terça-feira, setembro 24, 2013

A Casa Infernal

Dois mil e treze ficará tristemente marcado para os fãs de literatura de imaginação como o ano do falecimento de um dos mais versáteis autores de ficção científica, fantasia e horror de todos os tempos - se é que cabe tristeza pelo fim inevitável de uma vida que foi tão longa e produtiva. Richard Matheson, norte-americano filho de noruegueses, nascido em 1926, teve uma prolífica e variada carreira que durou mais de 60 anos, sobressaindo em todos os três gêneros. Muita gente provavelmente já se empolgou e "viajou" com suas criações sem saber: Matheson foi o autor do romance Em Algum Lugar do Passado, publicado originalmente em 1975 e levado às telas com enorme sucesso cinco anos depois, com Christopher "Superman" Reeve no papel do homem que viaja no tempo para encontrar uma mulher que viveu no início do século e por quem apaixonou-se por meio de uma fotografia. Também são obra sua os roteiros de alguns dos melhores episódios da série clássica de Jornada nas Estrelas, incluindo o antológico O Inimigo Interior. Matheson foi ainda um dos principais responsáveis pela série original de Além da Imaginação, e, como se tudo isso fosse pouco, também escreveu Eu Sou a Lenda, um dos mais impressionantes romances do hoje popular subgênero pós-apocalíptico de ficção científica, filmado nada menos que três vezes, a última em 2007, com Will Smith como protagonista.

Uma boa dimensão da polivalência de Matheson é dada pelo fato de que as mocinhas sonhadoras que lotavam salas de cinema no início da década de 80 para suspirar assistindo a Em Algum Lugar do Passado provavelmente teriam um treco ante a simples ideia de ler este A Casa Infernal (1971), ou mesmo de ver o filme baseado nele (1973). Seguindo a tradição de A Queda da Casa de Usher, do imortal Edgar Allan Poe - que será para sempre um parâmetro para todas as histórias de casas assombradas -, Matheson conseguiu dar ao tema um tratamento moderno, que inclui insights científicos e psicológicos, além de uma certa dose de erotismo sinistro, resultando num romance arrepiante, que agradará em cheio aos apreciadores de boas histórias de horror.

O livro começa pouco antes do Natal de 1970. O magnata da imprensa Rolf Deutsch, já velho e com a saúde abalada, contrata o Dr. Lionel Barrett, um físico que por mais de 20 anos dedicou-se a pesquisas parapsicológicas, para tentar desvendar os mistérios da Mansão Belasco (popularmente conhecida como a "Casa Infernal"), onde outrora viveu o milionário Emeric Belasco, famoso por promover em sua casa espantosas orgias nas quais todo tipo de comportamento aberrante era não só tolerado como estimulado. Inúmeras pessoas morreram na casa durante esses horripilantes divertimentos, que só terminaram quando o próprio Belasco desapareceu. Desde então, a casa é considerada assombrada, e, no momento em que Barrett recebe a incumbência, tem estado desabitada há cerca de duas décadas. Embora Deutsch não o diga, Barrett percebe que o que o velho e rico homem deseja é uma resposta para a eterna questão da vida após a morte - questão essa que provavelmente cresceu em importância aos seus olhos, agora que ele sabe que seu próprio fim está próximo. Há um detalhe que Stephen King - por sinal, um fã de carteirinha de Matheson - consideraria auspicioso: a mansão fica no Maine, estado onde ele próprio nasceu, mora e ambienta quase todas as suas histórias.

Barrett não irá sozinho: sua esposa e eventual assistente, Edith, insiste em acompanhá-lo, e, além disso, Deutsch também contratou os médiuns Florence Tanner e Benjamin Franklin Fischer; ela, uma ex-atriz que agora é ministra de uma pequena igreja espiritualista, ele, o único sobrevivente de uma expedição anterior à Casa Infernal, trinta anos antes. O quarteto não poderia ser mais heterogêneo. Barrett é um cético empedernido, que não acredita em fantasmas ou assombrações, e, embora não descarte totalmente a possibilidade da existência de vida depois da morte, é da opinião que um verdadeiro cientista não deve apoiar-se nessa crença em sua busca por respostas. Para ele, todos os fenômenos ditos "inexplicáveis" da Casa Belasco têm uma única explicação: desordens no campo eletromagnético do local, um problema que ele está certo de poder resolver utilizando uma máquina de sua própria invenção. Edith é uma mulher insegura e instável, tão dependente emocionalmente do marido, que entra em pânico com a perspectiva de ficar longe dele, por uma hora que seja. Florence, além de atraente, é emotiva e idealista, firmemente determinada a pôr fim à maldição da casa por meio do amor, levando libertação aos espíritos atormentados ali aprisionados. Fischer, por fim, é o personagem mais enigmático. Já foi considerado um dos mais poderosos médiuns do mundo, razão pela qual foi incluído na missão anterior, apesar de, na época, não passar de um adolescente. As horríveis experiências que viveu naquela casa fizeram com que se afastasse da parapsicologia, mas, apesar disso, continua com seus poderes intactos.

Os primeiros dias na casa correm em relativa tranquilidade, embora fenômenos inquietantes não deixem de acontecer; cada membro da missão começa a agir à sua própria maneira. Enquanto Barrett colhe dados científicos e aguarda a entrega de sua máquina, Florence começa a interagir ativamente com as forças espirituais em ação na casa, acreditando, inclusive, haver feito contato com o fantasma de Daniel Belasco, o suposto filho do antigo dono da casa, cuja própria existência é duvidosa, já que não há registros de seu nascimento. A compaixão que sente pelo espírito do rapaz e pelas demais almas aprisionadas na casa pode acabar sendo sua ruína, como Fischer não deixa de adverti-la, mas sua sincera piedade religiosa leva-a a insistir, mesmo à custa da própria segurança. Quanto a Fischer, ele não esconde o fato de que tudo o que pretende é ficar na casa até o final da semana que foi o prazo dado por Deutsch e então embolsar o polpudo pagamento prometido pelo velho: mantém sua mente fechada a influências ou contatos, recusando-se a correr o risco de reviver o que passou na juventude naquele mesmo local. As descrições dos fenômenos paranormais são vívidas e perturbadoras, e uma atmosfera de paranoia permeia a narrativa à medida em que as entidades sobrenaturais presentes na casa começam a agir - ora sutis, ora brutais, mas sempre traiçoeiras. Além de tudo isso, há uma tensão permanente entre Florence e o Dr. Barrett, que entram em atrito com frequência, ela achando que ele se recusa a ver o que está diante de seus olhos para não ter que admitir que suas teorias podem precisar ser revistas, enquanto ele acredita que ela se utilize, talvez inconscientemente, de suas habilidades mediúnicas para manipular as energias da casa a fim de fornecer aparentes provas que apoiem suas convicções.


Richard Matheson era um mestre em criar atmosfera: suas descrições levam o leitor a mergulhar de fato nas sensações que o autor deseja transmitir, seja a admiração pela grandiosidade e magnificência da mansão - imensa, de arquitetura maravilhosa, e repleta de obras de arte -, seja o medo gelado que parece espreitar os heróis por detrás de cada coluna esculpida e de cada móvel antigo. Se falta algo, talvez seja um personagem realmente carismático: eu, pelo menos, não consegui me identificar muito com nenhum deles. O Dr. Barrett, durante a maior parte do tempo, é irritante com seu ceticismo, enquanto Florence torna-se piegas com seu excesso de emotividade e sua doçura enjoativa -, dois personagens estereotipados, enfim. Talvez o mais interessante seja Fischer, mas sua persistente atitude de ficar à margem dos acontecimentos impede que se pense nele como um protagonista no verdadeiro sentido do termo. Curiosamente, é com Edith - a personagem à primeira vista menos importante, e que, a rigor, nem precisaria estar ali - que o livro consegue ter o seu quantum satis de profundidade psicológica, pois a esposa de Barrett é uma pessoa complicada, cem por cento devotada ao marido, mas perturbada por traumas de infância e por uma sexualidade reprimida, o que faz dela um alvo perfeito para as forças sinistras que ocupam a Mansão Belasco. O desfecho é como teria que ser numa história assim - surpreendente -, mas seus detalhes parecem um tanto incompatíveis com o que havia sido dito antes sobre Emeric Belasco.

A Casa Infernal não é perfeito, mas é sem dúvida um ótimo livro - e "ótimo" é provavelmente o adjetivo que se pode aplicar às menos inspiradas dentre as obras de Matheson. Prende com sua narrativa e possui as doses certas de suspense e de sustos, de modo que nenhum apreciador de terror haverá de dar por perdido o tempo que dedicar à sua leitura.