quarta-feira, outubro 22, 2008

Pinceladas clássicas

Houve tempos em que a cultura geral era vista como um dos componentes mais importantes da bagagem de conhecimento de uma pessoa. Não fazia diferença se você estivesse estudando para ser um advogado, médico, engenheiro, administrador... Era considerado indispensável ter algum conhecimento de História, literatura, mitologia e campos afins, porque não era concebível que uma pessoa que se pretendia instruída não soubesse ao menos o básico sobre as raízes culturais de nossa civilização e suas grandes realizações. Isso foi antes da era da especialização, cujos amargos frutos a atual geração está colhendo: a sociedade incentiva cada um a se aperfeiçoar em sua própria profissão e ignorar o resto do universo. Não estou dizendo que a especialização seja ruim em si mesma, mas ela pode estimular a fragmentação do conhecimento - e esta, sim, é uma praga em todos os sentidos, um poderoso agente perpetuador da ignorância.

No tempo em que um pouco de conhecimento clássico era considerado parte essencial do cabedal de qualquer pessoa que tivesse atingido um determinado grau de instrução, expressões como estas abaixo eram usadas, não largamente, mas com uma certa freqüência, em situações as mais diversas: um discurso numa festa, uma defesa judicial, um artigo que se enviava para a página de "opinião do leitor" num jornal... As pessoas podiam usá-las porque tinham cultura para tanto, e também porque podiam ter confiança de que seus ouvintes ou leitores as compreenderiam. Hoje, com exceção de um punhado das mais populares ("força hercúlea", "presente de grego", "agradar a gregos e troianos"), essas figuras de linguagem estão em extinção, o que eu acho realmente uma pena - elas deixavam mais interessantes uma série de situações cotidianas. Como um exercício agradável, fiz um pequeno apanhado de algumas delas, com a explicitação de seus significados. Ordenei-as numa seqüência temporal dos eventos que deram origem a cada uma, dos mais antigos para os mais recentes.

1. O leito de Procusto: Damastes era um salteador de estrada que aterrorizava os arredores da cidade grega de Elêusis. Entediado de apenas roubar e matar, igual a todos os outros bandidos, ele inventou uma variação: quando um viajante lhe caía vivo nas mãos, era amarrado ao seu leito de ferro e "adaptado" ao tamanho deste: os mais altos tinham um pedaço das pernas cortado, enquanto os mais baixos eram violentamente esticados com cordas até ficarem do comprimento do leito. Isso valeu a Damastes o apelido de Procusto ("o Estirador"). Essa revoltante diversão terminou com a chegada do herói Teseu, que deu um fim ao bandido infligindo-lhe o mesmo tratamento que ele dera a tantos infelizes. Em lembrança a essa lenda, a expressão "leito de Procusto" designa algum padrão rígido e arbitrário no qual todos são forçados a se enquadrar.

2. O pomo da discórdia: Conta-se que, por ocasião do casamento do herói Peleu e da nereida Tétis (que viriam a ser os pais do célebre Aquiles), todos os deuses haviam sido convidados, exceto Éris, a Discórdia, que foi deixada fora da lista justamente para evitar brigas na festa. Não adiantou: despeitada por não ter sido convidada, Éris apareceu na festa, jogou uma maçã ("pomo") de ouro entre as deusas, e desapareceu, sem dizer uma palavra. No pomo estava gravada uma frase: "À mais bela". Foi o suficiente. Imediatamente três das principais deusas começaram a reclamar o prêmio: Hera, esposa do deus supremo, Zeus; Atena, filha de Zeus e deusa da sabedoria; e Afrodite, também filha de Zeus, deusa do amor. O papel de juiz coube ao pastor Páris, na verdade filho de Príamo, rei de Tróia, que deu a vitória a Afrodite - mas não fazia muita diferença, pois, qualquer das três que escolhesse, ele ganharia a inimizade mortal das outras duas, como de fato aconteceu. A expressão "pomo da discórdia" pode significar qualquer coisa, concreta ou abstrata, que cause disputas acirradas. Uma observação: essa história, como se viu, apresenta Páris já adulto numa época em que Aquiles ainda não havia nascido, enquanto outros episódios da saga da Guerra de Tróia sugerem que a diferença de idade entre os dois não era maior do que alguns anos. Discrepâncias cronológicas são comuns em ciclos lendários, já que eles aglutinam uma série de histórias que, na origem, eram independentes umas das outras.


3. O calcanhar de Aquiles: Esta é outra daquelas expressões de origem clássica que deverão sobreviver, pois é de uso tão comum que acaba por se auto-alimentar: muita gente a conhece e usa, mesmo sem saber quem foi Aquiles. Como vimos, o tal cara era filho de Peleu, rei da Tessália e famoso herói, e da ninfa marinha Tétis. Conta-se que esta última, desejando fazer o filho imortal, mergulhou o bebê no rio Estige, o que o tornou invulnerável - com exceção do fatídico calcanhar, por onde a mãe o estava segurando e que, por isso, não foi tocado pela água milagrosa. Adulto, Aquiles veio a ser o maior guerreiro grego e fez de seu nome uma lenda durante a Guerra de Tróia. Eventualmente, ele se apaixonou por Polixena, uma das filhas do rei Príamo, e, para poder desposá-la, ofereceu-se para usar sua influência entre os gregos para conseguir que se estabelecessem negociações de paz. Então, durante uma reunião de negociação (0u, segundo outros, já em seu casamento), Aquiles foi ferido no calcanhar, seu único ponto vulnerável, por uma flecha envenenada atirada por Páris - que era covarde, mas ótimo arqueiro - e morreu. Claro que isso pôs fim às esperanças de paz: a guerra foi retomada e, ao fim de mais um ano, Tróia caiu. "Calcanhar de Aquiles", como a história deixa óbvio, significa, simplesmente, um ponto fraco em alguém ou alguma coisa. O curioso nisso tudo é que o detalhe da invulnerabilidade de Aquiles é criação de algum poeta anônimo em um período já relativamente tardio da História grega, pois é em vão que se procurará por qualquer menção a ela na Ilíada de Homero. O Aquiles de Homero usa uma armadura (quase um canto inteiro do poema é dedicado a narrar sua forjadura pelo deus Hefestos) e chega a sofrer um ligeiro ferimento em combate.

4. A teia de Penélope: Alguns anos após chegar a notícia de que a Guerra de Tróia havia acabado, Ulisses (ou Odisseu), rei da ilha grega de Ítaca, ainda não havia retornado à sua terra, nem havia qualquer notícia sobre seu paradeiro. Muitos já o davam como morto, acreditando que tivesse perecido no mar durante a viagem de volta. A rainha Penélope, porém, mantinha a esperança de ver o marido retornar, e por isso recusava obstinadamente as propostas de casamento que recebia de diversos nobres da ilha - todos de olho no trono. Conforme o tempo passava, a pressão para que escolhesse um novo marido aumentou, e a rainha arquitetou uma artimanha: anunciou que faria sua escolha depois que terminasse de tecer a mortalha de seu sogro, Laertes (será que era normal, naquela época, tecer mortalhas para pessoas vivas?). E, para ganhar mais tempo, ela desmanchava à noite a parte tecida durante o dia. Uma "teia de Penélope", então, é aquele trabalho que está sempre sendo feito, mas nunca é concluído.

5. Vitória de Pirro: Pirro do Épiro foi coroado rei da Macedônia em 287 a.C. Além de ter sobre os ombros o pesado encargo de governar um reino e comandar um exército que ainda sonhavam com a figura semidivina de Alexandre, ele também teve de se preocupar com a ameaça representada por certa cidade italiana que, até então pouco importante, estava agora procurando se impor como uma nova potência na bacia do Mediterrâneo: Roma. Bom estrategista e contando com uma arma secreta - elefantes de guerra e arqueiros treinados para atirar do alto do lombo dos paquidermes -, Pirro venceu os romanos por duas vezes no campo de batalha. Porém, mesmo na derrota, as destemidas legiões romanas nunca deixavam de mostrar ao inimigo de que matéria eram feitas: essas vitórias custaram tantas baixas, que o rei teria declarado: "Mais uma vitória como essas duas, e nós, os vencedores, é que teremos que oferecer nossa rendição aos vencidos!" Daí surgiu a expressão "vitória de Pirro", que significa uma vitória obtida a um custo excessivamente alto, ao ponto de não valer a pena.

6. Paz cartaginesa: Outros, além de Pirro do Épiro, desafiaram Roma quando esta ainda era uma potência "emergente", como diríamos hoje. Destes, a mais digna de nota, e a que mais perto chegou de obter a vitória, foi sem dúvida Cartago, cidade de origem fenícia situada no norte da África, e que, já independente de qualquer obrigação para com os reinos fenícios do leste, enriqueceu muito graças ao comércio marítimo no Mediterrâneo. Roma e Cartago eram, portanto, duas cidades poderosas, procurando ampliar suas esferas de influência numa mesma região. O resultado não surpreendeu: as duas entraram em choque, e não foi uma vez só. As assim chamadas Guerras Púnicas duraram de 264 a 241, de 218 a 201 e de 149 a 146 a.C. Do ponto de vista militar, os romanos, formidáveis num combate de infantaria, eram medíocres como marinheiros - já com os cartagineses, a recíproca era verdadeira. Isso criava um certo equilíbrio que pode explicar a longa duração das duas primeiras guerras. No entanto, e apesar de Cartago ter produzido dois dos mais brilhantes generais da Antigüidade - Amílcar Barca na Primeira Guerra Púnica, e seu filho, Aníbal, na Segunda - ambas terminaram com vitórias romanas. E, fosse pela falta de outro comandante do mesmo calibre, ou porque Roma evoluíra muito em matéria militar no período após a Segunda Guerra Púnica, o fato é que a Terceira foi breve e decisiva. No verão de 146 a.C., os romanos finalmente tomaram Cartago. Todos os homens foram mortos; mulheres e crianças, escravizadas. Os vencedores foram metódicos em se certificar de que nenhuma pedra ficasse sobre outra na cidade, e depois espalharam sal sobre os destroços e em volta deles, para que nem capim crescesse mais ali. Brutal? Sem dúvida, mas, se Cartago tivesse saído vitoriosa, Roma teria tido o mesmo destino. A verdade é que ambos os lados sofreram o diabo nessas guerras, e qualquer um que vencesse no final iria querer ter a certeza de ter-se livrado do outro de uma vez por todas. Desse sangrento episódio ficou a expressão "paz cartaginesa", que significa a paz obtida mediante a completa aniquilação do inimigo.