quarta-feira, dezembro 16, 2015

Rosto de Caveira, Os Filhos da Noite e Outros Contos

Vocês talvez lembrem que, no post a respeito de Salomão Kane, observei que muitas coisas nas aventuras do valente puritano sinalizavam um interesse, por parte de Robert E. Howard, pela literatura de terror, inclusive especulando que, caso tivesse vivido mais, o autor, muito provavelmente, ter-se-ia dedicado ao gênero em algum momento. Bem, este outro livro veio para me mostrar que ainda estou longe de conhecer a obra do cara tão bem quanto julgava. As histórias de terror de Howard não são uma coisa hipotética: elas estão bem aqui.

O que encontramos em Rosto de Caveira, Os Filhos da Noite e Outros Contos são histórias com a marca inconfundível de Howard, já conhecida de quem leu as aventuras de Conan e outros de seus trabalhos. Um estilo um tanto hercúleo, vamos dizer assim – mais vigoroso que elegante. Nada que o tempo, a prática e a leitura de grandes vultos da literatura universal não tivessem resolvido, se tivesse havido chance para tanto. Isso me faz lamentar duplamente a morte precoce do escritor, pois, caso não tivesse desistido de viver, ele certamente nos teria brindado com um vasto número de novas obras – veja-se a quantidade de material que produziu em tão poucos anos –, além de, com igual certeza, evoluir muito em técnica e estilo. Caras, pensem no que seria ler um romance que Howard tivesse escrito nos seus maduros 60 ou 70 anos, aliando a tremenda imaginação que conhecemos com a experiência e a habilidade acumuladas numa longa carreira… Mas estou de novo escorregando para o universo do what if. Desculpem.

A primeira história, e a mais longa (ocupando sozinha mais de metade do livro) é Rosto de Caveira. O personagem-narrador chama-se Stephen Costigan, mas, segundo especialistas em Howard, é distinto de Steve Costigan, um marinheiro e boxeador que protagoniza quase 30 histórias e foi um forte candidato a personagem mais popular do autor – antes do aparecimento de Conan, é claro. O Costigan a quem somos apresentados aqui é um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, cuja mente foi severamente afetada pelas cenas de horror testemunhadas na batalha de Argonne, em 1918. Constantemente atormentado pelas lembranças traumáticas da guerra, Costigan busca amortecer a mente por meio do haxixe, e acaba afundando-se na droga até ao ponto de arruinar sua vida. É assim que vamos encontrá-lo, num "templo dos sonhos" (estabelecimento onde pessoas se reuniam para usar drogas) no coração do bairro oriental de Londres.

Antros de vício desse tipo eram comuns na China e em outros países do oriente na época em que a história parece se ambientar (final da década de 1920), depois de a Inglaterra, durante o século XIX, haver incentivado o cultivo de ópio e haxixe na Índia; essas drogas eram traficadas para a China e região por companhias britânicas. Com isso, o aumento da oferta e a consequente queda do preço e facilidade de acesso a essas substâncias haviam transformado o vício numa epidemia. Não havia cidade naquela parte do mundo onde não existissem um ou vários "templos dos sonhos", e também era muito provável haver um em qualquer lugar onde se concentrasse um grande número de habitantes de origem chinesa – como a "Chinatown" londrina, onde Costigan está consumindo sua saúde e seus recursos quando a história começa.


Quando tem a primeira visão do "homem de rosto de caveira", o ex-soldado pensa que é apenas mais uma alucinação produzida por sua mente entupida de haxixe, mas depois, mesmo do fundo de seu entorpecimento, ele percebe que o ser em questão é bem real. Trata-se de um indivíduo muito alto, magro como um esqueleto e com feições de acordo, parecendo ter o crânio coberto apenas por uma pele enrugada e pergaminhosa, que vive escondido num conjunto de câmaras secretas no prédio que abriga o "templo dos sonhos", e a quem até o todo-poderoso Yun Shatu, proprietário da casa, trata com subserviência. O estranho personagem diz chamar-se Kathulos e ser originário do Egito. Kathulos, a certa altura, manda buscar Costigan e, com o que parece ser um toque mágico, livra-o instantaneamente da dependência da droga, dizendo que tem um trabalho em mente para ele, o qual exigirá que esteja em sua melhor forma. Costigan, tomado de enorme gratidão, está disposto a fazer quase qualquer coisa que seu estranho benfeitor peça – pelo menos até descobrir que as coisas não são bem como parecem. Seus sentidos estão extraordinariamente alertas e ele se sente mais vigoroso que nunca, mais até do que em seus melhores tempos, mas parece-lhe que tudo isso faz parte da sensação maravilhosa de ter-se livrado do torpor da droga; entretanto, com o tempo, fica evidente que Kathulos, secretamente, administrou-lhe alguma outra substância, capaz de operar mudanças tão espetaculares e repentinas, e que o fez porque espera utilizá-lo como um peão em planos terríveis. A partir daí delineia-se o confronto que guiará os eventos da história. Kathulos, diga-se, não é realmente egípcio; suas origens são ainda mais antigas e misteriosas que as de qualquer múmia. Dizer mais que isso seria revelar demais, mas quero observar que o gosto de Howard por colocar seus heróis cara a cara com um mal antigo, vindo de eras esquecidas, certamente devia muito à amizade e admiração que ele dedicava a H. P. Lovecraft.

Também em suas outras características, Rosto de Caveira é puro Robert E. Howard: ação vertiginosa do início ao fim, quase sem interrupção, um herói forte e determinado, vilões cruéis, mistérios, combates violentos, e uma bela mocinha de aparência e nome exóticos (Zuleika, nada menos que isso), e que, embora frágil à primeira vista, acaba revelando uma insuspeitada coragem, demonstrando-se uma companheira digna do herói. Enfim, se mudássemos a ambientação, os nomes e alguns detalhes do enredo, a história poderia facilmente ser transformada numa aventura de Conan. Portanto, não se trata de terror, embora incorpore alguns elementos típicos desse gênero; é uma história de aventuras, e muito boa.

O terror mesmo aparece depois que Rosto de Caveira termina e dá lugar a sete contos de variadas extensões e temáticas. Na Floresta de Villefore e Cabeça de Lobo são sobre a lenda do lobisomem, ambas ambientadas no século XVII ou XVIII, e unidas pela presença de um mesmo personagem, Monsieur de Montour, um fidalgo da Normandia (França). A primeira, bem curta, passa-se numa floresta do interior da França, tida como assombrada, e conta como foi que De Montour veio a contrair a maldição da licantropia; a outra tem lugar numa propriedade colonial na costa da África, e conduz o personagem a um destino bastante inesperado. A Serpente do Sonho lembra alguns contos de Guy de Maupassant, com o narrador delegando a outro personagem a tarefa de contar a história, de modo que os elementos inacreditáveis ficam envoltos naquela aura duvidosa do "só estou contando conforme ouvi" (um recurso parecido também é utilizado em Cabeça de Lobo). O modo como sonho e realidade se mesclam na narrativa confere à história um encanto macabro. A Hiena é um conto sobre bruxaria africana, apresentando o que poderíamos considerar como a versão local da licantropia. Certo, o nome licantropia vem do grego lykos, 'lobo', mas o fato de não existirem lobos na África não é impedimento para que o Continente Negro tenha suas próprias lendas a respeito de homens que se transformam em animais. A principal diferença, afora o animal em questão, é que, em A Hiena, a metamorfose não aparece como uma maldição, e sim como uma habilidade somente possuída por feiticeiros de grande poder. Em A Maldição do Mar, temos um narrador que não atua diretamente na história, mas passa por ter sido testemunha ocular dos fatos; o cenário é a cidadezinha costeira de Faring, que poderia ficar no litoral norte-americano ou britânico, provavelmente no século XIX. John Kulrek, um marinheiro fanfarrão e chegado ao álcool, estupra uma garota do lugar, que, desesperada depois do ocorrido, comete suicídio lançando-se ao mar. Acontece que a tia da jovem, com quem ela vivia, tem fama de feiticeira, e lança uma maldição sobre Kulrek – uma maldição que irá cumprir-se de modo sinistro.

Não obstante, o conto mais apetitoso do livro, na minha opinião, é o último, Os Filhos da Noite, publicado originalmente na edição de maio de 1931 da revista Weird Tales. Além de ser, em si, uma história envolvente, ela também é notável pelo grande número de conexões que consegue estabelecer ao longo de suas modestas 30 e poucas páginas. O início dá a impressão de que será um tranquilo conto-ensaio: seis intelectuais, entre eles o Prof. John Kirowan (que tem histórias próprias como protagonista, mas aqui aparece como um personagem secundário) estão reunidos no estúdio de um deles, entretidos em discussões fascinantes de cunho antropológico, literário e mítico. Quando o assunto envereda para cultos misteriosos, Howard não perde a oportunidade de mencionar o Necronomicon, bem como o Grande Cthulhu e outras divindades monstruosas de tempos esquecidos – de modo que Os Filhos da Noite pode ser considerado parte dos Mitos de Cthulhu, iniciados por H. P. Lovecraft e que continuam crescendo até hoje. Howard, aliás, escancara toda a sua admiração pela obra do amigo ao colocar na boca de um dos personagens a opinião de que seu O Chamado de Cthulhu forma a tríade das melhores histórias de terror já escritas, junto com O Selo Negro, de Arthur Machen, e A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe.

Além do narrador John O'Donnel, do Prof. Kirowan, do anfitrião Conrad e de dois outros, está presente um homem conhecido como Ketrick, que, apesar de descender de pura linhagem anglo-saxônica, documentada desde os "dias do rei Canuto" (ou seja, desde o início do século XI!), tem estranhos olhos de feitio oriental e coloração amarelada, além de um sutil sibilar em sua fala, que O'Donnel acha um pouco incômodo. Conforme a conversa sobre cultos misteriosos prossegue, um dos participantes, de nome Clemants, menciona um tal "culto Bran", focado num "rei que governa o Império das Trevas, (…) e sobre a enorme e inominável caverna onde está o Homem das Trevas, a imagem de Bran Mak Morn, escavada à perfeição por uma mão de mestre quando o grande rei ainda era vivo. (…) Sim, esse culto ainda está vivo entre os descendentes do povo de Bran (…)." Isso é uma conexão com outra das criações do próprio Howard, o fictício Bran Mak Morn, que teria sido rei dos pictos na Caledônia (a atual Escócia) nos tempos do Império Romano – império esse ao qual ele devotava um ódio implacável.

Os historiadores têm pouco a oferecer sobre esse povo, os pictos, e mesmo o pouco que oferecem é controverso. Algumas fontes os dão como sendo um ramo primitivo dos celtas; de fato, o grande grupo étnico conhecido genericamente como "celta" comportava inúmeros subgrupos muito diferentes uns dos outros em cultura e tecnologia: enquanto algumas tribos dominavam técnicas sofisticadas de metalurgia, construíam grandes cidades e desenvolviam avançados sistemas de governo, outras viviam em choças de barro e palha, caçavam com armas de pedra polida, andavam pintadas e seminuas. Os pictos, então, fariam parte desse segundo tipo. Porém, também há quem os considere um povo à parte, totalmente distinto dos celtas, e que já ocupava as Ilhas Britânicas muito antes de estes últimos lá chegarem­. Não há mais como saber: fossem ou não celtas, os pictos foram completamente absorvidos, ao longo da Idade Média, por outros povos da região, mais numerosos e de cultura mais avançada. Traços de sua herança genética ainda podem ser encontrados no DNA de escoceses e irlandeses; de sua língua, só restaram alguns nomes de lugares. De qualquer forma, o costume picto de marchar para a guerra com o rosto pintado com a tinta azul obtida da flor conhecida como ísatis sobreviveu entre os escoceses até tempos bem recentes.

Não vamos esquecer que Howard, embora adorasse História e tivesse sólidos conhecimentos nesse campo, não era um historiador, e sim um escritor de ficção, e, como tal, podia valer-se de licença poética, o que significa que o que lemos em suas histórias, na maioria das vezes, não deve ser levado tão a sério – afinal, trata-se de entretenimento. Ainda assim, ele tem uma teoria interessante:

Com certeza o povo conhecido mais tarde como os selvagens pictos de Galloway era predominantemente celta, uma mistura de galeses, cymrics, aborígines e possivelmente elementos teutônicos. Se tomaram seu nome de uma raça mais antiga ou emprestaram seu próprio nome a essa raça, ainda não se sabe. Mas quando Von Junzt fala dos "pictos", ele se refere especificamente ao povo de baixa estatura, pele morena, comedor de alho, de sangue mediterrâneo, que trouxe a cultura neolítica para a Grã-Bretanha. Na verdade, foram os primeiros colonizadores daquela área (…).

(A tradutora Bárbara Guimarães quase sempre traduz people por 'pessoas', mesmo quando 'povo' seria obviamente a tradução correta; nesse excerto, tomei a liberdade de corrigir essa falha, fazendo as adaptações necessárias.)

"Sangue mediterrâneo" está de acordo com o que dizem os estudiosos que defendem a teoria de que os pictos eram um povo separado dos celtas: nesse caso, eles seriam provavelmente originários da Península Ibérica. Por outro lado, o próprio nome "pictos" não é nenhuma palavra ancestral e de origens incertas, como Howard faz parecer: é latim, e quem lhes deu esse nome foram os conquistadores romanos, a partir do primeiro século d.C. Significa simplesmente "pintados", aludindo ao costume já referido de desenharem símbolos tribais com tinta azul pelo corpo e rosto. Não se sabe como os pictos chamavam a si próprios. Mas, em resumo, a ideia de que podem ter existido dois povos distintos conhecidos como pictos – um, mais antigo, pequeno e moreno, e outro, mais recente, de biotipo celta – poderia explicar muita coisa.

Bem… A certa altura, no embalo desses assuntos, o dono da casa, Conrad, mostra a seus convidados um antigo martelo de pedra polida cuja cabeça foi encontrada nas colinas da Escócia; ele mesmo lhe colocou um cabo, para deixá-lo tal como devia ser na época em que era usado por seus misteriosos fabricantes, quem quer que tenham sido. A ferramenta (arma?) primitiva passa de mão em mão, até que, ao chegar sua vez, Ketrick consegue, sabe-se lá como, dar com ela na cabeça de O'Donnel, que perde os sentidos… E tem um sonho muito estranho, se é que é um sonho. Nele, o narrador se vê como Aryara, um jovem guerreiro de uma tribo que chama a si própria de "o Povo da Espada", e que presumivelmente viveu em algum lugar das Ilhas Britânicas em tempos antigos. E Aryara está envolvido num desesperado combate contra uma raça estranha, que quase nem parece humana: são criaturas pequenas, de cabeça grande, orelhas pontudas, olhos rasgados, pele amarelada, e com uma inconfundível nódoa reptiliana em sua aparência geral. Segundo as histórias que Aryara lembra de ter ouvido em sua tribo, esses seres dominavam aquela terra antes da chegada do Povo da Espada (provavelmente uma tribo celta de cultura primitiva), e antes até dos pictos. Apesar do pequeno tamanho, são seres perigosos, além de intrinsecamente malignos. Aryara nada sabe sobre O'Donnel, mas este, ao despertar, traz consigo a memória completa da aventura do guerreiro, o que muda totalmente seu modo de ver a si mesmo, sua raça e a História, além de oferecer uma razão para a vaga e inexplicável antipatia que ele sempre havia sentido por Ketrick. Detalhe: o recurso de um golpe na cabeça que faz o herói perder os sentidos e mergulhar em recordações de outra existência seria reaproveitado por Howard na história O Povo das Trevas, publicada um ano depois, e que apresentaria uma espécie de protótipo de Conan, cujo surgimento oficial se deu pouco mais tarde.

(Só para ilustrar como Howard não fazia a menor cerimônia para misturar as coisas como bem entendesse, e que, portanto, devemos ser cautelosos ao lê-lo: Aryara chama o deus de seu povo de Ilmarinen, um nome sem conexão alguma com a língua ou a cultura do povo que o autor estava, teoricamente, tentando retratar. Ilmarinen, ferreiro e guerreiro, era irmão do bardo e mago Vainamoinen – isso no Kalevala, o épico nacional da Finlândia. FINLÂNDIA.)

Quando vocês forem ler Os Filhos da Noite, não fiquem demasiado incomodados com as enfáticas e repetidas afirmações de O'Donnel a respeito do "sangue limpo" de saxões e celtas, que deveria ser preservado da "contaminação" pelo contato com "raças malignas"; as raças malignas a que ele se refere não são humanas e são totalmente fictícias. Além disso, não esqueçam que a história é de 1931, de modo que Howard não tinha como saber até onde um discurso parecido levaria a humanidade anos mais tarde, nem como prever que asserções desse tipo soariam tão mal aos ouvidos das gerações vindouras. Procurem ler com senso de perspectiva, levando em conta a mentalidade da época, que não era a mesma de hoje, e divirtam-se, que foi para isso que essas histórias foram escritas.

quinta-feira, novembro 26, 2015

Morte Súbita

Morte Súbita é o primeiro livro publicado por Joanne Kathleen Rowling após a conclusão da saga de Harry Potter, o megassucesso que a catapultou de uma ilustre desconhecida a escritora mais famosa do mundo e mulher mais rica do Reino Unido, superando, e por uma boa margem, a própria rainha Elizabeth II. E parece que, tendo feito nome e fortuna com a fantasia, ela sentiu a necessidade de enfrentar novos desafios, e decidiu então enfrascarse en la realidad, como diria a Mafalda: os personagens e situações dos quais Morte Súbita é feito não serão estranhos a ninguém, em quase nenhum lugar do mundo. Nas personalidades descritas com agudeza e, não raro, com crueldade (não uma crueldade deliberada; acontece que não existe uma maneira gentil de mostrar certas coisas), o leitor fatalmente reconhecerá traços de pessoas reais que conhece ou conheceu – e, se tiver a coragem da autocrítica, é provável que também reconheça, envergonhado, algum traço de si próprio.

O cenário da história (e, eu me atreveria a dizer, seu verdadeiro protagonista, mais que qualquer personagem específico) é o fictício vilarejo de Pagford, distrito do também fictício município inglês de Yarvil. Trata-se de uma comunidade do tipo que seus membros gostam de definir como "pacata e ordeira", com aquele ar interiorano que turistas e moradores mais velhos acham encantador – e os mais jovens, deprimente – e a típica beleza bucólica do interior da Inglaterra. Seu único marco notável são as majestosas ruínas de uma abadia do século XII, no topo de uma das colinas que cercam o vilarejo… E a total indiferença dos moradores em relação a essas ruínas, embora seja provavelmente o retrato da realidade, não deixou de me fazer sentir levemente ultrajado. De minha parte, estou certo de que jamais me acostumaria com o fato de morar perto de algo assim: poderia estar com mais de cem anos de idade e ter visto essas ruínas todos os dias da minha vida, ainda assim seria capaz de me sentar diante delas e contemplá-las durante horas, com aquela sensação indescritível de estar olhando para a própria História. Mas talvez isso seja apenas a visão de alguém que, além de ter essa esquisitice de ser apaixonado por História, vive num país que nem sequer teve Idade Média. Bem, chega de digressões.

A morte súbita que dá título ao livro é a de um homem com o curioso nome de Barry Fairbrother, uma figura destacada na sociedade de Pagford – um de seus "pilares", diriam alguns. Jovem ainda, a meio da casa dos 40, Fairbrother repentinamente cai morto, vítima de um aneurisma, na frente do restaurante do clube de golfe local, onde ia jantar com a esposa, celebrando seu aniversário de casamento. Essa talvez seja a principal peculiaridade do livro: o homem morre no primeiro capítulo, mas influencia os eventos da história até o final. Fairbrother, entre outras coisas, era um dos membros mais ativos do conselho distrital de Pagford, e não demora nada para que comecem a surgir candidatos para a vaga aberta com sua morte (note-se que o título original do livro não é Sudden Death, e sim The Casual Vacancy – quer dizer, 'Vacância Casual').

Mesmo num lugar tão pequeno, há sempre disputas políticas, e o principal pomo da discórdia em Pagford é o bairro conhecido como Fields. Décadas atrás, a prefeitura de Yarvil comprou parte da vasta propriedade de uma família rica e tradicional de Pagford, e criou ali o loteamento que daria origem ao tal bairro, que teve desde o início uma fama ruim entre os pagfordianos, fama essa que o tempo só piorou. Na opinião dos moradores mais tradicionais e respeitados de Pagford, Fields não passa de um antro de drogados e de gente que vive às custas do auxílio do governo, de ruas sujas, casas pichadas, quintais cheios de lixo e outros sinais de miséria que não combinam com a placidez burguesa do resto do vilarejo. Muitos gostariam que Fields desaparecesse, mas, ante a impossibilidade de solução tão radical, procuram, por todos os meios, conseguir que o bairro fique sob a tutela de Yarvil e não seja mais problema de Pagford. Porém, Fields também tem seus defensores, dos quais um dos mais dedicados e influentes era justamente o recém-falecido Barry Fairbrother, que nasceu lá. Agora, o destino de Fields, ou, pelo menos, a política que Pagford adotará em relação a ele durante os anos seguintes, poderá depender de quem venha a ocupar a cadeira de Fairbrother no conselho. E ambas as facções tratam logo de escolher seus candidatos. Do lado pró-Fields, surge Colin "Pombinho" Wall, vice-diretor de Winterdown, a escola local, e um dos amigos mais próximos do falecido; do lado anti-Fields, é indicado o advogado Miles Mollison, filho de Howard Mollison, também membro do conselho e, durante anos, adversário encarniçado de Fairbrother nesse assunto.

A eleição do novo conselheiro distrital é o eixo em torno do qual orbita a narrativa, mas uma série de outras tramas se entrelaçam, direta ou indiretamente, nessa. Há muitos personagens, o que faz o leitor se perder algumas vezes, mas logo nos familiarizamos com eles e fica mais fácil acompanhar, principalmente depois que aprendemos quem está relacionado a quem e de que forma; há várias famílias em cena, e cada membro delas tem seus próprios problemas, motivações e pensamentos. À primeira vista, parece que a autora está sendo implacável com seus personagens, e, por tabela, com as pessoas que os inspiraram (pois é óbvio que foi assim que o processo criativo funcionou), mas, conforme vamos lendo, percebemos que não é bem assim: é o que eu dizia sobre a crueldade não deliberada, lá no início do texto. Rowling simplesmente mostra as coisas tal como elas são e as chama pelo nome que têm, sem racionalizar (embora muitos personagens façam isso o tempo todo) ou lançar mão de eufemismos. Se isso faz seus personagens parecerem, em sua maioria, patéticos e mesquinhos, bem… Talvez seja porque a maioria das pessoas de carne e osso é assim, mas não sejamos tão azedos: muitas delas também têm um lado bom. Não todas. Há personagens com os quais somos levados a simpatizar (ou, ao menos, a nos compadecer deles), como Colin Wall, um homem cujo passado esconde um segredo terrível, e que parece estar procurando fazer a coisa certa como uma forma de se redimir, mas é prejudicado por uma insegurança de dar pena (como alguém assim pode ter chegado a vice-diretor de escola, é coisa que não consigo imaginar); outros são absolutamente repulsivos, como Samantha, a desmiolada e fútil mulher de Miles Mollison, que parece pensar que pode retardar a chegada da meia-idade comportando-se como uma adolescente birrenta, e adora fazer pequenas maldades, geralmente colocando de propósito outras pessoas em situações embaraçosas. A autora entra na mente de todos os personagens e expõe ao leitor, de forma crua, todos os seus orgulhos tolos, mágoas ridículas e motivações tacanhas. Acho particularmente doloroso, em especial por ser (também) um retrato da realidade, ver que a grande maioria dos jovens não guarda sequer o mais longínquo traço de respeito por seus pais ou professores – ainda que alguns pais que aparecem no livro não façam mesmo por merecer. Isso não me deixa nada otimista quanto ao futuro da sociedade em geral.

Barry Fairbrother, aparentemente, era a melhor pessoa de Pagford, caracterizado pelo bom humor, pelo altruísmo e por uma reserva inesgotável de autoconfiança (é verdade que, quando uma pessoa acaba de morrer, todo mundo parece sentir um impulso de falar bem dela). Além de lutar para que Fields continuasse pertencendo ao distrito, ele tinha especial interesse em manter funcionando a clínica Bellchapel, que trata dependentes químicos – dos quais Fields, inegavelmente, está cheio – e cujo fechamento também está na pauta de Howard Mollison e seus aliados. Entre suas muitas atividades destinadas a beneficiar o próximo, Fairbrother também era técnico de uma equipe feminina de remo, formada por alunas de Winterdown, garotas que ficaram meio órfãs com sua morte. Uma delas em particular, Krystal Weedon, sente-se mais que meio órfã, já que Fairbrother parecia ser o que ela conhecia de mais parecido com uma figura paterna. Krystal mora em Fields com um irmão pequeno e a mãe, Terri, uma viciada barra-pesada que já passou diversas vezes pela clínica e sempre recaiu – e enfrenta todas as agruras dessa situação. No decorrer da história, Krystal se envolve (leia-se "começa a transar de forma inconsequente") com um garoto conhecido como "Bola" Wall – um apelido irônico, já que ele é bem magro –, considerado por muitos como o cara mais "descolado" da escola. Bola é filho do vice-diretor Colin Wall e da orientadora educacional Tessa, e um dos piores elementos a frequentarem Winterdown atualmente. Não que se rebaixe a ser um arruaceiro comum: suas maldades são engenhosas e sempre terminam com ele saindo incólume. Especial prazer Bola sente em atormentar Sukhvinder Jawanda, outra das remadoras da equipe de Fairbrother e filha de um casal de médicos paquistaneses que residem em Pagford, sendo que a mãe também integra o conselho distrital. Sukhvinder talvez seja a personagem mais digna de compaixão no livro: embora sua família seja próspera e benquista no vilarejo, a garota sofre tanto com as cobranças implacáveis da mãe no tocante aos estudos (ela tem dislexia, mas a mãe a considera simplesmente preguiçosa) quanto com a perseguição de certos colegas por causa de sua aparência pouco atraente. Bola, o pior de todos, mostra-se incansável e surpreendentemente criativo quando se trata de humilhar Sukhvinder, e, é claro, isso faz com que seu fã-clube o admire cada vez mais.

Desse fã-clube faz parte Andrew Price, que, além disso, é o melhor amigo de Bola. Andrew não parece achar tanta graça no que Bola faz com Sukhvinder, mas não move um dedo para defendê-la, já que isso significaria ser "do contra" e arriscar-se a perder a aceitação do grupo – o pior pesadelo de um adolescente. De alguma forma, ele entende o que a garota passa, pois não é tão diferente do que ele próprio, sua mãe e o irmão mais novo vivem em casa: o pai de Andrew, Simon Price, gerente de uma gráfica, é um completo idiota, que mantém a mulher e os filhos sob um estado de terror perene, com constantes humilhações e ameaças. Quando Simon mete na cabeça que também vai lançar uma candidatura à vaga no conselho, Andrew considera isso a gota d'água e decide sabotar os planos do pai. Como fará isso? Só adianto que tem a ver com as maravilhas da internet, um universo ainda misterioso para os mais velhos, mas pelo qual os adolescentes transitam tão à vontade quanto peixes na água. E que a sabotagem de Andrew vai iniciar uma reação em cadeia, que dará muito mais pano para as mangas do que ele alguma vez imaginou.

Em outro departamento de sua vida, Andrew está completamente fascinado (até aquele ponto em que um rapaz fica um tanto abobado) por uma nova e linda colega, Gaia Bawden, que acaba de se mudar de Londres com a mãe e, vejam só, por mais improvável que isso pareça, faz amizade não com as garotas bonitas e populares, mas justamente com a tímida e feiosa Sukhvinder Jawanda. A mãe de Gaia, Kay Bawden, calha de ser a assistente social encarregada do acompanhamento da família Weedon… Coisas de cidade pequena. O que levou Kay a mudar-se de Londres para Pagford foi seu affair com Gavin Hughes, um jovem advogado que trabalha com Miles Mollison, era amigo de Barry Fairbrother, e, desde a morte dele, parece estar desenvolvendo um novo tipo de interesse por sua viúva, Mary, a quem ajuda com as providências legais para o recebimento do seguro de vida do marido…

Eu poderia ir muito mais longe pulando de personagem em personagem, mas não acho necessário; isso já é uma amostra suficiente do tremendo emaranhado de relações e interações que faz parte de Morte Súbita. Um emaranhado capaz de desnortear completamente um narrador menos hábil, o que transformaria a trama numa bagunça, mas J. K. Rowling não deixa em momento algum que as rédeas lhe escapem das mãos. Sua técnica narrativa, que era apenas mediana nos primeiros volumes de Harry Potter, e já havia evoluído muito nos últimos, parece estar em contínuo aperfeiçoamento, garantindo que o leitor fique preso página após página, mesmo que o tema seja banal se comparado àquilo que estávamos acostumados a receber dela. Embora todos nós saibamos (e ela própria, sem dúvida, melhor que ninguém) que o estigma de "autora de Harry Potter" irá acompanhá-la até o túmulo e muito além, Rowling parece determinada a explorar outras searas e a procurar não ficar marcada como autora de um sucesso só, de modo que ficamos, desde já, curiosos pelo que mais pode estar vindo por aí.

quinta-feira, outubro 15, 2015

O Império dos Dragões

No ano 260 d.C., a cidade romana de Edessa, na Anatólia (correspondente a parte da atual Turquia) está sob cerco do exército persa. Dentro de suas muralhas, o bom imperador Valeriano espera por reforços, quatro legiões que estão vindo do oeste, conduzidas por seu filho Galieno, mas acaba por ficar evidente que o socorro não chegará a tempo de evitar que a população e as tropas aquarteladas na cidade pereçam devido à fome. Então chega uma mensagem de Shapur I, rei dos persas, propondo um encontro para discutir condições para o fim do cerco e a instauração da paz na região. Contrariando os conselhos do experiente legado Marco Metelo Áquila (o "Comandante Águia", como é chamado por seus homens), o imperador aceita o convite. Uma vez que suas advertências não deram resultado, Metelo insiste para que Valeriano lhe permita acompanhá-lo, no que é atendido.

Infelizmente, Metelo Áquila estava certo em desconfiar: o convite era uma armadilha. O imperador cai prisioneiro dos persas, e, com ele, Metelo e mais dez homens de sua legião, a Segunda Augusta (não tenho certeza se a presença da Augusta na Anatólia na segunda metade do século III é histórica; não encontrei registros nesse sentido, mas também nenhuma evidência em contrário). Não se sabe mais nada de Valeriano depois disso; ele pode ter sido executado pelos persas logo em seguida, ou pode ter vivido anos no cativeiro.

Tal como já o fizera em A Última Legião, Valerius Maximus Manfredus… perdão, Valerio Massimo Manfredi aproveita-se do final reticente da biografia de um imperador romano para explorar possibilidades surpreendentes numa obra de ficção. Porém, diferente do que acontecia naquele livro, neste o imperador em questão não vê o fim da jornada. O grupo é levado para uma mina de turquesas no coração do Império Persa – e ir para uma mina era um dos piores destinos que alguém podia ter na época. As condições insalubres, a alimentação miserável e os maus-tratos cobram seu preço de todos, mas Valeriano, devido à idade, sofre mais, e acaba não resistindo – ele e um soldado cuja fé cristã atrai a antipatia dos feitores persas, valendo-lhe uma dose extra de castigos físicos. À parte essas duas baixas, o restante do grupo insiste em agarrar-se à vida, até que, quando se dão conta, estão trabalhando na mina há mais de um ano, o que já é bem mais do que a maioria sobrevive em tal lugar. Quando conseguem fugir, isso é um feito inédito, só alcançado graças à ajuda de um prisioneiro veterano, o único que está lá há mais tempo que eles. Os conselhos do velho de nome Uxal e seu conhecimento do terreno, aliados à determinação dos romanos e sua capacidade para agir em equipe, permitem ao grupo escapar da mina, mas isso é apenas o começo de sua odisseia, que segue com uma exaustiva e perigosa fuga pelo deserto, caçados pelos persas. Num entreposto comercial, perto de onde o rio Khaboras (hoje conhecido como Khabur, na Síria) deságua no legendário Tigre, encontram um mercador indiano que os contrata como escolta para sua caravana, que, a partir daí, segue viagem pelo rio. Em tal companhia, Metelo e os outros chegam à foz do Tigre, no Golfo Pérsico, e, mais tarde, ao Oceano Índico, em cujas águas, até então, pouquíssimos europeus navegaram.

O plano original é separarem-se aí; os romanos esperam encontrar um navio que os leve rumo ao oeste e de volta para casa, enquanto Daruma, o indiano, seguirá ainda mais para o oriente, rumo ao misterioso país da seda, que, nos mapas romanos, é designado, de forma vaga, como Sera Maior – um lugar sobre o qual Roma, e o ocidente em geral, sabem muito pouco. Porém, é época de monção: durante os seis meses seguintes, ventos fortes e constantes soprando rumo ao leste tornarão impossível navegar em qualquer outra direção; Metelo e seus companheiros teriam que escolher entre ficar esse tempo esperando em alguma vila litorânea, sem conhecer o idioma local e quase sem dinheiro, ou tentar fazer o trajeto por terra, o que levaria talvez um ano ou mais, sem mencionar os incontáveis perigos, o fato de não conhecerem o caminho e, é claro, a vigilância dos persas. Daruma, então, lhes propõe o seguinte: os dez romanos podem continuar em sua função de escolta até que a caravana chegue a seu destino; promete-lhes pagamento generoso e, ao final, providenciar-lhes a viagem de volta. Considerando as poucas opções de que dispõem, Metelo e os outros aceitam.

Quando esse acordo é feito, Metelo já percebeu que Daruma não é um comerciante comum. A carga mais preciosa a viajar em sua caravana e em seus navios não é a mercadoria que leva, e sim um jovem cuja aparência só não é mais exótica que seus modos. Ele diz chamar-se Dan Qing e ser um príncipe chinês, que, depois de um bom tempo como refém dos persas, está retornando a seu país, onde o trono que seria seu por direito foi usurpado. Mesmo sozinho, o príncipe espera retomar o que lhe pertence e devolver a paz a seu império dividido. Dan Qing foi educado em certas misteriosas artes orientais, que combinam filosofia e combate, possuindo habilidades que, aos olhos dos soldados romanos, parecem quase sobre-humanas. Entre ele e Metelo, a despeito de uma interação, a princípio, muito fria e formal, vai gradualmente surgindo o mútuo e natural respeito entre dois homens bravos, semelhantes em essência, apesar de virem praticamente de mundos diferentes, com um abismo de distância e de cultura a separá-los. Acompanhando Dan Qing, Daruma e seus homens, o pequeno grupo de legionários desgarrados irá entrar num mundo exótico, além de sua imaginação, ver inúmeras maravilhas da natureza e da arte, e, também, envolver-se em conflitos de poder e em diversos outros tipos de perigos. Já contei o suficiente, mais que isso seria spoiler, mas podem ter certeza de que as possibilidades abertas por esse enredo são tão enormes e empolgantes, que facilmente renderiam uma série em vez de um único livro.

O Império dos Dragões é mais uma bela história de Valerio Massimo Manfredi, sem dúvida um excelente entretenimento, e também me ensinou um pouco sobre a situação do Império Romano no século III, período do qual não se fala muito… Mas qual será a probabilidade de que essa ficção esteja calcada em algo de verídico? O que Roma e a China sabiam uma da outra nessa época? Será possível que os dois impérios tenham interagido de algum modo?

Por tudo o que sabemos de seguro, com base em registros fiáveis, tanto do ocidente quanto do oriente, parece que os romanos tinham noções muito vagas a respeito da China, e vice-versa – cada uma dessas civilizações pensava na outra como pouco mais que um lugar lendário, inimaginavelmente distante, que podia existir ou não. Apesar disso, a interação acontecia, embora de modo indireto. Sabe-se que os mercados mais refinados de Roma ofereciam especiarias, seda e jade trazidos da China, o que não significa que algum mercador tivesse feito todo o percurso – esses produtos, provavelmente, eram comprados e vendidos pelo menos meia dúzia de vezes desde o seu local de origem até a venda ao consumidor final, o que era mais um motivo para que seus preços fossem proibitivos para todos com exceção dos mais ricos. Entretanto, não é impossível que, em algum momento da Antiguidade, uma conspiração de eventos, jamais prevista por ninguém, tenha levado esses dois mundos distantes a entrarem em contato de outras formas.


Rumores sobre a presença de contingentes militares romanos na antiga China circulam há séculos, e investigações feitas nos tempos modernos chegaram a fornecer-lhes certo respaldo, ao menos aparente. Depois da batalha de Carras, em 53 a.C. – uma das piores derrotas sofridas pelo exército romano em sua longa história –, cerca de dez mil legionários (ou seja, o equivalente a duas legiões inteiras) foram feitos prisioneiros pelos inimigos partas, e nunca mais o ocidente ouviu falar deles… Até meados do século XX, quando alguns historiadores ingleses levantaram uma hipótese, no mínimo, curiosa. Esses pesquisadores examinaram registros chineses sobre a batalha de Zhizhi, travada em 36 a.C., em algum lugar do atual Cazaquistão, entre as forças do Império do Centro (que era como a China chamava a si própria) e um povo que eles chamavam de Xiongnu, e que eram provavelmente os citas, cavaleiros nômades que habitavam as estepes de partes das atuais Rússia e Ucrânia. Nessa batalha, segundo tais registros, os Xiongnu contavam com uma infantaria pesada que lutava numa formação que os chineses nunca tinham visto; nela, os soldados posicionavam seus escudos numa configuração semelhante à de escamas de peixe. O ponto é: os citas, como outros povos acostumados a viver e morrer sobre seus cavalos, consideravam desonroso lutar a pé; seus exércitos eram compostos principalmente por arqueiros montados. Portanto, se os tais Xiongnu eram mesmo os citas – como parece ser o mais provável –, isso levanta a questão de qual seria a origem dessa infantaria. Os pesquisadores pensaram o mesmo que eu teria pensado no lugar deles: essa parte sobre os escudos dispostos "como escamas de peixe" parece uma descrição bastante boa da manobra que os legionários romanos chamavam de testudo ('tartaruga'), e, afinal, a batalha de Zhizhi foi apenas 17 anos depois da de Carras… É plausível, ao menos em tese, que os partas tivessem vendido os romanos capturados como soldados-escravos para os citas, seus vizinhos do norte, ou que ao menos parte dos legionários tivessem, de alguma forma, recuperado sua liberdade, e, ante a quase impossibilidade de voltarem para casa, passassem a ganhar a vida como mercenários.

Já se apontaram, como uma possível evidência a favor dessa teoria, as curiosas características étnicas dos habitantes da pequena cidade de Liqian, no norte da China, muitos dos quais têm olhos azuis ou esverdeados, cabelos alourados e estatura mais alta que a comum na região… Acontece que essas características nunca foram típicas dos romanos, um povo originalmente de estatura mediana, olhos e cabelos escuros. Por outro lado, as legiões não eram formadas só por romanos "da gema": para alistar-se, bastava ter cidadania romana e falar um pouco de latim. Você podia ser cidadão romano sem nunca ter posto o pé na Itália e mesmo que seu biotipo estivesse mais para celta ou germânico: bastava que seu pai, avô, bisavô ou outro ancestral tivesse sido romano, e que, desde então, tivesse havido uma linha ininterrupta de descendentes masculinos. Havia até os que eram cidadãos sem terem um pingo de sangue italiano – eram aqueles cujos pais ou avós haviam servido nas tropas auxiliares, pois, ao darem baixa, esses soldados de origem bárbara recebiam a cidadania romana, que era transmitida aos descendentes. Ou seja, as legiões tinham, sim, a sua quota de soldados altos e de olhos claros. A história da legião perdida pode ter lá o seu fundamento – ou não. Até o momento, não foram encontradas evidências materiais na região de Liqian, tais como armas ou artefatos de estilo romano, o que seria uma prova mais contundente. Por outro lado (de novo!), a ausência desses objetos não é necessariamente uma contraevidência: se os romanos que supostamente chegaram até lá estivessem entre aqueles aprisionados em Carras, seria muito natural que seus captores partas lhes tivessem tirado qualquer objeto que estivessem levando; mais tarde, ao se reequiparem, os romanos teriam que se contentar com armas e utensílios locais. Talvez alguma coisa de muito empolgante ainda esteja por ser descoberta.

Uma observação final. Eu gosto muito de Valerio Massimo Manfredi, apesar de reconhecer que ele não pode ser considerado um grande escritor do ponto de vista da técnica literária; seu métier, originalmente, eram História e arqueologia, e foi a partir disso que chegou à literatura, sem ter tido, até onde sei, um treinamento formal para tanto. Seus diálogos raramente são brilhantes, e os personagens carecem de profundidade e individualidade, mas, mesmo com essas limitações, o cara tem boas ideias e a energia necessária para fazê-las render. Para quem, como eu, é apaixonado por História em geral e pela Antiguidade em particular, seus livros sempre serão interessantes. Pena que, como já acontecia em A Última Legião, também no caso de O Império dos Dragões nem o tradutor Mario Fondelli nem seu revisor (cujo nome não é creditado) parecem ter a mínima noção acerca de como conjugar verbos nas pessoas tu e vós, de modo que a tentativa de dar um ar "de época" às falas dos personagens resulta em coisas realmente horríveis.


sexta-feira, setembro 04, 2015

Deuses e Heróis

Conta-se que Escopas, homem nobre e importante da região grega da Tessália, pediu ao afamado poeta Simônides de Ceos que compusesse uma ode em louvor a suas vitórias – que podem ter sido no campo de batalha ou em competições atléticas; as fontes divergem. Tratava-se de uma prática comum na época: poetas eram solicitados a compor obras sobre o tema que lhes fosse proposto, recebiam por isso, e era assim que muitos deles ganhavam a vida. A ode deveria ser entoada num banquete que Escopas planejava oferecer. Chegado o dia, ao lhe ser pedido que apresentasse o poema, Simônides levantou-se com sua lira e cantou uma das mais belas odes já ouvidas na Tessália, celebrando as vitórias de seu anfitrião. (Não estranhem se uso "cantar" em vez de "declamar"; na época, os poemas eram realmente cantados, pois não se fazia distinção entre poesia e música.) Para obter um melhor efeito lírico, o poeta ornamentou a obra com menções aos feitos dos admiráveis gêmeos Castor e Pólux, filhos de Zeus e Leda, irmãos da célebre Helena de Esparta, mais conhecida como Helena de Troia.

Seria de se imaginar que qualquer homem razoável se sentisse honrado por ter seu nome citado lado a lado com os de tão insignes heróis, mas, infelizmente, Escopas era do tipo egocêntrico. Queria a admiração de seus convivas toda para si, e não estava disposto a partilhá-la, nem mesmo com os legendários filhos de Zeus, de modo que não lhe agradou o que estava ouvindo. Quando Simônides, tendo terminado de cantar, dirigiu-se a ele para receber sua recompensa, Escopas pagou-lhe metade da soma combinada, dizendo-lhe, em tom de troça, que cobrasse o restante de Castor e Pólux. Simônides, decepcionado e ofendido, retornou ao seu lugar em meio à zombaria geral dos convidados.

Pouco mais tarde, um dos servos de Escopas entrou no salão de banquete e avisou a Simônides que estavam lá fora dois jovens a cavalo, que diziam ter de lhe falar com urgência. Saindo, o poeta não encontrou ninguém à sua espera, mas repentinamente o teto do salão veio abaixo, matando Escopas e seus convidados. Depois de pedir ao servo mais detalhes sobre a aparência dos jovens que o haviam procurado, o desconcertado Simônides convenceu-se de que não eram outros senão os próprios Castor e Pólux. A história termina dizendo que os corpos dos comensais do banquete ficaram tão desfigurados, que seus familiares não conseguiam identificá-los para poder dar a cada um os ritos funerários devidos, mas Simônides lembrava o nome de cada um dos presentes e o exato lugar onde ele estava sentado, e, graças a isso, todos os corpos puderam ser identificados.

Essa bela história talvez não seja verídica (embora eu não a desacredite totalmente: considero uma rematada tolice duvidar de que maravilhas possam mesmo acontecer), mas, seja ou não, ela ilustra bem um fato curioso acerca dos grandes poetas da Antiguidade: suas vidas tendem a fundir-se com a própria mitologia que lhes servia de tema, de modo que para nós, hoje, eles acabam por ser figuras quase tão legendárias quanto os heróis cujos feitos celebravam. Assim foi com o maior de todos, Homero, a quem são atribuídas a Ilíada e a Odisseia, e com outros que vieram depois – entre eles Simônides, o protagonista de Deuses e Heróis.

Mary Renault, cujo Rei Morto, Rei Posto já tive oportunidade de comentar, conduz a nós, seus leitores, em outro mergulho na Antiguidade Clássica, embora, desta vez, a um período histórico posterior e bem diferente daquele em que tiveram lugar as façanhas do herói Teseu. Simônides viveu aproximadamente de 556 a 468 a.C., numa Grécia mais civilizada e de instituições já consolidadas, e, por consequência, uma Grécia que podia dedicar mais atenção às artes, fato que é bem retratado no romance. O que, é claro, não significa que as guerras tivessem ficado no passado – nem as guerras contra inimigos externos, no caso o Império Persa, nem as guerras locais, entre diferentes cidades-estado gregas, coisa que permeou praticamente toda a história da Grécia Antiga e impediu o êxito de diversas tentativas de unificação política entre os povos de língua e cultura helênicas. Simônides, por sinal, foi o autor do famoso epitáfio gravado no monumento erigido em homenagem a Leônidas e seus trezentos espartanos ("Ide dizer a Esparta, ó estranhos que passam / Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos."), aliás, um dos poucos fragmentos de sua obra que chegaram até nós, infelizmente. Tampouco são conhecidos muitos detalhes de sua biografia, de modo que a autora teve de fazer o que fazia tão bem: mesclar a informação histórica disponível com o produto de sua própria imaginação. O livro é um mosaico de eventos factuais e fictícios e de personagens históricos e inventados, sendo que estes últimos não parecem menos convincentes que os primeiros, e a interação entre todos é perfeitamente plausível. Quer dizer, parte do que aqui lemos efetivamente aconteceu – e o restante poderia ter acontecido.

A narrativa segue um esquema semelhante ao de Rei Morto, Rei Posto: um Simônides já idoso, aproximando-se do final de uma carreira prestigiosa, parece sentir que é chegado o momento de contar suas memórias, e essa história tem início na ilha de Ceos (hoje Kea), uma das Cíclades. Seu pai, Leoprepes, era um homem de posses para os padrões da ilha e um de seus cidadãos mais proeminentes, o que não significa que não trabalhasse duramente, ou que seus filhos pudessem, em princípio, esperar da vida muito mais que isso. Para maior azar de Simônides, ele era o filho varão mais jovem, além de agraciado pela natureza com um tipo físico pouco admirado entre os ilhéus, e entre os gregos da etnia jônica em geral: baixo e magro, embora de boa constituição; pele morena e cabelos negros, sem falar num rosto não exatamente atraente, enquanto seu irmão, Teásides, era o jovem heleno perfeito sempre retratado por pintores e escultores – alto, loiro, belo e atlético. Só isso já teria bastado para definir o papel de cada um: Teásides era o filho de quem os pais esperavam que os enchesse de orgulho e trouxesse honra ao nome da família; já Simônides, se dependesse dos planos deles, nunca iria muito além de ser um trabalhador não remunerado nas lavouras e rebanhos do pai. Apesar disso, os dois irmãos se dão bem; na verdade, Teásides parece ser o único a dedicar a Simônides alguma atenção e afeto.

Durante a infância e início da adolescência, Simônides exerce a ocupação mais icônica possível para um menino grego: a de pastor. E, como todo pastor, tem por hábito cantar e tocar flauta para preencher as longas horas vazias vigiando os carneiros que pastam. É dessa forma que descobre seu talento, pois possui uma voz naturalmente afinada, e, tão importante quanto isso para um poeta da época, uma ótima memória. Entretanto, por muito tempo, ele guarda só para si sua ambição de ser poeta, e acaba por amargurar-se, já que, vivendo na rústica Ceos, e ainda sendo o filho desprezado de um pai severo e austero, realizar esse sonho parece impossível. Sua sorte muda quando um poeta de nome Cléobe, de passagem pela ilha, se apresenta no casamento de um homem importante da comunidade – e o velho Leoprepes lá está como convidado, levando toda a família, até mesmo o filho feioso que geralmente é deixado em casa. O jovem acaba sendo aceito como ajudante e aprendiz pelo artista, e em sua companhia deixa Ceos, aos 14 anos, para tentar a sorte na carreira escolhida.

Cléobe vem a ser mais pai para Simônides do que Leoprepes alguma vez o foi, ensinando-lhe seu ofício com dedicação e paciência. Mesmo quando fica evidente que o rapaz é um talento dos grandes, jamais demonstra ciúme, nem qualquer receio de ser superado pelo discípulo. Natural de Éfeso, o velho bardo possui uma casa e certo patrimônio nessa cidade, mas a vida de um poeta, naquela época, era uma vida errante, sujeita a todas as agruras que podem atingir os que não têm pouso certo. Durante os primeiros anos a serviço de seu novo mestre, Simônides conhece boa parte da Grécia insular e continental, passa por apertos de todos os tipos, e, principalmente, aperfeiçoa sua arte, amplia seu repertório e conhece pessoas interessantes. Seu aprendizado prossegue em Éfeso, onde mestre e discípulo se fixam por algum tempo, e de onde acabam fugindo (assim como grande parte da população) por causa da ameaça da invasão persa. O novo domicílio dos dois é a cidade de Samos, na época, provavelmente, a mais rica do mundo helênico, embora não a de maior efervescência cultural: essa já era então, como ainda o seria por muito tempo, Atenas. Samos é governada pelo tirano Polícrates (a palavra "tirano", na origem, não tinha o sentido que hoje lhe atribuímos: significava apenas um governante que tivesse chegado ao poder pelos próprios meios, e não por herança ou por eleição regular). Lá, Simônides começa, aos poucos, a atuar de forma profissional, embora não de um jeito que seu mestre considere particularmente honroso: cantando numa taberna. Mesmo não sendo muito bem vista, essa ocupação lhe permite garantir seu pão de cada dia, e, não menos importante que isso, fazer muitos contatos, o que era outra coisa da qual um poeta grego daqueles tempos não podia prescindir.

Não obstante, é em Atenas, já com 20 e poucos anos, que o jovem poeta vê sua carreira decolar de verdade, em grande parte graças à proteção e incentivo de outro tirano, Pisístrates, que, no entanto, é muito diferente de Polícrates. Enquanto o tirano de Samos parece apadrinhar artistas da mesma forma como adquire objetos preciosos (ou seja, por mera exibição de riqueza e poder), Pisístrates é um real admirador das artes em geral e da poesia em especial. Há um trecho particularmente interessante, que reproduz uma conversa da qual participam o tirano, seu filho Hiparco, e Simônides, e que demonstra a preocupação dos dois primeiros com a preservação das grandes obras poéticas, que, na época, eram transmitidas apenas oralmente e conservadas de memória. Nunca passou pela cabeça de Simônides que as obras de Homero, por exemplo, pudessem ser perdidas – ele próprio sabe de cor a Ilíada e a Odisseia (que, juntas, têm mais de 27 mil versos), e, embora seja alfabetizado, jamais considerou a possibilidade de escrever nem os poemas que aprendeu, nem os seus próprios: para ele, a escrita é para fins práticos e prosaicos, como a contabilidade da fazenda de seu pai. Poesia deve ser guardada somente no espaço entre as duas orelhas, como ele diz; isso é questão de orgulho não só para ele, mas para a maioria dos poetas da época… E, se me for permitida uma observação pessoal, devo dizer que, embora ser capaz de declamar toda a obra de Homero de cor seja, sem dúvida, um feito formidável e digno de admiração, é difícil não ter vontade de xingar um pouco esses sujeitos quando penso no sem-número de obras deslumbrantes que certamente desapareceram para sempre, só porque alguém, um dia, por orgulho, recusou-se a registrá-las por escrito. Baquílides, sobrinho e discípulo de Simônides, parece ter sido um dos primeiros poetas a romper com esse preconceito e passar a escrever, o que o tio acaba aceitando, sem nunca verdadeiramente aprovar.

(Observe-se também, apenas de passagem, que "entre as duas orelhas" é um anacronismo de linguagem, pois, na época, ainda não se sabia que o cérebro era o responsável pela inteligência e pela memória; a teoria mais aceita era a de que essas funções fossem do coração. Quanto à questão de para que o cérebro realmente servia, as opiniões se dividiam. Aristóteles, um dos maiores filósofos gregos, que viveu cerca de um século depois do tempo de Simônides, acreditava que ele funcionasse como uma espécie de radiador, dissipando o excesso de calor do organismo; outros atribuíam à massa cinzenta funções ainda menos nobres, como a de produzir o muco que lubrifica nossas vias respiratórias.)

Pisístrates é um governante justo, que ganha a admiração e o respeito de Simônides, assim como da maior parte dos atenienses, e, quando morre, seus filhos parecem ser capazes de, juntos, dar continuidade ao trabalho do pai. Eles recebem o título de arcontes – o arcontado era uma assembleia formada por nove cidadãos eminentes, que partilhavam entre si as responsabilidades do governo –, embora todos saibam que têm, na prática, muito mais poder que seus pares. Hípias, o mais velho, é mais sisudo e preocupado, enquanto o outro, Hiparco, é um homem que gosta de aproveitar a vida e de cercar-se de companhias agradáveis. Não que seja dado a orgias ou excessos, pelo menos não de modo habitual; Simônides o estima, e, aos poucos, a relação de ambos extrapola a de artista e mecenas, transformando-se em verdadeira amizade. Não há motivo algum para que o poeta se importe com a queda que Hiparco tem por belos rapazes, nem com o hábito dele de ter sempre um favorito partilhando de seu divã nos banquetes, e, mais tarde, sem dúvida, também seu leito. Esses favoritos estão sempre mudando, cabendo a cada um deles um "reinado" de poucos meses, de modo que, por tudo o que Simônides pode ver, seu amigo não tem propensão a formar laços sentimentais, e ainda menos a qualquer tipo de fixação ou obsessão. Porém, os seres humanos nunca deixam de nos surpreender, e isso era tão verdadeiro na Grécia de 2500 anos atrás quanto o é hoje.

Na época em que Simônides viveu, relacionamentos homoafetivos eram vistos com naturalidade entre a alta sociedade (não entre a população em geral) na maioria das cidades gregas, mas existiam certas regras não escritas que deviam ser observadas. Havia uma distinção bem clara entre "amante" e "amado". O amante (erastes) era um homem adulto, normalmente na casa dos 30 ou 40 anos, já estabelecido socialmente e quite com a obrigação de assegurar a continuidade da família – quer dizer, geralmente um homem casado e com filhos. O "amado" (eromenos – pronuncie como proparoxítona) era um efebo (adolescente). O primeiro oferecia o afeto, o segundo o recebia – não era uma via de mão dupla, ao menos não em teoria. Não era bem visto que o parceiro mais jovem correspondesse; ser alvo das atenções do mais velho era visto como uma honra, especialmente se ele fosse alguém de alta posição social, mas não como um prazer. Se a reciprocidade existisse, era de bom tom que só fosse manifestada em privado. Tais relacionamentos podiam, ou não, incluir intercurso sexual. O mais importante era o que o eromenos podia aprender com o erastes, principalmente no que se referia a aprimorar o traquejo social, a conhecer pessoas e ingressar em certos círculos, o que iria repercutir em toda a sua futura vida social – ter um erastes com influência e contatos podia colocar o jovem no caminho de uma carreira bem-sucedida. Por fim, era considerado louvável que o erastes mantivesse uma visão realista das coisas, abstendo-se de se apaixonar pelo jovem parceiro, uma vez que esse tipo de relação tinha prazo de validade, devendo acabar quando o rapaz deixava a puberdade, já que, a partir daí, ele passaria a ter outras coisas das quais se ocupar, como a carreira e o casamento, até chegar aos 30 e poucos anos, idade em que estaria apto a tornar-se erastes de seu próprio eromenos. De qualquer forma, o normal era que uma ligação desse tipo durasse alguns anos; não era frequente que um mesmo homem vivesse a experiência mais que duas ou três vezes ao longo da vida, pois não era visto como adequado continuar a ter esse comportamento depois de uma certa idade. A alta rotatividade de favoritos no divã de Hiparco era uma exceção, tolerada porque naquela época, como hoje, os poderosos eram vistos como pessoas a quem era permitido transgredir certas convenções.

Simônides, ao menos na versão de Mary Renault, não se envolve com nada disso – sua conduta parece ser estritamente heterossexual, seja por ter sido criado em meio aos costumes austeros de Ceos, ou apenas por uma questão de preferência pessoal. Mesmo suas relações com mulheres não são muitas, em parte devido a sua intensa dedicação a sua arte, em parte por causa de traumas da juventude, ligados à rejeição que não poucas vezes sofreu por causa de sua feiura – que, aliás, em sua opinião, teve o lado bom de mantê-lo fora da mira dos apreciadores de efebos. Porém, ele acaba sendo testemunha de uma ocasião em que uma relação erastes/eromenos abalou a sociedade ateniense. Os protagonistas do episódio são o jovem Harmódio, filho de uma família ateniense antiga e tradicional, e Aristogíton, atleta de certo renome. Harmódio é de uma beleza extraordinária, o que nem sempre é uma sorte; em seu caso, atraiu o azar de chamar a atenção de Hiparco, que fica obcecado pelo rapaz, a ponto de aparentemente já não comer ou dormir direito (observações de Simônides, a cujos olhos atentos não escapa a aparência abatida e febril de seu amigo). Seja porque seu coração já pertence a Aristogíton, ou porque lhe repugna a ideia de ceder ao assédio de Hiparco a troco de ascensão social, ou simplesmente porque o arconte não lhe agrada – e talvez por tudo isso –, o fato é que Harmódio repetidamente repele as investidas amorosas que vai recebendo, o que acaba levando Hiparco ao desespero, e a chegar a um ponto do qual Simônides jamais o julgaria capaz: o de tentar vingar-se do jovem adotando represálias contra sua família. Isso tudo conduz a um desenlace desconcertante e terrível.

O livro termina com esse incidente, que teve lugar quando Simônides tinha pouco mais de 40 anos, sendo que ele viveria até próximo dos 90; o poeta ainda viajaria muito, viveria em diferentes lugares (Tessália, novamente Atenas, e por fim a Sicília, na época colônia grega, onde terminaria seus dias) e foi contemporâneo de muitos eventos importantes da história grega, além, é claro, de ter composto inúmeros poemas, que, infelizmente, nunca leremos. Portanto, se Deuses e Heróis tem um defeito, é o de ser curto demais. Acompanhar a prosa de Mary Renault é um prazer difícil de descrever, especialmente numa boa tradução, feita por alguém que, mais que o mero domínio das línguas inglesa e portuguesa, também tinha cultura para compreender as inúmeras referências históricas e mitológicas presentes no texto, e tratá-las de forma adequada: registro aqui todo o meu respeito ao Sr. Donaldson M. Garschagen, um tradutor de verdade, de um tipo que quase não existe mais. Também cabe avisar que essa mesma cultura, bem como a capacidade de apreciar uma linguagem elaborada, será muito útil a quem desejar ler o livro.

O fato de Simônides ter vivido durante um dos períodos mais importantes para o desenvolvimento intelectual da Grécia não passa em branco. Ao longo da narrativa, o protagonista tem oportunidade de interagir com um expressivo punhado de figuras relevantes: poetas como Laso, Íbico, o já citado Baquílides, e, de modo especial, Anacreonte, este um de seus melhores amigos; o arquiteto e escultor Teodoro; o filósofo e matemático Pitágoras; e o dramaturgo Ésquilo. Todos pessoas reais, alguns mais famosos, outros menos, mas todos tendo contribuído de forma valiosa para o engrandecimento da cultura grega, e, por consequência, de toda a cultura ocidental – na época, hoje e para sempre.

Uma curiosidade final: entre as lembranças esparsas que vão surgindo enquanto ele conta sua história (algo que esperaríamos de um homem idoso), o Simônides de Mary Renault nos oferece uma versão um pouco diferente da história do banquete de Escopas, que eu contei no início deste post; uma versão mais simpática a Escopas, e na qual o elemento sobrenatural aparece atenuado, de modo que o leitor pode, se o preferir, atribuir a salvação da vida do poeta a uma coincidência providencial. Se admitirmos que essa versão foi a que de fato aconteceu, então aquela outra certamente recebeu uma adaptação, destinada a fazer dela uma fábula com conteúdo moral. A verdade nunca será conhecida, mas, seja como for, eu me permito ter a opinião de que a versão que contei é mais bonita.

E agora é para concluir mesmo: o título original do livro é The Praise Singer, e existe uma outra edição brasileira, da editora Siciliano, que adotou a sua tradução literal, chamando-se O Cantor do Prazer. Eu prefiro o título da edição que tenho, a mais antiga, da Nova Fronteira, publicada em 1984, pois, embora não tenha nada a ver com o título original, ele reflete melhor o espírito da obra de Simônides, que passou a vida cantando sobre deuses e heróis, enquanto O Cantor do Prazer faz parecer que ele se dedicava à poesia erótica… Como eu já escrevi antes, o mais literal nem sempre é o melhor.

quinta-feira, agosto 20, 2015

Crônicas de Gelo e Fogo - A Guerra dos Tronos

– (...) O desertor sabe que sua vida está perdida se for capturado, e por isso não vacilará perante nenhum crime, por mais vil que seja. Mas você não me compreendeu bem. A pergunta não era sobre o motivo por que o homem tinha de morrer, mas sim por que eu tive de fazê-lo.
Bran não tinha resposta para aquilo.
– O rei Robert tem um carrasco – respondeu, em tom incerto.
– Tem – admitiu o pai. – E os reis Targaryen também tiveram antes dele. Mas o nosso costume é o mais antigo. O sangue dos Primeiros Homens ainda corre nas veias dos Stark, e mantemos a crença de que o homem que dita a sentença deve manejar a espada. Se tirar a vida de um homem, deve olhá-lo nos olhos e ouvir suas últimas palavras. E se não conseguir suportar fazê-lo, então talvez o homem não mereça morrer. Um dia, Bran, você será vassalo de Robb, mantendo um domínio seu para o seu irmão e o seu rei, e a justiça caberá a você. Quando esse dia chegar, não deve ter nenhum prazer na tarefa, mas tampouco deverá desviar os olhos. Um governante que se esconde atrás de executores pagos, depressa se esquece do que é a morte.

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Quando as Crônicas de Gelo e Fogo e a série de TV baseada nelas, Game of Thrones, tornaram-se populares no Brasil, e, consequentemente, o nome de George R. R. Martin passou a ser citado com frequência, eu bem que tive a sensação de que já tinha ouvido (ou, bem mais provavelmente, lido) esse nome em algum lugar. Depois de quebrar a cabeça durante um bom tempo, tive um eureka, aparentemente por nenhum motivo em especial, e fui desencavar a minha velha coleção da saudosa Isaac Asimov Magazine, lá do início da década de 90, tempo de minha não menos saudosa adolescência. Bingo: lá estava, na edição número quatro da revista, a história A Flor de Vidro, de autoria de Martin. E, se o nome do autor demorou a "tocar um sino" na minha memória, da história em si eu lembrava bem, pois sempre a considerei uma das melhores publicadas pela IAM brasileira ao longo de todas as suas 25 edições. Era um estupendo conto de ficção científica sobre o qual eu adoraria me estender escrevendo, mas isso fugiria ao escopo deste post; fica para uma próxima vez. Basta dizer que a grandiosidade e a complexidade que caracterizam as Crônicas de Gelo e Fogo já estavam lá, assim como alguns detalhes menores, mas que ajudam a marcar o estilo inconfundível do autor: a sonoridade dos nomes exóticos inventados é semelhante, e, quando ele quer descrever uma figura feminina de beleza etérea, parece ter uma tendência a dar-lhe olhos cor-de-violeta. Porém, é necessário observar que uma obra é de ficção científica, e a outra, de fantasia – dois gêneros muito diferentes. É fato que o público das duas tende a ser o mesmo, e que muitos autores transitam livremente entre uma e outra, mas fantasia e ficção científica têm entre si muito mais diferenças que semelhanças… E, mesmo assim, Martin mostra-se igualmente bom em ambas.

Poderíamos dizer que as Crônicas de Gelo e Fogo têm uma ambientação medieval, mas não se trata da "nossa" Idade Média; a trama se desenrola num mundo fictício. O mundo, em si, não é nomeado (pelo menos, não até onde já li), mas o continente onde se passa a maior parte dos acontecimentos da saga chama-se Westeros, um nome que traz sugestões de "ocidente", e, de fato, ele está localizado a oeste no mapa, com o Mar Estreito a separá-lo do continente vizinho, Essos (nome que sugere "oriente", em inglês East). Essos é muito maior, mas os westerosi pouco conhecem a respeito dele ― ou seja, Essos está para Westeros assim como a Ásia estava para a Europa medieval. Westeros abriga os assim chamados Sete Reinos, que, em tempos idos, eram mesmo reinos independentes, mas, na época em que se passa a história, são meras províncias de um único e vasto reino, de modo que quem usar a coroa governa, na prática, todo o continente, com exceção apenas do que está ao norte da Muralha… E da Muralha, falaremos daqui a pouco, pois poucas palavras não bastam. Ainda a respeito do mundo da saga, há uma peculiaridade importante: nele, a duração das estações é imprevisível. Os verões podem durar anos, e os invernos, o equivalente a uma vida inteira.

Catorze anos antes do início da narrativa, houve uma rebelião na qual diversas casas nobres, aliadas, derrubaram Aerys Targaryen, o Rei Louco. Um jovem cavaleiro de nome Jaime Lannister, que servia na guarda do rei, traiu e assassinou seu senhor, ao mesmo tempo em que se desenrolava a Batalha do Tridente, na qual Robert Baratheon, lorde de Ponta Tempestade, venceu em combate singular o filho mais velho de Aerys, Rhaegar, vindo então a sentar-se no legendário Trono de Ferro como o novo senhor dos Sete Reinos. Robert casou-se com Cersei Lannister, irmã gêmea de Jaime; seu sogro, Lorde Tywin, é o atual chefe da casa Lannister, a família mais rica de Westeros. Jaime e Cersei têm um irmão mais novo, Tyrion — um anão. Desde a infância alvo de desprezo geral por causa de sua condição física, Tyrion procura compensar o fato por meio da inteligência: é o membro estudioso da família, embora seja também um grande apreciador de vinho, farra, jogo e meretrizes.

Até serem depostos, os Targaryen parecem ter reinado durante muito tempo em Westeros; são um clã antigo e orgulhoso, que possui uma misteriosa afinidade com dragões ― em mais de um lugar do livro insinua-se que talvez tenham sangue de dragão nas veias, o que não é de todo absurdo: de acordo com muitas lendas (e também histórias de fantasia), os dragões são conhecedores de magia antiga, e pelo menos alguns deles possuem o poder de tomar a forma humana, podendo, nesse estado, relacionar-se com seres humanos e, possivelmente, até gerar descendência. Em Westeros, os dragões estão extintos, mas sua existência ainda não foi relegada ao status de lenda: os últimos morreram há apenas 150 anos. Poucas gerações antes dos dias em que transcorre a saga, reis da dinastia Targaryen os utilizaram como armas devastadoras em suas guerras. E, não por acaso, o emblema dos Targaryen é um dragão. Os únicos sobreviventes da dinastia são os dois filhos mais jovens do rei Aerys – Viserys, um rapaz, e Daenerys, uma donzela agora com 13 anos. Estão refugiados em Essos, sobrevivendo graças ao auxílio de antigos vassalos dos Targaryen, o que valeu a Viserys a incômoda alcunha de Rei Pedinte; mesmo assim, ele ainda alimenta a ambição de retornar a Westeros, derrubar Robert e ocupar o Trono de Ferro, o espantoso assento real que um de seus ancestrais mandou forjar com mais de mil espadas de inimigos derrotados. Para tentar concretizar essa ambição, Viserys arranja o casamento da irmã com Khal Drogo, um poderoso chefe tribal do povo Dothraki, uma nação de cavaleiros nômades das vastas pradarias de Essos. Em troca, Viserys espera que Drogo lhe dê um exército…

Um dos principais aliados de Robert Baratheon na guerra contra os Targaryen foi Eddard "Ned" Stark, da casa Stark, que controla a vasta e fria região conhecida apenas como o Norte, a parte mais extensa, mas menos povoada dos Sete Reinos. Os dois são amigos desde a juventude, e quase se tornaram cunhados: Robert era apaixonado pela irmã de Eddard, Lyanna. A jovem foi raptada durante a guerra pelo príncipe Rhaegar, e morreu no cativeiro – mais um motivo para o grande ódio de Robert por Rhaegar em particular e pelos Targaryen em geral. E é em torno de Eddard Stark que gira a narrativa neste primeiro volume das Crônicas. Casado com Lady Catelyn, ele tem cinco filhos legítimos. O mais velho, Robb, é um rapaz destemido de 14 anos, que está sendo educado para suceder ao pai como lorde de sua casa; Sansa, de onze, é uma dama por natureza: linda, educada, sonhadora, frágil, e não especialmente esperta; Arya, de nove, é o oposto da irmã, pois se aborrece com costura, mexericos palacianos e bailes, ama o ar livre e sonha em tornar-se uma guerreira; Bran, de sete, é irrequieto e curioso, e tem o perigoso hobby de escalar os velhos muros e torres de Winterfell, a fortaleza dos Stark, indo e vindo pelos telhados e ameias como se fosse um esquilo; e Rickon, o caçula, tem apenas três anos, de modo que é muito cedo para saber o que ele será e o que não será. Além desses filhos legítimos, Eddard tem mais um, ilegítimo ("bastardo", palavra que, embora com conotações ofensivas, é sem dúvida bem mais usada), quase da mesma idade de Robb. Esse chama-se Jon Snow ― não Stark, mas Snow ('Neve'), sobrenome tradicional de filhos bastardos no Norte. Em Westeros, como em toda parte onde existem nobres, é comum que eles tenham filhos fora do casamento, mas, de modo geral, contentam-se em enviar algum dinheiro para suprir o sustento da criança – isso quando não a deixam à própria sorte. Eddard Stark fez diferente. Jon foi criado em Winterfell, junto com seus filhos legítimos e quase em pé de igualdade com eles. O pai, provavelmente, teria desejado que a igualdade fosse completa, mas não poderia fazer isso sem afrontar gravemente Lady Catelyn, que apenas tolera o bastardo, sem esconder que o prefere fora de sua vista. Jon convive com um dilema que envolve sua própria existência: ele admira profundamente o pai, a quem considera o homem mais honrado que conhece – mas, se Eddard não tivesse, ao menos uma vez, faltado para com sua honra, ele, Jon, não existiria. A identidade da mãe de Jon Snow é um dos segredos que mais intrigam os fãs das Crônicas.

Tudo isso são antecedentes. A história que vai ser narrada em A Guerra dos Tronos começa com a morte de Lorde Jon Arryn, senhor do castelo de Ninho da Águia, um homem já de certa idade que foi uma figura importante da rebelião e uma espécie de segundo pai para os jovens Ned Stark e Robert Baratheon, além de ter-se tornado concunhado de Ned ao casar-se com Lysa, irmã de Catelyn. Durante os últimos 14 anos, Jon Arryn ocupou o cargo de Mão do Rei – seu homem de maior confiança, conselheiro mais próximo e, quando necessário, substituto. Agora, Lorde Arryn morreu de forma repentina, supostamente vitimado por uma doença fulminante, mas há quem acredite que ele foi envenenado por ter descoberto algum grave segredo envolvendo pessoas importantes, algo que tais pessoas não iriam querer que chegasse ao conhecimento do rei Robert. O rei, então, vai de visita a Winterfell, com praticamente toda a sua corte (um deslocamento e tanto), a fim de pedir a Ned Stark que assuma o cargo que Arryn deixou vago, o que ele aceita relutantemente, movido apenas pelo senso do dever, pois não deseja o poder e preferiria ficar na terra que ama, em sua casa, com sua família. Robert, que Ned não via há anos, mudou muito; o formidável guerreiro de outrora amoleceu, engordou, e o hábito de abusar do vinho, que antes era ocasional, tornou-se quase diário. Nem mesmo seus amigos mais chegados podem nutrir a ilusão de que ele seja um excelente rei, mas Ned sabe que seu velho amigo é, na essência, um homem decente, e tem esperança de poder ajudá-lo a governar bem. Infelizmente para ele e para muitos outros, a política na capital Porto Real revela-se uma coisa tortuosa e traiçoeira, que a própria natureza honesta de Ned torna-o pouco hábil para enfrentar.

Entre os que comparecem a Winterfell durante a visita do rei está Benjen Stark, irmão de Eddard e membro graduado da Patrulha da Noite. Essa corporação tem uma tradição de séculos defendendo a Muralha, que separa os Sete Reinos das regiões geladas do extremo norte do continente, habitadas por ferozes tribos selvagens – e, segundo alguns, também por gigantes e outras coisas estranhas e perigosas. Quando li sobre a Muralha, imediatamente tive quase certeza de que tinha sido inspirada na Muralha de Adriano (detalhes aqui); mais tarde tive a confirmação, ao ler, em algum lugar da internet, uma pequena matéria na qual George R. R. Martin contava que essa ideia lhe veio quando, durante uma viagem pela região da fronteira Inglaterra/Escócia, visitou as partes da Muralha que ainda estão em pé e ficou imaginando como era a vida dos homens que ali montavam guarda, responsáveis por deter investidas de povos bárbaros e por resguardar a segurança das populações civis atrás deles. Porém, há uma diferença importante: os que guarneciam a Muralha de Adriano eram legionários romanos, soldados de um exército profissional; eram voluntários, altamente treinados e disciplinados, e, além disso, gozavam de um certo status. Já em Westeros, a força que cuida da Muralha é a tal Patrulha da Noite, que até tem em suas fileiras alguns nobres, cavaleiros e voluntários idealistas – mas o grosso das tropas é composto de criminosos condenados, a quem foi oferecida a escolha entre passar o resto de seus dias na Muralha e enfrentar a execução sumária ou coisa pior. Ao Lorde Comandante Jeor Mormont e seus oficiais – entre os quais Benjen Stark – cabe a dura tarefa de transformar esses celerados em soldados comprometidos com uma causa. Então, para a surpresa de todos, o jovem Jon Snow comunica ao tio Benjen que deseja "vestir o negro" – expressão tradicional que significa juntar-se à Patrulha da Noite, aludindo à cor de seus trajes, que, aliás, a meu ver, é bem estranha: uma força que atua numa região gelada e quase sempre coberta de neve deveria vestir branco, a fim de ficar menos visível para seus inimigos. No caso de Jon, só mesmo o idealismo, o desejo de aventura ou as duas coisas podem explicar essa aspiração. Em Winterfell, a despeito da má vontade da madrasta, ele tem uma vida confortável, a companhia do pai e dos meio-irmãos (parece dar-se bem com todos), aprende com os melhores mestres e, mesmo que não possa esperar chegar tão alto quanto os filhos legítimos de lorde Stark, poderá, quem sabe, ser senescal de Robb quando este for lorde – um futuro bem mais promissor que o da maioria dos bastardos. Na Muralha, tudo o que o espera é frio, perigo, desconforto, e a companhia menos recomendável possível. Porém, uma vez tendo tomado sua decisão, ele parte para o norte com Benjen, enquanto seu pai toma o rumo contrário, em direção a Porto Real, acompanhado por homens escolhidos, e levando consigo Arya e Sansa – esta, prometida ao príncipe Joffrey, filho mais velho do rei. Robb e Catelyn ficam responsáveis por Winterfell, e, quanto a Bran, ele sofre um grave acidente (não vou dar spoiler entrando em detalhes) e fica entre a vida e a morte. O que Eddard encontrará na capital, e Jon na Muralha, irá definir duas das principais linhas narrativas do romance. A terceira linha principal trata da vida da jovem Daenerys Targaryen em Essos… E há ainda outras linhas, menos importantes, mas tão fascinantes quanto.


Dizer que um autor ou obra é "o maior acontecimento na literatura de fantasia desde Tolkien" é algo que já foi tão usado e abusado, que há muito já perdeu qualquer capacidade que alguma vez tenha tido de impressionar alguém; é como dizer que este ou aquele jovem jogador de futebol tem as qualidades de um "novo Pelé". E é claro que isso já foi dito também de George R. R. Martin e suas Crônicas de Gelo e Fogo. Comparar é desnecessário, perigoso e injusto – afinal, Martin é o primeiro a reconhecer que Tolkien é uma de suas mais fortes influências, de modo que, se não fosse pela Terra-média, é provável que Westeros e Essos nunca tivessem nascido, ou que, pelo menos, não fossem tão grandiosos. Entretanto, mantendo uma distância segura das malfadadas comparações, e ciente de que fazer previsões é sempre arriscado, eu ouso apostar que as Crônicas vieram para ficar, e que, daqui a cinquenta anos, os novos autores de fantasia de então poderão muito bem estar mencionando tanto Tolkien quanto Martin com gratidão e reverência, e confessando-se, por sua vez, influenciados por ambos. A Guerra dos Tronos (e acredito que também os volumes seguintes, que espero ler em breve) tem aquele "algo mais", nem sempre fácil de definir, que distingue um bom livro de um grande livro. Temos aqui todo o necessário para dar nascimento a uma nova "mitologia": um mundo vasto e fascinante, com história, geografia e cultura próprias; uma trama complexa, cheia de reviravoltas e surpresas; e, talvez o mais apaixonante, personagens incríveis, cada um com seu perfil e jeito de ser, suas forças e fraquezas, e suas contradições. Os exemplos que me vêm à cabeça agora são dois. Primeiro, Lady Catelyn, uma mulher admirável, verdadeira heroína – corajosa, sábia, cheia de fibra, capaz de tudo pela família… e, não obstante, capaz também de ser incrivelmente mesquinha em sua implicância para com Jon Snow, simplesmente porque o rapaz, sem ter culpa alguma disso, é para ela um lembrete constante de que seu marido um dia lhe foi infiel. Segundo, Jaime Lannister, essencialmente um homem vaidoso, prepotente e sem escrúpulos, mas também devotado à família (embora haja um segredo chocante envolvendo essa parte); para Tyrion, aliás, Jaime é o único membro da família que já lhe demonstrou bondade ou amizade. Mesmo a traição cometida por Jaime contra Aerys Targaryen – o rei cuja vida jurara defender com a sua – tem dois lados, embora só bem mais tarde venhamos a conhecer sua versão da história. De todo modo, o que eu pretendia com esses dois exemplos (apenas dois dentre os muitos que poderia citar) era demonstrar o que quero dizer quando afirmo que os personagens de Martin são mais que rostos e nomes: são pessoas. Não totalmente bons, nem totalmente maus: pessoas. Bem… Nem todos, é verdade. Uma boa história também precisa de seus personagens previsíveis.

Quem ler a mesma edição que eu, notará que o texto como um todo tem um sabor inconfundível do português europeu, com um uso frequente de palavras, expressões e estruturas frasais típicas dessa variante do idioma, juntamente com muitos erros de concordância, verbos conjugados em pessoas diferentes dentro da mesma frase… A impressão que dá é a de que a edição brasileira foi feita aproveitando uma tradução portuguesa preexistente, que passou por uma canhestra tentativa de adaptação. Pessoalmente, sempre li livros editados em Portugal sem qualquer adaptação, e nunca tive problemas com isso; seria muito melhor ler na tradução original que nessa versão que tenta transformar o texto em português brasileiro, mas consegue apenas continuar a ser português europeu – só que agora cheio de erros.

Ainda há muito que eu gostaria de dizer sobre este livro (que, não esqueçam, é apenas o primeiro da saga!) e também sobre a estupenda série de TV Game of Thrones, mas é melhor não deixar o texto longo demais, e, além disso, oportunidades não hão de faltar, pois tenho certeza de que este não será de forma alguma meu único post sobre o universo de George R. R. Martin. Em textos futuros, pretendo dar um jeito de inserir uma porrada de coisas que pensei em escrever aqui, e só não o fiz para não me alongar ainda mais.