domingo, junho 11, 2017

Mutação

Antes de redigir um post sobre um livro, gosto de saber um pouco sobre o autor, nem que seja por meio da Wikipédia, e, no caso de Robin Cook, foi a ela que recorri. Já sabia alguma coisa sobre ele, embora Mutação seja o primeiro livro seu que realmente li. Cook é considerado o fundador de um subgênero de suspense ao qual alguns se referem como "horror médico", que talvez fosse um produto inevitável da combinação de sua formação e experiência na medicina com o gosto por escrever e uma imaginação particularmente fértil para tramas densas e sombrias. Confesso que não me sentiria muito à vontade de me tratar com o sujeito que escreveu Coma e Cérebro, suas obras mais famosas; dessas, só li as sinopses, que já são bem perturbadoras. Pretendo ler os livros no futuro. Em Mutação, Cook trata de um dos ramos mais fascinantes e, ao mesmo tempo, potencialmente perigosos da pesquisa médica moderna: a engenharia genética.

Esse, por sinal, é um daqueles assuntos sobre os quais é difícil ter uma opinião definitiva e categórica – a menos que você seja uma pessoa simplória, que acha que entende tudo e vai logo se posicionando contra… Ou a favor. As possibilidades são imensas, mas os perigos também. Desde que passamos a dominar um grau razoável de tecnologia, a lei da seleção natural perdeu a maior parte do poder sobre a nossa espécie. Na natureza, um animal que nasça com alguma doença genética, ou com qualquer característica debilitante, normalmente não sobrevive até a idade adulta, e, por consequência, não chega a se reproduzir, e não passa adiante a característica indesejável. É cruel, mas garante que a espécie se perpetue com indivíduos saudáveis. Já entre nós, humanos, é diferente: se uma criança nasce com algum problema, fazemos todos os esforços possíveis para que ela sobreviva. É claro que, do ponto de vista moral, essa é a coisa certa a se fazer, e esse senso de dever de uns para com os outros (solidariedade, se quiserem) foi um dos motivos do nosso sucesso como espécie; porém, a natureza é implacável. O fato de todos esses indivíduos que a seleção natural teria eliminado sobreviverem e eventualmente se reproduzirem acabará fazendo com que, a longo prazo, toda a humanidade seja portadora de algum tipo de doença genética – a menos que, até lá, tenhamos encontrado meios de diagnosticar e eliminar essas doenças ainda nos estágios iniciais da vida embrionária. Em resumo, pode chegar o dia em que a engenharia genética se tornará essencial para a própria sobrevivência de nossa espécie.

Por outro lado, a História mostra que novas tecnologias frequentemente recebem aplicações pouco louváveis, e a ficção científica já tentou por mais de uma vez antecipar o que poderia acontecer caso o DNA humano começasse a ser manipulado para fins meramente utilitários. Quem já tiver certa idade, suficiente para ter lido os quadrinhos da Marvel lá pelo final dos anos 80, início dos 90, talvez se lembre das histórias de Paradox, criadas por Bill Mantlo e desenhadas por Val Mayerik, e que, no Brasil, foram publicadas na revista Aventura & Ficção. Essas histórias, se não me falha a memória, ambientavam-se em meados do século XXII, e, nelas, existiam as "espécies servis", desenvolvidas por meio da engenharia genética para sobreviverem sob as condições vigentes nos diferentes planetas do sistema solar, com o único objetivo de extrair minérios e outras matérias-primas para a Terra; os membros dessas espécies eram cidadãos de segunda categoria (na prática, de quinta ou sexta), tratados como párias pelos humanos "originais". Isso já era bem ruim, mas a aparência das espécies em questão ainda era relativamente normal. A bizarrice se eleva à enésima potência no livro Man After Man, de Dougal Dixon, que tenta especular sobre as novas formas que nossos descendentes poderiam assumir à medida em que seus códigos genéticos fossem sendo reescritos para responder a novas "necessidades" impostas pelo ambiente, na Terra ou fora dela, começando alguns séculos no futuro e prosseguindo por milhões de anos.

Porém, não é preciso ir tão longe, nem se afastar tanto da nossa realidade, para compreender por que essa coisa da engenharia genética merece ser tratada com a máxima cautela. Basta pensar na clonagem, que não é exatamente engenharia genética, mas está estreitamente relacionada com ela, e nos usos que ela poderá ter num futuro próximo. Muitas pessoas adorariam a ideia de clonar um animal de estimação do qual gostavam muito e que morreu, e isso dificilmente poderia causar algum dano a alguém – mas a coisa muda de figura se quem tiver morrido for uma criança, e os pais decidirem apelar para a clonagem a fim de "ter o filho de volta". A criança-clone, é claro, não seria uma "ressurreição" da criança original, e sim algo como uma irmã gêmea dela, só que nascida depois, e todos sabemos que gêmeos só são idênticos na aparência: em geral, têm personalidades muito diferentes. Aí é que surge a pergunta inevitável: será que esses pais teriam a maturidade e o bom senso para entender que estão diante de uma pessoa única, com uma individualidade que precisa ser respeitada, e não de um mero substituto para aliviar sua saudade de alguém que já se foi? Acho que o fato de recorrerem à clonagem, em vez de terem outra criança da maneira normal, ou mesmo adotarem uma (que seriam formas de aceitar o acontecido e seguir com a vida) responde por si só, e não é preciso ser psicólogo para enxergar o quanto seria danoso para uma criança ser criada por pessoas que cultivam essa expectativa irreal de que ela seja alguém que não é e nunca será. Esse é só um exemplo de como é importante questionar não apenas se uma coisa pode ser feita, mas também (e, às vezes, principalmente) se ela deve ser feita, e questionar, acima de tudo, os motivos que nos levam a querer fazê-la, bem como suas possíveis consequências. Infelizmente, nem sempre foi isso o que aconteceu no passado, e é pouco provável que sempre aconteça no futuro.

E lá se foi mais um longo introito… Bem, acho que uma das coisas legais de se fazer um blog é poder relaxar, escrever do jeito que mais nos agrada, sem tanta preocupação em seguir manuais ou regras. Se surge um assunto interessante, por que não me permitir algumas digressões, não é mesmo? Mas já chega por ora: vamos ao livro.

Mutação é a história de um homem chamado Victor Frank (nenhum prêmio por identificar o personagem de uma obra clássica de terror e ficção científica ao qual esse nome faz alusão!) e sua família: a esposa, Marsha, e os filhos, David e Victor Jr., apelidado de VJ. Tanto Victor quanto Marsha são médicos; ela se dedica à psiquiatria, enquanto ele trabalha com pesquisa, tendo sido um dos três sócios fundadores da Chimera Inc., empresa de biotecnologia que se tornou uma gigante do setor, fazendo dele e de seus parceiros homens ricos. O casal parece ter tudo o que poderia desejar, exceto uma coisa. Complicações no parto de David comprometeram a capacidade de Marsha conceber, então, quando o filho mais velho está com cinco anos, ela e o marido decidem ter o segundo com a ajuda de uma mãe de aluguel. O óvulo é de Marsha, os espermatozoides de Victor, portanto o bebê resultante é biologicamente filho dos dois, mesmo sendo parido por outra mulher. E o procedimento parece ter sido tão bem-sucedido quanto se poderia desejar, tornando-os pais de um menino perfeito e saudável.

Entretanto, à medida que VJ cresce, fica evidente que ele é muito diferente das crianças de sua idade. Começa a falar com poucos meses, aprende a ler com pouco mais de um ano, e aos três é um brilhante jogador de xadrez e fera em computação (e creiam, lidar com os computadores da década de 80 exigia bem mais perícia que com os de hoje). Possui um QI de gênio, mas parece desprovido de emoções, é avesso a demonstrações de afeto, e prefere a companhia de adultos, já que está anos-luz à frente das outras crianças. Por volta dos três anos e meio, seu QI, inexplicavelmente, sofre uma brusca queda, e ele desaprende muitas coisas que dominava, mas, mesmo assim, continua a possuir uma inteligência muito acima da média, e não tem dificuldade para reaprender o que esqueceu. Estranhamente, a babá que cuida dele e de David, e que a princípio tinha completa adoração pelo caçula, passa a ter medo dele, a evitar sua presença e a repetir uma conversa religiosa sobre o menino ser um demônio. Pouco tempo depois, quando VJ está com cinco anos e David com dez, o garoto mais velho falece, vítima de uma forma rara de câncer – que, sem demora, tira a vida também da babá, uma coincidência quase inacreditável: esse tipo de câncer é tão raro, de fato, que a possibilidade de que afete duas pessoas de uma mesma casa é quase nula. E, no entanto, acontece, deixando VJ na condição de filho único.

A parte principal da narrativa acontece quando VJ está com dez anos. Victor se orgulha do filho, e Marsha, embora o ame profundamente, de vez em quando sente medo, conseguindo compreender, ao menos em parte, os delírios religiosos da antiga babá – mas, é claro, ela, que passa seus dias tratando as desordens mentais dos outros, não pode se permitir esse tipo de "maluquice". A vida dessa pequena família segue tão normal quanto possível, até ser sacudida por dois eventos trágicos cujo significado só Victor conhece: dois meninos de cerca de três anos, filhos de funcionários graduados da Chimera, ambos dotados de intelecto superior, sofrem algum tipo de mal súbito no cérebro e morrem, quase ao mesmo tempo. Por alguma razão, isso deixa Victor preocupado com VJ, o que ele não consegue ocultar de Marsha por muito tempo, e, naturalmente, ela quer saber o que uma coisa tem a ver com a outra. Quando Victor é forçado a se explicar, revela-se o porquê das características únicas do filho do casal e qual a relação entre ele e aqueles dois meninos que ele e seus pais nem conheciam.

Não entendo o suficiente de biologia (e não sei coisa alguma sobre medicina) para poder avaliar se as explicações oferecidas por Cook acerca do experimento que resultou na superinteligência de Victor Frank Jr. são corretas ou teoricamente possíveis, mas, para o leitor leigo, elas soam convincentes o bastante; além disso, por que não seguir o exemplo de H. G. Wells e pensar nas possíveis consequências de um avanço tecnológico, em vez de nos determos nas suas minúcias técnicas? Pois, como já entreguei, Victor pai decidiu aproveitar o plano dele e da esposa de terem um filho para colocar em prática pela primeira vez em um ser humano as experiências que já vinha realizando com animais, manipulando os genes para tentar aumentar a capacidade intelectual. Tal como seu quase-xará da obra de Mary Shelley, Victor vai descobrir que criar um novo ser é a parte fácil: prever e/ou controlar suas ações é que é o verdadeiro desafio, o que pode levar a consequências terríveis.

VJ, desde muito pequeno, passa muito tempo na Chimera, primeiro no laboratório do pai; mais tarde, passa a circular por outras dependências do lugar na companhia de Philip, um empregado mentalmente atrasado com quem fez amizade – ou seria melhor dizer que o recrutou a fim de poder dispor de força muscular quando precisar? Já mais velho, o garoto é frequentemente visto entrando na empresa e tornando a sair horas depois, mas ninguém parece capaz de dizer ao certo onde ele passa esse tempo ou o que faz. Tem passe livre para quase qualquer lugar do vasto complexo, graças à combinação de sua condição de filho de um dos donos da companhia com sua capacidade de cativar a todos quando quer – pois, como os psicopatas, pode mostrar-se muito simpático e sedutor quando isso for útil para a consecução de seus objetivos, apesar de não ser capaz de formar laços emocionais verdadeiros. Quando fatos estranhos e inexplicáveis começam a ser descobertos na empresa, ninguém os relaciona à presença constante do garoto, até as peças começarem a se ligar de uma forma que não pode mais ser ignorada… E paro por aqui, para não dar spoiler.

A escrita de Cook, pelo menos neste livro, não é nenhum primor de estilo; baseado nisso, o leitor pode ficar tentado a achar que ele é aquele tipo de autor que tem repertório para bolar boas ideias em razão de seu conhecimento profundo de uma determinada área – no caso, a medicina –, mas a quem faltam a sutileza e o refinamento técnico que também são tão importantes para um bom escritor. Eu não teria tanta certeza… Pode ser assim em relação à técnica, mas não se pode dizer que Cook não tenha uma considerável habilidade para decifrar o espírito humano (imagino que isso também seja necessário a um bom médico) e para retratar isso tudo em suas histórias. Em Mutação, isso aparece nas personalidades do casal Victor e Marsha Frank, em especial no modo como cada um deles age em relação ao filho: ela, seriamente preocupada com cada coisa inacreditável que vai descobrindo a respeito de VJ; ele, tentando achar tudo normal. Por exemplo, quando o gato da família é cruelmente morto por alguém de identidade desconhecida que parece estar tentando intimidá-los, e deixado para que o encontrem, Marsha fica transtornada com a tranquilidade de VJ diante do fato horrível; para ela, o menino deveria ao menos demonstrar alguma emoção, fosse raiva, pesar ou o que fosse – qualquer coisa, menos a mesma frieza inabalável de sempre. Já Victor acha que o filho está simplesmente "agindo com maturidade". Mais adiante no livro, quando Victor descobre certos feitos extraordinários de VJ, sua reação pode parecer excessivamente tranquila, mas, num segundo pensamento, lembramos que a relação dele com o menino não é apenas a de um pai com o filho, mas também (e talvez predominantemente) a de um cientista com o resultado de seus mais ousados experimentos. E o resultado de experimentos científicos precisa ser encarado com objetividade, não importa o quão empolgante (ou horripilante) possa ser.

Há uma observação que é impossível deixar de fazer: VJ lembra fortemente o garoto Damien, do livro/filme A Profecia, e isso serve para nos fazer refletir que a humanidade sempre terá seus medos, ainda que eles vão mudando conforme os tempos. E isso nem sempre significa que novos medos vão substituindo os antigos: muitas das coisas que hoje tememos são as mesmas que nossos ancestrais temiam, sejam coisas sobrenaturais como demônios ou fantasmas, ou concretas como guerra e doenças, e a isso se somam novos temores, como o do que pode acontecer caso as tecnologias cada vez mais incríveis que vão sendo desenvolvidas caiam em mãos erradas, sejam usadas de forma irresponsável, ou simplesmente acabem demonstrando ser mais do que somos capazes de administrar. Os livros de Robin Cook proporcionam uma experiência envolvente e diferente aos apreciadores do suspense, mas também cumprem a função de nos fazer pensar nos perigos de tudo isso. Se há algo que nós, meros mortais, possamos fazer a respeito, é outra questão, mas uma coisa podemos dar como certa: se estivermos cientes dos riscos e já tivermos refletido sobre eles, talvez tenhamos chance de fazer alguma coisa; por outro lado, se o que vier por aí nos apanhar desprevenidos e ingênuos, não teremos chance alguma.