quinta-feira, maio 11, 2017

Além

Não é muito simples definir o que diabos (opa…) venha a ser o movimento literário conhecido como "decadentismo", que tem no escritor francês Joris-Karl Huysmans (1848-1907) um de seus expoentes maiores. Seguindo o princípio do pêndulo que parece reger os grandes ciclos culturais ao longo da História, esse movimento surgiu como uma reação ao parnasianismo, que, por sua vez, reagia ao romantismo, que reagia ao racionalismo iluminista, e assim por diante. Naturalmente, literatura é arte, e, como tal, pode ter tendências, mas não está sujeita a regras absolutas, de modo que os diferentes movimentos muitas vezes se mesclam e se interpenetram de variadas maneiras; porém, ainda assim há um padrão identificável: uma corrente artística/literária que valoriza a objetividade, a racionalidade, e tenta retratar de forma realista o mundo "concreto" é seguida por outra que prefere a subjetividade, o sonho, a fantasia e os sentimentos – e vice-versa. Parece que, quando uma dessas correntes leva suas características aos extremos, ou, talvez, quando sua fórmula começa a se desgastar, isso desencadeia uma reação no sentido oposto. Também é preciso ter em consideração que cada um desses movimentos artísticos originou-se numa época diferente e foi feito por pessoas diferentes, num ambiente cultural único, e, por isso, nenhum deles jamais é igual a seus congêneres anteriores, possuindo traços que são somente seus. Exemplo disso é o fato de que, enquanto o romantismo tinha como características o idealismo e objetivos grandiosos (que por vezes sofreram trágicos desvios, vide o nacionalismo extremado de fins do século XIX, início do XX, que acabou gerando o nazifascismo), os decadentistas atacavam o que consideravam uma "cultura burguesa" e pouco estavam se preocupando com política, preferindo devotar suas energias a tudo o que pudesse chocar as "pessoas de bem" da época, em especial o sexo (incluindo modalidades não convencionais) e drogas. Ainda na mesma linha de comparações, o romantismo demonstrava, geralmente, preocupações de natureza espiritual, fosse por meio de uma reaproximação com a religião cristã (encarada com ceticismo pelos iluministas, que, aliás, deram início à campanha de difamação contra a Igreja Católica que continua até hoje) ou da redescoberta de deuses e cultos pagãos, fossem de origem grega, germânica ou outras; já para os decadentes, bacana mesmo era o ateísmo, e em especial o cinismo que ele costuma gerar como subproduto – e aqui, é impossível não lembrar do asqueroso Lorde Henry, de O Retrato de Dorian Gray. Oscar Wilde, por sinal, é considerado um representante do decadentismo na Grã-Bretanha, onde essa estética aportou graças à influência da literatura francesa. O "livro de capa amarela" que Lorde Henry envia de presente a Dorian, e que revela ao jovem protagonista uma gama de pecados e estranhezas que ele não conhecia, era, muito provavelmente, À Rebours ('Às Avessas'), romance de Huysmans publicado em 1884 e considerado um dos textos essenciais do movimento decadentista. Para finalizar este parágrafo dedicado às comparações, é oportuno observar que os decadentes tinham um certo gosto por uma imagética grotesca e chocante, lembrando, nesse ponto, os góticos, que poderiam ser definidos, grosso modo, como o segmento mais radical do romantismo e foram os grandes responsáveis pelo boom da literatura de terror na primeira metade do século XIX, bem como por plasmar certas características que fazem parte do gênero ainda hoje. Curiosamente, a denominação de "literatura decadente", ou apenas "decadentismo", foi dada por seus detratores, mas acabou adotada pelos próprios integrantes e pelos fãs do movimento.

Não é minha intenção passar-me por conhecedor de Huysmans ou do decadentismo; Além é o primeiro livro dele que leio, e ainda não sei se eventualmente terei coragem de encarar Às Avessas, que, pelos comentários que encontrei, deve ser ou chocante demais, ou um tédio – talvez as duas coisas, por mais improvável que isso pareça. A informação biográfica que se segue foi obtida da apresentação de Aníbal Fernandes (também o tradutor) que integra esta edição da Assírio & Alvim, de Portugal, e de um punhado de sites da internet. A introdução de Carlos Orsi para O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, também contribuiu com alguma coisa.

A vida do próprio Huysmans parece de alguma forma resumir a trajetória do decadentismo, ou, ao menos, a de muitos de seus representantes. O autor nasceu e viveu praticamente toda a vida em Paris; esse sobrenome tão pouco francófono era herança do pai holandês, que faleceu quando o pequeno Georges-Marie-Charles (este seu nome de batismo) ainda era jovem demais para poder lembrar-se de muita coisa a respeito dele. Já um pouco mais crescido, o menino tinha o costume de ir visitar seu túmulo no cemitério de Montparnasse, talvez idealizando a vida que, pensava ele, teria ao lado do pai caso este ainda vivesse, já que não se dava muito bem com a mãe e com o padrasto. Adulto, entrou para o serviço público por pura necessidade, já que não vislumbrava possibilidade de sustentar-se fazendo o que amava, que era escrever (meu Deus, como eu entendo isso…), e por 32 anos labutou nos escritórios do Ministério do Interior, dedicando-se à literatura nas horas livres que lhe restavam. Nunca se casou, mas por muitos anos viveu maritalmente com Anna Meunier, senhora que ganhava a vida fazendo vestidos sob medida para as damas da alta sociedade parisiense (Huysmans, diga-se de passagem, assinou muitos artigos publicados em jornais e revistas como "A. Meunier", porque preferia que seus colegas e chefes no Ministério não soubessem dessa sua atividade paralela). Publicou seu primeiro livro em 1874, às suas próprias custas, depois de ser recusado por diversos editores. Era uma coletânea de poemas, e nela o escritor usou pela primeira vez o nome com o qual passaria à posteridade: "Joris-Karl" mais ou menos "holandesava" Georges e Charles, além de soar bem combinado ao sobrenome paterno que lhe era tão caro.

Educado como católico, Huysmans afastou-se da Igreja na adolescência, e durante grande parte da vida parece ter-se considerado um ateu – embora o conhecimento verdadeiramente enciclopédico que demonstrava possuir a respeito do satanismo talvez não fosse oriundo apenas de leituras. A maior parte de seus biógrafos acredita que Huysmans nunca tenha sido de fato um satanista, mas certamente conheceu pessoas que o eram, e é quase igualmente certo que, movido por sua curiosidade a respeito do oculto, tenha comparecido como espectador a missas negras, que, como se sabe, eram celebradas com regularidade na Paris do século XIX, tal como antes e, sem dúvida, depois. Esqueçam esse satanismo com cara de autoajuda que está na moda hoje em dia: tratava-se do que estudiosos de religiões chamam de "satanismo teísta", quer dizer, esses indivíduos acreditavam em Satã e nos demônios como entidades reais, em vez de meramente os adotarem como símbolos de rebeldia, ou coisa que o valha – portanto, também acreditavam em Deus, donde o "teísta" no nome. E, já que as forças infernais realmente existiam, era um caminho curto para concluir que elas poderiam ser invocadas e, mediante os rituais e oferendas adequados, convencidas a prestar certos favores aos mortais, que podiam ir desde assegurar sucesso nos negócios ou ajudar a conquistar o coração da pessoa desejada, até causar a morte de um rival ou de outra maneira tirá-lo do páreo. Esse tema sinistro serve de eixo a Além, cuja primeira edição é de 1891, e que não sei por que ganhou esse título na tradução, já que originalmente chamava-se Là-Bas ('Lá Embaixo'), um título bem mais adequado, como se vê.

O protagonista do livro, Durtal, é um alter ego de Huysmans, que parece ter feito pouco ou nenhum esforço para disfarçar o fato. Um intelectual desgostoso com a época em que vive, ele escolheu isolar-se, e tem dedicado seus dias a trabalhar numa biografia de Gilles de Rais – uma obra tenebrosa sobre um homem de reputação tenebrosa. A única pessoa que Durtal vê regularmente é Des Hermies, médico de profissão e amante da literatura, com quem mantém longas e acaloradas discussões. Por intermédio do amigo, Durtal vem a conhecer Louis Carhaix, o sineiro da igreja de Saint-Sulpice, homem de considerável cultura e apaixonado por seu ofício. Sim, ser sineiro era verdadeiramente um ofício, e uma profissão que exigia dedicação: os sinos precisavam dobrar com pontualidade britânica (mesmo na França) várias vezes ao dia, começando na madrugada ainda escura e indo até a noite – vários sinos de diferentes tamanhos, e fazê-los soar (e soar da maneira correta) não é simples como pode parecer. Além disso, o trabalho do sineiro não consiste só em badalar os sinos: eles também precisam ser limpos e, numa cidade sujeita a extremos de temperatura como é o caso de Paris, untados com óleo para não racharem. Tudo isso para não mencionar as funções adicionais de zelador da igreja, já que Carhaix e sua esposa vivem num pequeno conjunto de cômodos junto às torres. A amizade se consolida, e Durtal, sempre em companhia de Des Hermies, torna-se razoavelmente assíduo em suas visitas ao casal, cuja sala de jantar nos altos da igreja passa a se revezar com seu próprio apartamento como cenário de longas e interessantes conversas.

Là-Bas, aliás, tem essa característica: em muitos momentos, a história parece ser principalmente um pretexto para debates (usando os personagens para dar voz aos diferentes argumentos e pontos de vista) e trechos expositivos. Em geral, mas nem sempre, os debates são sobre literatura, e as partes expositivas, sobre atividades satânicas. Para os fins de seu livro, Durtal tem pesquisado esse assunto, já que uma das muitas acusações que pesaram contra Gilles de Rais (e das quais ele se confessou culpado sem necessidade de tortura) foi a de praticar magia negra e satanismo. Parece, entretanto, que as pesquisas foram bastante além do que seria necessário para a obra, revelando um interesse do escritor pela coisa em si mesma (e aqui, "escritor" pode referir-se a Durtal, a Huysmans, ou a ambos). Os casos sobre os quais Durtal discorre de forma professoral cobrem um arco de tempo que vai desde a Idade Média até a época em que se ambienta o livro, em fins do século XIX, destacando episódios famosos como o do padre renegado Urbain Grandier, queimado na fogueira em 1634, ou o da marquesa de Montespan, amante do rei Luís XIV, que teria recorrido à magia satânica para afastar rivais e tentar renovar o interesse do rei nela, no que ficou conhecido como "o Caso dos Venenos", durante a década de 1670. Também nesse segundo exemplo, como em muitos, houve a participação de um sacerdote, o abade Étienne Guibourg, que teria sacrificado pelo menos uma criança numa missa negra, para tentar obter dos demônios o que a marquesa desejava.

É pertinente notar que o fato de a presença de padres renegados ser quase uma constante em casos desse tipo não ocorre sem bons (ou maus) motivos. Muitos teóricos da magia classificavam a missa católica como um ato de magia branca, capaz de canalizar o poder das hierarquias angélicas para um determinado objetivo: abençoar a comunidade, interceder por uma alma etc. É claro que, à luz da teologia, considerar essas coisas como magia, seja de que tipo for, é um completo disparate, mas muita gente não via dessa forma. Daí decorre que, se a missa, e, por consequência, seu oficiante, tinham poderes mágicos próprios, nada impedia que esses poderes fossem subvertidos e empregados em rituais distorcidos para se obter qualquer fim desejado, até mesmo os menos piedosos. Todo círculo satânico queria um padre em suas fileiras. Acrescente-se a isso que como, naquela época, o sacerdócio era uma posição que dava prestígio e garantia conexões úteis, muitas famílias nobres, ou de posses, ou ligadas à política, ou tudo isso, davam um jeito de encaminhar um de seus filhos para a carreira eclesiástica, o que resultava em haver muitos padres sem um pingo de vocação e com escassas qualidades morais, que podiam facilmente ser cooptados a participar de um desses grupos satânicos e oficiar suas missas negras, já que, pelo menos naquela época, elas eram geralmente celebradas com uma finalidade específica e costumavam ser encomendadas por alguém importante, que pagava alto – ou seja, era um negócio interessante para todos os envolvidos. Contar com a ajuda de um padre também facilitava enormemente o acesso a hóstias consagradas, pois, de outra forma, esse era um processo muito trabalhoso: era preciso que os fiéis satânicos fossem às missas normais, recebendo a comunhão e mantendo-a escondida na boca até o final do ofício, para depois levá-la para ser usada em suas próprias cerimônias, nas quais o pão sagrado era submetido a profanações que prefiro não detalhar. Já Huysmans não sofre do mesmo escrúpulo: se o leitor, como eu mesmo, for um católico devoto (e mesmo se não o for, mas prezar o respeito à fé alheia), terá de estar preparado para chocar-se. Além das preleções a respeito das práticas satânicas, vez por outra somos levados a acompanhar Durtal em suas pesquisas sobre Gilles de Rais, o que também é bastante perturbador.

No meio de tudo isso, no começo é difícil entender por que Huysmans teria decidido enxertar na história um caso de amor ilícito, se é que dá para chamar assim – e a dúvida não é quanto ao "ilícito", e sim quanto ao "amor". À primeira vista, parece ser porque, na França da época, uma relação adulterina era ingrediente indispensável em todo romance que quisesse ter chance de vender, mais ou menos como, hoje em dia, uma subtrama amorosa (não necessariamente adulterina, é verdade) é obrigatória nos filmes de Hollywood. Porém, à medida em que continuamos lendo, a impressão vai mudando: passa a parecer que o autor pensou algo como "ah, já que preciso mesmo incluir um adultério, vou fazê-lo à minha maneira". Durtal começa a receber cartas de uma admiradora que escreve sob pseudônimo e que desenvolveu uma paixão platônica por ele a partir de seus livros; ela não se identifica, mas vai deixando escapar detalhes como os fatos de ser casada e de ser alguém que o escritor conhece (e conhece seu marido também), e cuja casa chegou a frequentar antes de adotar seu atual modo de vida recluso. Há um punhado de senhoras que poderiam encaixar-se nesses quesitos, e Durtal se vê torcendo ardorosamente para que a misteriosa autora das cartas seja uma das bonitas, e experimentando aquela ansiedade ao mesmo tempo aflitiva e deliciosa que costuma acompanhar situações semelhantes. Como se fosse um adolescente, por assim dizer – ele, homem de meia idade, que vez por outra frequenta bordéis para sossegar as exigências do corpo, mas que já dava como certo que o futuro não lhe reservasse qualquer novo envolvimento sentimental, fosse com quem fosse. Porém, verdade seja dita, o sujeito não é lá muito romântico: parece interessado, sobretudo, no tipo de experiência sexual que (acredita ele) apenas uma mulher apaixonada pode proporcionar, impossível de ser igualada pelas profissionais. Mesmo com expectativas tão mundanas, o caso acaba sendo essencialmente uma decepção. Durtal tem amplas oportunidades para se exasperar com a proverbial volubilidade feminina, e a dama, ciente disso, chega a citar para ele uma frase de um de seus próprios livros, que diz que "só são boas as mulheres que não tivemos". O escritor acaba dando razão a si próprio nesse ponto. Entretanto, os capítulos seguintes do livro revelam que o affair tinha uma razão de ser dentro da história, pois acarreta uma importante mudança de direção nela.

Disse acima que a introdução da edição de O Rei de Amarelo pela Intrínseca, escrita por Carlos Orsi, contribuiu com informações sobre a biografia de Huysmans e sobre o movimento decadentista; pois bem, é Orsi quem cita (sem nomeá-lo) certo crítico que teria escrito que, para o artista decadente, ao cabo de uma carreira gasta a retratar vícios, pecados, podridão e loucura, só dois caminhos eram possíveis: "o cano de uma arma ou o pé da cruz". Huysmans, felizmente, escolheu a conversão ao invés do suicídio. Durtal volta a ser o protagonista em dois outros livros, cujos títulos, assim como o de Là-Bas, são sugestivos, quase autoexplicativos: En Route ('A Caminho', de 1895) e La Cathédrale ('A Catedral', de 1898), que descrevem a trajetória do personagem rumo à conversão, trajetória essa paralela à do próprio autor. É interessante notar que, embora em Là-Bas ele ainda pareça, em linhas gerais, um cético, Durtal, em diversos momentos, demonstra um respeito instintivo, pode-se dizer, pela Igreja, além de achar difícil descrer totalmente de seus ensinamentos: em certo trecho, é dito que ele "não tem certezas absolutas" a respeito do dogma da transubstanciação; ora, quando alguém não tem certeza absoluta sobre algo, é porque existe um espaço para a dúvida. Um ateu de verdade teria simplesmente dito que a crença na transubstanciação não passava de uma sandice, e consideraria o assunto encerrado. A atitude de Durtal espelha, provavelmente, a do próprio Huysmans, que, em seus últimos anos de vida, voltou à comunhão da Igreja que havia abandonado quando rapaz, o que se refletiu em suas obras desse período e o levaria a ser citado com frequência como um nome de destaque entre a intelectualidade católica de seu tempo.

Huysmans celebrizou-se, entre outros motivos, pelo "uso idiossincrático" do vocabulário francês, o que eu entendo como uma tendência a utilizar certas palavras com um sentido um tanto diferente daquele que os dicionários lhes atribuem, permitindo ao leitor captar o novo significado, desde que invista nisso um pouco de esforço. Traduzir um texto assim deve ter sido desafiador para Aníbal Fernandes, e, na qualidade de leitor, digo que Além exigiu de mim muita atenção e apelou à minha capacidade de fazer conexões e de inferir o sentido a partir do contexto. Certamente não é para leitores iniciantes. Feitas essas advertências, o livro deverá interessar não somente aos cultores da literatura decadentista, mas aos apreciadores do romance francês do século XIX de forma geral, e, por conta da temática macabra que ocupa parte de suas páginas, é provável que também chame a atenção de alguns fãs de terror.