sábado, maio 29, 2010

Fúria de Titãs


Acabo de voltar do cinema, onde assisti ao remake do clássico Fúria de Titãs (1981), um dos filmes que marcaram minha infância. E para falar a verdade, tendo em vista toda a expectativa que eu naturalmente havia criado, preciso confessar que esperava bem mais... O novo filme não faz justiça a seu antecessor, e muito menos à mitologia grega que inspirou a ambos.

Primeiramente, eu não assisti ao Fúria de Titãs original quando foi lançado no cinema - em 1981 eu tinha seis para sete anos de idade, devia ter ido ao cinema duas ou três vezes na vida, e um filme como esse seria provavelmente considerado "forte", como se dizia na época e região, para uma criança da minha idade (pode parecer piada se pensarmos nas coisas a que as crianças de hoje assistem livremente e todo mundo acha normal, mas eram os tempos). Vi o filme quando passou na TV, dois ou três anos depois. Mais tarde o revi em VHS e, faz agora uns três anos, encontrei em DVD e comprei: ele hoje integra uma pequena coleção de filmes que dizem muito sobre minha pessoa, pois, juntamente com um monte de livros, foram realmente uma influência, de uma forma ou de outra.

Não foi esse filme que me despertou o interesse por histórias de deuses, heróis e monstros: tanto quanto posso lembrar, eu já nasci fascinado por mitologia. Já conhecia a lenda de Perseu antes de ver Fúria de Titãs, e, por alguma razão, ele sempre foi o meu preferido entre os heróis gregos - eu gostava das narrativas dos trabalhos de Hércules, mas me parecia que, tendo a força que ele tinha, ser um grande herói não era mais que sua obrigação. Também gostava de Teseu, Jasão e seus Argonautas, e dos outros, e, não obstante, Perseu era meu preferido. Talvez fosse pelas circunstâncias de seu nascimento, aquilo de ser lançado às águas e salvo delas (crianças lançadas às águas são um tema recorrente em muitas lendas e histórias: foi igual com Moisés, Rômulo e Remo, Amadis de Gaula...), pelo fato de ter cavalgado o magnífico Pégaso (um cavalo alado foi por muito tempo uma das coisas que eu mais desejei) ou pela natureza impossível de sua principal façanha: combater e matar uma criatura sem poder olhar para ela. Não importa: fosse por que motivo fosse, o fato é que Perseu era meu herói preferido, e por isso, a princípio, não gostei muito das liberdades que o primeiro Fúria tomou em relação à lenda original, mas, depois de me acostumar à ideia, adorei o filme, ainda que só mais tarde fosse aprender que não adiantava esperar que nenhuma história que eu já tivesse lido fosse continuar igual ao ser transformada em filme. Agora, ao ver o remake, minha contrariedade por ver as liberdades tomadas para com a lenda se soma à de ver outras liberdades tomadas para com o primeiro filme... Meio difícil explicar.

Fúria de Titãs, dirigido por Desmond Davis, com Harry Hamlin como Perseu, foi o último e, para muitos, melhor trabalho de Ray Harryhausen, o mago da animação stop motion, que utilizava modelos fotografados quadro a quadro para dar vida a criaturas fantásticas em filmes. Outro trabalho dele do qual me lembro (e que adoraria ter em minha DVDteca - será que não está em catálogo? Há tantos filmes antigos sendo relançados... Preciso verificar) é Simbad e o Olho do Tigre, uma de várias produções sobre o heroico marinheiro árabe.

A Lenda de Perseu

A lenda original de Perseu é relativamente simples. Acrísio, rei de Argos, tem uma filha, Dânae, de beleza incomparável. O pai, como era costume na época, consulta um oráculo sobre o futuro da menina, e o vaticínio que ouve não poderia ser pior: ela terá um filho, que irá um dia causar a morte dele. Numa tentativa de evitar o destino (o que, como todo grego sabia, era inútil, mas personagens de lendas tinham que fazê-lo para servirem de exemplo), Acrísio decide nunca permitir que Dânae conheça homem algum, para que a criança profetizada nunca nasça. Então, tranca a filha numa torre, onde Zeus, o deus supremo, entra sob a forma de uma chuva de ouro. Uma vez lá, seduz a jovem e a engravida. Quando a criança nasce, Acrísio, tendo certeza de que nenhum homem poderia ter visitado Dânae sem que ele soubesse, é obrigado a acreditar no que ela conta sobre a paternidade do menino, mas, ainda aterrorizado pela profecia, tenta mais uma vez fugir ao destino: manda encerrar Dânae e Perseu numa arca e lançá-los ao mar para morrerem - mas é claro que não morrem. A arca é encontrada, próximo à ilha de Sérifos, por um pescador, que confia os dois náufragos a seu amo, Polidectes, rei da ilha. Ele os acolhe, mas, tempos depois, começa a assediar Dânae. Quando Perseu chega à idade adulta, o rei, pensando em tirá-lo do caminho, dá-lhe a missão de ir matar a górgona de nome Medusa, um monstro em forma de mulher, com serpentes em vez de cabelos, cujo simples olhar transforma qualquer ser vivo em pedra. Perseu recebe ajuda dos deuses, que lhe dão armas divinas e um par de sandálias aladas para vencer as vastas distâncias (não, não foi o Pégaso, ainda). No caminho de volta, Perseu passa pela Etiópia, que, para os gregos antigos, não era o humilde país africano que conhecemos, e sim uma terra fabulosa, mais ou menos como o reino Tão-Tão Distante do Shrek, e vê uma linda jovem acorrentada a um rochedo na praia, enquanto um apavorante monstro marinho dirige-se para ela. A certa distância estão os chorosos pais, que, naturalmente, são os reis do lugar, Cefeu e Cassiopeia. Perseu conversa rapidamente com eles e fica sabendo que Tétis, uma deusa do mar (sim, ela mesma: a futura mãe de Aquiles), exigiu o sacrifício da princesa Andrômeda ao apetite do monstro Cetus, como expiação por ter Cassiopéia tido a insensatez de comparar a beleza da filha à da própria Tétis. Em algumas versões, Perseu vence Cetus num combate leal, com sua espada e sua coragem; em outras, simplesmente usa a cabeça (no caso, a de Medusa, não a sua própria) e transforma o monstro num monumento. Depois disso, prometendo retornar, parte de volta a Sérifos e apresenta orgulhosamente o troféu que fora mandado buscar, a cabeça da górgona - petrificando instantaneamente Polidectes e sua corte e livrando sua mãe do assédio indesejado. Depois de casar com Andrômeda, Perseu parte com ela numa peregrinação a sua terra natal, Argos, onde, participando de uma competição atlética, arremessa o disco com tamanha força, que o objeto bate no chão e, quicando, vai atingir violentamente no peito um velho que passa pelo local - e que, é claro, é seu avô, Acrísio, e sofre morte instantânea, de modo que mais uma vez fica provada a inutilidade de lutar contra o destino: o fatalismo era uma das características básicas do pensamento grego clássico. Resta a dizer apenas que Perseu aparentemente não herdou dos sogros o reino da Etiópia (talvez Andrômeda tivesse irmãos mais velhos; a lenda nada diz a respeito), já que, segundo a tradição, teria fundado Micenas - que, no devido tempo, iria tornar-se a mais poderosa das cidades gregas - e sido seu primeiro rei.

Curiosidades Mitológicas

De acordo com a lenda, Perseu não montou Pégaso ao ir em busca da Medusa, já que o fabuloso garanhão alado só nasceria depois da decapitação da górgona. A lenda colateral que narra a origem da Medusa conta que ela teria sido sacerdotisa de Atena, e uma mulher de grande beleza. Tão bela, de fato, que tentou Poseidon, o deus do mar, que a procurou sob forma humana, como um belo guerreiro portando uma espada de ouro, e os dois fizeram amor dentro do templo onde ela servia - o que deve ter sido visto por Atena, uma deusa casta, como uma injúria grave. Na segunda vez, sabendo que Atena já estaria desconfiada, Poseidon adotou um estratagema: apareceu sob a forma de um garanhão (o cavalo era seu animal favorito) e transformou Medusa numa égua, após o que os dois galoparam até um local distante para novamente consumar seu amor. Mas Atena não se deixou enganar: furiosa, e não podendo fazer nada contra Poseidon, que afinal era seu tio e um deus mais poderoso que ela, descontou sua fúria na sacerdotisa, privando-a para sempre de sua beleza e de qualquer convívio humano ao transformá-la no monstro horripilante que sabemos. Muitos anos mais tarde, quando Perseu decapitou Medusa, do sangue que escorreu do cadáver nasceram os dois filhos que Poseidon lhe havia feito: o primeiro foi o filho que Poseidon gerou sob forma humana, e por isso nasceu também humano. Apossando-se da espada de ouro que seu pai deixara no templo (donde lhe veio o nome, Crisaor, "o da espada de ouro"), veio a praticar certas façanhas notáveis que, infelizmente, eu não conheço; o segundo foi justamente Pégaso, que Poseidon gerara sob a forma de cavalo. De que maneira Perseu encontrou Pégaso, eu não sei, mas consta que ele realmente o montou. Mais tarde, o cavalo alado serviria ainda a outro herói de menor projeção, Belerofonte, o matador da Quimera.

Em ambos os Fúria de Titãs, o monstro marinho que aparece é chamado de Kraken, nome que na verdade pertence à mitologia germânica/nórdica, onde designava uma lula gigante, capaz de afundar navios. No primeiro filme, ao ordenar a Poseidon que liberte o tal Kraken, Zeus refere-se a ele como "o último dos titãs" - coisa que não faz nenhum sentido. Os titãs não eram monstros, eram deuses, na verdade a geração anterior aos Olimpianos: um deles, Cronos (o Tempo) foi o pai dos seis deuses maiores do Olimpo - Zeus, Poseidon, Hades, Hera, Deméter e Héstia, que, direta ou indiretamente, deram origem a todos os outros. Além disso, mesmo que Kraken fosse um titã, seria tolice dizer que era "o último": Zeus e os irmãos travaram uma guerra contra os titãs, mas não puderam matar nenhum deles, já que eram imortais também. Em vez disso, tiveram que aprisioná-los no Tártaro, a região mais profunda do submundo que Hades passou a governar.

Como já mencionei acima, o verdadeiro nome do monstro que Perseu derrotou para salvar Andrômeda era Cetus, nome que, graças à lenda, passou a significar "monstro marinho" de um modo geral - tanto, que foi adotado pela moderna zoologia para designar as baleias e seus parentes: os "cetáceos". Em Moby Dick, Herman Melville dedica todo um divertidíssimo capítulo à tentativa de demonstrar as origens antigas e nobres da balearia - entre outras coisas, tenta provar por A mais B que o tal Cetus da lenda era mesmo uma baleia, o que faria de Perseu, provavelmente, o primeiro baleeiro de que se tem notícia! :)


O Novo Filme

O novo
Fúria de Titãs, estrelado por Sam "Avatar" Worthington (não que Avatar possa me servir de referência, já que até agora não o vi) parte de uma premissa bastante absurda, mesmo para um filme de fantasia: os homens teriam declarado guerra (guerra mesmo, literalmente!) contra os deuses, levando a cabo ataques que vão desde demolir seus templos e estátuas até pôr cerco ao monte Olimpo (!!). Não que não seja plausível a ideia de que muitas pessoas se revoltassem contra os desmandos dos muitas vezes fúteis e cruéis deuses gregos, capazes de desgraçar vidas e destruir nações só para satisfazer paixões condenáveis como luxúria ou vingança ou para acariciar a própria vaidade; o que eu não consigo "engolir" é que alguém, e ainda mais um grande número de pessoas, pudesse ter apostado na viabilidade prática de lutar contra um inimigo de poder ilimitado e que simplesmente não podia ser morto. O cerco ao Olimpo, aliás, teria sido movido pelo rei Acrísio, que, aqui, não é avô, e sim padrasto do herói Perseu: no novo filme, foi a esposa, e não a filha do rei quem foi seduzida por Zeus. Presumivelmente como castigo pelo cerco, e pelo que fez a Perseu e sua mãe, Acrísio é amaldiçoado com deformidade física (e, por alguma razão misteriosa, ao mesmo tempo abençoado com força sobre-humana e poderes especiais) e passa a ser conhecido como Calibos - personagem não mitológico, importado do primeiro filme, se bem que apenas o nome foi mantido: sua origem, histórico, motivações e aparência mudaram completamente.

Embora Perseu, criado por um pescador, tenha visto toda a sua adorada família adotiva perecer como vítimas inocentes numa batalha sem sentido entre homens e deuses (sem sentido, tanto na visão do personagem quanto pelos motivos que expus no parágrafo anterior) e, por consequência, esteja tão revoltado contra os Olimpianos quanto muitos outros homens, seu pai Zeus (interpretado por Liam Neeson) ainda assim aposta que ele poderá ser uma peça chave para restabelecer a paz entre mortais e imortais. Desta vez, o que causa a libertação do Kraken e a exigência do sacrifício de Andrômeda são as blasfêmias da rainha Cassiopeia, não motivadas por uma justa revolta, e sim por mera soberba. De passagem, registro que Andrômeda, no novo filme, parece uma versão Grécia Antiga da rainha-santa D. Isabel de Portugal, e é interpretada pela francesa Alexa Davalos - nem de longe tão bonita quanto Judi Bowker (*suspiro*), que no esplendor dos 27 anos fez a personagem no filme de 1981.

Pelo visto, o Perseu versão 2010 também não achou Davalos tão fascinante assim, pois os dois não terminam juntos - o que não surpreende, já que, nos poucos minutos de filme em que contracenam, não chega a rolar a menor sugestão de algum clima. Para que o herói não termine chupando o dedo, o que seria inadmissível em Hollywood, o roteirista enxertou uma personagem chamada Io (Gemma Arterton), oriunda de outra lenda que nada tem a ver com a de Perseu.

Mais uma vez, tocou ao pobre Hades (interpretado pelo excelente Ralph Fiennes) o papel de deus-vilão: Hollywood não perde a mania de tentar imputar aos antigos a mesma atitude hipócrita que a sociedade moderna tem em relação à morte. Se Hades governa o reino dos mortos, ele tem que ser "mau"... Uma noção absolutamente estúpida e que não encontra apoio nenhum na mitologia ou no modo de pensar de gregos e romanos (ambos povos que sempre tiveram uma atitude natural e serena em relação à morte), mas que a indústria cultural atual continua explorando.

Nem é preciso dizer que o filme é uma verdadeira vitrine de efeitos especiais mirabolantes, usados principalmente nas criaturas míticas - Medusa, o Kraken, Pégaso, os escorpiões gigantes, os
djinns (mais um enxerto: não sei bem o que os djinns são, mas sei que pertencem ao folclore árabe), mas, embora eu admita que são todos visualmente perfeitos, sou um tanto chato quanto a isso: como sei que já escrevi em outro post, a meu ver, excesso de realismo é antes prejudicial que meritório quando se quer mostrar seres fabulosos num filme - uma aparência um pouco mais irreal os tornaria mais fascinantes. Conclusão: eu gostava mais dos monstros de Harryhausen... Por isso, e também por não ter gostado do roteiro, dou no máximo uma nota cinco a esse novo Fúria de Titãs, que, quando sair em DVD, certamente não figurará na minha estante ao lado da versão antiga, que continuo preferindo sem a menor dúvida.