sábado, março 07, 2009

Alexandre Nevsky

Hoje, finalmente, consegui ver um filme sobre o qual andava curioso há anos. Datado de 1938 e dirigido por Sergei Eisenstein – um dos poucos cineastas da União Soviética a terem feito alguma fama no ocidente, ainda que não toda a que teria merecido –, Alexandre Nevsky é obviamente uma peça de propaganda ideológica, mas trata-se de um daqueles raros exemplares dessa categoria que se mostram capazes de sobreviver ao seu momento histórico e até mesmo ao regime que os produziu, continuando a ser admirados pelas gerações seguintes, por seu valor artístico intrínseco.

O filme trata de um momento-chave da história russa. Em meados do século XIII, a Rússia, que já sofria com repetidas tentativas de invasão por parte dos tártaros ao leste, passa a conviver com outra ameaça, oriunda das pretensões expansionistas do Império Germânico. O exército alemão é encabeçado pelos célebres e temidos cavaleiros teutônicos, cujo característico manto branco adornado por uma cruz negra aparece no filme como um símbolo do Mal. Depois de diversas cidades russas terem se rendido ao invasor, os cidadãos de Novgorod enviam uma mensagem a Alexandre, príncipe de Pereslavl, pedindo que os lidere numa tentativa de resistência. Alexandre, nessa época, tinha apenas 22 anos de idade, mas já gozava de certa fama por ter derrotado os suecos na batalha do rio Neva, em 1240 – episódio que lhe valeu o apelido de Nevsky.

O enredo do filme é simples, sem grandes tortuosidades, e os fãs de épicos recentes como Coração Valente ou Gladiador devem ter em mente que, num filme produzido na Rússia e em 1938, não podem esperar ver batalhas hiper-realistas de encher os olhos como as mostradas nesses filmes; sem a ajuda de efeitos especiais ou outros recursos modernos, os atores precisavam ter muito cuidado, pois mesmo as armas cenográficas utilizadas eram capazes de causar danos sérios, e em vários momentos ao longo do filme essa precaução fica patente nas imagens – ou seja, as cenas de batalha não são espetaculares. O que seduz em Alexandre Nevsky é a solenidade quase exagerada com que celebra o amor à pátria, num momento em que a Rússia se preparava para encarar o que talvez tenha sido a maior provação de sua história: toda pessoa bem informada já estava ciente de que a Alemanha de Hitler se preparava para a guerra, e de que a União Soviética seria um de seus alvos principais, de modo que a história se repetiria. Trabalhando sob a chancela do governo soviético, Eisenstein fez deste filme um apelo para que todo cidadão russo se espelhasse no exemplo do herói semilendário para fazer sua parte no esforço de resistência durante a guerra prestes a estourar. Em vez do Niemetz, o cavaleiro teutônico, a Rússia encararia agora um inimigo ainda mais impiedoso, o nazismo; não cabem aqui considerações sobre o fato de o regime comunista soviético nada ter ficado a dever à Alemanha nazista no quesito assassinato em massa, como se sabe.


É curioso observar como a História dá voltas, e esse é um dos exemplos mais notáveis que conheço. Apenas um ano após o lançamento do filme, ele foi tirado de circulação porque o líder Josef Stalin (1878-1953) havia celebrado um pacto de não-agressão com as potências do Eixo. Ou seja, o inimigo de há pouco era agora um aliado... Mas não por muito tempo, pois em 1941 o pacto foi rompido e os exércitos do Eixo invadiram a União Soviética. A resistência ao agressor germânico voltou a estar na ordem do dia.

E parece que Santo Alexandre Nevsky (sim, ele foi canonizado em 1547 pela Igreja Ortodoxa, e mais tarde reconhecido também pela Igreja Católica) estava de fato olhando por seus compatriotas e animando-os, pois a obstinada resistência dos russos quebrou as pernas do poderoso exército do Reich 
– com alguma ajuda do clima: a exemplo do que acontecera com Napoleão um século e meio antes, também Hitler viu seus planos serem arruinados pela intervenção do "general Inverno". Sem esquecer que o contra-ataque soviético também foi essencial para a vitória dos Aliados, já que foi o exército russo que tomou Berlim em 1945, sepultando de vez as esperanças alemãs de vitória na Segunda Guerra Mundial.

Engraçado eu ter mencionado o fato de Alexandre ter sido canonizado pela Igreja Ortodoxa, pois esse era um lado do personagem que o "patrão" de Eisenstein – o governo soviético dos anos 30 –, com certeza não desejava ver enfatizado: o regime comunista era oficialmente ateu. De fato, em Alexandre Nevsky a Igreja Ortodoxa (religião majoritária na Rússia, e que manteve milhões de devotos fiéis, mesmo tendo ficado na clandestinidade por 80 anos) é "diplomaticamente" deixada de fora: os religiosos que aparecem são representantes da Igreja Católica e são apenas a cereja do bolo de crueldade preparado pelos Teutônicos, abençoando a matança de camponeses pacíficos e outros atos de brutalidade. Para o governo comunista, o ideal seria colocar toda e qualquer forma de religião ou crença no sobrenatural num mesmo e ignominioso cesto, pintando Deus como uma superstição anacrônica que seria melhor abolir de vez – mas ele deve ter percebido que, atacando a Igreja Ortodoxa, seria difícil ganhar a simpatia de muitos russos para a mensagem trazida pelo filme, pois grande parte da população continuava a ser fortemente religiosa, mesmo sendo obrigada a cultivar sua fé às escondidas
. Assim, o governo contentou-se em demonizar a Igreja Católica, que, mesmo antes da Revolução de 1917, tinha poucos fiéis no país e parecia uma coisa "distante". Pode-se considerar isso como uma concessão.


Além disso, traços (na verdade, "traços" dá a idéia de algo demasiado sutil, mas não encontro palavra melhor) do comunismo e sua visão das coisas aparecem ao longo de todo o filme: Alexandre, embora seja um príncipe, trabalha ombro a ombro com seus súditos mais humildes, pescando no lago Plestcheveio; quando ele chega a Novgorod, é recebido como herói salvador pelo povo humilde, mas repudiado pelos ricos, que de bom grado entregariam seu país aos invasores se a margem de lucro fosse suficientemente alta; durante a preparação para a guerra, um velho ferreiro doa todas as armas e armaduras que tem em sua oficina pelo bem da causa; dois guerreiros russos, Vassili e Gavrilo, que no começo são rivais pelo amor de uma mesma jovem, abraçam-se fraternalmente antes de entrarem em combate com os alemães – ou seja, o interesse da Mãe Pátria deve passar por cima de diferenças pessoais. Não há sutileza: o filme é uma obra fortemente ideológica e não faz nenhuma tentativa de ocultar isso. A própria música, por vezes exótica para ouvidos ocidentais, é claramente feita para mexer com as emoções, e em vários momentos acaba por causar uma reação empolgada no espectador, mesmo a contragosto: uma vontade de pegar uma lança e ir ajudar Alexandre e seus seguidores a expulsar o invasor.

Mesmo com todo o doutrinarismo político existente por trás de sua criação, Alexandre Nevsky ainda é um filme interessante. A história fascina por tratar de uma das infindáveis facetas da eterna questão do heroísmo, além de falar sobre esforço e superação, de modo que sempre terá o que ensinar a pessoas de qualquer lugar ou época.

Uma curiosidade: numa pesquisa realizada no ano passado por um jornal russo, apurou-se que, para a maioria da população do país, Alexandre Nevsky ainda é a personalidade mais importante de sua história, superando por uma boa margem os próprios Lenin e Stalin (!). Seria isso um sinal de que os russos não têm vergonha de reconhecer sua necessidade de ter heróis? E nós?...