indivíduos e à sociedade como um todo, também fala sobre o perigo de querer ficar para sempre em Fantasia e perder o contato com a realidade. É o que se vê no capítulo em que Bastian visita a Cidade dos Antigos Imperadores, onde vivem milhares de seres humanos que trilharam o mesmo caminho que ele e o finalizaram de forma errada: perderam suas últimas recordações do mundo real e ficaram sem saída em Fantasia, incapazes de ter desejos, de modo que o que lhes restou foi um estado de absoluta demência e uma vida aprisionada no instante presente, sem passado e sem futuro.

A História Sem Fim foi um dos livros que mais me marcaram até hoje. Vi o filme aos 11 anos de idade, ganhei o livro cerca de um ano depois e, de lá para cá, pelos meus cálculos, devo tê-lo lido seis ou sete vezes, e cada nova leitura revelou coisas novas, e me despertou pensamentos diferentes. Ende, tal como Bastian, cumpriu com louvor a missão de ensinar a muita gente o caminho para Fantasia, e, como diz o Sr. Koreander a Bastian quando os dois se reencontram no final do livro, "há muitas portas para Fantasia, meu rapaz. Há muitos outros livros mágicos. Muitas pessoas nunca percebem isso. Tudo depende da pessoa em cujas mãos o livro vai parar."

Eu encontrei meu caminho para Fantasia e agradeço por isso não só a Ende, como também a Tolkien, Haggard, Júlio Verne, Weis & Hickman, Poul Anderson, Jack Vance e uma miríade de outros. Hoje tento retribuir o bem que me foi feito, ensinando-o a outras pessoas. Ficarei feliz se este texto apontar o caminho a mais um ou dois que se tornem, como eu, Bastian e Ende, viajantes de Fantasia.