quarta-feira, abril 14, 2010

Cerimônias Satânicas


O título deste livro é um exemplo típico de adaptação com objetivos marketeiros, um daqueles casos em que não é ao tradutor que deve ser atribuída a culpa: o pessoal da editora que publicou a obra no Brasil deve ter achado que a tradução direta do título original, que era simplesmente The Ceremonies, não soaria forte o bastante em português (e talvez estivessem certos nesse ponto...) e lascou o "satânicas" para atiçar a curiosidade dos fãs de literatura de terror. Na verdade, não há nada de especificamente satanista no enredo deste excelente romance. Na capa, lê-se uma opinião altamente elogiosa atribuída a ninguém menos que Stephen King! Talvez não haja como checar a autenticidade de tais palavras, mas, ao chegar ao fim do livro, não é difícil acreditar que essa é uma história da qual o "home" teria gostado.

Como em muitos romances do gênero, temos aqui um prólogo enigmático, seguido de um "início da história propriamente dita" aparentemente corriqueiro e inocente. No prólogo, uma "coisa" não nomeada assume o controle da vontade de um menino que a encontra por acaso (será?) ao afastar-se da fazenda onde mora e embrenhar-se na mata, nos Estados Unidos do século XIX, e começa a "instruí-lo"... A natureza dessa "coisa" permanece misteriosa: talvez tenha origem extraterrestre, talvez seja sobrevivente de um passado pré-humano ao estilo Lovecraft, mas nada se sabe com certeza. Em qualquer caso, nada tem a ver com o Satã da tradição judaico-cristã.

No início da história propriamente dita, já "nos dias de hoje" – o que, quando o livro foi escrito, significava algum momento da década de 1980 –, conhecemos Jeremy Freirs, estudante e professor em Nova York, que, às vésperas de completar 30 anos, ganha a vida ministrando cursos livres sobre literatura e cinema, enquanto prepara uma dissertação sobre o romance gótico – é claro que Klein gosta de literatura gótica, e, a bordo dos estudos de Jeremy, demonstra possuir invejáveis conhecimentos nesse campo: reencontrei nas páginas de Cerimônias Satânicas muitos dos autores e livros mencionados por H.P. Lovecraft em seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura (para mais detalhes, consultem meu texto sobre Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino), a maioria dos quais, infelizmente, continua inacessível ao público brasileiro. Klein chega a mencionar esse próprio ensaio! Mas desviei-me do assunto.

Jeremy encontra por acaso (?), no mural da biblioteca onde faz suas pesquisas, um anúncio de aluguel de verão colocado por um casal de Gilead, localidade rural não distante de Nova York, e decide passar lá suas férias, aproveitando a tranquilidade do campo para dedicar-se a sua dissertação. O casal, Sarr (que raio de nome é esse?) e Deborah Poroth, como quase todos os moradores do lugarejo, pertence à Confraria do Redentor, uma fictícia seita cristã fundamentalista cujos membros vivem isolados do mundo moderno e ainda guardam muitos preceitos do Velho Testamento há muito considerados ultrapassados pelas denominações cristãs principais (embora Sarr fale desdenhosamente da seita Amish, está na cara que esta foi o modelo direto para Klein criar a Confraria). A mãe de Sarr é uma espécie de Sibila local, cujos poderes proféticos despertam nos membros da comunidade uma mistura de respeito e temor. E ela descende justamente dos Troet, que vêm a ser a família do menino Absolom – aquele possuído pela "coisa" mais de um século antes.

Urdindo tudo, manipulando as pessoas sem que elas percebam, arquitetando cuidadosamente as interações entre elas, está um misterioso "Velho", que, de humano, conserva a aparência e pouco mais – é um servo da "coisa", totalmente dedicado aos misteriosos desígnios dela. Não estou dando spoiler ao revelar que o Velho é o próprio Absolom, já com uns 110 anos de idade ou mais: Klein não diz isso explicitamente até bem avançado o livro, mas qualquer leitor deduziria facilmente o fato. Ele encontra um meio de aproximar Jeremy de Carol, uma jovem que trabalha na biblioteca, e os dois iniciam um romance, mas o Velho tem o maior cuidado no sentido de sabotar qualquer oportunidade que pudessem ter de chegar às "vias de fato" – pois Carol é virgem, e é da máxima importância para os planos do Velho que permaneça assim. Para poder vigiá-la de perto e conseguir que confie nele, apresenta-se no papel de um velhinho bondoso, meio caduco, mas muito culto e viajado, que a contrata como auxiliar de pesquisa para um livro que alega estar escrevendo sobre a origem obscura de certas rimas e brincadeiras infantis, muitas das quais, segundo ele, remontam a rituais pagãos pré-históricos. Aproveitando-se dessa proximidade, o Velho desenvolve com Carol uma espécie de relação de avô e neta, e vai conduzindo os atos da moça na direção que interessa a ele e à força misteriosa à qual ele serve.

Eu chegaria a dizer que o elemento sobrenatural  que, embora magistralmente tratado, ocupa uma parte surpreendentemente pequena do livro – não é o principal em The Ceremonies. A história chama bem mais atenção por suas fugidias mas fascinantes referências a tradições antigas que continuam bem mais presentes no nosso dia-a-dia do que normalmente imaginamos (e bem mais do que muitos de nós gostam de acreditar) e pelo confronto entre visões de mundo diferentes – muitas vezes, dentro de uma mesma cabeça. Sarr Poroth, o jovem fazendeiro, membro fervoroso da Confraria do Redentor, pasmem, já foi estudante universitário fora da comunidade; trata-se de um homem de certa instrução, que voluntariamente renunciou ao mundo da cultura e do conhecimento para dedicar-se ao trabalho da terra (que ele considera "a única ocupação digna" que conhece) e voltar a viver no mundo simples, sem meios-tons, oferecido pela visão fundamentalista de sua seita: Deus está no céu e a Seus servos compete cultivar os Seus campos e louvá-Lo – qualquer coisa que vá além disso é pecado e mal. Uma ojeriza toda especial é reservada pelos Irmãos ao trabalho intelectual, que, na verdade, eles nem mesmo consideram trabalho: ficar sentado lendo e escrevendo, para eles, não passa de um disfarce para o pecado do ócio. Trabalho só é trabalho se deixar um homem suado e extenuado ao final do dia e lhe der calos nas mãos. De modo que Jeremy, trancado em seu anexo na fazenda dos Poroth, lidando o tempo todo com livros e papéis, torna-se alvo de desconfiança e desprezo generalizados na comunidade.

Mesmo assim, Sarr não consegue apagar a marca que o fato de ter tido estudo deixou nele. Uma das passagens mais interessantes do livro é uma na qual todos os seus vizinhos próximos, com as respectivas famílias, comparecem para ajudá-lo no plantio do milho – que é realizado à noite, com muitos toques ritualísticos que os Irmãos não percebem: simplesmente receberam a fórmula por tradição e não lhes parece existir outra maneira de fazer a coisa. A horas tantas (isso também faz parte da tradição), todos interrompem o trabalho e reúnem-se em torno de uma mesa ao ar livre para devorar um gigantesco pão de milho em forma de estrela de cinco pontas, maior que um homem. Enquanto os outros participam alegremente do trabalho e da refeição, sem se questionarem sobre coisa alguma, Sarr, se lembra do que leu na biblioteca da universidade sobre a origem desse costume: a estrela de cinco pontas é uma representação estilizada de um corpo humano, o da vítima sacrificial que outrora era oferecida aos deuses para propiciar uma boa colheita. Inquieta-o um pouco pensar que todos aqueles bons cristãos ali estão, sem saber, participando do que já foi em tempos um sangrento ritual pagão. Ter mais cultura significa ter consciência de muitas coisas que escapam às pessoas sem instrução – e isso nem sempre é agradável: pode, por vezes, ser bem perturbador. Sarr preferiria poder apagar da própria mente muitas coisas que aprendeu e voltar a partilhar a paz da ignorância com seus irmãos de seita, mas isso não está em seu poder. Por causa dessa mesma dualidade, ele é provavelmente o personagem mais complexo do livro, às vezes mostrando-se surpreendentemente inteligente e tolerante em questões religiosas ("A trovoada era uma colisão de moléculas, e também a voz de Deus; ambas deviam ser verdade. [...] Deus atende por muitos nomes diferentes e é adorado de muitas maneiras. Mas Ele é sempre o mesmo Deus. [...] A princípio [...] perturbavam-me as muitas e diferentes formas que Deus podia tomar. Mas, no final, descobri que podia voltar a acreditar com ainda mais fé do que tinha antes, porque consegui compreender que, mesmo quando Ele tinha nomes diferentes, era sempre o mesmo Deus que eu conhecia"), e outras, absurdamente ignorante em relação a essas mesmas questões ("Olhou para sua tia inconsciente [...]. 'Ela vai morrer, se não a levaram para um hospital...' Mas essa providência fora sugestão do demônio [...], remanescente dos anos que ele passara no perverso mundo exterior. Sabia agora que a oração funcionava tão bem quanto os instrumentos de um cirurgião"). Esse é o exemplo mais flagrante, mas de modo algum o único, da característica fascinante que tem The Ceremonies de conseguir oferecer uma multiplicidade de pontos de vista. Os personagens principais parecem ser Jeremy e Carol, mas a cada passagem temos uma visão diferente dos mesmos fatos, através dos olhos de um personagem diferente: além dos dois, também Sarr, Deborah, o Velho (cujos pensamentos são assustadoramente objetivos e desprovidos de emoção) e até figuras de pouca importância como Rochelle, a colega de quarto de Carol, e um ou outro dos Irmãos da Confraria, todos dão a sua versão das coisas.

Klein conseguiu a proeza de escrever um livro que, mesmo tão longo (mais de 600 páginas), não deixa o leitor impaciente em momento algum – não é como em outros livros extensos em que a gente enfrenta algumas partes chatas porque outras são interessantes: aqui, até mesmo o que não é (ou não parece) essencial para a trama tem o seu sabor próprio, e o estilo é sempre agradabilíssimo. Os personagens são convincentes e bem construídos, enfim, são pessoas de verdade, às quais o leitor consegue se afeiçoar, e, embora haja longos trechos com pouquíssimo ou nenhum teor sobrenatural, quando ele aparece, é de uma forma que o leitor dificilmente esquecerá. O destino do mundo está em jogo, e, de certa forma, o próprio fato de isso não ser aparente, nem do conhecimento da maioria dos personagens, aumenta o seu potencial ameaçador, ainda mais porque a tênue esperança que existe está nas mãos de pessoas comuns, que nem mesmo sabem com o que estão lidando.

Não será fácil achá-lo, já que trata-se de uma edição já antiga e, pelo menos até onde sei, não tem sido reimpresso, mas a quem tiver a sorte de encontrar The Ceremonies em seu sebo preferido, aconselho não pensar duas vezes: o pequeno investimento irá render muitas horas de leitura absorvente.