domingo, julho 17, 2016

A Flor de Vidro

Volta e meia eu cito alguma obra em conexão com a que estou comentando no momento e digo algo como "terei que falar sobre essa em outra ocasião". Claro: por mais que eu fosse gostar de me estender escrevendo sobre o livro, filme ou o que for, fazer isso naquele momento me desviaria do assunto. O ruim é que, na maioria das vezes, essas "outras ocasiões" acabam não acontecendo.

Mas desta vez sim. Mencionei o conto A Flor de Vidro no meu post sobre A Guerra dos Tronos, primeiro volume das Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin, e o fiz porque foi o primeiro trabalho dele que li, isso há vinte e muitos anos, muito, mas muito tempo antes de o autor ou sua obra ficarem famosos no Brasil – e, mesmo nos Estados Unidos, Martin tinha no máximo uma fama discreta em 1986, ano da publicação original da história. No Brasil, ela apareceu alguns anos depois, na edição número quatro da versão nacional da Isaac Asimov Magazine, que a editora Record teve a corajosa iniciativa de lançar a partir de 1990, conseguindo mantê-la nas bancas por pouco mais de dois anos. O mercado literário nacional, porém, não estava maduro para uma revista assim, o que acabou determinando seu cancelamento depois de apenas 25 edições. Enquanto circulou, a IAM brasileira permitiu a seus leitores ter contato com autores jovens, então em ascensão no meio editorial dos países de língua inglesa, o que era uma novidade empolgante, pois, embora a quantidade de títulos de ficção científica disponíveis em português fosse até razoável, a quase totalidade dos livros que tínhamos eram dos monstros sagrados do gênero: o próprio Asimov, Arthur C. Clarke, Ray Bradbury, Poul Anderson, Robert A. Heinlein e outros desse quilate – todos eles autores excepcionais e de enorme importância na história da ficção científica, mas, puxa!, esses livros datavam, em sua maioria, das décadas de 30, 40 e 50! Todos sabíamos que cada década desde então havia revelado um punhado de novos autores, inspirados e influenciados por esses, e não parecia (não era) justo que não tivéssemos acesso a nada do que haviam produzido.

A IAM brasileira tinha a nobre intenção de resolver esse problema, e provavelmente teria conseguido, caso tivesse existido por mais tempo. De qualquer forma, ofereceu um bem-vindo paliativo, trazendo, a cada edição, sete, oito histórias de escritores que ainda não conhecíamos, e, eventualmente, alguma de um autor de grande estatura, sendo Asimov, é claro, o mais assíduo. Naturalmente, nem tudo era excelente: a revista publicou muita coisa boa, mas também a sua quota de bobagem. No caso da maioria dos autores novos ali publicados, foi essa a primeira e a última vez que ouvi falar deles, e, embora George R. R. Martin fosse, sem dúvida, um dos melhores, tudo indicava que com ele não seria diferente. Bem, eu estava enganado nesse ponto. Que bom!

A Flor de Vidro não contém qualquer enunciação de data, pelo menos nenhuma que possamos identificar, porém os personagens falam sobre certos eventos que, para eles, fazem parte de um passado longínquo, mas que, para nós, ainda são um futuro distante, o que ajuda a dar uma ideia, mesmo que vaga, da vastidão do intervalo de tempo que nos separa dos dias em que a história se desenrola. A protagonista-narradora é Cyrain de Ash, "mestra da mente", "senhora da dor", entre outros títulos que o vulgo lhe atribui e para os quais ela pouco liga. O importante é que Cyrain controla o que ela chama de o "jogo da mente": usando um misterioso "Artefato" de origem desconhecida, descoberto séculos antes em meio aos pântanos do planeta Croan'dhenni, ela conduz pessoas que procuram renascimento a uma espécie de campo de batalha mental, onde o mais forte (mentalmente falando, é claro) pode tomar o corpo do mais fraco e, ao final do jogo, despertar nesse corpo "roubado" – algo muito cobiçado pelos que sofrem de alguma doença incurável, ou os que simplesmente não aceitam o curso natural da vida em direção à morte. A palavra "pessoas", aí, não deve ser entendida como significando necessariamente "seres humanos": o jogo da mente aceita jogadores de qualquer das centenas, talvez milhares de raças inteligentes que povoam o universo conhecido. Os participantes são chamados de "jogadores", no caso dos que procuraram o jogo voluntariamente, pagando alto por isso, e "prêmios", que são os que não escolheram estar ali: foram comprados em mercados de escravos de qualquer um dentre milhares de planetas habitados, e trazidos para que os jogadores tenham a chance de tomar seus corpos.

E é essencial notar isso: é meramente pela chance que os jogadores pagam, pois não há, nem pode haver, garantia alguma. Cyrain é taxativa ao preveni-los de que, uma vez iniciado o jogo, deixa de haver distinção entre jogadores e prêmios. Se o prêmio derrotar o jogador, este último geralmente morre, e, nesse caso, a mestra da mente promete ao prêmio sua libertação no mundo de origem, com dinheiro suficiente para recomeçar a vida. Ainda não é tudo: quando se diz que não há nenhuma garantia, isso significa nenhuma mesmo, nem sequer a de que, no decorrer do jogo, um jogador não vá tentar tomar o corpo de outro, ainda  que isso, na maioria das vezes, não seja um bom negócio, pois, se alguém se dá ao trabalho de viajar até o distante Croan'dhenni e aceita pagar o alto preço pedido pela mestra, é provavelmente porque seu corpo atual deve estar bem acabado. Provavelmente, eu disse.

O jogo da mente em Croan'dhenni começou a ser jogado quando um misterioso alienígena conhecido apenas como "o Branco" chegou ao planeta, parecendo saber o que procurava, pois foi ele quem descobriu, escondido naqueles intermináveis pântanos, o Artefato (assim chamado desde então) que torna o jogo possível. Os próprios croan'dhiques, primitivos, sem conhecimento sobre viagens espaciais ou alta tecnologia, nada sabiam, tampouco, sobre o Artefato; ignoravam sua existência, até que o Branco o encontrou e desenterrou. Seria o Artefato uma criação de sua desconhecida raça, construído em eras antigas e escondido ali por motivos que nunca saberemos? Ou teria outra origem, tendo chegado ao conhecimento do Branco de maneiras que também não saberemos? Mistérios. Seja como for, o Branco tornou-se o primeiro senhor da mente. Teve vários sucessores durante os 600 anos seguintes, até chegar a vez de Cyrain, que já está no cargo há quase um século quando a história começa, e, ao longo desse tempo, ocupou ("vestiu", como ela diz) diversos corpos. O atual é o de uma pré-adolescente de grande beleza, com cabelos loiro-prateados e olhos cor-de-violeta (alguém mais se lembrou de Daenerys Targaryen?).

E é esse rosto jovem que a quase bicentenária Cyrain de Ash apresenta a um novo jogador em potencial, cuja chegada dá início à ação da história. O forasteiro se apresenta como Joachim Kleronomas – um nome lendário, pois, séculos antes, existiu um Joachim Kleronomas que construiu para si uma fama imperecível, primeiro como soldado, combatendo nas cruéis guerras espaciais de sua época, e depois como explorador e intelectual, comandando uma missão de pesquisa que durou décadas e descobriu e catalogou centenas de planetas. Além de tudo isso, esse homem foi o fundador da prestigiosa Academia do Conhecimento Humano, no planeta Avalon. O melhor vem agora: quando a mestra da mente lhe pergunta se aquele Kleronomas era ancestral seu, o visitante responde que não – era ele mesmo.

Qualquer pessoa que tenha vivido o tempo que Cyrain viveu, necessariamente já aprendeu a não julgar as criaturas pela aparência – e em seu ramo de trabalho, muito mais. Porém, o homem (?) que se diz Kleronomas (o Kleronomas) é um ser inteiramente feito de metal e plástico, cujo corpo ostenta os resultados dos incríveis avanços que a engenharia robótica atingiu nesses tempos. Segundo ele, entretanto, sua mente, que agora habita num computador embutido em seu tórax metálico, é a mesma que pulsava no cérebro orgânico de Joachim Kleronomas sete séculos antes. "O que é uma mente humana?", indaga ele, para logo em seguida responder à própria pergunta: "Memórias. Memórias são dados. Caráter, personalidade, vontade individual. Isso tudo é programável. É possível imprimir a totalidade de uma mente humana num computador de cristal-matriz". Seu corpo original, terrivelmente mutilado durante a guerra, foi parcialmente reconstruído com partes biônicas, e, progressivamente, o que ainda restava de orgânico foi sendo substituído também, até convertê-lo nesse ser cibernético, mas dotado de mente humana… Pelo menos, essa é a história que ele conta. E sendo, de certa forma, uma máquina, ele pode manter-se funcionando por tempo indeterminado, bastando para isso substituir as peças à medida em que elas se desgastam, não estando sujeito à inevitabilidade da morte que assombra todos os seres orgânicos. Imortal. Sendo assim, Cyrain faz a pergunta óbvia: o que faz um imortal naquele lugar habitualmente procurado por moribundos? E a resposta dele, com outras palavras, é que não deseja mais essa condição paradoxal que é a de ser imortal sem estar verdadeiramente vivo. Quer voltar a ter um corpo de carne e osso, e está pronto a aceitar tudo o que virá com isso – começando pela certeza da morte, a única certeza que qualquer ser vivo pode ter.

A Flor de Vidro é uma história magnífica, verdadeira aula de como escrever boa ficção científica em pouco mais de 35 páginas. Reúne quase tudo o que poderíamos pedir de uma obra do gênero: uma ambientação imaginária riquíssima e detalhada, personagens com personalidade (eita, redundância… Mas o sentido que eu queria era esse, então fica assim mesmo), ritmo e narrativa perfeitos. De quebra, tem profundidade psicológica, diálogos enigmáticos, e convida a uma reflexão sobre a dualidade vida/morte, que é e foi desde sempre o tema mais abordado por todas as formas de arte, e, mesmo assim, permanece instigante, inquietante, perturbador, com possibilidades inesgotáveis. O conto dá a impressão de fazer parte de um todo muito maior, pois nos apresenta um universo imaginário de enorme complexidade, com raças, mundos e uma história própria, e, de todo esse universo, o que ele efetivamente mostra são apenas alguns pequenos pedaços – pequenos em vista da vastidão do todo, mas suficientes para nos proporcionar uma trama densa e poderosa. Realmente torço para que Martin tenha voltado a esse universo em outras histórias, pois criar algo tão grandioso para usar uma vez só parece um desperdício sem tamanho! E, se essas histórias existirem, torço também para ter a oportunidade de lê-las.