domingo, novembro 25, 2007

As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica

Preenchendo uma velha lacuna no mercado editorial brasileiro, os autores gaúchos A. S. Franchini e Carmen Seganfredo chamaram a si a tarefa de recontar numa linguagem acessível as antigas histórias, lendas e fábulas que a humanidade acumulou ao longo de milênios de experiências e sonhos. O primeiro volume a me chegar às mãos, oriundo dessa parceria, foi este As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica. Já existem vários outros, enfocando as mitologias grega, egípcia, a Bíblia, ou sagas e ciclos específicos, como O Anel dos Nibelungos ou o recente Beowulf. Trata-se de uma sacada publicitária inteligente o fato de a capa deste livro trazer a frase "A mitologia na qual J. R. R. Tolkien se baseou para escrever O Senhor dos Anéis", pois, desde o boom de popularidade que a obra de Tolkien experimentou no Brasil após o lançamento da trilogia cinematográfica alguns anos atrás, isso tem quase o mesmo efeito que teriam, na capa de uma nova edição de algum romance brasileiro, os dizeres "Obra que deu origem à minissérie da TV Globo"... Mas vamos falar do livro.

Para quem já é familiarizado com a mitologia greco-romana, um primeiro contato com a nórdica pode causar um certo estranhamento, pois esta reflete os valores e crenças de um povo cuja mentalidade distava anos-luz da dos habitantes da bacia do Mediterrâneo ― embora curiosas semelhanças, por vezes evidentes demais para serem casuais, também existam. Franchini e Seganfredo tiveram o cuidado de traçar paralelos, sempre que necessário, entre a mitologia nórdica propriamente dita ― aquela originária dos países escandinavos ― e a germânica, das regiões que hoje correspondem à Alemanha e Holanda. Os deuses e os heróis são basicamente os mesmos, com nomes ligeiramente diferentes, e o mesmo se dá com muitas das narrativas, que diferem em pequenos ou grandes detalhes. Por exemplo, na primeira parte do livro está narrada a versão nórdica das aventuras de Sigurd ― o mesmo herói que os alemães chamam de Siegfried e que protagoniza o ciclo d'O Anel dos Nibelungos, que pode ser lido na segunda parte, permitindo que se comparem as duas versões, o que dá lugar a observações curiosíssimas. Tanto em sua versão nórdica quanto na germânica, essa narrativa orbita em torno de um anel amaldiçoado e dotado de estranhos poderes, um objeto capaz de transtornar a mente das criaturas a tal ponto que o desejo de possuí-lo supera qualquer escrúpulo moral ou da razão. Esse é o principal ponto de contato entre a obra de Tolkien e a mitologia nórdica, mas não o único: a espada que é quebrada e depois reforjada faz parte do mesmo mito, assim como o dragão que guarda um tesouro com o maior ciúme e ferocidade, embora este seja para ele completamente inútil. Além disso, as passagens em que o deus supremo Odin aparece sob disfarce humano ― na figura de um velho misterioso portando um cajado e uma espada ― lembram de forma irresistível a figura tolkieniana do mago imortal Gandalf. Coincidência? De jeito nenhum!

Deixando Tolkien um pouco de lado (mas não muito, já que tudo está interligado), também não dá para crer que seja coincidência a maneira como Sigmund, pai de Sigurd/Siegfried, vem a possuir a espada mágica Notung, que será mais tarde empunhada pelo filho: Sigmund a remove do tronco de uma imensa árvore onde fora cravada e de onde centenas de guerreiros já haviam tentado retirá-la, inutilmente, já que só um predestinado poderia possuí-la. Não lembra nada?? Pode ser impossível dizer se a lenda nórdica inspirou a britânica, se foi o contrário, ou se ambas simplesmente tiveram origem em algum arquétipo ou símbolo que está no inconsciente coletivo de todos os povos, mas que esse tema merece profundos estudos, disso não há dúvida. Talvez não se chegue a uma resposta final, mas, ao longo do caminho, esses estudos podem revelar coisas essenciais para nosso autoconhecimento e para a compreensão do mito do herói, que, direta ou indiretamente, inspirou todos os seres humanos que já realizaram algo de notável, em qualquer época.

O livro tem alguns pequenos problemas de língua portuguesa, o que é bem estranho, se considerarmos que a orelha informa que Carmen Seganfredo é "bacharelada em Letras e tradutora", mas isso é uma falha menor e perdoável, se comparada à excelente ideia em que se baseia a obra da dupla de escritores e a pesquisa cuidadosa que obviamente existe por trás de cada capítulo. Jung dizia que "os mitos são sonhos públicos, e os sonhos são mitos privados". Tal como os sonhos (tanto os que temos ao dormir quanto os que criamos de olhos abertos) são peças-chave para a compreensão da mente do indivíduo, conhecer os mitos é essencial para quem nunca se cansa de tentar (só tentar!) compreender esse oceano de contradições, esse universo de grandezas e misérias que é a condição humana.

4 comentários:

Anônimo disse...

Oi Marcos.
Eu te escrevi, depois você escreveu pra mim, lembra? Calma que um dia sua carta chega... só passei pra dar uma olhada no blog, já que você comentou sobre ele.

Abraços.

Anônimo disse...

E ae, Marcos, beleza?

Vi esse seu post há muuuito tempo, mas só agora estou lendo o livro, portanto só agora vim comentá-lo.

Como você já disse, a mitologia greco-romana distoa em muitos pontos da nórdica e isso é bem interessante se levarmos em consideração a "proximidade continental" desses dois povos.

Mas deixando as riquesas mitológicas de lado e comentando o livro em si... você realmente gostou dessa adaptação? Achei, na verdade, bastante pobre. Você disse que os autores usaram de uma linguagem acessível, eu, entretanto, digo que eles imbecilizaram os contos.

Deuses nórdicos exclamando "Nossa!" (expressão tipicamente católica) ou abusando dos "vocês" (um "tu" caberia bem melhor) não é tornar algo acessível, mas emburrecê-lo.

Além do mais sobram explicações no decorrer dos contos, algo por demais redundante! Por exemplo, acabei de ler sobre o anão que roubou o anel e virou um dragão. Em dois contos seguintes existem lembretes entre parênteses relembrando as história anteriores, como se o leitor não estivesse associando uma história a outra.

Outra coisa que não gostei foram as comparações com deuses gregos: "Freya (a equivalente a Venus da mitologia grega)..." Acredito que coisas assim ficariam melhor dispostas em notas ao final do volume, ou mesmo com um capítulo a parte, talvez um prólogo ou prefácio.

A mitologia nórdica é fantástica (como toda a mitologia), mas o modo como os dois autores desse livro adaptaram seus contos a empobreceu por demais.

Ainda estou na primeira parte. Porém já louco para conhecer a segunda, adaptada da ópera de Wagner.

Abraços, cara!
E que bom que voltou a atualizar seu blog! Depois dou uma olhada no seu último post. Fiquei interessado nesses Olipianos outro di que vi a capa do livro. Parecem interessantes!

Marcos* disse...

Olá, amigo Orc! Tenho sentido falta de suas visitas por aqui! Que bom que apareceu. Bem, preciso dizer que concordo com a quase totalidade de suas observações sobre o livro - acho que eu estava demasiadamente benevolente quando escrevi essa resenha... Com uma observação: embora eu concorde que o "tu" e o "vós" conviriam bem melhor a histórias desse estilo, a triste realidade (fartamente demonstrada pelas constrangedoras tentativas de usar uma "linguagem arcaica" em diversos outros livros, de diferentes editoras - veja logo abaixo o que escrevi sobre A Última Legião) é que praticamente ninguém mais hoje em dia sabe conjugar os verbos nessas pessoas, de modo que, entre um português coloquial CORRETO e um simulacro cheio de erros do que seria uma linguagem mais formal, acabo preferindo a primeira opção... :( Abraços!

Anônimo disse...

E não é que o A. S. Franchini descobriu o meu blog e fez um comentário no meu post sobre o livro dele?

Fiquei até com um pouco de vergonha, afinal eu falei mal pra caramba do livro! haha