terça-feira, fevereiro 11, 2014

O Último Desejo

Parece que os editores brasileiros (e os leitores, pois, se algo está sendo publicado, é porque existe de­manda) estão sentindo uma necessidade urgente de compensar o longo tempo durante o qual a litera­tura de fantasia esteve, a bem dizer, ausente de nossas livrarias e bibliotecas. Desde a virada do século que não param de pipocar as edições nacionais de livros do gênero. Por motivos tanto culturais quanto mercadológicos, a maioria desses títulos vem dos países de língua inglesa, mas há algumas notáveis exce­ções, e uma delas é o polonês Andrzej Sapkowski.

Sem qualquer intenção de menosprezar ninguém, preciso dizer que é "refrescante", vez por outra, ler histórias de fantasia medieval com pretensões mais modestas que as da maior parte das obras do gêne­ro. Nas aventuras de Geralt de Rívia, das quais O Último Desejo é o primeiro volume, o destino do mundo não está em jogo (bem, é verdade que este é só o primeiro volume...). Geralt perambula por di­ferentes reinos, visitando desde os castelos dos reis até as vilas dos camponeses, oferecendo seus servi­ços em troca de ouro e prata em quantidade suficiente para suprir suas necessidades materiais durante algum tempo - pelo menos, tempo suficiente para que ele encontre seu próximo trabalho. Parece co­mum demais para render histórias heroicas? Eu me sentiria inclinado a concordar, se não fosse o tipo de trabalho que o cara faz.

Geralt de Rívia é um bruxo - e aqui cabe uma breve explanação. No mundo criado por Sapkowski, bruxos parece ser o nome que se dá aos usuários de magia que a dominam de uma forma mais instin­tiva e a utilizam para fins mais práticos; em contraposição a isso, há os feiticeiros, que parecem ser uma classe de magistas mais eruditos, que frequentaram uma academia e possuem formação teórica. Enquanto muitos feiticeiros possuem colocações prestigiosas, servindo a um rei ou a um nobre pode­roso, a ocupação tradicional dos bruxos é a de vagar pelo mundo caçando criaturas sobrenaturais peri­gosas - e recebendo pagamento por isso, seja do senhor da terra ou de um bando de aldeões assusta­dos que reúnem suas parcas economias para pagar o homem que, esperam, poderá livrá-los da amea­ça.

Demorei um pouco para entender a organização do livro. Os contos propriamente ditos estão entre­meados com breves interlúdios, todos intitulados A Voz da Razão - I, II, III e assim por diante -, nos quais Geralt aparece hospedado num santuário da deusa Melitele, cuja superiora, Nenneke, parece ser uma amiga de longa data. O bruxo está se recuperando de alguns ferimentos sofridos no exercício da profissão, e, aparentemente, fazendo um balanço de sua vida - ajudado pelas observações de Nenneke, sempre sábias, mas, por vezes, dizendo coisas que ele não gosta de ouvir. Sendo assim, os contos são in­troduzidos como se Geralt, imbuído desse espírito reflexivo, estivesse recordando algumas de suas aventuras recentes.

E são aventuras para nenhum amante de fantasia medieval botar defeito. Ao longo de suas viagens, Geralt já se viu às voltas com todos os tipos de magia e maldições, com guerreiros brutais, com nobres inescrupulosos e, principalmente, com uma galeria bizarra de seres míticos - míticos para nós, pois, em seu mundo, são todos muito reais. São mencionadas desde criaturas conhecidas (pelo menos, co­nhecidas por quem gosta de mitologia e de fantasia), como quimeras, mantícoras, anfisbenas, dragões ou basiliscos, até outras de que eu nunca tinha ouvido falar e tenho pouca ou ne­nhuma ideia de como podem ser: quiquimoras, bosqueolos, tragarças, zygopteras, bobolacos, leshys, wippers e por aí vai. Para enfrentá-las, Geralt vale-se ora de suas perícias em magia, ora de uma boa e velha espada - pois, dife­rentemente do que acontece com magos e bruxos em outras sagas, os bruxos de Sapkowski também possuem habilidade com armas. E ele carrega duas espadas, uma de prata e outra de aço. A crença po­pular é a de que a primeira é para monstros, e a outra para seres humanos, mas Geralt jura que ambas são para os monstros, pois, embora a maioria deles seja vulnerável à prata, há os que precisam ser mortos com aço. Ele também se utiliza de poções que ampliam suas capacidades, mas não deixam de cobrar seu preço: aqui e ali ao longo do livro, há insinuações de que o uso frequente desses prepara­dos pode ir, aos poucos, transmutando o bruxo para um ser diferente - humano na aparência, mas não totalmente em sua essência.

As histórias de Geralt de Rívia fazem lembrar muito os contos de fantasia publicados em revistas nor­te-americanas de fantasia e ficção científica durante as décadas de 30 e 40, escritos por gente como Fritz Leiber, Manly Wade Wellman, Jack Vance e outros - não que eu os tenha lido na época (risos), mas li alguns em coletâneas, e não ficaria surpreso de ficar sabendo que Andrzej Sapkowski é um fã e discípulo atento desse autores. Mas relaxem, pois o polonês não copia ninguém: embora alguns ele­mentos de suas histórias remetam aos velhos mestres, ele tem um estilo muito pessoal e marcante, que o leitor rapidamente aprende a reconhecer. Há passagens engraçadas, dramáticas e, é claro, épicas, tudo isso combinado em doses adequadas para tornar a leitura a mais agradável possível, e, aqui e ali, inesperadamente, topamos com menções a contos de fadas que todos conhecemos, embora de uma maneira que provavelmente nunca imaginamos!... Só para aguçar a curiosidade, adianto que Um Grão de Veracidade, talvez o melhor conto do livro, é, todo ele, uma reinterpretação do clássico A Bela e a Fera (esqueçam a versão da Disney, peguem um bom livro de contos de fadas para relembrar o enre­do), só que de uma maneira mais "realista", tentando mostrar como a história ter-se-ia desenrolado se a maldição que transformou um jovem nobre num monstro acontecesse num mundo habitado por se­res humanos de carne e osso, com as conhecidas mazelas humanas - e não por personagens de conto de fadas com seu comportamento exemplar. E, por falar em personagens, na obra de Sapkowski, até mesmo os de uma história só, que aparecem e somem, são primorosos. Quanto aos que parecem estar ligados de forma mais duradoura ao destino de Geralt, como Jaskier, o bardo falastrão, ou a sedutora feiticeira Yennefer, esses são inesquecíveis.


Quem leu os grandes nomes da literatura de fantasia encontrará nas histórias de Geralt de Rívia a maioria dos elementos a que está acostumado: há seres humanos, há anões, há elfos - não há hobbits, mas, para compensar, existem gnomos e outras raças menores (menores tanto em número e influên­cia quanto em tamanho). Porém, ninguém deve esperar encontrar elfos etéreos e perfeitos como os de Tolkien: aqui, elfos são seres bem terrenos, embora mais conectados à natureza que os humanos ou os anões. Podem ser violentos ou irracionais como qualquer um de nós, e ser movidos pelas mesmas pai­xões: luxúria, ganância ou vingança. Independentemente da raça, a maioria dos personagens parece perfeitamente apta a manter conversações espirituosas, pois os diálogos são um deleite à parte, cheios de frases perfeitas, observações sagazes e ditos que caem como uma luva. Dane-se se conversações re­ais não são assim: isto aqui é fantasia, e para que ela serviria se precisasse ser tão banal e tediosa quan­to a realidade? Não digo que a literatura de fantasia não possa servir para nos levar a refletir sobre as coisas do mundo real (que o diga A História Sem Fim), mas sua função número um é mesmo a de nos permitir escapar momentaneamente desse mundo e entrar em outro mais empolgante: é a eficácia em atingir esse objetivo que diz se uma história de fantasia é boa ou não; a reflexão, se surgir, é lucro. E, para construir um mundo mais empolgante, vale tudo: pode-se lançar mão de magia, raças não-humanas, seres míticos, contos de fadas, e, sim, até mesmo de diálogos inteligentes! Andrzej Sapkowski dá uma aula de como usar todos esses elementos com absoluta maestria. Não vejo a hora de ler os próximos volumes.

A edição nacional está bem cuidada, como é tradicional nas publicações da Martins Fontes, que já nos trouxe tantas boas obras de fantasia, tanto as clássicas quanto boas novidades. A tradução foi feita direto do polonês por Tomasz Barcinski, e, talvez por uma falta de familiaridade do tradutor com as estruturas frasais mais usadas em português, nota-se uma tendência a quase sempre colocar o adjetivo antes do substantivo: "O escurecido céu por trás da janela foi cortado pela cegante luz de um relâmpago, logo seguido pelo potente estrondo de trovão. O temporal adquiria cada vez mais força e espessas nuvens deslizavam sobre Rinde". Com a repetição ao longo de todo o livro, isso começa a soar forçado e incômodo. No lugar do editor, eu teria uma conversa com o tradutor e com os revisores a respeito. Em todo caso, não é nada que impeça o leitor de apreciar as muitas e grandes qualidades da obra.

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