sábado, outubro 16, 2010

Coraline

Quem primeiro me falou de Neil Gaiman foi a minha muito, muitíssimo especial amiga Aline Valek - não preciso ficar aqui falando longamente das qualidades dessa garota adorável e genial: vocês podem visitar pessoalmente o blog dela e conferir por si mesmos. Para mim, até então, Gaiman era "apenas" o responsável por Sandman, obra considerada cult pelos aficionados por quadrinhos, mas que eu só conhecia de nome e de capa. Como, porém, a Aline tinha esse jovem escritor britânico em altíssima consideração - a palavra mais comedida que usava para se referir a ele era "mestre" - e, para mim, a opinião dela sempre teve enorme peso, anotei o nome do autor na minha "agenda infinita" mental, como algo que devia valer a pena conhecer. E, por a agenda ser infinita, no sentido de que são infinitas as obras e autores que a gente deveria conhecer e ainda não conhece (olá de novo, Ítalo Calvino...), só agora, anos depois, é que efetivamente peguei um livro de Gaiman, corri a cortina em volta de mim mesmo para dispor de um isolamento adequado, e disse: "Bom, agora eu vou ler mesmo!" O livro foi Coraline, e eu não estava preparado para o que encontrei. Acho que ninguém pode estar.

Coraline é uma menina - típico, afinal crianças são os melhores protagonistas para histórias bizarras, onde a tessitura comum do mundo que vulgarmente chamamos de "real" começa a ficar incerta: crianças não perdem tempo duvidando dos próprios sentidos nem dizendo bestamente a si próprias que "isso é impossível", embora a coisa esteja bem diante de seus olhos. Uma menina não diferente das outras de sua idade, a não ser, talvez, por ter um gosto ainda maior que o da maioria das crianças por explorar, achar coisas, reconhecer o ambiente ao seu redor. Ela parece gostar do próprio nome (cuja correlação com "coral" pode ocultar algum significado), pois faz questão de que as pessoas o pronunciem direito - o que é um problema, pois adultos em geral insistem em chamá-la de Caroline. Isso também é típico.

Coraline e seus pais acabam de mudar-se para uma enorme e antiga casa de três andares, que foi dividida em vários apartamentos. Abaixo deles, moram duas idosas ex-atrizes; acima, um velho solitário e excêntrico. Além disso, ainda há na casa apartamentos vazios. Na sala de visitas do apartamento dos pais de Coraline existe uma porta que, aparentemente, não vai dar em lugar algum: abre-se para uma parede de tijolos que, como a mãe explica, foi erguida para vedar a passagem quando a casa foi desmembrada. Acontece (e isso só Coraline parece notar) que a parede nem sempre está ali: às vezes, ao ser aberta, a porta dá acesso a um corredor longo, escuro e frio. Do outro lado existe um apartamento, à primeira vista, igual ao que ela conhece - mas só à primeira vista. Ali ela tem outro pai e outra mãe, que, diferentemente dos originais, que têm seu trabalho e seus próprios assuntos para ocupá-los, parecem estar ali só para ela, cercando-a de toda a atenção. De resto, parecem-se muito com o pai e a mãe que Coraline conhece, só que são ligeiramente estranhos. Ao sair para explorar, ela descobre que também existem outras duas velhas senhoras no andar de baixo e outro velho solitário no andar de cima, todos muito parecidos com suas contrapartes do outro lado do corredor, só que todos, também, ligeiramente estranhos. E, como ela não demora a descobrir, o fato de nesse estranho lugar todos terem botões pretos no lugar dos olhos está longe de ser a coisa mais estranha ali.

E outras coisas bizarras e horripilantes começam a surgir e acontecer. Ao retornar pelo corredor ao mundo que conhece, Coraline descobre que seus pais verdadeiros desapareceram, e só podem estar num lugar: aprisionados do outro lado, como uma isca para forçá-la a voltar. Há um gato que parece saber de tudo o que acontece ali e ser capaz de circular livremente entre os dois mundos, mas não está lá muito interessado em ajudar Coraline. Três crianças presas por trás de um espelho - fantasmas, ou menos que isso, pois suas almas foram roubadas. Presenças misteriosas e sem forma que perambulam pelo corredor escuro. Para ganhar sua própria liberdade e a de seus pais, Coraline terá de vencer um jogo contra sua "outra mãe", o que irá exigir dela toda a sua coragem. Coragem que, como ela explica sabiamente ao gato, não consiste em não ter medo, mas em fazer o que se deve, apesar do medo.

É incrível a facilidade com que um leitor pode ser envolvido por esta história. Nela, entra-se num mundo que poderíamos ficar tentados a qualificar de "irreal", mas essa palavra perde o sentido quando tudo o que costuma servir de referência para definir o que é real e o que não é, começa a ser questionado e se torna objeto de dúvida. A linguagem e o desenvolvimento da narrativa são simples, quase do modo como uma criança contaria uma história, e mesmo assim (ou, quem sabe, em grande parte por causa disso), os arrepios experimentados não serão facilmente esquecidos. As imagens oníricas evocadas por Gaiman me lembraram em diversos momentos o alemão Michael Ende, não tanto em sua obra mais conhecida, A História Sem Fim, mas principalmente em outros livros onde o elemento surrealista aparece com mais força, como O Espelho no Espelho. Pois a proposta do surrealismo, expressada da maneira mais simples, consiste em transformar em imagem - seja gráfica ou literária - as manifestações do inconsciente, sem fazê-las passar pela peneira da razão. Vocês já acordaram com a sensação de terem tido um sonho estranho, que parece ainda estar roçando quase na superfície da mente, mas que não conseguem lembrar, embora a sensação perturbadora que ele causou ainda esteja bem nítida? Pois Neil Gaiman nos convida a reencontrar alguns desses sonhos esquecidos, se tivermos essa coragem - a coragem da qual Coraline fala ao gato. Por fim, para registro, já estou com dois outros livros de Neil Gaiman na fila: Coisas Frágeis e O Mistério da Estrela. Não se surpreendam se logo, logo, eu voltar a falar no mestre.