quarta-feira, maio 14, 2014

O Hobbit: a Desolação de Smaug


Como seria natural que acontecesse, foi com grande expectativa que compareci ao cinema por ocasião do lançamento de O Hobbit: a Desolação de Smaug, ansioso que estava para conferir a continuidade da aventura de Bilbo Bolseiro e seus companheiros, cuja primeira parte, apesar de alguns pequenos senões, me havia deixado uma impressão tão favorável. Enquanto assistia ao filme, de vez em quando me vinham à memória trechos do meu post sobre Uma Jornada Inesperada, e, na maioria, eram trechos que expressavam aprovação – ora com mais entusiasmo, ora com menos, mas todos culminando num veredito final que foi muito favorável. Então, já perto do final do filme, lembrei do trecho no qual dizia que "sempre que a adaptação de uma obra de J. R. R. Tolkien estiver entregue às mãos de Peter Jackson, podemos ficar absolutamente tranquilos". E aí, não pude evitar uma imprecação, ainda que mental: "Neozelandês de uma figa, me fez queimar a língua!"

Ah, vá: A Desolação de Smaug começa muito bem, e muito bem prossegue até certa altura. Bilbo, Gandalf e os anões sendo perseguidos pelos orcs, encontrando refúgio e ajuda na casa do homem-urso Beorn, depois o mago separando-se do grupo, que prossegue sua jornada pela Floresta das Trevas – tudo perfeito, seguindo de perto a história original (com as adaptações que já eram esperadas) e dando a ela um visual soberbo. A transformação operada em Bilbo, que já havia começado no final de Uma Jornada Inesperada, prossegue a passos largos: o respeitável e acomodado proprietário de Bolsão revela-se um aventureiro ousado e sagaz, que mais de uma vez salva a pele de Thorin e companhia, calando em definitivo aqueles do grupo que ainda não tinham fé nele. Os problemas começam a aparecer a partir da captura de todos, menos Bilbo, pelos elfos... Até compreendo o desejo de Jackson e seus colaboradores de ver Orlando Bloom de volta ao papel de Legolas, e, dentro do espírito de criar conexões entre as duas trilogias de filmes, isso poderia, sim, ser feito. Afinal, é sabido que Legolas é filho de Thranduil, e, embora o nome deste último não seja mencionado em O Hobbit, dá para sacar que o rei elfo que aparece deve ser ele, então não seria nenhum absurdo que o filho também entrasse no filme, apesar de não existir no livro. Mas, vamos e venhamos, não era preciso dar tanto destaque ao personagem, nem inventar a bela e heroica elfa Tauriel (Evangeline Lilly) para que houvesse alguma aura de romance. O que dizer, então, da "paixão platônica" que surge entre Tauriel e o anão-modelo Kili (Aidan Turner)? Desnecessária, no mínimo, além de improvável na visão de quem conhece a índole que anões e elfos possuem na obra de Tolkien.


A fuga das masmorras de Thranduil a bordo dos barris foi totalmente "traduzida" para a linguagem cinematográfica. No livro, os anões entravam nos barris, Bilbo os tampava e despachava pelo rio, por onde o grupo escapava na surdina, sem ser notado. No filme, a fuga virou uma movimentada batalha envolvendo anões, elfos, orcs, e cheia de cenas provocativas daquele clássico comentário: "Só em filme, mesmo!" É preciso um pouco de compreensão, tudo bem: um livro, mesmo sendo de aventuras, normalmente precisa de uma injeção extra de ação para funcionar na tela, e cena de ação nunca teve a obrigação de ser crível. Bem mais difícil é engolir o tedioso "exageramento" da importância do papel da cidade de Esgaroth e de seus habitantes. As agitações sociais, o ridículo mestre da cidade com seu ajudante desprezível, o desejo do povo por uma eleição (coisa bastante estapafúrdia num mundo de sociedades e instituições basicamente medievais) e o papel do arqueiro/barqueiro Bard como "líder sindical" e chefe de família dedicado poderiam perfeitamente ter sido deixados de fora – nada disso existe no livro nem faria a menor falta. De minha parte, sou da opinião de que o filme poderia ter ficado de 30 a 40 minutos mais curto, muito mais ágil e agradável com a exclusão de toda essa parte. Minha impaciência durou até Bilbo e nove anões finalmente deixarem Esgaroth e se dirigirem à Montanha Solitária – nove dos treze, pois o bonitão Kili, ferido por uma flecha morgul (como a faca que atinge Frodo em A Sociedade do Anel, só que isso não acontecia n'O Hobbit original) é deixado para trás, na companhia de outros dois anões que decidem ficar para cuidar dele, e de mais um que se atrasa para a partida. Tudo isso é uma deixa para Legolas e Tauriel aparecerem mais um pouco, salvando os três e mais a família de Bard de um ataque dos orcs. De quebra, a elfa ainda salva a vida de Kili com seus conhecimentos de medicina natural. Sem querer ser chato demais (mas já sendo), quase tudo desde o encontro de Bilbo e os anões com Bard até este momento me parece pura encheção de linguiça. É um grande alívio quando as câmeras deixam de lado os "momentos ternos" entre Kili e Tauriel para se ocuparem de Bilbo, Thorin e os outros chegando à montanha. Que tal voltarmos à aventura agora? Obrigado.

A partir desse ponto, o espírito da história é retomado, e o leitor de Tolkien já se sente um tanto mais tranquilo, pois tudo indica que o filme esteja se encaminhando de maneira segura para o final, que provavelmente seria no momento em que Smaug, o dragão, ataca Esgaroth. E é o que de fato acontece. O que ninguém esperava era que, antes de chegar até aí, fôssemos obrigados a assistir Thorin e os outros "combatendo o dragão"... A escolha parece ser entre enfrentar o monstro num confronto direto – o que, é claro, significaria a morte instantânea de todo o grupo –, procurar um jeito de derrotá-lo pela esperteza, ou então desistir de tudo e ir embora. Só que, em vez de seguir um desses três cursos de ação, o que os sujeitos fazem?? Fundem uma gigantesca estátua de ouro de um guerreiro anão. O que esperavam conseguir com isso, nem Gandalf seria capaz de dizer; será que era para o dragão ficar tão impressionado com as capacidades industriais e artísticas dos anões, a ponto de decidir ir embora e deixá-los ficar com a cidade e o tesouro? Por outro lado, há outra coisa que qualquer um pode dizer: quem parece mesmo estar tentando impressionar (impressionar a nós, espectadores) são Peter Jackson e os outros realizadores do filme. Toda essa sequência parece um grande comercial, um coro de gritos de "Lalo-lalo, olha só o que nossa equipe de efeitos especiais consegue fazeeeer! Lalo-lalo!" É a única explicação que encontro, pois nem o maluco mais desvairado seria capaz de achar que essa coisa da estátua fosse acrescentar algo ao filme em termos de narrativa. Sério, é constrangedor.

A propósito, acho útil registrar que só estou escrevendo o comentário agora, depois de todos esses meses, porque julguei necessário rever o filme, para evitar ser injusto, e só agora tive acesso ao DVD: que ninguém diga que não dei a Jackson o máximo possível de chances. Na verdade, eu estava relutante em baixar a ripa no cara, mas, no fim, não houve jeito: esse filme foi mesmo uma surpresa, no mau sentido.

Considerando o que fez em O Senhor dos Anéis, Peter Jackson tem crédito, então talvez não devamos julgá-lo por uma única besteira feita. Proponho uma "melhor de três": Uma Jornada Inesperada foi muito bom, enquanto A Desolação de Smaug, a despeito de alguns bons momentos, foi uma decepção. Vamos ver como ficam as coisas em dezembro, quando deve estrear A Batalha dos Cinco Exércitos (anteriormente conhecido como Lá e de Volta Outra Vez), parte final da trilogia. Namarië a todos.