quarta-feira, dezembro 16, 2015

Rosto de Caveira, Os Filhos da Noite e Outros Contos

Vocês talvez lembrem que, no post a respeito de Salomão Kane, observei que muitas coisas nas aventuras do valente puritano sinalizavam um interesse, por parte de Robert E. Howard, pela literatura de terror, inclusive especulando que, caso tivesse vivido mais, o autor, muito provavelmente, ter-se-ia dedicado ao gênero em algum momento. Bem, este outro livro veio para me mostrar que ainda estou longe de conhecer a obra do cara tão bem quanto julgava. As histórias de terror de Howard não são uma coisa hipotética: elas estão bem aqui.

O que encontramos em Rosto de Caveira, Os Filhos da Noite e Outros Contos são histórias com a marca inconfundível de Howard, já conhecida de quem leu as aventuras de Conan e outros de seus trabalhos. Um estilo um tanto hercúleo, vamos dizer assim – mais vigoroso que elegante. Nada que o tempo, a prática e a leitura de grandes vultos da literatura universal não tivessem resolvido, se tivesse havido chance para tanto. Isso me faz lamentar duplamente a morte precoce do escritor, pois, caso não tivesse desistido de viver, ele certamente nos teria brindado com um vasto número de novas obras – veja-se a quantidade de material que produziu em tão poucos anos –, além de, com igual certeza, evoluir muito em técnica e estilo. Caras, pensem no que seria ler um romance que Howard tivesse escrito nos seus maduros 60 ou 70 anos, aliando a tremenda imaginação que conhecemos com a experiência e a habilidade acumuladas numa longa carreira… Mas estou de novo escorregando para o universo do what if. Desculpem.

A primeira história, e a mais longa (ocupando sozinha mais de metade do livro) é Rosto de Caveira. O personagem-narrador chama-se Stephen Costigan, mas, segundo especialistas em Howard, é distinto de Steve Costigan, um marinheiro e boxeador que protagoniza quase 30 histórias e foi um forte candidato a personagem mais popular do autor – antes do aparecimento de Conan, é claro. O Costigan a quem somos apresentados aqui é um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, cuja mente foi severamente afetada pelas cenas de horror testemunhadas na batalha de Argonne, em 1918. Constantemente atormentado pelas lembranças traumáticas da guerra, Costigan busca amortecer a mente por meio do haxixe, e acaba afundando-se na droga até ao ponto de arruinar sua vida. É assim que vamos encontrá-lo, num "templo dos sonhos" (estabelecimento onde pessoas se reuniam para usar drogas) no coração do bairro oriental de Londres.

Antros de vício desse tipo eram comuns na China e em outros países do oriente na época em que a história parece se ambientar (final da década de 1920), depois de a Inglaterra, durante o século XIX, haver incentivado o cultivo de ópio e haxixe na Índia; essas drogas eram traficadas para a China e região por companhias britânicas. Com isso, o aumento da oferta e a consequente queda do preço e facilidade de acesso a essas substâncias haviam transformado o vício numa epidemia. Não havia cidade naquela parte do mundo onde não existissem um ou vários "templos dos sonhos", e também era muito provável haver um em qualquer lugar onde se concentrasse um grande número de habitantes de origem chinesa – como a "Chinatown" londrina, onde Costigan está consumindo sua saúde e seus recursos quando a história começa.


Quando tem a primeira visão do "homem de rosto de caveira", o ex-soldado pensa que é apenas mais uma alucinação produzida por sua mente entupida de haxixe, mas depois, mesmo do fundo de seu entorpecimento, ele percebe que o ser em questão é bem real. Trata-se de um indivíduo muito alto, magro como um esqueleto e com feições de acordo, parecendo ter o crânio coberto apenas por uma pele enrugada e pergaminhosa, que vive escondido num conjunto de câmaras secretas no prédio que abriga o "templo dos sonhos", e a quem até o todo-poderoso Yun Shatu, proprietário da casa, trata com subserviência. O estranho personagem diz chamar-se Kathulos e ser originário do Egito. Kathulos, a certa altura, manda buscar Costigan e, com o que parece ser um toque mágico, livra-o instantaneamente da dependência da droga, dizendo que tem um trabalho em mente para ele, o qual exigirá que esteja em sua melhor forma. Costigan, tomado de enorme gratidão, está disposto a fazer quase qualquer coisa que seu estranho benfeitor peça – pelo menos até descobrir que as coisas não são bem como parecem. Seus sentidos estão extraordinariamente alertas e ele se sente mais vigoroso que nunca, mais até do que em seus melhores tempos, mas parece-lhe que tudo isso faz parte da sensação maravilhosa de ter-se livrado do torpor da droga; entretanto, com o tempo, fica evidente que Kathulos, secretamente, administrou-lhe alguma outra substância, capaz de operar mudanças tão espetaculares e repentinas, e que o fez porque espera utilizá-lo como um peão em planos terríveis. A partir daí delineia-se o confronto que guiará os eventos da história. Kathulos, diga-se, não é realmente egípcio; suas origens são ainda mais antigas e misteriosas que as de qualquer múmia. Dizer mais que isso seria revelar demais, mas quero observar que o gosto de Howard por colocar seus heróis cara a cara com um mal antigo, vindo de eras esquecidas, certamente devia muito à amizade e admiração que ele dedicava a H. P. Lovecraft.

Também em suas outras características, Rosto de Caveira é puro Robert E. Howard: ação vertiginosa do início ao fim, quase sem interrupção, um herói forte e determinado, vilões cruéis, mistérios, combates violentos, e uma bela mocinha de aparência e nome exóticos (Zuleika, nada menos que isso), e que, embora frágil à primeira vista, acaba revelando uma insuspeitada coragem, demonstrando-se uma companheira digna do herói. Enfim, se mudássemos a ambientação, os nomes e alguns detalhes do enredo, a história poderia facilmente ser transformada numa aventura de Conan. Portanto, não se trata de terror, embora incorpore alguns elementos típicos desse gênero; é uma história de aventuras, e muito boa.

O terror mesmo aparece depois que Rosto de Caveira termina e dá lugar a sete contos de variadas extensões e temáticas. Na Floresta de Villefore e Cabeça de Lobo são sobre a lenda do lobisomem, ambas ambientadas no século XVII ou XVIII, e unidas pela presença de um mesmo personagem, Monsieur de Montour, um fidalgo da Normandia (França). A primeira, bem curta, passa-se numa floresta do interior da França, tida como assombrada, e conta como foi que De Montour veio a contrair a maldição da licantropia; a outra tem lugar numa propriedade colonial na costa da África, e conduz o personagem a um destino bastante inesperado. A Serpente do Sonho lembra alguns contos de Guy de Maupassant, com o narrador delegando a outro personagem a tarefa de contar a história, de modo que os elementos inacreditáveis ficam envoltos naquela aura duvidosa do "só estou contando conforme ouvi" (um recurso parecido também é utilizado em Cabeça de Lobo). O modo como sonho e realidade se mesclam na narrativa confere à história um encanto macabro. A Hiena é um conto sobre bruxaria africana, apresentando o que poderíamos considerar como a versão local da licantropia. Certo, o nome licantropia vem do grego lykos, 'lobo', mas o fato de não existirem lobos na África não é impedimento para que o Continente Negro tenha suas próprias lendas a respeito de homens que se transformam em animais. A principal diferença, afora o animal em questão, é que, em A Hiena, a metamorfose não aparece como uma maldição, e sim como uma habilidade somente possuída por feiticeiros de grande poder. Em A Maldição do Mar, temos um narrador que não atua diretamente na história, mas passa por ter sido testemunha ocular dos fatos; o cenário é a cidadezinha costeira de Faring, que poderia ficar no litoral norte-americano ou britânico, provavelmente no século XIX. John Kulrek, um marinheiro fanfarrão e chegado ao álcool, estupra uma garota do lugar, que, desesperada depois do ocorrido, comete suicídio lançando-se ao mar. Acontece que a tia da jovem, com quem ela vivia, tem fama de feiticeira, e lança uma maldição sobre Kulrek – uma maldição que irá cumprir-se de modo sinistro.

Não obstante, o conto mais apetitoso do livro, na minha opinião, é o último, Os Filhos da Noite, publicado originalmente na edição de maio de 1931 da revista Weird Tales. Além de ser, em si, uma história envolvente, ela também é notável pelo grande número de conexões que consegue estabelecer ao longo de suas modestas 30 e poucas páginas. O início dá a impressão de que será um tranquilo conto-ensaio: seis intelectuais, entre eles o Prof. John Kirowan (que tem histórias próprias como protagonista, mas aqui aparece como um personagem secundário) estão reunidos no estúdio de um deles, entretidos em discussões fascinantes de cunho antropológico, literário e mítico. Quando o assunto envereda para cultos misteriosos, Howard não perde a oportunidade de mencionar o Necronomicon, bem como o Grande Cthulhu e outras divindades monstruosas de tempos esquecidos – de modo que Os Filhos da Noite pode ser considerado parte dos Mitos de Cthulhu, iniciados por H. P. Lovecraft e que continuam crescendo até hoje. Howard, aliás, escancara toda a sua admiração pela obra do amigo ao colocar na boca de um dos personagens a opinião de que seu O Chamado de Cthulhu forma a tríade das melhores histórias de terror já escritas, junto com O Selo Negro, de Arthur Machen, e A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe.

Além do narrador John O'Donnel, do Prof. Kirowan, do anfitrião Conrad e de dois outros, está presente um homem conhecido como Ketrick, que, apesar de descender de pura linhagem anglo-saxônica, documentada desde os "dias do rei Canuto" (ou seja, desde o início do século XI!), tem estranhos olhos de feitio oriental e coloração amarelada, além de um sutil sibilar em sua fala, que O'Donnel acha um pouco incômodo. Conforme a conversa sobre cultos misteriosos prossegue, um dos participantes, de nome Clemants, menciona um tal "culto Bran", focado num "rei que governa o Império das Trevas, (…) e sobre a enorme e inominável caverna onde está o Homem das Trevas, a imagem de Bran Mak Morn, escavada à perfeição por uma mão de mestre quando o grande rei ainda era vivo. (…) Sim, esse culto ainda está vivo entre os descendentes do povo de Bran (…)." Isso é uma conexão com outra das criações do próprio Howard, o fictício Bran Mak Morn, que teria sido rei dos pictos na Caledônia (a atual Escócia) nos tempos do Império Romano – império esse ao qual ele devotava um ódio implacável.

Os historiadores têm pouco a oferecer sobre esse povo, os pictos, e mesmo o pouco que oferecem é controverso. Algumas fontes os dão como sendo um ramo primitivo dos celtas; de fato, o grande grupo étnico conhecido genericamente como "celta" comportava inúmeros subgrupos muito diferentes uns dos outros em cultura e tecnologia: enquanto algumas tribos dominavam técnicas sofisticadas de metalurgia, construíam grandes cidades e desenvolviam avançados sistemas de governo, outras viviam em choças de barro e palha, caçavam com armas de pedra polida, andavam pintadas e seminuas. Os pictos, então, fariam parte desse segundo tipo. Porém, também há quem os considere um povo à parte, totalmente distinto dos celtas, e que já ocupava as Ilhas Britânicas muito antes de estes últimos lá chegarem­. Não há mais como saber: fossem ou não celtas, os pictos foram completamente absorvidos, ao longo da Idade Média, por outros povos da região, mais numerosos e de cultura mais avançada. Traços de sua herança genética ainda podem ser encontrados no DNA de escoceses e irlandeses; de sua língua, só restaram alguns nomes de lugares. De qualquer forma, o costume picto de marchar para a guerra com o rosto pintado com a tinta azul obtida da flor conhecida como ísatis sobreviveu entre os escoceses até tempos bem recentes.

Não vamos esquecer que Howard, embora adorasse História e tivesse sólidos conhecimentos nesse campo, não era um historiador, e sim um escritor de ficção, e, como tal, podia valer-se de licença poética, o que significa que o que lemos em suas histórias, na maioria das vezes, não deve ser levado tão a sério – afinal, trata-se de entretenimento. Ainda assim, ele tem uma teoria interessante:

Com certeza o povo conhecido mais tarde como os selvagens pictos de Galloway era predominantemente celta, uma mistura de galeses, cymrics, aborígines e possivelmente elementos teutônicos. Se tomaram seu nome de uma raça mais antiga ou emprestaram seu próprio nome a essa raça, ainda não se sabe. Mas quando Von Junzt fala dos "pictos", ele se refere especificamente ao povo de baixa estatura, pele morena, comedor de alho, de sangue mediterrâneo, que trouxe a cultura neolítica para a Grã-Bretanha. Na verdade, foram os primeiros colonizadores daquela área (…).

(A tradutora Bárbara Guimarães quase sempre traduz people por 'pessoas', mesmo quando 'povo' seria obviamente a tradução correta; nesse excerto, tomei a liberdade de corrigir essa falha, fazendo as adaptações necessárias.)

"Sangue mediterrâneo" está de acordo com o que dizem os estudiosos que defendem a teoria de que os pictos eram um povo separado dos celtas: nesse caso, eles seriam provavelmente originários da Península Ibérica. Por outro lado, o próprio nome "pictos" não é nenhuma palavra ancestral e de origens incertas, como Howard faz parecer: é latim, e quem lhes deu esse nome foram os conquistadores romanos, a partir do primeiro século d.C. Significa simplesmente "pintados", aludindo ao costume já referido de desenharem símbolos tribais com tinta azul pelo corpo e rosto. Não se sabe como os pictos chamavam a si próprios. Mas, em resumo, a ideia de que podem ter existido dois povos distintos conhecidos como pictos – um, mais antigo, pequeno e moreno, e outro, mais recente, de biotipo celta – poderia explicar muita coisa.

Bem… A certa altura, no embalo desses assuntos, o dono da casa, Conrad, mostra a seus convidados um antigo martelo de pedra polida cuja cabeça foi encontrada nas colinas da Escócia; ele mesmo lhe colocou um cabo, para deixá-lo tal como devia ser na época em que era usado por seus misteriosos fabricantes, quem quer que tenham sido. A ferramenta (arma?) primitiva passa de mão em mão, até que, ao chegar sua vez, Ketrick consegue, sabe-se lá como, dar com ela na cabeça de O'Donnel, que perde os sentidos… E tem um sonho muito estranho, se é que é um sonho. Nele, o narrador se vê como Aryara, um jovem guerreiro de uma tribo que chama a si própria de "o Povo da Espada", e que presumivelmente viveu em algum lugar das Ilhas Britânicas em tempos antigos. E Aryara está envolvido num desesperado combate contra uma raça estranha, que quase nem parece humana: são criaturas pequenas, de cabeça grande, orelhas pontudas, olhos rasgados, pele amarelada, e com uma inconfundível nódoa reptiliana em sua aparência geral. Segundo as histórias que Aryara lembra de ter ouvido em sua tribo, esses seres dominavam aquela terra antes da chegada do Povo da Espada (provavelmente uma tribo celta de cultura primitiva), e antes até dos pictos. Apesar do pequeno tamanho, são seres perigosos, além de intrinsecamente malignos. Aryara nada sabe sobre O'Donnel, mas este, ao despertar, traz consigo a memória completa da aventura do guerreiro, o que muda totalmente seu modo de ver a si mesmo, sua raça e a História, além de oferecer uma razão para a vaga e inexplicável antipatia que ele sempre havia sentido por Ketrick. Detalhe: o recurso de um golpe na cabeça que faz o herói perder os sentidos e mergulhar em recordações de outra existência seria reaproveitado por Howard na história O Povo das Trevas, publicada um ano depois, e que apresentaria uma espécie de protótipo de Conan, cujo surgimento oficial se deu pouco mais tarde.

(Só para ilustrar como Howard não fazia a menor cerimônia para misturar as coisas como bem entendesse, e que, portanto, devemos ser cautelosos ao lê-lo: Aryara chama o deus de seu povo de Ilmarinen, um nome sem conexão alguma com a língua ou a cultura do povo que o autor estava, teoricamente, tentando retratar. Ilmarinen, ferreiro e guerreiro, era irmão do bardo e mago Vainamoinen – isso no Kalevala, o épico nacional da Finlândia. FINLÂNDIA.)

Quando vocês forem ler Os Filhos da Noite, não fiquem demasiado incomodados com as enfáticas e repetidas afirmações de O'Donnel a respeito do "sangue limpo" de saxões e celtas, que deveria ser preservado da "contaminação" pelo contato com "raças malignas"; as raças malignas a que ele se refere não são humanas e são totalmente fictícias. Além disso, não esqueçam que a história é de 1931, de modo que Howard não tinha como saber até onde um discurso parecido levaria a humanidade anos mais tarde, nem como prever que asserções desse tipo soariam tão mal aos ouvidos das gerações vindouras. Procurem ler com senso de perspectiva, levando em conta a mentalidade da época, que não era a mesma de hoje, e divirtam-se, que foi para isso que essas histórias foram escritas.