sexta-feira, janeiro 13, 2012

Queda de Gigantes

Vou confessar: eu tinha um certo preconceito com Ken Follett. Não sei por que, mas ele sempre me pareceu ser um outro Sidney Sheldon - que, por sua vez, embora não seja o melhor escritor do mundo, está longe de ser o pior: como já escrevi antes, é incomparavelmente melhor ler Sidney Sheldon do que não ler coisa nenhuma. Em todo caso, neste momento estou dando a mão à palmatória: como sempre acontece com os preconceitos, esse ruiu assim que travei verdadeiro conhecimento com a coisa sobre a qual pensava saber algo. Queda de Gigantes é um livraço, e não só por ter mais de 900 páginas. Aliás, se não fosse um livraço também no outro sentido, chegar ao fim de um livro dessa extensão seria praticamente impossível.

Este é o primeiro volume de uma trilogia intitulada O Século, que, conforme informações presentes nas orelhas do livro, prosseguirá com outro a respeito da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, e um terceiro sobre a Guerra Fria. Queda de Gigantes está ambientado durante a segunda década do século XX, e seu título, muito bem dado, refere-se ao colapso dos impérios coloniais europeus que haviam ditado as regras ao resto do planeta durante os dois séculos anteriores. Embora esses impérios já mantivessem seu equilíbrio com dificuldade há décadas, um evento específico precipitou o fim quase simultâneo de todos eles e redesenhou de forma radical o mapa geopolítico da Europa. Esse evento foi a Primeira Guerra Mundial, que serve de eixo à narrativa de Follett.

O livro não tem propriamente um protagonista, pois não há um personagem único que capitalize as ações mais importantes da narrativa. Ao invés disso, a história foca os acontecimentos da vida de cinco diferentes famílias: os Williams, galeses; os Peshkov, russos; os Fitzherbert, ingleses; os Von Ulrich, alemães; e os Dewar, norte-americanos. Enquanto as duas primeiras famílias são das classes trabalhadoras, as três últimas são privilegiadas: tanto os Fitzherbert quanto os Von Ulrich, além de ricos, fazem parte das aristocracias seculares de seus respectivos países; já os Dewar, embora sem origens ilustres, são igualmente abastados. Como romance histórico extremamente bem escrito, Queda de Gigantes leva a um alto grau de maestria aquilo que define esse gênero: uma história dentro da História, personagens ficcionais movendo-se sobre um pano de fundo real, reconstituído com base numa pesquisa extensa e minuciosa, que englobou desde táticas e armamentos de guerra até o que era servido tanto nas mesas humildes quanto nas mais luxuosas, e o que estava na moda em matéria de música e vestuário na época - além, é claro, da intrincada situação política que o mundo vivia.

A princípio, o leitor pode até achar cansativo o grande número de personagens cujas características, backgrounds e atos é preciso lembrar e concatenar a fim de compreender o desenvolvimento do romance, mas, aos poucos, o próprio entrelaçamento de todas essas vidas vai tornando essa tarefa mais fácil: um personagem está ligado a outro, que está ligado a outro, e assim sucessivamente, numa cadeia que abrange vários países. O galês Billy Williams, um jovem mineiro e mais tarde soldado, é o que de mais próximo do ideal heroico encontramos no livro: corajoso, gentil, dono de um caráter irrepreensível, Billy é filho de David Williams, líder sindical na pequena cidade mineradora de Aberowen, no país de Gales, e irmão de Ethel, uma jovem bonita, inteligente e ambiciosa que trabalha como criada na mansão dos Fitzherbert, donos das minas onde trabalha quase toda a população da cidade. O atual chefe da rica família é o jovem conde Edward Fitzherbert, chamado pelos amigos de "Fitz", um homem vaidoso e arrogante, como seria de se esperar de alguém de sua posição social; apesar de não ser desprovido de bons sentimentos, Fitz parece ter um caráter demasiado fraco para agir de acordo com sua consciência, quando isso significar desafiar convenções e talvez perder o apreço de seus pares. Em compensação, sua irmã, lady Maud, é uma feminista convicta, que, ao invés de gastar seus dias no absoluto ócio que era considerado a "atividade" normal para as mulheres da aristocracia inglesa de então, dedica-se com ardor à causa do voto feminino, que era uma das grandes lutas sociais e políticas em andamento na época. Maud acaba apaixonando-se pelo jovem diplomata Walter Von Ulrich, antigo colega de colégio de Fitz e filho de Otto Von Ulrich, também da carreira diplomática, amigo e conselheiro direto do Kaiser alemão Wilhelm (ou Guilherme) II. Ainda falando em Fitz, o conde é casado com Elizaveta, apelidada de "Bea", uma princesa russa, que, juntamente com seu irmão, o príncipe Andrei, tem um histórico de anos de abusos e arbitrariedades para com camponeses e operários em seu país natal. Entre esses, estão os irmãos Grigori e Lev Peshkov, atualmente trabalhando numa metalúrgica em São Petersburgo, que perderam o pai na infância, enforcado por ordem de Andrei, e a mãe na adolescência, morta pelos guardas do czar ao participar de uma manifestação da classe operária. Com cinco anos de diferença, e tão parecidos fisicamente que as pessoas chegam a confundi-los, os dois irmãos são personalidades opostas: Grigori é um sujeito tranquilo, sério e responsável, acostumado a fazer as vezes de pai e mãe para o irmão mais novo - que, por sua vez, é um boêmio e mulherengo incorrigível, chegado ao jogo e à vodka. Grigori sonha em emigrar para os Estados Unidos, que ele e muitos outros russos da época veem como uma espécie de terra prometida, pelo simples fato de que lá não existe czar nem nobreza, e de que os donos de terras ou de indústrias não podem mandar açoitar ou enforcar seus trabalhadores a seu bel-prazer (!). Só que, quando ele finalmente consegue juntar dinheiro suficiente para sua passagem de navio, devido a um imprevisto quem acaba viajando é Lev, deixando o pobre Grigori sem nada e, de quebra, responsável pela namorada grávida que o irmão deixou para trás.


E, como Grigori acaba descobrindo, se fosse só isso ele ainda não teria do que se queixar... É 1914 e o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-húngaro, é assassinado na cidade bósnia de Sarajevo, pelo estudante e nacionalista sérvio Gavrilo Princip. Em represália, os austríacos e seus aliados alemães invadem a Sérvia, que está sob a proteção da Rússia... Inicia-se uma reação em cadeia que mexe com antigos rancores e interesses políticos e econômicos de todas essas e de outras nações, como a França e a Grã-Bretanha, ambas aliadas à Rússia. A Europa entra em guerra, desta vez uma guerra de proporções jamais imaginadas antes, devido aos avanços tecnológicos e ao encurtamento das distâncias pelos novos meios de transporte e de comunicação. Das consequências dessa guerra, ninguém é poupado: Grigori Peshkov, Billy Williams, Walter Von Ulrich e o conde Fitzherbert, todos se veem às voltas com o perigo e o terror dos campos de batalha, sem ao menos a chance de escolherem ao lado de quem preferem estar: Billy serve sob as ordens de Fitz, a quem detesta por ter seduzido e engravidado sua irmã, levando ao rompimento dela com a família, enquanto Walter se vê diante da possibilidade muito concreta de precisar atirar no conde, seu amigo desde a adolescência e, ainda por cima, cunhado.

Enquanto o exército russo invade a região alemã da Prússia, do outro lado do continente os alemães enfrentam britânicos e franceses. A Primeira Guerra Mundial forçou uma transição brusca entre as formas de guerrear antigas e modernas: nas primeiras batalhas ainda se tentou utilizar a cavalaria, que desde a Antiguidade era considerada uma arma decisiva na maioria das guerras, mas que logo se mostrou impotente diante de tanques e metralhadoras. Pela primeira vez foram usados aviões e bombas de alta potência, elevando a guerra a um novo patamar de horror. As metralhadoras fixas (ainda não existiam as leves, que poderiam ser usadas por soldados de infantaria) eram um poderoso instrumento para a defesa de posições, praticamente à prova das formas tradicionais de ataque, o que teve como consequência uma taxa terrível de baixas: a infantaria precisava atravessar correndo as várias centenas de metros da "terra de ninguém" que separava as trincheiras de cada lado - e tinha que fazer isso indo ao encontro das rajadas das metralhadoras inimigas.

Os Estados Unidos entraram tardiamente na guerra, em 1917, oficialmente em resposta ao torpedeamento de navios americanos por submarinos alemães no Atlântico norte com o objetivo de cortar o fornecimento de suprimentos a ingleses e franceses, mas fica claro com uma análise mais cuidadosa que isso foi apenas parte do motivo: os americanos sabiam bem o que perderiam no campo econômico se alemães e austríacos vencessem a guerra e ficassem senhores da Europa. Para a Inglaterra e a França, a adesão dos ianques foi, literalmente, a salva
ção, principalmente depois que a Rússia se retirou da guerra por causa da Revolução Comunista ocorrida em outubro desse mesmo ano. Para relatar o que acontece na Casa Branca, Follett usa o jovem Gus Dewar, então um dos assessores diretos do presidente Woodrow Wilson.

Queda de Gigantes é um daqueles livros cuja leitura torna-se rapidamente compulsiva - você começa a ler e, quando se dá conta, percorreu 50 páginas sem sentir, e ainda fica contrariado por ter outros afazeres que o obriguem a deixar a leitura de lado por algum tempo. Por tratarem basicamente de guerra, estas páginas mostram um pouco (na verdade, muito) do melhor e do pior que existe nos seres humanos, pois talvez nenhuma outra situação seja tão propícia à revelação desses extremos. É fascinante ler um autor com a capacidade de nos fazer entender como a História é construída, pedra por pedra, pelas ações de seres humanos iguais a nós, tanto os milhares de anônimos que lutaram na guerra e os milhões que sofreram seus efeitos, quanto os grandes líderes que precisaram arcar com o peso de decisões que definiriam o futuro de países inteiros - e, infelizmente, nem sempre se mostraram à altura de tal responsabilidade. E a guerra não é mostrada de uma maneira simplista, como se tivesse sido um confronto do "bem" contra o "mal": o leitor conhece personagens de ambos os lados, estima-os igualmente e torce para que sobrevivam e voltem para suas famílias, o que dá à coisa toda, antes de mais nada, um sentido profundamente humano.