quinta-feira, junho 21, 2012

Star King - A Saga dos Príncipes-Demônios

John Holbrook Vance (1916-) não está entre os nomes mais famosos da história da ficção científica, o que talvez seja compreensível, considerando que suas obras não têm a mesma amplitude de apelo que as de um Isaac Asimov ou de um Arthur C. Clarke, e também que nunca foi tão prolífico quanto esses autores, mas tem, sim, seu próprio segmento de leitores fiéis, apaixonados por seu estilo único e sua espantosa criatividade. Um número relativamente pequeno de suas obras foi publicado em português, mas não há dúvida de que os poucos livros que chegaram até nós integram a parte mais importante e relevante de seu trabalho. Embora eu não conheça tanto de Jack Vance quanto gostaria, sempre senti que a Saga dos Príncipes-Demônios, formada por cinco romances, devia ser a joia da coroa.

Mesmo na época em que Vance começou a escrever essa saga (início dos anos 60), descrições de civilizações do futuro já eram carne-de-vaca na ficção científica. Quem quisesse criar um universo realmente marcante para ambientar suas histórias, um universo que não fizesse o leitor pensar "Humm, onde foi mesmo que já vi isso antes?", tinha diante de si um desafio muito sério. Um desafio que Jack Vance superou magnificamente. Ele começa por atiçar nossa curiosidade, ao citar datas que parecem do passado: a ação de Star King inicia em 1524. Só lá pelas tantas é que ficamos sabendo que houve uma reforma na contagem do tempo, que fez do ano 2000 o ano zero - portanto, estamos no ano que chamaríamos de 3524.

Então somos apresentados ao herói Kirth Gersen - uma das personalidades mais fascinantes que já encontrei em livros de ficção científica. Sua história é trágica: ainda criança, viu a pacata cidade onde nasceu, num planeta sem muita importância, ser pilhada e arrasada por um exército de piratas espaciais comandados por cinco homens cujos nomes causam calafrios em qualquer canto da parte habitada da galáxia, homens que, pela crueldade de seus atos de pirataria, ficaram conhecidos como os Príncipes-Demônios. Os habitantes da cidade que não foram assassinados, foram levados para serem vendidos como escravos (sim, o comércio de escravos é um negócio que prospera no assim chamado Além-Espaço, onde as leis que regem a vida na Terra e nos outros mundos civilizados não alcançam). No meio do punhado de cidadãos que escaparam, encontram-se o pequeno Kirth e seu avô, tudo o que sobrou de uma outrora extensa família. O velho Rolf Gersen trata então de preparar o neto para ir em busca de vingança. Kirth é treinado não apenas em todo tipo de habilidade de combate armado e desarmado, mas também em técnicas de investigação e em toda a gama de conhecimentos necessários para mover-se com desenvoltura pelos inúmeros mundos habitados por seres humanos.

E estes (tanto os mundos quanto os seres humanos) são de uma variedade infindável. Fala-se pouco em raças alienígenas inteligentes na Saga dos Príncipes-Demônios, mas, depois de adquirir alguma familiaridade com a obra, o leitor percebe que isso nem é necessário, tão grande é a diversidade cultural que Jack Vance atribui aos habitantes humanos dos diferentes sistemas estelares. Afastados da Terra de onde vieram seus ancestrais, esses povos desenvolveram identidades próprias, tão exóticas e surpreendentes quanto poderia ser a de qualquer raça alienígena. Só para começar, na própria Terra e nos planetas que lhe são mais chegados, a moda nessa época é tingir a pele - as pessoas se pintam de verde, azul, preto, laranja ou de qualquer cor que lhes venha à cabeça. Os poucos que não têm o hábito, como Gersen, são vistos como esquisitos. Há planetas onde o maior medo das pessoas é que estranhos lhes conheçam o rosto, de modo que usam máscaras durante a vida toda. Planetas onde a riqueza e o prestígio de um homem são medidos pela suntuosidade do túmulo que ele constrói para si próprio (bem, isso até tem antecedentes na História antiga da Terra, mas deixem pra lá). O famigerado planeta Sarkoy, cujos habitantes se orgulham de serem mestres absolutos na arte de fabricar e usar venenos - e de proteger-se deles. E por aí afora. O universo de Jack Vance é o sonho de qualquer antropólogo.

Os cinco Príncipes-Demônios - Attel Malagate, Kokor Hekkus, Lens Larque, Viole Falushe e Howard Alan Treesong - são tão diferentes entre si quanto poderiam ser. Cada um deles possui uma característica distintiva: Kokor Hekkus é inventivo e inquieto, apaixonado por máquinas complicadas; Lens Larque é um megalomaníaco; Viole Falushe tende aos vícios sensuais; Howard Alan Treesong é um gerador de caos (não me perguntem o que isso significa na prática), e Attel Malagate, cognominado "o Maldito", é frio e inflexível, desprovido de qualquer emoção. Juntando uma peça aqui e outra ali ao longo de anos de investigações, Gersen descobre que Malagate não é inumano apenas por conta de sua conduta: é inumano também na origem, pois pertence a uma estranha raça reptiliana, originária de um planeta da estrela Lambda Grus, da constelação do Grou. Esses seres intitulam-se imodestamente de "Reis das Estrelas", nome que os próprios humanos acabaram adotando por convenção. O detalhe assustador a respeito dos Reis das Estrelas é que eles não se parecem com qualquer dos inúmeros répteis inteligentes que estamos acostumados a ver em filmes, livros ou quadrinhos de ficção científica: não são escamosos nem têm pupilas verticais, muito menos cauda ou garras. Por um singular capricho da natureza, evoluíram de modo a tornarem-se externamente idênticos aos seres humanos, impossíveis de distinguir com um mero exame visual. Sim, sei o que estão pensando, mas a verdade é que a capa que o livro recebeu no Brasil, apesar de belíssima e climática, pura sci-fi art, tem o defeito de causar no leitor uma ideia errada e persistente da aparência que os Star Kings deveriam ter. Imaginem-nos com aparência humana, ponto.

Agora com 34 anos, Gersen fez aparentemente pouco progresso na missão para a qual foi preparado desde a infância, mas, absolutamente meticuloso e paciente que é, sabe que os poucos indícios que conseguiu reunir têm grande importância, pois servir-lhe-ão de ponto de partida - por muito tempo, ele não teve nem isso. É quando a sorte decide favorecê-lo: Gersen está descansando numa estalagem num pequeno planeta do Além-Espaço quando conhece um sujeito que se apresenta como Lugo Teehalt, demarcador - o que parece ser o jargão técnico para alguém que vasculha o espaço profundo e investiga mundos inexplorados, seja de forma independente, ou a mando de outrem, ou patrocinado por alguma instituição, a ver se descobre algo de interessante ou de rentável. E Teehalt descobriu um belo e idílico planeta cheio de montanhas, florestas e água, com um ar límpido e formas de vida fascinantes, pelo qual se viu imediatamente seduzido e subjugado. Infelizmente, Teehalt está demarcando para Malagate, com cujos representantes assinou um contrato: deveria, em tese, entregar a seu empregador a localização do planeta, o que se recusa a fazer, já que Malagate corromperia o belo mundo transformando-o numa colônia de férias para os chefões interestelares do crime.

Teehalt, previsivelmente, acaba assassinado quase diante dos olhos de Gersen, mas os homens de Attel Malagate cometem um erro fatal: levam por engano a nave de Gersen, que, por acaso, estava agindo sob o disfarce de demarcador a fim de não levantar suspeita sobre suas investigações, e deixam a de Teehalt. Dessa forma, Gersen se vê de posse do monitor que guarda a localização do misterioso planeta - a melhor isca que poderia querer, pois agora Malagate certamente virá atrás dele.

Assim tem início um intrincado e perigosíssimo jogo de xadrez entre dois cérebros extraordinários. Gersen tem de prever os movimentos de Malagate e, ao mesmo tempo, levar em conta o fato de que ele também estará tentando prever os seus, pois o Rei das Estrelas sem dúvida terá rapidamente percebido estar lidando com um indivíduo muito astuto. Gersen leva aos extremos a velha máxima que diz que a vingança é um prato que se come frio: cada ato que executa é calculado; não tem pressa e não é movido pelo ódio. Como ele explica a outro personagem num dos livros seguintes da saga, seu avô era quem sentia a raiva e o ódio, e foi por isso que o preparou para ser o agente da vingança, embora soubesse que não viveria o suficiente para ver essa vingança consumar-se.

Disse acima que Kirth Gersen é um dos personagens mais fascinantes da ficção científica, e a razão disso é a dualidade que existe nele: por baixo da casca de homem frio e totalmente racional que construiu ao redor de si próprio com a ajuda do avô, nota-se que seu verdadeiro espírito tem uma natureza romântica, arrebatada e idealista, bem como uma tendência algo mística a acreditar que o destino o levará a cumprir sua missão com êxito, embora tudo pareça apontar que são remotas as possibilidades de que consiga eliminar sequer um dos Príncipes-Demônios, que dirá então todos os cinco. Noventa por cento do tempo, ele age racionalmente; uma vez ou outra, rende-se ao seu gênio, para geralmente arrepender-se logo em seguida. Um personagem e tanto.

Star King é escrito de uma forma peculiar, que se tornaria uma marca registrada da Saga dos Príncipes-Demônios: é como se fossem dois livros em um. Cada capítulo começa com uma longa epígrafe revelando detalhes sobre o universo por onde transita Kirth Gersen; os textos consistem em trechos de manuais sobre os planetas, trechos de livros de História, declarações à imprensa feitas por personalidades de destaque sobre assuntos relevantes para esse universo, e assim por diante - naturalmente, tudo fictício, saído da cabeça incrivelmente imaginosa de Jack Vance. Terminada a epígrafe, tem início a ação propriamente dita do capítulo. Essa estrutura é uma ideia inovadora e brilhante, que permite ao leitor uma imersão sem igual no ambiente da história. Porém, verdade seja dita, o sistema ainda precisava de um certo polimento: talvez por ser este o primeiro livro onde o empregou, parece que o autor ainda estava aperfeiçoando um certo pulo-do-gato para fazer com que a coisa funcionasse. Enquanto certos trechos das epígrafes deste primeiro volume da saga trazem informações fascinantes e vitais para entendermos o universo do autor, outros são bastante indigestos e sem muito propósito. Para crédito de Vance, deve-se observar que as epígrafes presentes nos dois volumes seguintes, A Máquina de Matar e O Palácio do Amor, mostram-se bem menos pretensiosas, mais acessíveis e agradáveis.

Por falar nisso, até onde sei, infelizmente apenas esses três primeiros volumes da Saga dos Príncipes-Demônios existem em português; todos foram publicados pela Francisco Alves ao longo da década de 80, e existe também uma edição de bolso do segundo volume pela Europa-América, de Portugal, com o título A Máquina Assassina. Esse narra a caçada de Gersen ao segundo Príncipe-Demônio, Kokor Hekkus, enquanto O Palácio do Amor trata do terceiro, Viole Falushe. Todos podem ser lidos independentemente uns dos outros, mas o leitor que optar por seguir a saga acumulará informações que lhe permitirão apreciar melhor cada volume. E, com a ressalva do parágrafo anterior, qualquer livro de Jack Vance pode ser entusiasticamente recomendado aos apreciadores da boa ficção científica.