Salvo por alguns inevitáveis e esporádicos acidentes de percurso, a convivência milenar entre tigres e seres humanos tem sido, de modo geral, pacífica, quanto mais não seja porque, durante a maior parte de sua história, os homens não possuíam armas suficientemente poderosas que os encorajassem a enfrentar um animal tão perigoso sem necessidade. Como regra, enquanto os tigres não atacassem pessoas, e não cobrassem um tributo excessivo dos rebanhos domésticos, os humanos os deixavam em paz. Tem sido assim desde tempos imemoriais, das taigas geladas da Sibéria até as selvas tropicais da Indonésia, e das praias do Mar Cáspio até os confins orientais da Ásia – quer dizer, em todas as paragens habitadas por tigres e humanos. Só o advento dos séculos XIX e XX, trazendo consigo armas de fogo modernas e o conceito de "caça esportiva", é que mudou essa situação. É verdade que a medicina tradicional chinesa – tão admirável em algumas coisas, tão estúpida em outras – há muito atribui poderes curativos (e sem qualquer base em fatos) a diversos pedaços do tigre; a impressão que dá é a de que existe um raciocínio de que, se uma coisa é rara e difícil de obter, então ela necessariamente deve ter propriedades milagrosas. Em consequência, o sangue do tigre, o pó de seus ossos, sua bílis, órgãos internos e várias outras partes valem um alto preço, mas, enquanto o bicho tinha que ser caçado com arco e flecha, lança, ou com mosquetes rudimentares de um só tiro, havia pouquíssima gente disposta a encarar a bronca, por maior que fosse a recompensa em jogo. Armas mais eficientes mudaram as coisas – não admira que o tigre-da-china esteja quase extinto. Não foi tão melhor na antiga União Soviética, cujo vasto território abrigava duas subespécies: o tigre-do-cáspio, extinto desde a década de 1960, e o tigre-da-sibéria, ou tigre-de-amur, o maior e mais possante de todos os tigres, que teve um pouco mais de sorte por habitar regiões muito remotas e pouco populosas.
Porém, essa sorte não duraria para sempre. Nos primeiros tempos do comunismo soviético, os tigres eram considerados uma praga, e o seu extermínio era incentivado pelo governo. Mais ou menos na mesma época em que o tigre-do-cáspio foi extinto, e com a população de tigres-siberianos reduzida a poucas dezenas de exemplares na natureza, felizmente parece que alguém mais esclarecido teve acesso a um cargo no qual dispunha de poder para fazer algo a respeito, e foram promulgadas leis protegendo os animais. Com isso, o número de tigres-siberianos subiu para algumas centenas ao longo das décadas seguintes, e conservacionistas do mundo inteiro já se sentiam mais tranquilos, quando chegou a década de 1990 – a década da Perestroika, a reestruturação política e econômica que pôs abaixo a "Cortina de Ferro" que isolava a União Soviética do resto do mundo. A isso seguiram-se, sem muita demora, o fim da própria União Soviética e a implosão do comunismo. Isso tudo teve duros efeitos sobre a sociedade e a economia da Rússia, com um empobrecimento geral da população e um aumento drástico do desemprego. Muitos russos, sem outra alternativa de sobrevivência, passaram a tentar viver do que as florestas da Sibéria ofereciam, fosse por meio da caça de diferentes animais ou da extração de madeira – invadindo o habitat dos tigres. Pior ainda, o relaxamento do controle das fronteiras permitiu a entrada de caçadores ilegais vindos da China em busca dos tigres que já não existiam em seu país.
No entanto, Vladimir Markov, o caçador ilegal de 46 anos que foi morto por um tigre, nos arredores do vilarejo siberiano de Sobolonye, em dezembro de 1997, não era chinês, e sim russo mesmo. A guarda florestal imediatamente chama a equipe local do projeto conhecido como Inspection Tiger, subordinado ao Departamento de Conservação e Caça. A equipe é liderada por Yuri Trush, ex-militar e experiente caçador, cujo trabalho, agora, consiste basicamente em proteger os tigres contra caçadores ilegais – só que, na eventualidade de os papéis de caçador e presa serem trocados, isso também é de sua alçada. Quando Trush e seus companheiros chegam ao local, constatam que pouca coisa restou de Markov para ser vista; o mais desconcertante, entretanto, é que, a julgar pelos rastros e outros sinais deixados na cena da morte (sinais esses que um caçador experiente pode ler como se estivessem escritos num livro), o tigre não matou Markov num encontro fortuito, e nem mesmo para se defender: ele o espreitou e caçou, com inteligência e paciência, talvez durante dias.
A primeira hipótese levantada é a de que Markov tivesse capturado um filhote a fim de vendê-lo, e sofrido a vingança da mãe, mas um dos companheiros de Trush logo descarta essa possibilidade, porque os rastros encontrados na neve são grandes demais para pertencerem a uma fêmea. E, como se descobre depois, ele está certo: o tigre responsável pela morte do caçador é um macho de cerca de seis anos – jovem, mas já adulto, e especialmente grande. No decorrer da mesma investigação, os agentes do Inspection Tiger descobrem uma armadilha, obviamente instalada por Markov, e destinada à captura de tigres. Ou seja, é a prova de que o falecido não simplesmente lidava com incidentes ocasionais envolvendo tigres, como todo caçador da taiga está sujeito a ter: ele estava deliberadamente caçando os felinos, um crime grave perante a lei russa, mas também um negócio muito lucrativo.
Uma mente civilizada reluta em estabelecer o nexo entre Markov caçar tigres e o fato de ter sido morto por um. Afinal, nenhuma fera é capaz de desejar vingança, e tampouco de executá-la, não é mesmo? Um tigre pode atacar um caçador que atire nele, que tente roubar carne de uma presa que ele abateu, ou que ameace seus filhotes, e – embora isso seja muito raro – pode até mesmo atacar um ser humano como o faria com um animal qualquer, levado simplesmente pela fome, mas todas essas situações podem ser atribuídas ao instinto de autopreservação ou ao de defender a prole. Vingança requer compreensão de causa e consequência, capacidade de planejar, e também de experimentar um sentimento semelhante ao ódio – tudo coisas demasiado complexas para um animal dito "irracional". Entretanto, a relutância em admitir essa possibilidade não é compartilhada por povos nativos da Sibéria, como os nanai e os udeghe, que há séculos e milênios vivem em íntima comunhão com a taiga (um tipo de floresta característico das latitudes boreais). Para os caçadores desses povos, que tiram da floresta o sustento de suas famílias, tal como seus ancestrais o fizeram desde tempos muito antigos, o tigre é tão inteligente quanto um homem, igualmente capaz de ser tanto generoso quanto cruel, de guardar rancor ou de perdoar, e, por tudo isso, é digno de ser tratado com respeito e cautela. Conversando com esses caçadores nativos, Yuri Trush e seus homens vão desenvolvendo uma compreensão diferente do incidente que tirou a vida de Markov – e que se repete alguns dias depois: desta vez, a vítima é um jovem caçador de 20 anos, Andrei Pochepnya, para quem Markov havia sido, além de vizinho e amigo, uma espécie de mentor. Se Pochepnya estava atrás de vingança, ou se simplesmente topou com o tigre enquanto caçava para pôr comida na mesa da família, não fica claro, mas o problema nas mãos de Trush e sua equipe fica cada vez maior. Sem alternativa, os homens dão início a uma caçada perigosa em meio a um ambiente no qual o tigre parece capaz de desaparecer sempre que assim deseja, e, embora o animal esteja ferido e pareça raivoso, age com uma sagacidade quase sobrenatural, tornando sua caça um desafio ainda maior, e fazendo da leitura desta história uma experiência que o leitor não esquecerá facilmente.
Citar críticas elogiosas feitas por escritores de renome ou por órgãos de imprensa conceituados é uma estratégia muito comum para alavancar as vendas de livros de todos os gêneros, mas uma das que aparecem na contracapa de O Tigre me parece certeira: algum crítico do jornal francês Le Monde teria escrito que o livro é "o equivalente de Moby Dick para a floresta", e eu concordo, por pelo menos duas boas razões. A primeira é a combinação mortífera de ferocidade e inteligência, demonstrada tanto pelo grande cachalote branco de Herman Melville quanto pelo tigre homicida caçado por Trush e seu grupo – o que confere a ambas as narrativas um clima aflitivo impossível de compreender sem lê-las. A outra é que o esquema geral de Moby Dick parece ter servido de inspiração a John Vaillant: Melville intercalava capítulos que narravam a caçada ao cachalote com outros de conteúdo enciclopédico, versando sobre cetologia, sobre a atividade baleeira e assuntos afins; Vaillant alterna a investigação das mortes de Markov e Pochepnya e a perseguição ao tigre com dissertações sobre aspectos históricos, geográficos e humanos da Rússia em geral e da Sibéria em particular, e com uma ampla e fascinante pesquisa na qual a antropologia dialoga com a história natural.
Os grandes primatas (entre eles nós, hominídeos) e os grandes felinos evoluíram de forma paralela, em muitos casos partilhando o mesmo habitat, e, durante 90 por cento do tempo, ou mais, os respectivos papéis eram muito claros: eles eram os predadores dominantes, e nós, presas eventuais. Nosso medo atávico do escuro (e quando digo "nosso", não quero dizer apenas dos humanos, mas dos grandes primatas em geral) deve-se provavelmente ao fato de nossos ancestrais, durante pelo menos cinco milhões de anos, terem desenvolvido o hábito de buscar abrigo tão logo anoitecia, sob pena de tornarem-se o jantar de algum dentre uma longa lista de predadores noturnos, lista essa na qual leões, leopardos e outros felinos ocupavam lugar de destaque. Não tínhamos a menor chance contra essas feras: não podíamos nem por sonhos rivalizar com sua força ou agilidade, e não tínhamos presas ou garras. Com o tempo, fomos encontrando maneiras de compensar essas desvantagens usando nossos dois principais trunfos – nosso cérebro e nossa habilidade manual. Aprendemos a fabricar armas cada vez mais eficientes e a agir em equipe de formas astutas, o que, aos poucos, equilibrou a balança, e depois a fez pender para o nosso lado. A partir daí, parece que passamos a merecer algum respeito da parte de nossos vizinhos felinos – pois, como Vaillant demonstra com base em diversos estudos de especialistas, não somos os únicos animais capazes de incorporar novos conceitos e mudar nossos costumes de acordo com eles. Por muito tempo, os felinos viram os humanos como presas fáceis, mas, a partir do momento em que nossos ancestrais começaram a andar munidos de objetos pontiagudos e cortantes que podiam causar sérios estragos, as feras passaram a evitá-los. Por outro lado, mesmo que agora fosse capaz de se defender, o homem primitivo não tinha qualquer desejo de procurar briga com animais perigosos, a menos que fosse absolutamente necessário – um comportamento que foi passando de geração em geração, tanto entre felinos quanto entre humanos, até que se chegasse a um acordo de respeito mútuo, aquele do qual eu falava no começo do texto. Apesar disso, a escuridão, e o que quer que possa haver nela, continuaram e continuam a nos intimidar, e devemos isso, em grande parte, aos tigres e seus parentes. Para mim, uma das coisas mais fascinantes a respeito da antropologia (e, mais especificamente, da parte dela que trata dos nossos ancestrais) é o fato de nos permitir compreender os motivos de sermos como somos.
O tigre-siberiano é um dos mais belos animais que alguém seria capaz de imaginar, e também um dos mais aterradores. Mais peludo e corpulento que seus parentes de regiões quentes, é uma perfeita máquina de matar que pode atingir (e, por vezes, ultrapassar) 300 quilos de peso e três metros de comprimento total, medindo do focinho à extremidade da cauda. Seus dentes caninos têm o comprimento de um dedo indicador, a mandíbula é poderosa o suficiente para partir o fêmur de um boi com uma única mordida, as garras são curvas como ganchos e afiadas como navalhas. Todo esse arsenal está a serviço de um cérebro astuto de predador: talvez por viverem e caçarem sozinhos, os tigres parecem ter boa capacidade de planejamento (sim!) e de lidar com situações inesperadas, muito mais que seus primos, os leões. Nenhum animal da taiga está a salvo de seu apetite: o tigre pode se alimentar de qualquer coisa, de ratos-silvestres a bisões adultos, e, pasmem, até mesmo de animais que, em qualquer outro lugar, costumam ocupar o topo da cadeia alimentar, como ursos e lobos (!). Entretanto, parece que suas presas favoritas são cervídeos de grande porte (alce, rena, wapiti) e javalis.
Estima-se que existam hoje cerca de 500 tigres-siberianos em liberdade, mais uns cem em zoológicos e centros de preservação em diferentes países. É o suficiente para que a subespécie não corra perigo imediato, mas há outro fator complicador a colocar em risco seu futuro: a gradual redução do espaço vital disponível devido à ocupação humana. Foi-se o tempo em que "Sibéria" designava uma região isolada e quase despovoada, para onde eram mandados os prisioneiros políticos: hoje ela tem grandes cidades e uma população superior a 25 milhões de habitantes. Para complicar, o tigre, como todo predador de grande porte, necessita de um território vasto – algo em torno de 450 quilômetros quadrados para um macho adulto, sendo que essa área pode sobrepor-se aos territórios de até duas ou três fêmeas. Embora a Rússia tenha estabelecido reservas naturais visando tanto a preservação do tigre quanto de outras espécies, o simples tamanho dessas reservas torna quase impossível um controle cem por cento efetivo; além disso, mais difícil que impedir que caçadores entrem, é impedir que os animais saiam. Há planos de transferir certo número de tigres para o Parque Pleistoceno, uma reserva natural no nordeste da Sibéria, onde biólogos estão tentando restabelecer as condições ecológicas que lá existiam perto do final da última Era Glacial, por meio da reintrodução de espécies que habitavam a região na época. Mesmo antes que a área se tornasse um parque, já viviam nela animais como ursos, lobos, alces, renas e javalis; desde então, foram reintroduzidos com sucesso bois-almiscarados, bisões, wapitis, cavalos selvagens, saigas e linces (e, se o projeto de clonagem que está tentando trazer de volta os mamutes for bem-sucedido, o local será, sem dúvida, um lar confortável também para esses gigantes do passado – isso não seria formidável??). Ainda estão em andamento os estudos sobre a viabilidade de ter tigres vivendo lá, e, de qualquer forma, será necessário aguardar que a população de herbívoros aumente até atingir números que permitam que sirvam de alimento aos grandes felinos sem perigo para sua própria conservação. Outra ideia, ainda mais ambiciosa, consiste em repovoar com tigres-siberianos as áreas antigamente ocupadas pelo extinto tigre-do-cáspio, o que representaria um aumento importante do espaço vital disponível para a subespécie, mas isso ainda é uma possibilidade distante. Por enquanto, o tigre-siberiano só pode contar mesmo com as reservas que já ocupa, no extremo oriente russo.
Acho que foi Jacques Cousteau quem declarou que ficava atônito de pensar que, durante o tempo de duração de sua vida, o homem, depois de milênios lutando contra a natureza pela sobrevivência, teve que fazer um giro de 180 graus e passar a empenhar-se em defendê-la, porque percebeu – e esperemos que não tenha sido tarde demais – que é preciso encontrar um equilíbrio. Continuando o pensamento de Cousteau, eu diria que o tigre é um perfeito exemplo concreto dessa ideia mais geral sobre a natureza. Junto com outras feras predadoras, ele fez parte dos nossos pesadelos na pré-história, e, ao longo de toda a construção da nossa cultura, foi sempre temido – primeiro, só temido; depois, temido, admirado e cobiçado de morte. Hoje, temos que nos esforçar para salvar os últimos deles, se não quisermos ser os responsáveis por legar às gerações futuras um mundo onde os tigres não existam, um mundo, portanto, despojado de um pouco (na verdade, um muito) de sua beleza e terror. Eu fico pensando no quanto vai ser triste se, daqui a um ou dois séculos, uma criança de então abrir um livro, maravilhar-se com a ilustração representando um gigantesco gato listrado de amarelo e preto, tão forte, majestoso, fascinante e terrível, e sentir a frustração de saber que tal animal não existe mais, que nunca lhe será possível ver um deles vivo e respirando – o mesmo tipo de frustração que eu, tanto em criança quanto ainda hoje, sentia e sinto ao abrir um livro e ficar olhando com espanto para imagens de arsinotérios, gliptodontes, entelodontes, rinocerontes peludos e tantas outras feras magníficas que nunca vou ver a não ser em livros mesmo. Na verdade, acho que será mais triste ainda, porque essa criança do futuro estará olhando para fotografias, e não para pinturas; para um animal cuja extinção não foi natural, e sim culpa do homem. E ficará sabendo que tivemos uma chance de salvar o tigre, e não o fizemos. O que seria uma grande, grande vergonha.