sexta-feira, março 30, 2012

Jogos Vorazes

Mais uma vez, muita gente vai torcer o nariz para uma coisa legal só porque ela está bombando na mídia – fala-se de Jogos Vorazes como uma "nova grande franquia", no rastro de Harry Potter ou Crepúsculo, o que significa que a indústria cultural está contando com ele para faturar os tubos, não só com livros e filmes, mas com todo tipo de memorabilia imaginável e com uma fornada de imitações mais ou menos óbvias, e isso será suficiente para que muitos nem sequer levem a sério a possibilidade de lê-lo. Como continuo acreditando que nenhum "dogma" deve ser colocado acima do julgamento individual, pus os preconceitos de lado e li.

E, vejam só, o que concluí foi que, se Jogos Vorazes vier mesmo a se tornar uma febre como aqueles outros, será preciso reconhecer que a autora Suzanne Collins visou – e acertou – um alvo bastante diferente do de suas antecessoras. Harry Potter, embora, em seus volumes finais, tenha-se permitido lidar com climas pesados e tratar de questões bastante sérias, começou de uma maneira leve, quase infantil mesmo – como escrevi em outro post, J. K. Rowling apostou em que uma geração de leitores amadureceria junto com o herói. Crepúsculo, por sua vez, é uma releitura romantizada dos vampiros do folclore e da literatura gótica. Nada disso se aplica a Jogos Vorazes. Há romance, sim, mas ele não é a mola propulsora da história. Trata-se de um universo bem mais sombrio e de um enredo bem mais cru e brutal que o de qualquer "grande franquia" que tenhamos visto recentemente. Uma aposta num público diferente?

Estamos alguns séculos no futuro. No local onde antes existiam os Estados Unidos da América, há agora um país chamado Panem, governado pelo Capitólio (no original, "the Capitol", que na tradução virou "a Capital"... Tradutores sem cultura me tiram do sério) e formado por doze distritos designados simplesmente por números. Os cidadãos do Capitólio vivem uma vida despreocupada e de abundância material, enquanto os habitantes dos distritos trabalham duramente para garantir a sobrevivência – uma sobrevivência bem mais magra e penosa em alguns deles do que em outros: aparentemente, os distritos são numerados de acordo com uma ordem, dos mais ricos para os mais pobres. Cada distrito exerce uma atividade principal: agricultura, pesca, mineração e assim por diante. Sabe-se que, décadas antes do início da história, houve uma guerra na qual os distritos, que então eram em número de 13, tentaram libertar-se do domínio do Capitólio. Doze deles foram subjugados, e o último, destruído por completo. A partir daí, o Capitólio promove anualmente os Jogos Vorazes – um evento para o qual cada distrito é obrigado a enviar um casal de jovens, de 12 a 18 anos, que serão colocados em uma imensa arena a céu aberto, onde lutarão entre si até que apenas um reste vivo. Esse retorna rico e famoso ao seu distrito, para servir (conforme a propaganda oficial) como uma "lembrança da benevolência e generosidade" do Capitólio. Detalhe: a competição, ou antes, a carnificina, é transmitida ao vivo, em rede nacional, pela televisão. Esses jovens recebem o nome de "tributos". Enquanto, na maioria dos distritos, é necessário um sorteio geral entre toda a população capaz dentro da faixa etária visada, nos distritos mais ricos, notoriamente no 1 e 2, existem os assim chamados "carreiristas", que são treinados intensivamente durante anos e, ao completarem 18, oferecem-se como voluntários. Desnecessário dizer que são quase sempre esses que vencem.

A heroína narradora é Katniss Everdeen, uma garota de 16 anos que vive no Distrito 12, onde a atividade econômica predominante é a extração de carvão. O pai de Katniss morreu cinco anos antes, numa explosão na mina onde trabalhava; a mãe caiu numa espécie de estupor causado pela depressão, ficando durante meses sem falar ou fazer coisa alguma, o que forçou Katniss, então com onze anos de idade, a, nas suas próprias palavras, assumir a liderança da família, tendo que, de algum modo, garantir sua própria sobrevivência, a da mãe e a da irmã, Prim, de sete anos. Felizmente, o Sr. Everdeen não era apenas um mineiro, mas também um homem que sabia como mover-se numa floresta, caçar e coletar plantas comestíveis ou medicinais, e, antes de morrer, teve tempo de ensinar um pouco disso à filha mais velha. Daí em diante, Katniss passa a maior parte do tempo perambulando pela região selvagem que fica além da cerca de seu distrito, seu arco garantindo carne para a mesa de sua família e para ser trocada pelas outras coisas de que precisam. Ter sido obrigada a arcar com tanta responsabilidade cedo demais fez de Katniss uma jovem aparentemente fria e dura, acostumada a reprimir as emoções. Só Prim e, em bem menor grau, o amigo e companheiro de caçada, Gale, conseguem, uma ou outra vez, fazer com que sorria ou demonstre algum débil traço de capacidade de interação afetiva.

É nesse pé que as coisas estão quando chega o dia da "Colheita" – o sorteio dos participantes – destinada à septuagésima quarta edição dos Jogos. Pela primeira vez, não só o nome de Katniss estará na urna, mas também o de Prim, que completou 12 anos desde a edição anterior. Como crianças dessa idade não têm, na prática, a menor chance contra competidores mais velhos, muito mais fortes e hábeis, a organização dos Jogos criou uma maneira de reduzir as chances de que sejam sorteadas: as inscrições são cumulativas, quer dizer, os de 12 anos têm seus nomes inscritos apenas uma vez, os de 13, duas, os de 14, três, e assim por diante até os 18. Além disso, há um sistema de distribuição de tésseras (um sinônimo arcaico para senhas) que dão direito a pequenas rações de grãos, mas, em troca de cada uma, o jovem ou a jovem tem seu nome inscrito uma vez a mais. Embora ela própria já tenha pego muitas tésseras para afastar de casa o fantasma da fome enquanto ainda não sabia caçar muito bem, Katniss jamais permitiria que Prim fizesse o mesmo. Porém, mesmo todas as probabilidades estando contra, Prim é sorteada logo em sua primeira vez, e Katniss, sabendo que a irmã estaria indo para uma morte certa, apresenta-se como voluntária no lugar dela.

(Parêntese: lendo a narrativa a respeito da Colheita, é impossível não lembrar de outro sorteio muito parecido, o que era realizado entre os jovens de Atenas para selecionar os que seriam levados a Creta para serem devorados pelo Minotauro. Collins ganhou alguns pontos comigo com essa citação clássica indireta.)

O outro tributo do ano é Peeta (uma variação futurista de Peter?) Mellark, filho do padeiro da cidade. Como Katniss observa, a boa alimentação e o trabalho constante sovando massa e carregando pesados sacos de farinha fizeram dele um rapaz forte e bem constituído, aparentemente capaz de ter alguma chance nos Jogos. O que ela não esperava era que, além disso, Peeta também se mostrasse um ator nato, capaz de tornar impossível saber quando está ou não mostrando seus verdadeiros sentimentos, seja ao dizer-se apaixonado por ela ou ao blefar na arena. Enfim, esse sujeito se daria bem nos revoltantes reality shows do século XXI. E, de qualquer forma, com ou sem paixão, há um fato implacável pairando sobre suas cabeças: só um pode sair vivo da arena. Na improvável hipótese de os outros 22 tributos morrerem e só os dois restarem, um será obrigado a matar o outro.

Mencionar os reality shows leva-me a outro ponto: eles são sem dúvida um dos muitos elementos aos quais Collins está fazendo referência em sua obra. Uma referência, por sinal, nada lisonjeira – e, vamos ser francos, eles não merecem outra coisa. Antes de os Jogos terem início, os tributos recebem um "polimento" nas mãos de estilistas, são entrevistados na TV, apresentados ao público e tudo o mais, e precisam angariar simpatias, pois isso pode significar a diferença entre a vida e a morte na arena: os Jogos Vorazes dependem de patrocinadores, que, mediante o pagamento de quantias obscenas, podem mandar algum tipo de ajuda para seus tributos favoritos, sob a forma de alimento, remédios ou outros itens vitais durante a competição. Naturalmente, os tributos mais populares têm mais chances de receber esses donativos. E, para ganhar popularidade, o que acontece, tanto nos Jogos Vorazes quanto nos Big Brothers da vida, é que as pessoas fingem ser o que não são. Embora a palavra realidade faça parte do próprio nome desse tipo de programa, tudo parece ser uma grande armação. Nos realities reais (dãã...), os participantes são, via de regra, pessoas tão rasas, vulgares e sem qualquer traço distintivo marcante, que a produção e os apresentadores procuram grudar um rótulo berrante em cada um para que o público consiga, pelo menos, distinguir um do outro: este é o palhaço, aquele é o atleta, aquele outro é o maquiavélico, e assim por diante. Romances de ocasião também ajudam. Da mesma forma, Peeta e seu mentor, Haymitch (mentor é uma pessoa que já venceu os Jogos uma vez e agora auxilia e orienta os atuais tributos) arquitetam cuidadosamente, juntos, o romance dele com Katniss, a fim de vender a imagem dos dois como os "amantes desafortunados do Distrito 12", o que faz com que sobressaiam e atraiam a atenção do público sedento de emoção – só que Peeta, o cara enigmático, mantém tanto Katniss quanto o leitor em suspense sobre se isso tudo é teatro ou se ele realmente gosta dela. Também é fato que, tanto nos realities quanto nos Jogos Vorazes, forjam-se alianças que são necessariamente temporárias, pois, caso um grupo de aliados derrote seus adversários, não restará outra alternativa a não ser apunhalarem-se uns aos outros logo depois. A única diferença é que, na arena de Panem, o apunhalamento é literal.

Registre-se também que, como não podia deixar de ser em se tratando de uma história sobre pessoas que lutam até a morte para a diversão de outras, há citações bastante claras aos combates de gladiadores da Roma antiga, o que aparece até mesmo no fato de muitos dos habitantes do Capitólio terem nomes romanos: Caesar, Claudius, Portia, Cinna... Capitólio, aliás, embora o tradutor Alexandre D'Elia, pelo visto, não saiba disso, era o nome de uma das sete colinas de Roma, onde ficava o templo de Júpiter Capitolino, protetor da cidade. Séculos mais tarde, o nome foi dado ao prédio do centro legislativo dos Estados Unidos, em Washington. A qual dos Capitólios estaria Collins fazendo alusão? Acho que a ambos. O próprio nome do país onde tudo acontece também não foi escolhido gratuitamente. Panem é pão em latim, e faz parte de uma das mais célebres expressões proverbiais da História: Panem et circenses, ou seja, 'pão e atrações de circo', significando que, enquanto o povo tiver a barriga cheia e alguma distração que não demande muito cérebro, ele não causará problemas aos poderosos, façam estes o que fizerem. Tudo a ver com Jogos Vorazes e, infelizmente, também com a nossa realidade.

Certo, não há nada de radicalmente inovador na obra de Suzanne Collins: quadros sombrios de civilizações distópicas no futuro existem em quantidade na literatura e no cinema de ficção científica (1984, Blade Runner, O Exterminador do Futuro, e isso mal serve de início se quisermos fazer uma lista), e a ideia de um programa de TV ao vivo com pessoas lutando e matando-se já aparecia num filme de 1987, The Running Man, exibido no Brasil como O Sobrevivente, com Arnold Schwarzenegger, que, por sua vez, era livremente inspirado (e bota livremente nisso...) num romance de Stephen King publicado em 1982, mas não dá para tirar o mérito da autora se ela soube recombinar esses elementos e criar algo tão capaz de prender a atenção quanto Jogos Vorazes, que, de quebra, ainda vale por uma intencional e louvável cuspida na cara de certos setores da indústria do entretenimento em nossos dias. As sequências, Em Chamas e A Esperança, estão desde já na minha lista de leitura.