quarta-feira, junho 01, 2011

Thor


Para quem já foi durante muito tempo (ou o que para um adolescente pareceu ser muito tempo) um entusiasta de quadrinhos, mas já não os lê, a não ser ocasionalmente, há uns bons anos, não será tarefa das mais fáceis comentar este novo filme, mas já observei que os textos mais difíceis de começar costumam ser os que, depois que deslancham, acabam tendo os resultados mais interessantes. Então peço paciência a meus leitores se este post demorar um pouco a "decolar". ☺

Quando Stan Lee, fundador e, na época, principal argumentista da Marvel Comics Group, escreveu a primeira história tendo como protagonista o deus nórdico Thor (publicada na revista Journey Into Mystery n.º 83, de agosto de 1962), estava fazendo algo de inaudito para a época: buscar inspiração no passado da humanidade, em suas religiões antigas e lendas ancestrais, para contar histórias com uma roupagem moderna, que atraísse os jovens. Para aproximar mais o personagem de seus leitores e também poder fazê-lo interagir com os demais astros dos quadrinhos de seu selo, como o Hulk, Homem de Ferro, Capitão América e outros, Lee teria que trazer Thor para o século XX. Conseguiu isso criando para ele um alter ego, o Dr. Donald Blake, um cirurgião (americano, é óbvio) manco, que, durante uma viagem à Noruega, encontraria numa caverna um velho bastão de madeira e, ao batê-lo acidentalmente nas pedras, ver-se-ia transformado no poderoso Deus do Trovão, tendo o bastão virado o mítico martelo Mjolnir (o j pronuncia-se como i semivogal). Daí em diante, Blake levaria a vida dupla típica de quase todos os super-heróis, exercendo a medicina como rotina e ocasionalmente encarnando o deus para salvar o mundo daquelas boas e velhas ameaças cósmicas que todo argumentista do gênero é craque em tirar da manga.

As histórias de Thor seguiram nesse esquema durante anos, com os altos e baixos normais. Como não sou um especialista e, além disso, essas histórias foram publicadas muito antes do meu tempo, não sei dizer ao certo se foi ainda o próprio Lee ou um dos vários argumentistas por cujas mãos o herói passou quem teve a ideia de dar uma reviravolta em sua origem. Até então, Donald Blake acreditava ser apenas um mortal a quem os desígnios de alguma sabedoria superior teriam achado por bem conceder os poderes de um deus para que os usasse em defesa de causas justas. Aos poucos, eventos misteriosos que iam ocorrendo em sua vida, e imagens que surgiam inexplicavelmente em sua memória, acabaram por levá-lo a compreender a verdade: ele era o próprio deus Thor.

A explicação encontrada para isso foi bastante engenhosa e com um sabor realm
ente mitológico: calçado em sua condição de primogênito do deus supremo, Odin, e em sua reputação de grande guerreiro entre os habitantes de Asgard (o reino dos deuses), Thor ter-se-ia tornado um deus egoísta e arrogante. Para ensinar-lhe uma lição, Odin teria retirado seus poderes, apagado sua memória, e o colocado para viver na Terra sob uma identidade forjada, a do então estudante de medicina Blake. Como um jovem sem muitos recursos, e que sofria com as sequelas de uma paralisia, Thor aprenderia o valor da humildade e do trabalho duro, até estar pronto para receber de volta sua herança divina.

Foi já nos anos 80 que um sujeito chamado Walter Simonson assumiu a revista mensal de Thor nos Estados Unidos. Escritor e também desenhista, realizou uma reformulação geral no personagem e em seu ambiente, buscando reduzir ao mínimo possível as ligações com o universo super-heroístico da Marvel para investir pesado numa maior aproximação com a mitologia nórdica, que, afinal de contas, foi de onde o personagem veio. E é nítido que foi principalmente dessa fase que veio a inspiração para o primeiro filme da nova safra cinematográfica da Marvel a tratar do Deus do Trovão.

E vamos concordar, não se trata de um filme qualquer ― nenhum filme dirigido por Kenneth Branagh, responsável por nada menos que Henrique V, é um filme qualquer. Menos ainda se tiver Anthony Hopkins no papel de Odin e Natalie Portman ― rara combinação de beleza estonteante e talento admirável, capaz de se sair bem seja num filme ET (extra trash) como Marte Ataca (1996) ou num tenso thriller psicológico como o recente Cisne Negro ― como a "mocinha", no caso a cientista Jane Foster, com quem Thor, exilado na Terra, irá se envolver. O filme tem ainda Stellan Skarsgård (Rei Arthur, O Exorcista: o Início) como Dr. Erik Selvig, mentor de Jane; Tom Hiddleston como Loki; Jaimie Alexander como a deusa Sif (na mitologia, esposa de Thor, no filme aparentemente apenas uma "amiga", que nem chega a interferir na relação dele com Jane) e, curiosamente, Ray Stevenson (também de Rei Arthur e da série Roma), praticamente irreconhecível sob uma montanha de barba e cabelo, como o gordo e bonachão Volstagg, personagem criado para os quadrinhos.




O filme começa com uma cena em que Jane, Selvig e sua bolsista estão tentando observar e registrar um estranho fenômeno nos céus do deserto do Novo México, quando seu veículo de pesquisa atropela um homem que parece ter surgido do nada em meio à tempestade. Depois de o espectador ter apenas tido tempo de ver que o homem é Chris Hemsworth, que interpreta Thor, a narrativa recua para a Idade Média, nas terras do norte, e passa a ocupar-se de uma guerra entre os deuses de Asgard e os Jotun, ou gigantes de gelo ― é interessante notar que na mitologia nórdica, como na grega, os gigantes personificam forças da natureza, e que os deuses nórdicos, também como seus equivalentes gregos, têm com esses gigantes uma relação ambivalente: ao mesmo tempo em que são ligadas por estreitos laços de parentesco, as duas raças são inimigas mortais. Com os deuses saindo vitoriosos, Odin toma dos gigantes uma caixa misteriosa que dá origem aos poderes deles, e estabelece uma trégua ― que Thor, muitos anos depois, irá quebrar em busca de glória pessoal, levando Asgard à beira de uma nova guerra. No filme, é esse ato que leva o rei dos deuses a banir o filho para a Terra, tendo anulado a maior parte de seu poder, mas Thor não perde a memória, nem chega propriamente a ter um alter ego humano ― apenas usa falsamente e por um curto período de tempo o nome de Donald Blake, que, segundo Jane, é um "ex" seu. Em Asgard, Odin adormece (de acordo com a mitologia, ele precisava de longos períodos de sono para manter seus poderes) e, sem que ninguém saiba quando despertará, seu ardiloso filho adotivo, Loki, aproveita-se da ausência de Thor para fazer-se rei, o que precipitará o conflito que serve de combustível ao roteiro.


O filme toma diversas liberdades em relação à mitologia ― basicamente, as mesmas que os quadrinhos já tomavam, e mais algumas. Nas lendas nórdicas, por exemplo, Loki não era filho de Odin, nem mesmo por adoção, e, embora por nascimento pertencesse à raça dos gigantes, era admitido ao convívio dos deuses e geralmente considerado um deles. Tinha uma personalidade complicada, algumas vezes comportando-se como um fiel amigo dos deuses, outras como um trapaceiro compulsivo. Nos quadrinhos, essa complexidade havia sido abolida ― Loki era retratado sempre como mau-caráter ―, enquanto, no filme, ele é um personagem mais dramático, que sofre ao descobrir sua verdadeira origem, o que pode, em parte, justificar seus atos e ganhar para ele um pouco da simpatia do espectador. Loki era o deus do fogo e gerou muitos filhos, tanto humanos quanto feras, entre eles Sleipnir, o garanhão de oito patas que servia de montaria a Odin, bem como o monstruoso lobo Fenris, ou Fenrir, e a Serpente de Midgard. Midgard, aliás, era como os nórdicos chamavam o mundo onde vivemos nós, humanos. Esse nome, que significa literalmente terra média (alguém se lembra onde já vimos isso?), deve-se ao fato de que esse mundo fica no meio, abaixo do céu, onde vivem os deuses, e acima do mundo subterrâneo, habitado por trolls e outras criaturas do escuro.

O próprio Thor era uma figura à parte. Diferente do que o filme sugere, a deusa Friga, embora fosse esposa de Odin, não era a mãe de Thor, que nasceu da relação dele com uma giganta de nome Jord (que significa Terra), provavelmente antes de seu casamento com Friga. Embora Odin fosse o deus supremo, Thor era, de longe, muito mais popular e cultuado, principalmente entre os homens: era um deus-herói, guerreiro, aventureiro, exatamente a divindade adequada aos seguidores da filosofia viking de vida, que tinham no sangue a febre do desbravamento e acreditavam que a única morte digna de um homem era no campo de batalha. Em homenagem a Thor, quase todos os vikings usavam no pescoço um pingente em forma de martelo.

Por falar em morte, alguns podem ter estranhado a cena em que, prestes a partir para Jotunheim, o reino dos gigantes de gelo, Thor diz a Heimdall, o guardião dos portões de Asgard, que não tem planos de morrer naquele dia, e Heimdall replica que ninguém tem. Pode-se pensar: "Fácil para eles dizerem isso: são deuses, imortais!" Beeeem... Mais ou menos. O fato é que os deuses nórdicos não eram imortais no sentido pleno do termo. Para evitar a velhice e as doenças, precisavam comer regularmente as maçãs mágicas cultivadas pela deusa Iduna, e podiam, sim, morrer em combate da mesma forma que os homens ― embora, claro, para isso fosse preciso um adversário realmente poderoso.

Falar em Heimdall me fez lembrar de um detalhe discutível (para dizer o mínimo) do filme: esse deus é interpretado pelo ator Idris Elba ― que é negro ―, enquanto Hogun, outro personagem oriundo dos quadrinhos, é representado pelo japonês Tadanobu Asano. Pergunto: qual a lógica de colocar negros e orientais no reino dos deuses nórdicos? Não seria isso um exemplo típico da obsessão do politicamente correto prevalecendo sobre o bom senso?

Em resumo: Thor vale a pena ser visto. Tem um enredo cativante, que consegue a difícil proeza de ser interessante tanto para o inveterado leitor de quadrinhos quanto para o espectador de ocasião que pouco ou nada sabe sobre o universo da Marvel, tem ótimas atuações (com o inevitável destaque para o "imortal" Anthony Hopkins e para a boa surpresa Tom Hiddleston), tem um visual de encher os olhos, e tem o grande mérito de contribuir para despertar nas novas gerações o interesse pelo mundo fascinante e cheio de significados da mitologia.

2 comentários:

Aline Valek disse...

Dentre todos os heróis da Marvel, o que sempre achei menos interessante é o Thor. Ele é muito mais a cara das sagas intergalácticas e rocambolescas da DC, e ainda não consigo engolir um deus fazendo parte de um esquadrão de heróis HUMANOS, chamado Os Vingadores. Mas vá lá: a gente não precisa esperar coerência ou lógica nos quadrinhos; é só diversão.

(e como vc disse: acho válido inserir personagens mitológicos da antiguidade em obras da cultura pop, dando uma chance para que não se percam ou morram, e sim se renovem constantemente)

Mas vou ser sincera: o filme é sofrível. Nem pela boa intenção de "levar aos mais jovens o interesse pela mitologia" ele vale a pena. É um roteiro pobre e inteiramente previsível. Nos 10 primeiros minutos você já entende tudo e já não vê a necessidade de continuar assistindo. Só fiquei depois dos créditos para ver a cena final, pq tive a esperança que, depois dos créditos, pudesse começar o filme DE VERDADE.

Isso é decepcionante não por "não terem sido fieis aos quadrinhos e bla bla bla" (até pq, como já disse, não dou a mínima para o Thor dos quadrinhos), mas porque chega a ser brochante, em meio a uma safra de filmes bem dignos e cada vez mais interessantes que a Marvel vem produzindo (como os do "Iron Man"), saírem com essa produção que deixa a desejar.

Não vou negar que visualmente, o filme é riquissimo, cheio de efeitos, muita tecnologia, etc etc. Mas não tem história, não tem graça, não tem nada. Tem a Natalie Portman, e nem isso consegue salvar. Um puta desperdício de atriz.

Mas em tempos em que "Velozes e Furiosos 5" (o filme que mais me deu vergonha alheia na minha vida inteira) é líder de bilheteria, Thor até que não é nada mau.

Besos!!!
;)

Fernando Borges disse...

Preciso rever o filme. Assisti no cinema e embora tenha gostado, fiquei um pouco decepcionado com alguns aspectos.

Algumas coisas que não faziam sentido para mim ao ver o filme, fizeram agora ao ler seu texto.

De começo não entendia como funcionava a mudança hereditária de reis em Asgard, já que são todos imortais.
Depois não entendi como podia Odin ser velho, se ele era imortal...
Depois, pra piorar, não entendi como ele podia morrer, se era imortal...
Como se já não fosse suficiente, fiquei pasmado quando ele acordou do nada, sendo que antes ele estava no leito de morte.

Mas como já disse, você explicou tudo (ou quase tudo) isso.

A paixão de Thor com a Natalie Portman é totalmente inverossímil, mas relevei isso...

A morte do rei dos Gigantes de Gelo foi um balde de água fria... Tudo aquilo, todo aquele drama e suspense, pra ele morrer com um raiozinho barato? Desintegrar-se que nem pó...

O Tandera Negra, guardião da passagem, é outro... Todo poderosão e ficou congelado sem nem ao menos dar um murrinho antes...

Mas gostei do filme. Talvez vendo novamente eu aprecie melhor.