sexta-feira, julho 06, 2012

O Fortim

Estamos no ano de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial – que ainda não era chamada assim, é claro. Por enquanto, tratava-se de uma guerra europeia, na qual os Estados Unidos ainda não haviam tomado partido; o pacto de não agressão entre Alemanha e União Soviética estava por um fio, mas ainda vigorava, e os alemães venciam uma batalha atrás da outra, parecendo ter chances reais e concretas de ganhar a guerra num prazo relativamente curto. Nesse cenário, o alto comando do exército alemão decide prevenir uma pouco provável ofensiva russa, em caso de quebra do tratado (o que aconteceria ainda naquele ano, mas por iniciativa alemã), e envia um destacamento para o Passo Dinu, um desfiladeiro nos Alpes da Transilvânia, a fim de guardar o acesso aos campos petrolíferos do interior da Romênia. A tropa recebe ordem de ocupar um fortim do século XV, que domina todo o desfiladeiro e constitui uma posição defensiva ideal.

O comandante desse destacamento é o capitão Klaus Woermann, veterano da Primeira Guerra Mundial, um homem que sempre se orgulhou de fazer parte do Exército alemão, e que não vê com bons olhos a ditadura de Hitler nem a ideologia do Partido Nazista em si. Como muitos soldados de sua geração, Woermann desejou essa nova guerra, que imaginava como uma revanche contra os Aliados, que não se contentaram em derrotar a Alemanha na guerra anterior, mas também a submeteram a todo tipo de humilhação, obrigando-a a concordar com tratados de paz obviamente injustos e sobrecarregando-a com exigências de indenizações impossíveis, o que instaurou o caos na economia e na sociedade alemãs. Para sua decepção, porém, quando a Alemanha tornou a se erguer, não foi em busca de uma justa reparação de sua honra como nação, e sim impulsionada por um movimento político cuja cartilha estava baseada em ódio étnico e nos projetos pessoais megalômanos de um pequeno grupo. Para piorar, parece a Woermann que ele é o único em seu destacamento a compreender isso: os soldados e suboficiais sob seu comando são, em sua maioria, jovens no início da casa dos 20 anos, recém-egressos da Juventude Hitlerista (da qual todo adolescente alemão tinha obrigatoriamente que participar), onde suas mentes ainda em formação foram submetidas a uma cuidadosa lavagem cerebral a fim de que considerassem a visão nazista como a única visão possível. Woermann, portanto, representa todos aqueles soldados que desejavam lutar pelos direitos de sua nação, mas percebem agora, amargurados, que estão sendo usados como instrumentos de um regime insano.


Tudo isso se revolve na cabeça do capitão Woermann enquanto ele e seus homens ocupam o fortim, preparando-se para no mínimo alguns meses de serviço de vigilância contra um ataque que dificilmente virá. Entretanto, suas expectativas de que esse serviço vá ser tranquilo e até tedioso não podiam estar mais equivocadas.

O fortim, curiosamente, não está ligado a qualquer acontecimento histórico conhecido; geração após geração, uma família da aldeia vizinha dedica-se à sua manutenção, tendo seus salários pagos por um fundo anônimo num banco estrangeiro; graças a isso, a estrutura se manteve como nova durante os últimos cinco séculos. Muitos dos blocos de pedra que formam suas paredes internas estão ornados com cruzes metálicas em forma de T, feitas de bronze e níquel – "quase como ouro e prata". Ninguém sabe o porquê disso, mas um dos soldados de Woermann tem a mirabolante teoria de que o fortim teria sido construído por ordem de um papa para esconder um tesouro – um tesouro que ele acredita que ainda pode estar por ali. Numa canhestra tentativa de encontrar o suposto tesouro, o soldado Lutz acaba abrindo uma câmara oculta no subsolo da fortaleza. Logo depois, seus companheiros o encontram morto – decapitado. Por mais louca que pareça tal ideia, tudo indica que, ao abrir a tal câmara, Lutz libertou algo que estava cativo há séculos.

A partir daí, a cada noite um soldado vai sendo morto, cada corpo encontrado com a garganta estraçalhada, embora mais nenhum chegue a ter a cabeça arrancada. Depois de tentar de tudo para apanhar o assassino, sem sucesso, Woermann, sem alternativa, telegrafa ao Alto Comando solicitando permissão para mudar de local. Em vez disso, recebe a ajuda que menos desejaria no mundo: é enviado um destacamento da SS (Schutzstaffel, 'Tropa de Proteção' – a força paramilitar a serviço do Partido Nazista), composto pelos temíveis Einsatzkommandos de uniformes negros – temíveis não por serem combatentes notáveis, mas por sua especialização em massacrar civis desarmados. Esses homens representam tudo o que Woermann mais despreza na "nova Alemanha", e, para tornar sua miséria completa, quem vem no comando dos reforços é um antigo desafeto seu, o major Erich Kaempffer, que, como Woermann não ignora, tampouco gosta dele, além de temê-lo pelo que pode revelar sobre seu passado: Woermann foi a única testemunha de um ato de covardia de Kaempffer, décadas atrás, quando ambos eram recrutas adolescentes durante a Primeira Guerra.

O major Kaempffer tem certeza de que as mortes são causadas simplesmente pelas atividades de algum grupo de guerrilheiros nacionalistas romenos, e as providências que toma estão de acordo com tal convicção – todas consistindo de atos de brutalidade contra a população da aldeia, à guisa de represália. Como isso não faz pararem as mortes, Kaempffer lança mão de uma informação que obteve sob tortura do estalajadeiro local: o maior especialista vivo na história da região, e quem mais tempo passou estudando o misterioso fortim, é um professor da Universidade de Bucareste chamado Theodor Cuza. O oficial manda buscá-lo, e o professor, gravemente doente, vem acompanhado de sua filha, Magda, que lhe serve de secretária e enfermeira. O irônico nisso tudo é que o homem em quem o empedernido nazista Kaempffer se vê obrigado a depositar todas as suas esperanças é precisamente um... judeu! O que nem os alemães, nem o professor Cuza, nem o povo da aldeia imaginam, é que, no outro extremo do continente, nas praias de Portugal, um misterioso homem de cabelos vermelhos sentiu um inexplicável instinto dar o alerta quando a câmara secreta do fortim foi aberta, e agora dirige-se apressadamente ao Passo Dinu a fim de realizar uma missão de vida ou morte, que está fora do alcance das forças de qualquer pessoa que não ele...

O Fortim é um achado surpreendente, um livro extraordinário de um autor que, se produzisse em maior quantidade, poderia ter vindo a ser tão grande quanto um Stephen King! Infelizmente para nós, leitores, o norte-americano Francis Paul Wilson optou por manter a medicina como profissão e ter a literatura como atividade paralela. O Ciclo do Inimigo, iniciado com este romance, inclui cinco outros, sendo que o último, Nightworld, ainda aguarda tradução para o português. Wilson demonstra ser um mestre da narrativa tensa e do clima sombrio, e só não afirmo que o livro nos oferece isso do início ao fim, por causa das anticlimáticas partes românticas protagonizadas por Magda e pelo tal estranho ruivo – não sei se outros leitores terão sentido da mesma forma, mas essas partes me deixaram sempre impaciente, ansioso para que a narrativa voltasse logo ao horror no fortim. Mas não é esse pequeno percalço que torna o livro menos recomendável, ainda mais porque, para além de sua maestria no horror, Wilson ainda demonstra um sólido conhecimento histórico, que aparece na ambientação da narrativa durante a Segunda Guerra – até onde pude perceber, impecável.

Ah: não podia deixar de destacar que, nos agradecimentos do início do livro, Wilson reconhece sua dívida para com Robert E. Howard, H. P.  Lovecraft e Clark Ashton Smith. Tal é a admiração de Wilson por Lovecraft, que ele adere à tradição, já honrada por tantos mestres do horror, de homenagear o autor introduzindo o Necronomicon em sua história, embora só se refira a ele como Al-Azif, que, segundo Lovecraft, seria o título original em árabe. Uma homenagem que, realizada num romance de tal qualidade, sem dúvida deixaria Lovecraft satisfeito.