terça-feira, junho 11, 2013

O Herói Perdido

Comentei aqui no blog, tempos atrás, que a saga de Percy Jackson e os Olimpianos só tinha um defeito, e era o fato de que teria que acabar uma hora ou outra. E assim foi: depois de apenas cinco volumes, seus numerosos e entusiásticos leitores tiveram que dar adeus às férias no Acampamento Meio-Sangue. O autor, Rick Riordan, tentou explorar novas searas da mitologia nas Crônicas dos Kane, de inspiração egípcia, mas estas, embora de leitura sem dúvida agradável, não conseguiram despertar o mesmo grau de paixão, talvez não por qualquer demérito do tio Rick como narrador, mas apenas porque a mitologia egípcia não tenha a mesma riqueza e dinamismo que a grega, e por isso não se preste tão bem a aventuras heroicas. Riordan agraciou os fãs com Os Arquivos do Semideus, pequeno volume que pode ser considerado um anexo à saga, contendo três aventuras de Percy muito curtas para renderem livros próprios, além de curiosidades, passatempos, supostas entrevistas com vários personagens… Esse tipo de material. A propósito, embora, pelo menos no Brasil, o lançamento de Os Arquivos… tenha sido simultâneo ao do último livro da série, intitulado O Último Olimpiano, a ordem cronológica (Epa! Qualquer coisa que envolva “Cronos” é assunto delicado…) correta para a leitura é colocar Os Arquivos… antes, mais exatamente entre A Batalha do Labirinto e O Último Olimpiano.

Ainda que Os Arquivos do Semideus tenha alegrado os fãs, é claro que estava muito longe de ser suficiente para satisfazê-los: afinal, O Último Olimpiano terminava com uma profecia sobre "sete semideuses atendendo a um chamado", e todo amante de mitologia sabe que é inútil resistir a uma profecia. Sendo assim (Oba!), Riordan está de volta ao universo de Percy Jackson e os Olimpianos com uma nova saga, intitulada Os Heróis do Olimpo.

O Herói Perdido, primeiro volume dessa nova fase, adota uma estratégia narrativa diferente da utilizada na saga anterior, que era narrada sempre em primeira pessoa pelo protagonista Percy. Aqui, a narrativa é em terceira pessoa, mas o ponto de vista varia: cada capítulo traz no início o nome de um dos três personagens centrais - Jason, Piper ou Leo -, e os acontecimentos narrados nele são mostrados segundo os pensamentos e as percepções desse personagem. Também temos acesso a algumas das recordações que cada um deles traz de sua vida pregressa - exceto no caso de Jason, por motivos que veremos.

Jason repentinamente desperta num ônibus escolar, sem ter ideia de como foi parar ali, e em companhia de Piper e Leo, que se dizem respectivamente sua namorada e seu melhor amigo, embora ele não se lembre de alguma vez ter visto qualquer um dos dois antes daquele momento. E isso nem é o pior: tirando o fato de chamar-se Jason, tampouco se lembra de alguma coisa sobre si próprio, não sabe quem é ou de onde veio. O ônibus pertence a uma instituição chamada Escola da Vida Selvagem, para jovens "desajustados", que por motivos diversos não se encaixam em escolas comuns (e, sim, no caso de alguns deles, isso envolve dislexia combinada a transtorno de déficit de atenção e hiperatividade - um quadro que todo leitor de Rick Riordan sabe muito bem o que pode significar), e o destino da excursão é o Grand Canyon, no Arizona. Ao chegarem lá (surpresa!), os estudantes são atacados por perigosos seres míticos - nesse caso, espíritos da tempestade, e, mesmo sem saber como, Jason reconhece na hora o que eles são. Leo e Piper não reconhecem, mas ao menos veem as criaturas, enquanto os outros, com os olhos toldados pela Névoa, só veem uma tempestade. Em rápida sequência, Jason descobre mais três coisas: a primeira é que uma estranha moeda de ouro que traz no bolso pode, em momentos de perigo, transformar-se numa espada; a segunda é que ele próprio possui com essa arma uma habilidade que sugere um talento natural aprimorado por anos de treinamento; e a terceira é que pode, dentro de certos limites, controlar e dirigir os ventos com a força de sua vontade, o que lhe permite até mesmo deslocar-se através do ar, quase como se voasse.

Depois de uma batalha desesperada, na qual ele tem a chance de experimentar essas capacidades recém-descobertas, Jason e seus amigos são surpreendidos pela chegada de uma carruagem voadora, puxada por cavalos alados e transportando um grupo de semideuses liderados por ninguém menos que Annabeth Chase. E Annabeth está aflita com o desaparecimento de seu namorado, Percy Jackson (pois, depois de cinco anos arreliando um com o outro, ela e Percy finalmente se acertaram, o que aconteceu no finalzinho de O Último Olimpiano), seguindo qualquer pista que pareça capaz de ajudar a encontrá-lo. Ela veio ao Grand Canyon porque teve um sonho sugerindo que nesse local encontraria um semideus usando um único calçado, que estaria, de alguma forma, ligado ao sumiço de Percy - e, ao chegar, dá de cara com Jason calçando um só tênis, pois perdeu o outro durante a luta contra os espíritos da tempestade. Quem conhece mitologia reconhecerá a referência à história do herói Jasão (que, em inglês, é Jason), que também foi identificado como o agente de uma profecia por estar usando apenas uma sandália. Jason, Piper e Leo são, então, conduzidos ao Acampamento Meio-Sangue, onde espera-se que ao menos alguns dos mistérios que envolvem o trio possam ser esclarecidos.

Piper McLean é linda, inteligente e um pouco rebelde. De certa forma, está acostumada a ser uma "meio-sangue", pois seu pai, Tristan McLean - um famoso ator de cinema - é um índio cherokee. Da mãe, tudo o que Piper sabe é que era branca e que foi embora pouco tempo depois de seu nascimento. Tristan, que teve uma infância pobre e sem perspectivas numa reserva indígena, acredita estar fazendo o melhor pela filha ao criá-la em meio à riqueza, mas Piper sofre com a frustração mais comum entre os filhos de ricos e famosos, que é a de apenas muito raramente receber alguma atenção ou desfrutar da companhia de seu ocupado e requisitado pai. E, como fazem muitas crianças que vivem essa realidade, ela encontra uma maneira (por mais estúpida que seja) de obrigá-lo a prestar atenção nela. Piper foi diagnosticada com cleptomania, mas seu método é um tanto diferente do usual: em vez de afanar coisas em lojas, ela simplesmente pede aos vendedores - e eles lhe dão. Por alguma razão, a maioria das pessoas acha extremamente difícil negar qualquer coisa que Piper peça, e qualquer ideia, proposta ou sugestão, não importa o quão absurda, passa a parecer convincente quando é ela quem a expõe. Ao que tudo indica, finalmente é chegada a hora de descobrir de quem ela herdou habilidades tão incomuns, mas Piper não tem bem certeza se quer mesmo saber.

Leo Valdez é um hispano-americano de Houston com um cacoete extraordinário para inventar, construir e consertar coisas. Sempre acreditou que devesse isso ao exemplo da mãe, que tinha uma oficina e loja de ferragens, mas parece agora que o talento talvez venha de ambos os lados da família. Desde que perdeu a mãe, num incêndio tão misterioso quanto trágico, aos oito anos de idade, ele já fugiu de uma ampla variedade de instituições e lares adotivos, até chegar à Escola da Vida Selvagem e daí ao Acampamento Meio-Sangue, onde, pela primeira vez na vida, tem um vislumbre do que seria a sensação de pertencer de fato a algum lugar. Além de tudo isso, Leo se debate com um conflito interno sobre o qual nunca desabafou com ninguém: por natureza, é um amigo fiel e dedicado, mas uma parte sua, da qual ele não se orgulha, sente-se incomodada com o eterno papel de coadjuvante que parece ser seu destino, enquanto Jason - o "cara bonito e corajoso" - colhe as glórias. Só o tempo dirá o que pode vir a depender da solução desse conflito.

E Jason… É Jason. Seu passado é um mistério até para ele mesmo. Qualquer olho experiente em reconhecer semideuses identifica-o logo de saída como sendo um, e as habilidades que possui deixam óbvio que foi muito bem treinado, mas, até onde se sabe, o único lugar onde poderia ter recebido esse tipo de treinamento é o próprio Acampamento Meio-Sangue, e ninguém ali o conhece. As únicas possíveis pistas são uma estranha tatuagem em seu antebraço, mostrando a imagem de uma águia e as letras SPQR, e o fato de que ele prefere referir-se aos deuses por seus nomes latinos ao invés dos gregos (para pessoas familiarizadas com as coisas da Antiguidade, isso será suficiente para que comecem a ligar os pontos e a fazer uma ideia de qual pode ser a origem do personagem, mas imagino que, para a maioria dos leitores adolescentes de Riordan, esses indícios só agucem a curiosidade).


No acampamento, fica-se sabendo que a situação é grave. Além do desaparecimento repentino e inexplicado de Percy, tudo o que se tem de concreto é que o Olimpo está "fechado": nenhum dos deuses responde a qualquer tentativa de comunicação, e, a menos que haja um motivo sério para isso, o fato constitui uma violação do acordo que os olimpianos aceitaram ao final da Segunda Guerra dos Titãs (detalhes em O Último Olimpiano), cujo ponto principal era que deveriam parar de ignorar seus filhos mortais. Parece pouco provável que as duas coisas, tendo acontecido simultaneamente, não estejam ligadas de alguma forma. Rachel Dare, o oráculo oficial do acampamento, consegue acrescentar alguns elementos ao quadro. Leo, Jason e Piper são três dos sete meios-sangues de que fala a profecia, e são também os campeões escolhidos pela deusa Hera - rainha do Olimpo, esposa do todo-poderoso Zeus - para libertá-la de um cativeiro onde está sendo mantida por um inimigo misterioso. Assim, eles partem numa missão no dia seguinte ao de sua chegada ao acampamento, mas não sem que seus respectivos progenitores divinos tenham se revelado. O transporte é providenciado por Leo, que consegue encontrar o já lendário dragão mecânico de bronze, construído décadas atrás pelos semideuses do chalé de Hefesto para guardar as divisas do acampamento, mas que agora encontra-se desgovernado vagando pelas florestas, um perigo para os campistas e para transeuntes desavisados (sua história é narrada em mais detalhes na aventura Percy Jackson e o Dragão de Bronze, que está em Os Arquivos do Semideus). Leo, então, consegue localizá-lo, consertá-lo, e até adaptar-lhe um par de asas, que originalmente não possuía, convertendo-o numa poderosa montaria voadora, a bordo da qual ele, Jason e Piper partirão em sua primeira missão.

Uma missão para fã nenhum de Rick Riordan botar defeito. Todos os ingredientes que nos acostumamos a esperar estão lá em fartas doses: referências mitológicas, aventura, humor e surpresas - muitas surpresas. Com algumas novidades importantes: literariamente, Riordan apresenta-se em franca evolução como escritor, oferecendo-nos personagens bem mais complexos, com uma parte psicológica bem mais trabalhada, enquanto, do ponto de vista dos elementos internos da narrativa, o mundo mítico e fantástico do autor ficou muito maior, com um sem-número de novas possibilidades. A edição nacional, de modo geral, está bem cuidada, com alguns pequenos e perdoáveis problemas de português e, pelo que percebi e me lembro, apenas um deslize mais sério: durante uma luta contra um gigante, Jason refere-se si próprio como "protetor da Primeira Legião"… É óbvio que era para ser pretor, mas todos sabemos que há pessoas que, ao se depararem com uma palavra que não conhecem, preferem acreditar que foi erro de grafia e substituí-la por qualquer outra que conheçam e que seja parecida, mesmo que fique totalmente fora de contexto (por que cargas d'água uma legião precisaria de um "protetor"?). Seria tão mais simples e honesto consultar o dicionário… Pessoas assim estão por toda parte - inclusive, infelizmente, nas editoras que publicam o que lemos -, mas isso não vai prejudicar a enorme diversão que espera pelos fãs do tio Rick nessa nova saga, que tem tudo para ser ainda mais empolgante que a anterior.