terça-feira, fevereiro 19, 2013

Rhóor, o Invencível

Ah, ser um leitor pré-adolescente, cheio de inocência, mas já muito consciente de todo o bem que os livros podiam fazer a quem lhes dedicasse um pouco de tempo e atenção… E, ao mesmo tempo, não estar (ainda) preocupado com coisas "sérias" como adquirir cultura, de modo que encarava o ato de ler exatamente do modo como toda criança deveria encará-lo: como uma grande e inesgotável brincadeira, melhor que qualquer outra - embora já estivesse, sim, construindo minha cultura, sem saber, enquanto acreditava que tudo o que estava fazendo era me divertir. Para completar, tinha a sorte de não depender apenas da biblioteca da escola e dos livros que existiam em casa: ao lado do condomínio onde morava na época, ficava uma unidade do SESI (Serviço Social da Indústria), onde havia, entre muitas outras coisas, uma biblioteca, não muito grande, mas recheada de itens empolgantes para um garoto-leitor com o meu perfil.

Foi lá que vi pela primeira vez a coleção Safári, publicada em Portugal durante os anos 70, pela editora Verbo, mediante acordo com a francesa Alsatia. Tratava-se de romances de aventuras com temas e estilos variados, todos escritos por nomes consagrados da literatura juvenil na França. Ao longo do ano que se seguiu a essa descoberta, li vários dos títulos da coleção, e todos os que li me ficaram na memória: O Passageiro da Noite, de Jean-Paul Benoit, com seu clima de mistério e heroísmo em meio à paisagem majestosa dos Alpes franceses; as aventuras de escotismo O Bando dos Ayacks e O Castelo dos Vendavais, ambas escritas por Jean-Louis Foncine e transbordantes de otimismo e fé no poder transformador da juventude (ah, como devia ser bom viver numa época e num lugar onde era possível acreditar nisso); e a ficção científica Nascido no Espaço, de Geoffrey X. Passover (também francês, apesar do pseudônimo). Com exceção deste último, todos eram abrilhantados pela arte do legendário Pierre Joubert, um ilustrador tão querido na época, que chegava a ser citado pelos próprios personagens de O Castelo dos Vendavais.

Não obstante, o primeiro volume da coleção que li foi a aventura pré-histórica Rhóor, o Invencível, por um certo Michel Grimaud, sobre quem eu nada sabia até o dia de hoje: quando garoto, só a obra em si é que me interessava, de modo que não me preocupava com informações sobre o autor - e, mesmo que assim não fosse, pouco teria podido fazer, já que o livro nada dizia sobre o tal Grimaud, e na época não havia Google nem Wikipédia. Hoje, então, ao me sentar para escrever este post, lembrei de lançar mão dessas maravilhas modernas, e descobri, não sem surpresa, que "Michel Grimaud" era o pseudônimo coletivo de um casal de escritores: Jean-Louis Fraysse (1946-2011) e Marcelle Perriod (1937-2011), e que eles possuem uma obra extensa, tanto no campo da literatura para adultos quanto para jovens, sendo, ainda, uma referência da ficção científica em seu país. Além de tudo, eis dois afortunados seres humanos: encontrar um amor e uma parceria criativa ao mesmo tempo é felicidade reservada a poucos.

Mas creio que já é hora de começar a falar do livro!

A história aqui narrada faz lembrar a do Êxodo, pois, como no segundo livro da Bíblia, há um povo em busca de uma terra prometida. Os Rhóors são uma das tribos de caçadores-coletores que tentam sobreviver numa Europa selvagem, que ainda esperaria dezenas de milênios para ser apresentada às primeiras civilizações. Anos antes do início dos acontecimentos relatados no romance, transformações climáticas, do tipo que era comum naqueles tempos pós-Era Glacial, causaram mudanças ecológicas que privaram a tribo das fontes de sustento de que estava acostumada a depender, nas terras que até então habitava, obrigando-a a vagar por regiões inóspitas, dominadas por povos nem sempre amistosos, em busca de um lugar onde possam viver e, quem sabe, reencontrar a antiga prosperidade. Seu chefe, Rhóor, o Vesgo, decide tomar sobre si o ônus da busca, e parte, acompanhado apenas pela própria família, enquanto a tribo espera, lutando contra a fome, o frio e diversos tipos de perigos. Eventualmente, a busca alcança êxito: em paragens muito distantes, Rhóor descobre uma região ampla e verdejante, com clima ameno e caça abundante, e ainda não reclamada por nenhuma outra tribo. O líder, então, incumbe o filho mais velho de fazer o longo caminho de volta e guiar seu povo até a nova pátria.

O jovem de 17 anos tem o mesmo nome que sua tribo e seu pai. Já é um caçador experiente, muito hábil no manejo do arco - arma que representa um trunfo para os Rhóors na competição pela sobrevivência, já que as outras tribos não a conhecem -, e sua velocidade e destreza valeram-lhe o cognome de O Ágil. Além desses talentos, ele confia, para o sucesso de sua arriscada missão, na ajuda de uma aliada muito especial: Táa, uma fêmea de lobo-tigre (um sinônimo hoje em desuso para guepardo ou cheetah), pois, nessa época em que alguns grupos humanos estavam apenas começando a domesticar cães para caça, guarda e companhia, outra peculiaridade dos Rhóors é a de preferirem os guepardos para essas funções. Juntos, os dois amigos deverão percorrer milhares de quilômetros, atravessando planícies desoladas, montanhas e florestas, precavendo-se contra animais perigosos, tribos hostis e, sim, contra o meio-termo entre as duas coisas: assustadores homens-fera, remanescentes de estágios mais primitivos da evolução humana, que ainda perambulam pelo planeta, também eles lutando para sobreviver - uma luta que, fatalmente, teria vencedores e perdedores.

Rhóor, o Invencível, por sinal, retrata uma era em que todas as ambições da humanidade resumiam-se ao simples feito de sobreviver: riqueza, poder e outras tentações que obcecariam gerações futuras, mal eram concebidas pela mente do homem pré-histórico. A cada amanhecer, esse homem renovava sua determinação de mobilizar todas as forças que pudesse, com o único objetivo de manter-se vivo, a si e aos que dele dependiam, até o pôr-do-sol, e, se o conseguisse, isso era a melhor coisa que poderia esperar (sem contar que ficar vivo entre o pôr e o nascer do sol podia ser ainda mais difícil). Todo o tempo, energia e inteligência que os seres humanos possuíssem tinham que ser direcionados a essa única finalidade, apenas para que houvesse uma chance. Sabendo que as condições eram essas, podemos, a princípio, achar estranha a informação de que também foi nessa época que surgiram a música, a dança, as artes plásticas, a literatura, as competições atléticas, e diversas outras atividades nas quais estamos acostumados a pensar como sendo de lazer, desporto ou enriquecimento cultural - "luxos" que o homem só pode se permitir depois que a bendita sobrevivência já está assegurada. Porém, existe uma explicação bastante simples para essa aparente contradição.

Não fiquem demasiado surpresos se digo que a literatura nasceu na pré-história: por mais curioso que isso pareça, ela é muitíssimo mais antiga que a invenção da escrita. Pessoas que se sentavam à volta de uma fogueira à noite e contavam histórias, já estavam fazendo literatura, embora com objetivos a princípio muito pragmáticos: as histórias serviam para que os caçadores trocassem informações úteis entre si e as transmitissem aos membros mais jovens da tribo, que, a seu tempo, também seriam caçadores. O mesmo se dava com as outras atividades: cantos e danças destinavam-se a agradar aos espíritos da natureza (a primeira noção que o homem teve a respeito da divindade) para ganhar suas boas graças, a fim de que propiciassem boas caçadas e protegessem o povo contra doenças e desastres; desafios de corrida, lutas, arremesso de pesos e assim por diante, eram para aprimorar força e habilidade para a caça e o combate. É claro que, com o tempo, as tribos foram desenvolvendo o gosto por tais coisas, descobrindo o prazer que existia em ouvir boas histórias, em assistir a uma dança ou a uma competição, ou em delas participar, e também foi ficando evidente que algumas pessoas tinham um talento acima da média para alguma dessas atividades, e com isso foram começando a granjear popularidade e admiração - e é graças a isso que hoje temos Homero, Shakespeare, Beethoven, os Jogos Olímpicos, e outras riquezas inestimáveis que fazem parte de uma herança cultural que pertence a toda a humanidade; porém, o importante para nós, no momento, é compreender que as artes, em suas origens, tinham uma função prática, e, como tudo o que se fazia naquela época, eram um esforço a mais na luta constante pela sobrevivência. Isso incluía, naturalmente, as artes plásticas, como Rhóor, o Invencível, nos mostra de maneira interessante.


Ocorre que o artista pré-histórico que dedicava longas horas de trabalho a pintar figuras de animais nas paredes da caverna onde sua tribo vivia, muito provavelmente não o fazia movido por um simples desejo de morar num lugar mais bonito. Antropólogos acreditam que essas imagens tivessem finalidades mágicas: desenhar um animal, da maneira mais vívida e acurada possível, era considerado uma forma de capturar-lhe o espírito, reduzindo suas defesas e tornando-o mais fácil de abater. Isso explica, inclusive, por que a figura humana aparece tão raramente na arte rupestre, e, quando aparece, é de forma tosca, num contraste gritante com as minuciosas e coloridas representações de bisões, cavalos, cervos e outros animais de caça. Saber pintar, portanto, significava ter poder. O jovem Rhóor aprende essa arte com um ancião de uma tribo que encontra durante suas andanças. Mais tarde, é feito prisioneiro por outra tribo não tão amigável, liderada por Bisão Furioso, um gigante embrutecido em quem esse nome cai perfeitamente. A tribo de Bisão Furioso especializou-se em viver de rapina, chegando ao ponto de depender mais, para sua sobrevivência, de saques e extorsões do que da própria caça. Aprisionado entre eles, e com pouca perspectiva de escapar vivo, Rhóor propõe trocar sua liberdade pelo segredo do poder das imagens - mas antes, terá que convencer os salteadores de que a magia funciona.

Mesmo sem disporem de embasamento científico comparável, por exemplo, ao de uma Jean M. Auel, Fraysse e Perriod escreveram uma saga pré-histórica cativante e eficiente, capaz de apresentar ao leitor jovem um painel convincente (ainda que um tanto romantizado) do mundo da época. Todos os pontos principais que uma pessoa precisa saber para adquirir a compreensão do que foi a pré-história são abordados: o fato de que, durante a maior parte de sua existência, o homem adaptou-se aos ritmos e regras da natureza para sobreviver, vendo-se como parte dela, não como seu dono; os graus diversos de desenvolvimento técnico e cultural observáveis entre as diferentes tribos (já que o progresso humano não se deu de maneira simultânea e uniforme em toda parte); a importância essencial que tiveram a cooperação e a solidariedade para impedir que a humanidade fosse extinta no confronto desigual com o meio ambiente hostil; e, é claro, a já citada luta incessante pela sobrevivência. O ponto mais discutível que encontrei foi a questão do arco: é verdade que em lugar algum do livro é explicitado o período exato em que a história estaria ambientada, mas, se for o que as evidências parecem apontar - até alguns milênios depois do fim da última Era Glacial -, então o arco é um anacronismo, pois só seria inventado bem mais tarde. Também não parece muito plausível que ele fosse a "arma secreta" de uma única tribo, e encarado com assombro por todas as outras, como se fosse algo além de sua compreensão, quase uma habilidade sobrenatural. É claro que fabricar e manejar um arco não são coisas fáceis, exigem uma série de conhecimentos e muita, muita prática, mas, ainda assim, trata-se de uma arma conceitualmente simples: mesmo para uma pessoa que não o conhecesse, bastaria observar alguém utilizando-o para compreender o princípio e poder tentar imitar. As primeiras tentativas, fatalmente, seriam desastrosas, mas nada que persistência e paciência não resolvessem. E pronto: o "monopólio Rhóor do arco" estaria quebrado. Se a intenção (muito natural) dos autores era que a tribo do herói possuísse um diferencial em relação às outras, essa foi uma escolha um tanto ingênua. Porém, isso não tira os méritos de Rhóor, o Invencível, que continua sendo diversão de primeira.

Em tempo: a capa e as duas ilustrações do livro que aqui reproduzo são de Pierre Joubert, só para dar a meus leitores uma pequena amostra do trabalho desse admirável artista.