tag:blogger.com,1999:blog-97840672024-03-18T22:56:17.040-04:00Notas de LiteraturaAlgumas letras jogadas ao acasoMarcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.comBlogger149125tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-2305455225699519502023-03-23T22:34:00.014-04:002024-02-07T23:37:37.963-04:00O Gênio do Crime<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbggn9KHogftrCETUGn9Tu8XGzRK8K_irZ_WfKVLDn9QeGMlAYCVU0qJ5ZZyHSI0D-XB1vbOKICfEVfXvWz7Qs5yMtyE8X_jDZNK-n1q3Q-LF9k-efp3S8-5-t9xu3fJ4YxTve3KfMINb2vGAaHqxNuLA8XFDUEbCCoz85v5CWqejFWMXzySstEA/s320/02079.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhbggn9KHogftrCETUGn9Tu8XGzRK8K_irZ_WfKVLDn9QeGMlAYCVU0qJ5ZZyHSI0D-XB1vbOKICfEVfXvWz7Qs5yMtyE8X_jDZNK-n1q3Q-LF9k-efp3S8-5-t9xu3fJ4YxTve3KfMINb2vGAaHqxNuLA8XFDUEbCCoz85v5CWqejFWMXzySstEA/s16000/02079.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Devo meu primeiro contato com a obra de João Carlos Marinho (1935-2019) ao meu colega e amigo Fábio, que estudou comigo da quinta à oitava série, lá na segunda metade da década de 80, e isso aconteceu de um jeito muito legal. Sempre fui o "leitor da turma", talvez o único entre 30 e poucas crianças que realmente lia por <i>prazer</i>. Como o Fábio e eu já tínhamos essa camaradagem e conversávamos sobre tudo, eu naturalmente comentava com ele sobre as histórias que estava lendo ou havia lido, falava sobre como ler é legal, e, com o tempo, isso despertou sua curiosidade e fez com que ele também começasse a ler. Depois que terminamos o ensino fundamental eu o vi poucas vezes, e agora faz muitos anos que não tenho notícias dele; espero que tenha mantido o hábito, e, se assim for, posso somar isso ao pequeno rol das coisas boas que fiz na vida. Porém, na época tive uma recompensa mais imediata e mais concreta: uma vez mordido pelo bicho da leitura, o Fábio também começou a fuçar a biblioteca da escola, e eventualmente me dava dicas de coisas interessantes com as quais eu ainda não havia topado. Foi dessa forma que vim a conhecer pelo menos dois nomes-chave da recente literatura infanto-juvenil brasileira: Pedro Bandeira, com seu excelente <i>A Droga da Obediência</i>, que se tornaria o piloto da aclamada série <i>Os Karas</i>, e o próprio João Carlos (ou J. C.) Marinho, com <i>O Gênio do Crime</i>.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E <i>O Gênio do Crime</i> começa falando sobre uma coisa que marcou e ainda marca muitas infâncias: álbuns de figurinhas. É claro que eles existem até hoje, mas, embora possa ser só impressão minha, me parece que antigamente esse filão era bem mais explorado, talvez porque a molecada de décadas passadas não tivesse à disposição tantas opções de diversão quanto as crianças de hoje. Havia até editoras cuja principal área de atuação era a criação de álbuns. Eu mesmo nunca fui um dos maiores adeptos desse <i>hobby</i>, que me lembre tive dois álbuns durante toda a infância, um de bichos e outro dos personagens da Disney, mas lembro que todo ano saíam vários, a maioria com repercussão modesta, mas havia sempre um ou dois que viravam febre entre a garotada. Alguns álbuns eram destinados às crianças em geral, enquanto outros visavam claramente os meninos ou as meninas (hoje em dia não faltaria um imbecil lacrador para "problematizar" isso). Os álbuns de futebol, por exemplo, eram território dos meninos, e um deles (fictício, é claro) é o mote para esta aventura.</span></p><span style="font-family: georgia;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiAVLfv3u8zYxDR1TvccvQUPJef1FF9bM8ZgZduNDWdjd-ewaN8qiaRNvRkd0cf8o4K94X6QygdFRcQxFiznUMvDsjG9SMsfRQ7AQGCZr1pSVH4zEzKyRZyu1HmTVxGxCuGXpPs1cOGPftEJMgoL_-7G3HwfZLO1wMho27GlmKtwvv8zYYSw1lX7w/s369/joao-carlos-marinho-genio-crime.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="369" data-original-width="240" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiAVLfv3u8zYxDR1TvccvQUPJef1FF9bM8ZgZduNDWdjd-ewaN8qiaRNvRkd0cf8o4K94X6QygdFRcQxFiznUMvDsjG9SMsfRQ7AQGCZr1pSVH4zEzKyRZyu1HmTVxGxCuGXpPs1cOGPftEJMgoL_-7G3HwfZLO1wMho27GlmKtwvv8zYYSw1lX7w/s320/joao-carlos-marinho-genio-crime.jpg" width="208" /></a></div><div style="text-align: justify;">É preciso ter em mente que o livro foi publicado originalmente em 1969, antes da promulgação da lei 5.768, de 1971, que proibiu a realização de concursos com distribuição de prêmios vinculados a coleções de figurinhas. De fato, nos álbuns que eu tive, vinha impressa na contracapa a informação de que todas as figurinhas (que o texto chamava de "cromos") eram fabricadas e distribuídas em quantidades iguais, não havendo, portanto, "figurinhas difíceis", e também a de que o preenchimento do álbum não dava direito a quaisquer prêmios. No livro, um álbum de figurinhas de futebol se tornou mania entre os garotos, e, além da curtição de colecionar, há também um concurso que oferece a quem completar a coleção um conjunto de camisas do time favorito e uma bola oficial – coisas que os meninos da época, e desconfio que também muitos dos de hoje, <i>matariam</i> para ter. O garoto Edmundo, como todo mundo (hehehe) está fazendo de tudo para completar seu álbum, e já faz muito tempo que só lhe falta uma figurinha, a do jogador Rivelino, um dos craques mais admirados daquela época que também foi a de Pelé, Garrincha e outras lendas. É quando seu amigo Pituca vem com a informação de que há um cambista no centro de São Paulo que vende as figurinhas difíceis, naturalmente que por um valor muito superior ao de "mercado". Dessa forma Edmundo completa o álbum e, em companhia de Pituca, vai até a fábrica de figurinhas para reclamar seu prêmio – e encontra lá um ajuntamento de garotos que vieram com o mesmo objetivo, só que os prêmios não estão sendo entregues, o que gera tanta revolta que acaba num quebra-quebra. A fábrica está para ser incendiada pelos moleques enfurecidos, e a coisa só não chega a vias de fato graças à intervenção de Edmundo, que convence os outros a exigir os prêmios pelas vias legais.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Dias depois, Edmundo recebe em casa a visita do dono da fábrica, seu Tomé, que lhe conta seu drama: há uma quadrilha de falsários fabricando réplicas perfeitas das figurinhas difíceis e vendendo-as por altos preços para a garotada. Com isso, a quantidade de álbuns cheios está atingindo patamares absurdos, e ele, na obrigação de dar os prêmios prometidos, está rapidamente se aproximando da falência. Seu Tomé viu, da janela de seu escritório, o início de tumulto na frente de sua fábrica, e viu também como Edmundo convenceu os outros a desistir do vandalismo e fazer as coisas dentro da lei. Impressionado com a coragem e a presença de espírito do garoto, o industrial vem pedir a ele que tente descobrir a fábrica clandestina, já que, como diz, figurinhas são coisa que pertence ao mundo das crianças, e um adulto investigando despertaria suspeitas. É claro que os pais de Edmundo vetam a ideia na hora, mas o garoto não resiste à tentação de uma aventura detetivesca batendo em sua porta, e decide ajudar mesmo sem o consentimento deles. Ao seu lado estão Pituca e o Bolacha, também conhecido como "o gordo". E o gordo… bem, é o gordo.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEho-ZgyXGxxdUJdFujk7W1ihAHngB0Vb3eD3xhl6-9mfEcDW2x07HCNrcpKioMDJ_fhQAxfmHTfHg2KBrS54CJwdfNgaGd44jBWIb29x4oQTVuZMnQG885H_82zgysDgLVMzH_4YNLhwvoGi2ZCYwPnf_rlPaq9jJluKvlXNlqxmA8uD8LeKILJGw/s502/abakateiro.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="314" data-original-width="502" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEho-ZgyXGxxdUJdFujk7W1ihAHngB0Vb3eD3xhl6-9mfEcDW2x07HCNrcpKioMDJ_fhQAxfmHTfHg2KBrS54CJwdfNgaGd44jBWIb29x4oQTVuZMnQG885H_82zgysDgLVMzH_4YNLhwvoGi2ZCYwPnf_rlPaq9jJluKvlXNlqxmA8uD8LeKILJGw/s16000/abakateiro.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;">Quem começa a ler <i>O Gênio do Crime</i> tem a impressão de que Edmundo vai ser o herói, e é fato que, nas partes da aventura que envolvem ação, que exigem coragem e agilidade, ele é o membro da turma que se sobressai; o Bolacha, por outro lado, tem outra coisa: <i>miolos</i>. Pituca ajuda, mas é basicamente um papagaio-de-pirata na história, já que não é tão arrojado quanto Edmundo e muito menos tão esperto quanto o gordo.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Pois não é por acaso que a série de livros que cresceu a partir de <i>O Gênio do Crime</i>, e da qual Marinho deixou 13 volumes, não se chama <i>As Aventuras da Turma do Edmundo</i>, e sim <i>As Aventuras da Turma do Gordo</i>. Esse personagem sem nome, conhecido apenas pelos apelidos Bolacha, Bolachão ou "o gordo" (sem maiúscula) é o que realmente movimenta as tramas. Vendo com os olhos de hoje, é mais ou menos claro que, se ele fosse uma pessoa real, diríamos que sofre de um grau leve de autismo: distraído, volta e meia está com a cabeça longe, como num trecho impagável em que todos estão discutindo o caso em investigação, exceto o gordo, que está com o olhar parado e não abre a boca. Quando interpelado, nem ele parece saber direito no que estava pensando: "acho que era numa vaca que tem na fazenda do meu pai". Quando resolve raciocinar, porém, ele é brilhante, tanto que demonstra ser o único capaz de quebrar o sofisticado esquema de despistamento que o líder dos falsários (o tal gênio do crime do título) arquitetou para impedir a localização de sua fábrica clandestina a partir dos cambistas que vendem as figurinhas. Bolacha consegue deixar para trás até mesmo Mr. John Smith Peter Tony, renomado detetive escocês que também está envolvido na investigação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>O Gênio do Crime</i> é o tipo de livro que, depois de ter lido na infância ou adolescência, você tem vontade de apresentar aos seus filhos (eu certamente teria essa vontade, caso tivesse filhos). Até a pontuação desleixada contribui para o estilo coloquial, e o resultado é tão bom que eu, sempre bastante chato quando se trata de correção de texto em livros, consegui fechar um olho para essa característica, de tão agradável que flui a leitura. Uma aventura para garotos, protagonizada por garotos, cheia de boas ideias e narrada com uma baita eficiência… Exigir ainda mais que isso deste pequeno livro seria muito injusto, mas o fato é que sim, ele oferece mais: um vislumbre de como era a infância em São Paulo na década de 60 – muito diferente da de hoje, e isso é fato em São Paulo como no resto do mundo. Destaque para o jogo conhecido como "abafa" ou "bafo", que consistia em colocar figurinhas no chão, com a face para baixo, e tentar virá-las com tapas; como as próprias figurinhas eram a aposta envolvida, esse era outro meio do qual os garotos dispunham para tentar conseguir as que faltavam em seus álbuns. Cheguei a ver isso quando eu ainda era bem pequeno, mas pouco depois, lá por meados da da década de 80, as figurinhas passaram a ser autocolantes, o que foi prático para os colecionadores, mas também condenou o jogo de abafa ao gradual esquecimento, já que as novas figurinhas eram mais rígidas e pesadas, difíceis de virar. E a garotada de hoje, provavelmente, nem sabe que houve um tempo em que as figurinhas <i>não</i> eram autocolantes, tal como pensam que a TV já foi inventada com o controle remoto. O tempo passa mesmo, não tem jeito.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjeJF37QJjNeIcbqQ106Ddgh8HW2J1hiqn17BJNBWIEuFOzTublKqJ1mweZE8HKtkVqj8TD0ec1GSreYKf_yfbWxT_jUxGZQBHQ1moQURoArkAXqewGvW7z1GUbl1OTMpiUXmo8MHsavTsjR8W-H947NGgT6hkO_j1foSdg2CDUhQYb-H1cUDctdA/s461/jenio.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="274" data-original-width="461" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjeJF37QJjNeIcbqQ106Ddgh8HW2J1hiqn17BJNBWIEuFOzTublKqJ1mweZE8HKtkVqj8TD0ec1GSreYKf_yfbWxT_jUxGZQBHQ1moQURoArkAXqewGvW7z1GUbl1OTMpiUXmo8MHsavTsjR8W-H947NGgT6hkO_j1foSdg2CDUhQYb-H1cUDctdA/s16000/jenio.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Para concluir, como de costume, um pouco de informação prática. O exemplar que tenho (comprado em sebo, como boa parte da minha biblioteca) é da edição do Círculo do Livro, que inclui também <i>O Caneco de Prata</i>, uma "aventura surrealista" na definição do autor, que trata de um campeonato de futebol entre escolas, narrado de forma… bem… surrealista, enquanto paralelamente também explora a paixão do gordo por Berenice, uma menina que ele conheceu em <i>O Gênio do Crime</i>. Curiosamente, como vocês talvez consigam distinguir na imagem do início deste post, e por razões que desconheço, essa edição do Círculo do Livro grafou o nome do autor como João Carlos Marinho Silva, embora ele sempre tenha assinado suas obras como apenas João Carlos Marinho – e fica ainda mais difícil de entender se levarmos em consideração que seu nome completo era João Carlos Marinho Homem de Mello, sem "Silva" nenhum. Todas as <i>Aventuras da Turma do Gordo</i> estão disponíveis em volumes individuais pela editora Global, que também oferece um box contendo a "saga" completa. Se vocês estiverem procurando por bons livros para dar de presente às crianças ou pré-adolescentes das suas famílias, ou simplesmente quiserem revisitar suas próprias infâncias por algumas horas, essa é uma ótima pedida.</div></span><p></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-75637849284251843612022-11-17T22:08:00.006-04:002024-02-16T23:55:10.607-04:00O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6rlqZhl5SCSvP6edcwFS84CSxrvXAI-uQaus1nlKKYppS4tx6D0_KEf830Y_Igu04g6hHY8wNMftri75tHmBj9Wm8pZeVVjCdI9_kRDG99ZNkyxJ2NlvhXNbOG0g2nVOa9wBZAmhUXkm2H_FyWqpSzpVCC8o3_gkHL0uyJIiOnL37t6BiNw_I8A/s338/the%20cabinet.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="338" data-original-width="270" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6rlqZhl5SCSvP6edcwFS84CSxrvXAI-uQaus1nlKKYppS4tx6D0_KEf830Y_Igu04g6hHY8wNMftri75tHmBj9Wm8pZeVVjCdI9_kRDG99ZNkyxJ2NlvhXNbOG0g2nVOa9wBZAmhUXkm2H_FyWqpSzpVCC8o3_gkHL0uyJIiOnL37t6BiNw_I8A/s16000/the%20cabinet.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Guillermo del Toro já foi assunto aqui no blog por várias vezes, por conta de <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2009/01/hellboy-o-exrcito-dourado.html" target="_blank"><span style="color: red;">Hellboy</span></a></i>, da <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2015/07/a-trilogia-da-escuridao-strain.html" target="_blank"><span style="color: red;">Trilogia da Escuridão</span></a></i> e da série de TV derivada, <i>The Strain</i>, de seu envolvimento com a trilogia cinematográfica <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2013/01/o-hobbit-uma-jornada-inesperada.html" target="_blank"><i><span style="color: red;">O Hobbit</span></i></a>… Que eu me lembre, é isso. Existem vários outros de seus trabalhos que admiro pacas, filmes como <i>Cronos </i>(1993), <i>A Espinha do Diabo</i> (2001) e <i>O Labirinto do Fauno</i> (2006), entre outros, que também poderiam virar assunto, e talvez ainda virem. E o cara sempre volta: desta vez, com a série antológica <i>O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro</i>, cuja primeira temporada, com oito episódios, ficou disponível na Netflix agora em outubro.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Os primeiros comentários que ouvi e li, antes de ter contato direto com o material, foram no sentido de que se tratava de uma série bastante macabra e pesada, feita sem aliviar a mão, fosse nos conceitos perturbadores ou nas cenas aflitivas – e esse é um lado que Del Toro, como muitos autores ou realizadores do gênero fantasia, sabidamente possui: basta lembrar de <i>O Labirinto do Fauno</i>, que tem cenas delicadas de magia e encantamento, mas tem também um punhado de criaturas horripilantes e uma cena de um homem sendo assassinado a sangue frio a golpes de garrafa. É fato que, aqui, os episódios são dirigidos por outras pessoas, mas, na qualidade de produtor executivo e criador do conceito da série, coube a Del Toro a escolha dos diretores e, presumivelmente, a supervisão geral, de modo que podemos dizer que seu estilo pessoal perpassa tudo. Ele aparece no início de cada episódio, fazendo um breve comentário enigmático sobre o que veremos a seguir, e apresentando o diretor ou diretora. Por sinal, a julgar pelo rápido levantamento que fiz na internet, são, em sua maioria (mas nem todos), diretores pouco conhecidos, com relativamente pouca coisa em seus currículos, pelo menos enquanto diretores – a australiana Jennifer Kent, por exemplo, que dirigiu <i>O Murmúrio</i>, último episódio desta primeira temporada, teve uma extensa carreira como atriz, mas assina a direção de apenas três filmes até o momento (é verdade que um deles é o muito comentado e elogiado <i>O Babadook</i>, que ainda preciso ver). O importante é notar que Del Toro parece estar apostando em diretores que ainda estão em ascensão, sejam os que ainda não acumularam um grande currículo por serem relativamente jovens, ou os que sempre trabalharam em outras funções no cinema ou TV e estão agora se acostumando com a cadeira da direção.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Assisti a essa primeira temporada num espaço de alguns dias e, por tratar-se de uma série antológica, quer dizer, com cada episódio contando uma história fechada e independente, aplica-se, também aqui, o que sempre digo a respeito de livros de contos: existem altos e baixos e isso é natural – mais que natural, é inevitável. A impressão geral foi muito favorável, e torço para que venham mais temporadas num futuro relativamente próximo. Também à semelhança do que tenho feito com livros de contos, não pretendo comentar cada episódio em detalhes; falarei daqueles que, como espectador, eu tiver achado notáveis e/ou que apresentem alguma… hã… <i>curiosidade</i>.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Muitos fãs de Guillermo del Toro devem ter pensado o mesmo que eu pensei sobre esta série: que faltou ter ao menos um episódio dirigido por ele. Como se fosse para compensar em parte isso, há dois episódios baseados em contos de sua autoria. O primeiro, <i>Lote 36</i>, é dirigido por outro Guillermo, o Navarro, também mexicano e seu colaborador antigo, que trabalhou como diretor de fotografia em vários de seus filmes. Foi inevitável pensar em <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/11/goticos.html" target="_blank"><span style="color: red;">Lote 249</span></a></i>, de Sir Arthur Conan Doyle, mas só os títulos é que são parecidos. A história se ambienta em janeiro de 1991 – uma datação tão precisa é possível porque o episódio começa com um personagem vendo na TV o pronunciamento do presidente George Bush (pai) logo após o primeiro ataque aéreo americano contra Bagdá, que deu início à fase "quente" da Guerra do Golfo, que já se arrastava desde meados do ano anterior. O protagonista (que não é o personagem da primeira cena) é Nick Appleton, um veterano do Vietnã que está devendo a um agiota, o qual lhe tem feito ameaças regularmente. Para tentar conseguir o dinheiro que pode ser a diferença entre a vida e a morte, Nick recorre a diversos expedientes, e um deles requer uma breve explicação… Nos Estados Unidos são comuns os <i>self storages</i>, lugares onde as pessoas podem alugar depósitos individuais, numerados, para pôr a tralha que não têm mais onde guardar em casa; se o locatário de um depósito morre sem herdeiros, desaparece ou deixa de pagar o aluguel durante um determinado número de meses, a administração do <i>storage </i>procede a uma espécie de "despejo": o conteúdo do depósito é levado a leilão, e o comprador tem um prazo para retirar tudo, a fim de que o espaço possa ser alugado novamente. Um "lote", então, é a totalidade do conteúdo de um desses depósitos abandonados. O detalhe interessante, por assim dizer, é que esses leilões são uma loteria: os participantes fazem seus lances sem saber o que vão encontrar quando abrirem o lugar. Pode estar cheio de objetos raros que renderão uma pequena fortuna num antiquário, ou conter apenas pilhas de jornais velhos, mobília quebrada, roupas roídas por traças, e todo tipo de quinquilharia sem valor que pessoas idosas (geralmente) guardaram ali porque seus familiares estavam ameaçando jogá-las fora. Nick, então, arrisca o dinheiro que tem comprando alguns desses lotes, na esperança de encontrar algo que dê lucro. O mais recente é o de número 36, que pertenceu ao mesmo "velhote esquisito" desde que o <i>storage </i>começou a funcionar, logo após o fim da <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/09/inverno-do-mundo.html" target="_blank"><span style="color: red;">Segunda Guerra</span></a>, e agora o velhote acaba de morrer. Em meio à costumeira montanha de inutilidades empoeiradas, Nick descobre um móvel valioso e curioso, uma mesa feita especialmente para a invocação de espíritos, e, dentro de suas gavetas, três livros muito raros e sinistros. O ex-soldado é do tipo cético – e mais que isso, um cético <i>chato:</i> quando um especialista em ocultismo, que ele procura em busca de uma avaliação dos itens, tenta lhe explicar sobre os mistérios e histórias sombrias envolvendo aqueles livros, ele interrompe impaciente, pois a única coisa que lhe interessa é saber quantos dólares pode conseguir pelo conjunto. Tudo o que posso dizer sem revelar mais do que devo é que ele vai ver-se numa situação na qual seu ceticismo não lhe servirá de nada. Nick é o tipo de protagonista do qual é importante que o espectador <i>não </i>goste, e o roteiro se encarrega disso: além de sua rabugice, ele é preconceituoso, mostrando uma evidente má vontade para com negros, latinos e, provavelmente, para com qualquer estrangeiro – embora eu lhe dê razão num ponto, o de não gostar do fato de que aparentemente só determinados tipos de pessoa é que têm o direito de exigir respeito e de se indignar caso não o recebam: negros são protegidos pela lei e pelo senso comum contra ofensas de cunho racial, mas, por outro lado, eles próprios são </span><span style="font-family: georgia;">livres para dirigir ofensas (inclusive de cunho racial) contra brancos, à vontade, sem que nada aconteça; já era assim em 1991, e hoje muito mais. O mesmo se aplica aos gays em relação aos héteros, às mulheres em relação aos homens e por aí afora: basta apresentar o seu crachá de membro de qualquer "minoria oprimida", que você tem carta branca para fazer e dizer o que quiser, incluindo as coisas mais escrotas e absurdas, e ninguém pode protestar, sob pena de ser rotulado de <i>ista </i>e <i>fóbico</i>. Desculpem-me os politicamente corretos, mas isso <i>não é certo;</i> a verdade não deixa de ser verdade só porque quem está dizendo-a é um sujeito desagradável como Nick Appleton. Mas esse não é o ponto aqui: <i>Lote 36</i> é um episódio forte e envolvente, um excelente pontapé inicial para a série, além de nos deixar com vontade de ler mais dos trabalhos de Del Toro no campo da literatura.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhW4PP_i6HxJR-GHdpsObbQRgeua1LpFuIytIAtUftIQ-RzvoZ4iIg3Vm0YV1RiZ5EiBN88bJZi_D3cCk-JdPAOSEV5C2chZCs6YDR6eEatm_5JHjGqyYzs0nFzV1ssfZQ_13YkoLkNVNAsy1oEqe9OgSSOyYPz9m_QvCU_Zn5U2MpYPlE7u3w6Gg/s360/graveyard.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="360" data-original-width="207" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhW4PP_i6HxJR-GHdpsObbQRgeua1LpFuIytIAtUftIQ-RzvoZ4iIg3Vm0YV1RiZ5EiBN88bJZi_D3cCk-JdPAOSEV5C2chZCs6YDR6eEatm_5JHjGqyYzs0nFzV1ssfZQ_13YkoLkNVNAsy1oEqe9OgSSOyYPz9m_QvCU_Zn5U2MpYPlE7u3w6Gg/s320/graveyard.jpg" width="184" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">O segundo episódio, <i>Ratos de Cemitério</i>, é baseado num conto de alguém chamado Henry Kuttner, nome que não me é estranho e que pretendo pesquisar. O episódio é várias coisas, mas, antes de mais nada, é claustrofóbico, motivo pelo qual minha namorada, Cintia, achou-o uma experiência bastante desagradável – e, pelo que ela me contou depois, foi ainda pior para uma amiga, que ficou tão incomodada que nem foi até o final: "dropou" o episódio e a série. E eu entendo: há muitas maneiras de abordar o terror, muitas "pontas por onde pegá-lo" (acho que a expressão é de <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/03/danca-macabra.html" target="_blank"><span style="color: red;">Stephen King</span></a>, mas não tenho certeza), e a claustrofobia é uma delas, usada ao longo da história do gênero por muitos autores e diretores. Aqui especificamente, a maior parte da ação transcorre debaixo da terra, dentro de túmulos ou em túneis tão apertados que mal dá para uma pessoa rastejar por eles, e, para algumas pessoas, ambientes apertados, mesmo vistos numa simples tela, podem ser desesperadores. O ano é 1919 (assim consta na lápide de uma jovem sepultada poucos dias antes) e o local é a cidade de Salém, Massachusetts, palco dos famosos julgamentos de bruxaria no século XVII. O protagonista é um homem de nome Masson, que, assim como Nick Appleton, está gravemente endividado. Masson vive de perambular pelos cemitérios saqueando sepulturas, "aliviando" os mortos de quaisquer objetos de valor com os quais eles tenham sido enterrados, mas sua atividade não lhe tem rendido muito ultimamente, e seu credor está pressionando. É então que ele fica sabendo da morte de um figurão da sociedade, um comerciante muito rico e influente, cuja viúva faz questão de enterrar com ele uma de suas posses mais valiosas: um sabre cerimonial que o falecido ganhou de presente do próprio rei da Inglaterra. É claro que Masson imediatamente coloca o túmulo do comerciante no topo de sua lista de prioridades, mas, embora ele esteja acostumado a brigar com ratos em suas andanças noturnas em cemitérios, nem imagina o que vai encontrar desta vez. O episódio é mesmo aflitivo, mas também tem toques irresistíveis de humor (geralmente negro). O ator David Hewlett está magistral no papel de Masson. Vincenzo Natali (de <i>Cubo </i>e <i>Monstro do Pântano</i>) dirige.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Guillermo del Toro sempre foi um grande fã de <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/04/os-melhores-contos-de-h-p-lovecraft.html" target="_blank"><span style="color: red;">H. P. Lovecraft</span></a>. Um de seus sonhos já de muitos anos, e bem conhecido por quem acompanha sua carreira, é dirigir um grandioso filme adaptando um dos contos mais ambiciosos do escritor, <i>Nas Montanhas da Loucura</i>, mas, pelo que li tempos atrás, ele teria brigado feio com os produtores em potencial porque eles queriam meter uma trama romântica na história (!). De vez em quando circulam rumores de que o projeto está em vias de finalmente engrenar, mas, até o momento em que escrevo, nenhum boato sobre o qual eu tenha lido me pareceu ser mais que isso – boato. Enquanto <i>Nas Montanhas da Loucura</i> não acontece, Del Toro nos traz em seu <i>Gabinete </i>as adaptações de duas outras histórias de Lovecraft, estas de porte mais modesto, mas nem por isso menos cultuadas, e muito merecidamente, pelos fãs do autor: <i>O Modelo de Pickman</i> e <i>Os Sonhos na Casa da Bruxa</i>.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O primeiro, dirigido por Keith Thomas e estrelado por Ben Barnes (de <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2011/05/o-retrato-de-dorian-gray.html" target="_blank"><span style="color: red;">O Retrato de Dorian Gray</span></a></i> e <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2017/05/westworld.html" target="_blank"><span style="color: red;">Westworld</span></a></i>), é apenas frouxamente inspirado no texto original, e eu entendo o motivo: o conto é muito discursivo, o que não funcionaria bem na tela. Barnes interpreta o protagonista Thurber, que no conto era também o narrador, e que no episódio ganhou um primeiro nome, William. Nesta versão, Thurber, ainda rapazote, é um dos mais destacados estudantes de arte na Universidade Miskatonic (fundada em 1690 e cuja simples menção deixa qualquer fã de Lovecraft de orelha em pé) quando sua turma recebe um novo aluno, um tal Richard Upton Pickman, um sujeito mais velho, já nos seus 30 ou quase isso, e de passado misterioso. Thurber imediatamente sente uma curiosidade intensa a respeito do novo colega, que demonstra já ser um artista de grandes capacidades, dotado de um talento natural aperfeiçoado por um número muito maior de anos de prática do que qualquer um de seus colegas pós-adolescentes pode ter tido – mas com um detalhe: seja qual for o motivo artístico proposto, Pickman transforma-o em imagens assustadoras, repletas de sugestões de elementos do oculto, da feitiçaria e do além-túmulo, e sempre com uma habilidade prodigiosa. No início é Thurber quem repetidamente procura a companhia de Pickman (que claramente preferiria ser deixado só), fascinado que está tanto por sua arte macabra quanto por sua personalidade misteriosa – mas então a narrativa dá um salto de vários anos, e encontramos um William Thurber já maduro, casado e com um filho, além de membro conceituado da comunidade dos artistas em Massachussetts; nesse ínterim Richard Pickman reaparece, depois de uma longa ausência. Agora é Pickman quem parece ansioso por reatar a antiga amizade, declarando que o julgamento crítico de Thurber é valioso para ele, enquanto Thurber, tomado de desagradáveis suspeitas a respeito de qual pode ser a verdadeira origem da arte de Pickman, prefere não ter ligações com o pintor, e, principalmente, não gosta da ideia de vê-lo rondando sua família… Não irei mais adiante para evitar <i>spoilers</i>, o que é ainda mais importante aqui porque, como a adaptação é muito livre, o episódio reserva surpresas inclusive para quem leu a história, e longe de mim querer estragá-las. Pode-se discutir (e seria uma discussão deveras interessante) se a versão de <i>O Modelo de Pickman</i> trazida por Del Toro e Keith Thomas ainda é Lovecraft, mas, mesmo que não seja, é inegável que o roteirista Lee Patterson soube apropriar-se do <i>legendarium </i>do autor e com ele produzir uma história digna de respeito, que consegue manter-nos durante uma hora inteira com os olhos pregados na tela. Barnes não surpreende – considero-o um ator correto, mas talhado para papéis de galã e que dificilmente nos apresentará algo muito diferente disso; por outro lado, Crispin Glover, no papel de Richard Pickman, é um pesadelo à parte (no sentido elogioso!), com uma atuação ao mesmo tempo feroz e irônica e um olhar que é simultaneamente o de um visionário que enxerga outros mundos e o de um maníaco.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgn6wLUlZvwoQNiTgGOTTZyCVYg9gxX3J6a-Tr9Sf81RAqB0AhFiw-1s3NV0qZVVJVUz2dlN65qcJEOuqI-eFJ60efIZNzI075hQ-J_GH2Jeum6MEZh-qId14XR-N-PKaCoYsWK2pl0YAU1fdt3xTP3_rUxdhTEAF-T8WgwWdjYl28kgUvTdiHNqQ/s449/FgLxJAGXEAIGMgE.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="449" data-original-width="350" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgn6wLUlZvwoQNiTgGOTTZyCVYg9gxX3J6a-Tr9Sf81RAqB0AhFiw-1s3NV0qZVVJVUz2dlN65qcJEOuqI-eFJ60efIZNzI075hQ-J_GH2Jeum6MEZh-qId14XR-N-PKaCoYsWK2pl0YAU1fdt3xTP3_rUxdhTEAF-T8WgwWdjYl28kgUvTdiHNqQ/s16000/FgLxJAGXEAIGMgE.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Acho necessário fazer um parágrafo separado apenas para comentar o magnífico trabalho de arte que vemos em <i>O Modelo de Pickman</i>. É atordoante pensar na quantidade de horas de trabalho investidas por um artista (aliás, provavelmente vários) para criar pinturas que a câmera iria mostrar apenas de relance (e confesso que apertei o <i>pause</i> várias vezes para tentar analisar mais detidamente as imagens). Seria interessante saber se todas essas pinturas foram feitas especialmente para o episódio ou se algumas delas eram trabalhos preexistentes, usados com permissão dos autores – pois, como já comentei em outro lugar, muitos artistas plásticos fãs de Lovecraft já fizeram suas tentativas de materializar os terríveis quadros de Pickman a partir das descrições fornecidas no texto. As pinturas de Pickman em si eram a parte que mais me intrigava nesse conto, e continuam a sê-lo nesta adaptação. Assumindo todos os riscos (tal como o de enlouquecer), eu bem que gostaria de fazer uma visitinha ao atelier dele.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A outra adaptação de um conto de Lovecraft presente nesta temporada é <i>Os Sonhos na Casa da Bruxa</i>, com direção de Catherine Hardwicke <i>(Crepúsculo)</i> e tendo como ator principal Rupert Grint (o Rony Weasley dos filmes de <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2011/10/harry-potter-e-o-enigma-do-principe.html" target="_blank"><span style="color: red;">Harry Potter</span></a>). Numa comparação com <i>O Modelo de Pickman</i>, <i>Os Sonhos na Casa da Bruxa</i> até tem um pouquinho mais de correlação com o conto que lhe deu origem – e, apesar disso, entrega um resultado menos bom. No conto, o protagonista Walter Gilman é um estudante de graduação da Universidade Miskatonic que, curiosamente, mistura sua exaustiva dedicação a alguns dos campos mais complexos da alta matemática com um interesse por folclore e pelas histórias dos julgamentos de bruxaria – e acaba fundindo os dois campos de conhecimento. Gilman acredita, ou, melhor dizendo, tem certeza, com base nas conclusões teóricas da matemática, de que a existência de outras dimensões é um fato, ao qual só falta a prova material. Ele acredita também (e isso sim é uma crença) que as antigas bruxas conheciam o segredo de como viajar entre as dimensões; as velhas histórias de voos noturnos em vassouras ou no dorso de animais mágicos poderiam não ser mais que uma representação simbólica disso. Dos registros que leu sobre a época dos julgamentos, chamou-lhe especial atenção a história de uma tal Keziah Mason, que teria fugido da Cadeia de Salém em 1692. A casa onde morou essa célebre bruxa ainda existe, e Gilman consegue alugar o exato quarto onde ela viveu e, presumivelmente, praticou seus feitiços. As paredes da decrépita habitação estão rabiscadas com símbolos e diagramas que todos sempre supuseram tratar-se de algum tipo de escrita demoníaca, mas que o estudante reconhece como sendo matemática avançadíssima, um tipo de conhecimento que deveria ser impossível para uma velha comum e provavelmente analfabeta do século XVII. E, ao dormir naquele quarto, Gilman passa a ter sonhos cada vez mais perturbadores envolvendo Keziah e seu suposto "familiar", uma criatura semelhante a um grande rato com cara humana (um "familiar", ao que se acreditava, era um pequeno demônio em forma animal, ou semi-animal, que o diabo dava de presente a cada bruxa por ocasião de sua iniciação, e que prestava serviços a ela). Para Lovecraft, a obsessão intelectual de Gilman, sua determinação de provar perante a ciência que outras dimensões existem e que viajar entre elas é possível, era motivação válida e plenamente suficiente para seu protagonista; nesta adaptação, o roteirista deve ter achado que um objetivo tão abstrato e impessoal quanto esse não atrairia a empatia do público para o personagem, e assim, inventou para ele uma história trágica: Gilman, na infância, tinha uma irmã gêmea a quem era muito ligado, e que morreu em tenra idade, com o detalhe de que o pequeno Walter a viu ser arrastada, em sua forma espiritual (ou fantasmal, se quiserem) para uma espécie de limbo que ficaria em outra dimensão, enquanto seu corpo físico ficava para trás. Daí em diante, o rapaz ficou obcecado por parapsicologia, por fenômenos mediúnicos e pela possibilidade da comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, vindo inclusive a fazer parte de uma sociedade espiritualista. É por esse caminho que ele acaba indo parar no velho quarto de Keziah Mason. Na minha opinião, essa "humanização" da trama pode funcionar para os espectadores que nunca leram Lovecraft, mas os que conhecem o conto vão achar o novo enredo uma coisa prosaica e novelesca, que apaga muito da sensação de estranheza extraterrena que conferia à história original a maior parte de seu interesse; além disso, a novidade de fazer com que as viagens de Gilman entre as dimensões sejam possibilitadas por uma espécie de poção foi, a meu ver, um recurso bastante ordinário. Visualmente, achei a representação de Keziah exagerada: poderia ficar mais assustadora se a apresentassem simplesmente como uma velha de olhar maligno em trajes de época, em vez de um espectro hollywoodiano padrão, totalmente criado em CG, que poderia ter saído de algum filme da franquia <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2017/03/ed-lorraine-warren-demonologistas.html" target="_blank"><span style="color: red;">Invocação do Mal</span></a></i> ou de qualquer outro "terrorzão de shopping". Por outro lado, Brown Jenkin, o familiar da bruxa, ficou perfeito – adequadamente macabro.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt_arQpIlux7QWDf89uqe-BlULtb18EtyfGJQWneovrykF83Nv-oxgNReZaTed0eNDmf37cbd2cvwcgJzAESb-C6JpanS6FYmHDiIUHTQkUIbo1EMu_dwLMPMABTz0mUBtsZLQSAtKO-35HFnGjgoHsuJuAa7pQkcMFKnFFjTRwhpxw4_3lDVxMw/s450/walt%20gilman.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="315" data-original-width="450" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt_arQpIlux7QWDf89uqe-BlULtb18EtyfGJQWneovrykF83Nv-oxgNReZaTed0eNDmf37cbd2cvwcgJzAESb-C6JpanS6FYmHDiIUHTQkUIbo1EMu_dwLMPMABTz0mUBtsZLQSAtKO-35HFnGjgoHsuJuAa7pQkcMFKnFFjTRwhpxw4_3lDVxMw/s16000/walt%20gilman.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;"><i>A Autópsia</i>, dirigido por David Prior, aposta no já tantas vezes bem-sucedido <i>crossover </i>entre ficção científica e terror, propondo uma versão ainda mais assustadora para o clássico <i>Invasores de Corpos</i> (1978). O veterano ator F. Murray Abraham (de quem eu sempre me lembro como o compositor Antonio Salieri, o rival de Mozart em <i>Amadeus</i>) interpreta o Dr. Carl Winters, um igualmente veterano médico legista que atende ao chamado de um velho amigo, o xerife Nate Craven, delegado de uma outrora tranquila cidadezinha mineradora que, há algum tempo, vem sendo assolada por uma onda de desaparecimentos; agora aconteceu um acidente inexplicável na mina que emprega a maior parte da população e que é a base da economia da cidade, tirando a vida de vários trabalhadores. Winters confidencia ao amigo que está sofrendo de um câncer terminal e tem poucos meses de vida – e faz isso pouco antes de entrar na gelada e tétrica sala onde realizará sozinho a autópsia dos mineiros mortos e fará descobertas horrendas. O episódio é muito bom, tenso do início ao fim e com um conceito de arrepiar os cabelos. Só estejam avisados de que, como ele trata em grande parte de autópsias, vocês poderão achar algumas cenas um tanto difíceis de assistir. Eu achei.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como tantas vezes, o melhor de <i>O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro</i> ficou para o final: é justamente <i>O Murmúrio</i> (<i>The Murmuring</i>), dirigido pela já citada Jennifer Kent e tendo como principais atores Essie Davis (também australiana e que atuou em <i>O Babadook</i>) e Andrew Lincoln (da série <i>The Walking Dead</i>). E, assim como o primeiro, este último episódio da temporada é baseado num conto de Del Toro. O primeiro comentário que me veio à cabeça ao terminar de assisti-lo foi que nunca devemos achar que determinado tema já está batido demais para render uma boa história de terror, seja na literatura, cinema ou TV: parece-me que o velho tema da casa assombrada, contanto que seja explorado com competência, nunca deixará de causar calafrios. A história se passa nos anos 50 e os protagonistas são Nancy e Edgar Bradley, um casal de ornitólogos que recentemente passou por uma tragédia pessoal, a perda da filha ainda bebê. Fazendo da dedicação ao trabalho sua terapia, os dois partem para uma pesquisa de campo a fim de estudar os hábitos dos pilritos (pássaros semiaquáticos e migratórios, espécie comum na Europa), o que exigirá que passem um longo tempo numa desabitada região de charcos – o local não é nomeado, mas parece ficar em alguma parte das Ilhas Britânicas. Lá, o casal se aloja numa grande e antiga casa, completamente isolada, parecendo ser a única na pequena ilha onde fica. Está desabitada há 30 anos, mas os retratos nas paredes sugerem que já foi a moradia de uma família perfeitamente normal e feliz – um casal e seu filho pequeno. Nancy se intriga imaginando por que eles teriam partido deixando para trás seus móveis e todos os objetos pessoais, incluindo até mesmo um grande número de cartas, mas seu trabalho com os pilritos ocupa demais seu tempo e energia para que ela possa pensar muito a respeito… Até começar a ouvir e ver certas coisas na casa. Coloquei nessa ordem de propósito: primeiro ela ouve, em meio às horas e horas de gravações dos sons dos pássaros, uma voz infantil sussurrando que está com frio. É indispensável observar que, de acordo com as explicações da própria Nancy, <i>murmuring</i>, em inglês, pode ter dois sentidos: um, bem conhecido e de uso comum, é o de falar baixo, sussurrar; o outro se refere às formações que bandos de pássaros em voo podem assumir, às vezes sugerindo certas figuras (eu nunca tinha ouvido falar nessa segunda acepção). Mais tarde, ela passa a ver o menino andando pela casa às escuras durante a madrugada, às vezes encharcado, com a roupa escorrendo água… É apavorante de verdade, e nisso há muito mérito da diretora, cuja condução é ora sensível, ora implacável. Outra coisa que o espectador nota é que o fato de apenas Nancy ter consciência dessa presença não pode ser mero acaso; Edgar declara repetidamente que nunca viu nem ouviu nada. Isso pode significar, de modo implícito, que, embora tenha sofrido (e ainda sofra) tanto quanto a esposa com a morte da filhinha, ele já conseguiu "ir em frente"; Nancy ainda não. A incapacidade dela de falar sobre sua perda, e o fato – observado pelo marido – de que não verte nenhuma lágrima, indicam que toda a sua dor está trancada dentro dela, atormentando-a dia a dia. Talvez seja essa dor recolhida o que a coloca em sintonia com a dor daqueles que moraram (e aparentemente ainda moram) naquela casa. <i>O Murmúrio</i> chega muito perto da perfeição, conseguindo em uma hora o que muitos longas-metragens de terror não conseguem no dobro desse tempo, e reforça minha vontade de conhecer os filmes anteriores de Jennifer Kent, bem como minha expectativa do que mais ela poderá nos trazer no futuro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Seguindo minha resolução de só entrar em detalhes sobre um episódio no caso de ele ter chamado muito a minha atenção, percebo que acabei falando (mais longamente ou menos) sobre seis dos oito; houve dois episódios dos quais eu não gostei, e por esses passarei muito rapidamente. Um deles foi o terceiro, <i>Por Fora</i>, que, embora abordando temas importantes (até que ponto uma pessoa é capaz de ir em busca de aceitação social e o poder da TV para influenciar comportamentos e criar necessidades), simplesmente não me "pegou"; não consegui construir uma ligação com a protagonista e achei o desenrolar tedioso, de modo que, mesmo que o episódio tenha a mesma duração que a maioria dos outros, com cerca de uma hora, me pareceu muito mais longo que isso. O outro foi o penúltimo, <i>A Inspeção</i>, cujo maior mérito, a meu ver, é o de conseguir imergir com perfeição o espectador na atmosfera dos anos 70 (o ano citado é 1979), por meio do visual dos personagens e da trilha e efeitos sonoros, evocando aquele mundo psicodélico e com tendência ao exagero estético; a fotografia também parece ter sido planejada para remeter a filmes daquela década ou do comecinho da seguinte, como <i>Alien </i>e <i>O Enigma de Outro Mundo</i> – e vamos descobrir que todo o trabalho investido em criar essa semelhança foi com bons motivos, motivos que têm a ver com o roteiro. Infelizmente, esse roteiro nunca chega a dizer a que veio: a maior parte do episódio é preenchida por longas e tediosas conversas entre os personagens, e, quando o componente fantástico é finalmente apresentado, mostra-se genérico, gratuito e jogado de qualquer maneira. Valeu a curiosidade de rever o agora idoso Peter Weller, ator que protagonizou <i>Robocop</i>, um dos melhores filmes de ficção científica de ação da década de 80.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Enfim, Guillermo del Toro fez um belo trabalho criando e produzindo esta série, que, embora irregular, certamente recompensa bem o tempo investido para assisti-la, para os amantes do terror em geral e para os fãs de Del Toro em particular. Pelo que vi na internet, a receptividade do público tem sido boa, o que nos permite cultivar a esperança de que essa primeira temporada não seja a última. Seria excelente se, nas próximas, fossem trazidos contos de outros autores notáveis de terror, fossem antigos ou contemporâneos – <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/06/o-grande-deus-pa.html" target="_blank"><span style="color: red;">Arthur Machen</span></a>, Edgar Allan Poe, Stephen King, Clive Barker… Mas torço para que, se isso acontecer, as adaptações sejam mais fiéis que as de Lovecraft que vimos. Seria bom, ainda, que Del Toro assumisse a direção em alguns episódios. É esperar para ver.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-56646546942516282392022-08-25T21:08:00.007-04:002023-04-02T14:47:03.774-04:00O Minotauro<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZAXQ_KaizYO_APRJdIRQat2rCgjKP_X6KqFSwgNRRBBInQb5JEfRRIJnPE-YnF-Dno0iTlBAv_S_gDIT51G5Hk797L4cvN0YzKSxqhCmc3pwzSjPW15wAd_K8k9j2wXlycA3PO8AJyeZopQhpr3Y2tpTZaBrjzBjMsAwqOjkNB3AO3k2bUwI/s320/Minotauro01.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZAXQ_KaizYO_APRJdIRQat2rCgjKP_X6KqFSwgNRRBBInQb5JEfRRIJnPE-YnF-Dno0iTlBAv_S_gDIT51G5Hk797L4cvN0YzKSxqhCmc3pwzSjPW15wAd_K8k9j2wXlycA3PO8AJyeZopQhpr3Y2tpTZaBrjzBjMsAwqOjkNB3AO3k2bUwI/s1600/Minotauro01.jpg" width="207" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Meu primeiro contato com a obra de Monteiro Lobato, isso lá nos meus quatro ou cinco anos de idade, foi por meio da primeira versão do <i>Sítio do Picapau Amarelo </i>para a TV, aquela clássica, com Zilka Salaberry como D. Benta, Jacira Sampaio como Tia Nastácia, André Valli como o Visconde de Sabugosa, entre outros. Mesmo agora, mais de 40 anos depois, lembro nitidamente de muitos detalhes que se tornaram queridos para mim – músicas, cenas específicas, bordões de personagens, as caras dos atores que os interpretavam –, mas nenhuma lembrança é mais vívida que a da fase baseada no livro <i>O Minotauro</i>, por causa da sensação que eu, pequenino, tinha quando o referido monstro aparecia. A fantasia usada pelo ator (na verdade, a máscara e pouca coisa mais) era bem elementar, mas é claro que aos quatro anos de idade eu não tinha critério para avaliar isso, e, quando ele aparecia, andando lentamente, de forma ameaçadora, ao som de uma música tenebrosa, eu, sentadinho no chão diante da velha TV preto-e-branco que tínhamos na época, me encolhia – mas nem pensava em parar de assistir. Lembro-me da sensação com uma clareza espantosa: parecia que uma bola de chumbo se formava instantaneamente no meu estômago, e continuava ali por um bom tempo, mesmo depois que o temível homem-touro saía de cena.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Portanto, eu já tinha alguma familiaridade com o universo de Lobato quando cheguei à idade escolar, e tive a sorte de ter professoras que me incentivaram a ler (coisa que meus pais também faziam em casa) e tinham especial reverência para com o autor: provavelmente elas próprias o haviam lido na infância. E foi o que eu também fiz. Na já famosa biblioteca do SESI perto de onde cresci (vejam <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2013/02/rhoor-o-invencivel.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">aqui</span></a> e <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2019/04/a-noite-dos-tempos.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">aqui</span></a>) existia uma edição em oito volumes contendo todas as histórias do Sítio. Peguei todos emprestados, um por um (sem me preocupar em seguir a ordem numérica), embora precise confessar que "dropei" algumas histórias, como <i>O Poço do Visconde</i> e <i>Aritmética da Emília</i>, porque o que queria eram aventuras, de modo que achei esses livros "didáticos" demais (mas li a <i>História do Mundo para as Crianças</i> de cabo a rabo; sempre tive uma "coisa" com História). Ainda tenho planos de corrigir esses meus deslizes da infância.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg8h7GbRkXlD4b270ZHynkBNk2Ubt74T_TM0qknGHA5IRKEPJmIvXmyLUyzJMy912b1jQ-LkViTXptIF-afm0nz-erXKG_dEYWHF8CMsw1O2BA9mqrDRp9NiH1miXXKfQgTuZwLuRUkoMirzHVQNB2AHQ8g1NnJKNVcgKwpdQ5rwxqSpAiKQKs/s312/Sem%20t%C3%ADtulo.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="312" data-original-width="206" height="312" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg8h7GbRkXlD4b270ZHynkBNk2Ubt74T_TM0qknGHA5IRKEPJmIvXmyLUyzJMy912b1jQ-LkViTXptIF-afm0nz-erXKG_dEYWHF8CMsw1O2BA9mqrDRp9NiH1miXXKfQgTuZwLuRUkoMirzHVQNB2AHQ8g1NnJKNVcgKwpdQ5rwxqSpAiKQKs/s1600/Sem%20t%C3%ADtulo.jpg" width="206" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Uma coisa da qual eu gostava especialmente era quando Lobato se deixava levar por sua paixão pela Grécia antiga, e os dois maiores exemplos disso são <i>O Minotauro</i> e <i>Os Doze Trabalhos de Hércules</i>, sendo que falei um pouco sobre este último num <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/10/hercules.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">post que tratava desse herói</span></a>. Já o primeiro começa onde termina uma outra história, <i>O Picapau Amarelo</i>, na qual todos os seres e personagens do universo das fábulas e das lendas pedem permissão para se mudarem para o Sítio, e, para acomodá-los, D. Benta compra algumas propriedades vizinhas, usando parte do dinheiro ganho com a extração do petróleo em <i>O Poço do Visconde</i> (essas histórias estão todas encadeadas mesmo). Esse Sítio do Picapau Amarelo estendido vira então uma espécie de versão caipira do <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2007/09/histria-sem-fim.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Império de Fantasia</span></a>, e sei que isso dá origem a várias aventuras e surpresas, embora não me lembre mais da maioria delas. Uma das últimas coisas a acontecer é a festa do casamento de Branca de Neve (ela mesma, a do conto de fadas) com Codadade, um príncipe das <i>1001 Noites</i>, e essa festa é interrompida pelo ataque combinado de todos os monstros da mitologia grega. Na confusão, Tia Nastácia desaparece, e em seguida, não lembro por que, todos os seres da fábula voltam para seus locais de origem. Deduzindo que a velha cozinheira tão querida por todos deve ter sido capturada e carregada por algum dos monstros, D. Benta, seus netos, Emília e o Visconde partem para a Grécia para tentar resgatá-la (nas histórias de Lobato, nem espaço nem tempo são empecilhos para coisa alguma, desde que se tenha imaginação suficiente).</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Está claro que, se o objetivo da expedição é resgatar Tia Nastácia das garras de algum monstro mítico, o período histórico ao qual os aventureiros devem se dirigir é aquele anterior à Guerra de Troia, em plena Idade do Bronze, quando se supõe que tenham vivido os grandes heróis gregos como Hércules, <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2011/12/rei-morto-rei-posto.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Teseu</span></a>, Jasão e tantos outros; entretanto, o mergulho no passado é feito, por assim dizer, de forma gradual. A primeira parada é a Atenas do século V a.C., o assim chamado "século de Péricles", período em que, sob a administração inteligente desse notável ditador de múltiplos talentos, a cidade conheceu seu apogeu cultural. As <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2007/04/logo-que-ele-estreou-algumas-semanas.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Guerras Greco-pérsicas</span></a> tinham-se encerrado com a vitória dos gregos, e, livres dessa ameaça externa, estes últimos puderam dedicar um volume sem precedentes de recursos e trabalho às artes plásticas, à arquitetura e à literatura. D. Benta, uma senhora de muita cultura, sempre teve esse como seu período favorito na História grega, e acaba decidindo ficar ali mesmo, com sua neta Narizinho, enquanto Pedrinho, Emília e o Visconde continuam sua odisseia no passado em busca de Tia Nastácia. Para isso, os três viajam para os tempos da "Grécia heroica", que, para os gregos dos dias de Péricles, já são um passado remoto. A partir daí, o livro alterna capítulos ambientados nas duas épocas. Como hóspedes de Péricles, D. Benta e Narizinho têm a chance de conhecer grandes vultos das artes, ciências e filosofia da Grécia, como os escultores Fídias e Policleto, o historiador Heródoto, o dramaturgo Sófocles, o filósofo Sócrates, entre outros. Enquanto isso, nos tempos míticos, Pedrinho, Emília e o Visconde sobem o monte Olimpo para xeretar como vivem os deuses, assistem escondidos Hércules liquidar a terrível hidra de Lerna no segundo de seus famosos Doze Trabalhos, e, é claro, vão ao resgate de Tia Nastácia, depois de terem consultado o célebre Oráculo de Delfos para descobrir-lhe o paradeiro.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggv3gtDj2KOsF0cz4s1cAWL41A6wHppnW0k0pX0j-p6patyoiFkMGhI49Riy2Qbx5ZeU-Dh9ygtIiO2YUOcUaIdhcPBNjrfyXYvPA1QGPHXWMUZW782tHFkSdszxkNzqOFJRj2I_wS6fjUry13Q1WBQqurOPi1qjDwafbNKEW9Md7TJjunAjQ/s400/Minotauro03.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="367" data-original-width="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggv3gtDj2KOsF0cz4s1cAWL41A6wHppnW0k0pX0j-p6patyoiFkMGhI49Riy2Qbx5ZeU-Dh9ygtIiO2YUOcUaIdhcPBNjrfyXYvPA1QGPHXWMUZW782tHFkSdszxkNzqOFJRj2I_wS6fjUry13Q1WBQqurOPi1qjDwafbNKEW9Md7TJjunAjQ/s16000/Minotauro03.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Mesmo sendo apenas um "aperitivo" para <i>Os Doze Trabalhos de Hércules</i>, livro muito mais extenso e ambicioso, <i>O Minotauro</i> é uma pequena joia da literatura infanto-juvenil brasileira, que, no tempo em que crianças e adolescentes ainda liam livros (bem, pelo menos <i>algumas </i>crianças e adolescentes liam), deve ter plantado em muitas jovens cabeças a primeira noção a respeito da importância verdadeiramente inestimável que a civilização grega teve para o mundo ocidental em todos os aspectos da vida. As conversas que D. Benta mantém com Péricles e seus eminentes convidados fazem a proeza de estarem num nível de compreensão acessível para qualquer criança esperta, sem serem rasas, e estão cheias de "iscas" para a curiosidade infantil, que provavelmente levaram muitos meninos e meninas a quererem saber mais sobre as personalidades e os acontecimentos que são mencionados. (Na época da publicação original, essas informações tinham que ser procuradas em enciclopédias, e por vezes me pergunto se não era melhor desse jeito, já que é uma tendência natural no ser humano dar mais valor àquilo que custou esforço para obter – inclusive conhecimento. <i>Easy comes, easy goes.</i>) E há pelo menos uma fala dela, já perto do final do livro, que só fez ficar mais atual nesses 83 anos que se passaram desde que <i>O Minotauro</i> foi escrito. A convite de Péricles, D. Benta e Narizinho vão assistir, com ele e seus amigos, a uma encenação da tragédia <i>Alceste</i>, de Eurípedes – na época, uma obra que estava estreando. Ao final da peça, conversando sobre ela com Sófocles, D. Benta declara:</p></span><p></p><div style="tab-stops: 127.6pt; text-align: justify;"><i><span style="font-family: georgia;">– Este drama me fez compreender muita coisa, e
sobretudo o que para um povo inteligente significa uma "arte geral".</span></i></div><div style="tab-stops: 127.6pt; text-align: justify;"><i><span style="font-family: georgia;">Sófocles não entendeu.</span></i></div><div style="tab-stops: 127.6pt; text-align: justify;"><i><span style="font-family: georgia;">– Sim, uma arte
que interessa a todos da cidade, absolutamente a todos, desde gênios como
Sófocles, Péricles, Aspásia e Sócrates, até modestos vendedores de figos, como
aquele ali – e apontou para um vendedor de rua, que se sentara perto e que
"sentira" o drama de Eurípedes tão bem quanto o próprio autor. – Isto,
meu senhor, é o que nos falta no mundo moderno, esta absoluta identidade entre
o sentimento do povo e a arte. A arte lá é uma coisa para os eleitos, para as
chamadas elites; aqui é para todos, sem a menor exceção – para ricos e para
pobres.</span></i></div><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O que resta a dizer depois dessas palavras? Não há nada a acrescentar, dá apenas para comentar e ilustrar, e sei de um exemplo que cai como uma luva. Quando minha namorada, Cintia, se cansa do ajuntamento de vizinhos batendo papo na calçada diante de sua porta (é aquele tipo de gente com vocabulário de umas 40 palavras, para quem "caraio" é vírgula, e que parece não saber falar baixo), ela costuma tocar música clássica bem alto. É tiro e queda: não dá 60 segundos e todo mundo some. Quer dizer, esse pessoal está tão idiotizado pela exposição a funk, "sertanejo universitário" e outras atrocidades, que positivamente <i>não suporta</i> ouvir Mozart; qualquer coisa que lembre arte ou cultura os repele, faz com que se sintam mal. Não se enganem, não há nada de casual nisso; muita gente trabalhou com afinco e durante muito tempo para que o nível intelectual médio do nosso povo descesse até esse ponto. Exceto por algum milagre, nenhum desses "mano" (o erro de concordância é proposital) jamais vai ler um livro na vida, nem se perguntar o que está fazendo no mundo ou por que as coisas são como são e não de outro jeito, e, para os que querem o fim da civilização ocidental (não pela sua destruição propriamente dita, e sim por meio de uma sutil e gradual remodelagem feita de dentro para fora), é ótimo que seja assim. Ainda acho que Monteiro Lobato tinha uma visão idealizada demais da Grécia antiga, mas o mero fato de que na época os teatros precisavam ter capacidade para 20, 30, 50 mil pessoas já diz algo sobre o nível cultural de seu povo no tempo de Péricles. Como é explicado no livro, na Atenas de então, como em outras cidades, <i>todo mundo</i> ia ao teatro; o ingresso custava um valor simbólico, e os que mesmo assim não pudessem pagar, recebiam ingressos gratuitos, custeados por um fundo do tesouro público destinado a fins culturais e artísticos. O resultado disso, e de outras ações semelhantes, podia ser sentido dando-se uma volta pelo mercado para ouvir as conversas: havia gente que nem mesmo sabia ler discutindo pontos de filosofia ou trocando análises argutas sobre a política da cidade. É claro que era bem mais complicado governar gente assim do que um povo que mal sabe falar, e, mesmo assim, Péricles e outros ditadores fizeram tudo ao seu alcance para que o teatro, a filosofia, a poesia, a literatura em geral, e todas as outras formas de engrandecimento cultural, florescessem o máximo possível, promovendo uma elevação contínua das capacidades intelectuais de seus povos. (A palavra "ditador" tem um sentido odioso para nós, mas na época queria dizer algo diferente.) A única explicação para isso é que possuíam virtude, uma palavra (e um conceito) que nos soa tão pouco familiar nos dias de hoje.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhupzCWxXUjal3WmUJ3cgo7iOVPRExAudigAWMFllPyLy3Kny8-a4Ky3KgIqdCGevJ-Z7Ct2gdNmmkTpTkM38v0lI9M6QEImlJu8a5OQIsETniBezXW2568zIvvz0qC3cq3PFoqMFP4QxOTh5_SlfwZk0OjxB3GKlYTBkuBj8ewJlz6NT1QaJc/s427/d%20benta%20pericles%20e%20fidias.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="306" data-original-width="427" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhupzCWxXUjal3WmUJ3cgo7iOVPRExAudigAWMFllPyLy3Kny8-a4Ky3KgIqdCGevJ-Z7Ct2gdNmmkTpTkM38v0lI9M6QEImlJu8a5OQIsETniBezXW2568zIvvz0qC3cq3PFoqMFP4QxOTh5_SlfwZk0OjxB3GKlYTBkuBj8ewJlz6NT1QaJc/s16000/d%20benta%20pericles%20e%20fidias.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Por fim, preciso fazer um alerta. O que despertou em mim a vontade de reler <i>O Minotauro</i> foi o acaso de encontrar (numa daquelas feirinhas temporárias de livros que aparecem e desaparecem periodicamente nos corredores de certos shoppings) uma pilha de exemplares de uma edição recente publicada por uma para mim desconhecida editora Pé da Letra. Cada exemplar custava módicos dez reais, então adquiri um e me preparei para um delicioso reencontro com um pedaço tão querido da minha infância… <i>Sabe de nada, inocente.</i> Trata-se de uma edição de péssima qualidade (vai ver é por isso que é barata) e, muito pior que isso, toda estropiada pela censura politicamente correta, algo que, pensando bem, não é nenhuma surpresa, pois antecedentes não faltam (vejam <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/01/politicamente-corretos.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">aqui</span></a>). Entre os personagens do Sítio há um que é muito significativo, apesar de só aparecer uma vez ou outra, o Tio Barnabé, que é uma espécie de personificação da sabedoria popular dos rincões interioranos do estado de São Paulo na época de Monteiro Lobato; pelo que me lembro, sua principal aparição é no livro <i>O Saci</i>, no qual ele conta tudo sobre o próprio, para atender à curiosidade de Pedrinho, menino da cidade. Pois bem… Em <i>O Minotauro</i>, Emília, tentando explicar a um personagem grego o hábito moderno do fumo, cita Tio Barnabé como exemplo:</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Lá no Sítio há o Tio Barnabé, um negro de mais de noventa anos, que não tira o cachimbo da boca. Os médicos dizem que se ele não fumasse estaria já com cem anos.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Isso era o que dizia o texto original… Na edição <i>woke </i>da Pé da Letra, a palavra <i>negro </i>foi substituída por <i>senhor</i>. Eu sei, não tem lógica, nem coerência, nem honestidade intelectual alguma: esperar qualquer uma dessas coisas dessa galera lacradora é como esperar que uma macieira dê jacas. Hoje em dia certas livrarias têm uma estante separada para livros de "autoria negra", onde colocam, entre outros, Machado de Assis, que, para mim, sempre foi "apenas" o maior escritor brasileiro e um dos maiores do mundo em todos os tempos; o fato de ele ter sido negro (na verdade era mulato) nunca sequer entrou nas minhas considerações. Por outro lado, simplesmente dizer que um personagem é negro é considerado ofensivo ao ponto de precisar ser censurado. Se refletirmos a respeito, as duas coisas (e muitas outras) apontam para uma mesma realidade: o Brasil, que sempre teve uma identidade de país miscigenado, e que até recentemente, de modo geral, lidava bem com isso, está se transformando numa sociedade na qual as pessoas são classificadas e julgadas, antes de qualquer coisa, pela cor de sua pele – e os promotores dessa nova "cultura" juram que estão <i>combatendo </i>o racismo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E fica pior. Procurando por Tia Nastácia nos cafundós da Grécia heroica, a mesma Emília pergunta a um pastor se por acaso a teria visto, o que dá lugar ao seguinte e impagável diálogo:</span></p><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>– Que jeito tem essa criatura? – perguntou o pastor.</i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>– Uma beiçuda – respondeu Emília – com reumatismo na perna esquerda, nó na tripa, analfabeta, mil receitas de doces na cabeça, pé chato, gengiva cor de tomate, assassina de frangos, patos e perus, boleira aqui na pontinha, pipoqueira, cocadeira…</i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>– Pare, Emília! – gritou Pedrinho. – Estou vendo que o pó desandou você duma vez.</i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Foi inútil o berro. Emília estava mesmo desandada e continuou:</i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>– Uma negra pitadeira dum pito muito preto e fedorento. Não sabe o que é pito? Ai, meu Deus do céu! Estes gregos não sabem nada de nada. Mas beiço o senhor sabe o que é, não? Pois basta isso. Não viu uma velha cor de carvão, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de beiços deste tamanho na boca? Se viu, é ela.</i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>– Não repare, pastor – disse o menino. – Emília é como certos despertadores que às vezes desandam.</i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>O pastor ficou na mesma, porque não sabia o que era despertador.</i></span></div><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Não farei comentários sobre os "outros efeitos" do pó de pirlimpimpim que possibilita todas essas viagens no tempo e no espaço; sei que é um ponto problemático, mas mesmo assim não sou a favor de mutilar o texto.)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Senhoras e senhores, com vocês versão da Pé da Letra:</span></p><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>– Que jeito tem essa criatura? </i></span><i><span style="font-family: georgia;">– perguntou o pastor.</span></i></div><div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: georgia;">– Lábios carnudos – respondeu Emília. – (…) Uma senhora pitadeira dum pito muito preto e fedorento. Não sabe o que é pito? Ai, meu Deus do céu! Estes gregos não sabem nada de nada. Mas lábios o senhor sabe o que é, não? Pois basta isso. Não viu uma senhora, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de lábios carnudos? Se viu, é ela.</span></i></div><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSjWekKx8C-WT3rnt0KW4qGX_fCAWJeVMA-PFs4nzlQb-MQXx9JVACdYZCmoROKSsEXB68cqvMlvRRndWwku99fgUzAkLTPkvHOvX4z4i97SppZdydgpbCm_xOLWdps2F1YKbAAK11XR2oDtgG9IstX8hbUj0F40qIwOebCNn7DfKfJBWyMDw/s364/Minotauro02.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="364" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSjWekKx8C-WT3rnt0KW4qGX_fCAWJeVMA-PFs4nzlQb-MQXx9JVACdYZCmoROKSsEXB68cqvMlvRRndWwku99fgUzAkLTPkvHOvX4z4i97SppZdydgpbCm_xOLWdps2F1YKbAAK11XR2oDtgG9IstX8hbUj0F40qIwOebCNn7DfKfJBWyMDw/s16000/Minotauro02.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Emília do Sítio do Picapau Amarelo, a marquesa de Rabicó em pessoa, referindo-se a Tia Nastácia não mais como uma "negra beiçuda", e sim como uma "senhora de lábios carnudos"… <i>Lábios carnudos.</i> Pois é. É isso. Suponho que já devamos agradecer por terem permitido que ao menos o pito continuasse a ser descrito como preto. Alguém pode me explicar como, de que raio de maneira omitir a palavra <i>negro </i>(como se o mero ato de mencionar a etnia de uma pessoa fosse ofensivo por si) ajuda a "combater o racismo"? Por que é que, em um momento, separar escritores uns dos outros pela cor da pele é importante, e em outro, é preciso adulterar um texto escrito há mais de 80 anos só porque ele tinha a "ousadia" de descrever as características físicas de uma personagem, entre elas o fato de ser negra? Vocês podem dizer "ei, não ponha tudo no mesmo saco: quem teve a ideia de jerico de criar a 'estante da autoria negra' foi uma pessoa, e quem fez essa barbaridade contra a obra de Monteiro Lobato foi outra". É, mas ambas foram movidas pela mesma ideologia, e, para essa, não há problema algum em dizer uma coisa agora e o seu exato oposto daqui a cinco minutos. Quando não se acredita que exista uma <i>verdade</i>, incoerência e hipocrisia não são motivo de vergonha.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Vamos mais longe. Admitamos por um momento que as falas de Emília no texto original de <i>O Minotauro</i> <i>sejam </i>preconceituosas: isso nos dá o direito de "corrigir" o que o autor escreveu? Eu entenderia se o editor acrescentasse ao livro uma nota preliminar explicando que a linguagem e os conceitos da época do autor eram diferentes dos atuais, mas colocar uma expressão como "lábios carnudos" na boca da Emília é um total despropósito, algo como fazer o Cebolinha, de repente, começar a pronunciar todos os <i>erres </i>corretos. Pior? Provavelmente pior. Há mais exemplos, entre os quais sobressai o momento em que Tia Nastácia, já resgatada, emociona-se ao rever sua querida patroa D. Benta e corre para abraçá-la, gritando: "Sinhá! (…) Sou eu, sua negra velha, Tia Nastácia…" Na edição da Pé da Letra ela diz "sou eu, sua ajudante". Ajudante. <i>Ajudante.</i> AJUDANTE. Pelo menos não puseram "colaboradora", que é como agora são chamados os que antigamente eram "empregados" ou "funcionários", mas soa igualmente morto, frio, sem emotividade, sem as conotações afetuosas do "sua negra velha". Sei o que estão pensando e concordo plenamente: é deprimente mesmo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Entretanto, Monteiro Lobato ainda é Monteiro Lobato e assim será sempre; esse tipo de vandalismo praticado contra sua obra apenas reflete os tempos nojentos que estamos atravessando, e que, Deus o permita, ficarão para trás e serão lembrados somente como uma lição a ser aprendida. E, como eu não queria dar o serviço pela metade, tratei de procurar por outra edição que pudesse ser lida sem causar náuseas. A L&PM tem uma, dentro de sua coleção L&PM Pocket, que, até onde pude verificar, respeita o texto original. Ou então, se vocês forem da mesma geração que eu e estiverem se sentindo nostálgicos, pode valer a pena dar uma fuçada na <a href="https://www.estantevirtual.com.br/" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Estante Virtual</span></a> para tentar conseguir um exemplar de uma das velhas edições da Brasiliense (editora fundada pelo próprio Lobato), com as pra lá de clássicas ilustrações de Manoel Victor Filho.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-4893208914904174362022-02-22T20:45:00.223-04:002022-07-15T00:22:22.228-04:00Cobra Kai<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-size: small;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEi4xetpom4-bg2A8BD5RN-SdX99ZMeGPq-fACJmJMT503mTX3BHef5kZcq13ZqLkhuuOv-1HydX-eeeiMegz9yfI5mlrSYorUGZedn2zEHoQqCjQKaT8JbzZ0qTGN6YmN3eb1h5Dg_fL-DkBzXBBpvgaQGVW_Tlovzdf5L7aQR3Q9SgcTorfYQ=s338" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="338" data-original-width="270" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEi4xetpom4-bg2A8BD5RN-SdX99ZMeGPq-fACJmJMT503mTX3BHef5kZcq13ZqLkhuuOv-1HydX-eeeiMegz9yfI5mlrSYorUGZedn2zEHoQqCjQKaT8JbzZ0qTGN6YmN3eb1h5Dg_fL-DkBzXBBpvgaQGVW_Tlovzdf5L7aQR3Q9SgcTorfYQ=s16000" /></a></span></span></div><span style="font-size: small;"><span style="font-family: georgia;"><span><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span><br /></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span>Pratiquei caratê durante uns seis anos, dos 12 aos 18 (isso foi de meados dos anos 80 até o início dos 90), chegando à faixa verde, que é a terceira na categoria <i>kyu </i>('discípulo'; a contagem é das mais altas para as mais baixas). A outra categoria chama-se <i>dan </i>('mestre') e também tem suas graduações, embora todos os <i>dan </i>usem faixa preta. Como minha namorada, Cintia (neta de japoneses) já me ouviu recordar, receio que mais de uma vez, aprendi a contar até quatro em japonês graças a um dos vários exercícios que fazíamos no <i>dojo </i>('academia'). Esse exercício era assim: obedecendo à contagem do <i>sensei </i>('mestre'), dávamos um passo em frente, acompanhado do golpe que estivéssemos praticando no momento, a cada número que ele enunciava. Ao chegar à parede, fazíamos meia-volta e a contagem recomeçava. Ou seja, se a sala fosse maior, eu teria aprendido mais números!<br /><br />Essa piadinha pueril que circulava no <i>dojo </i>ilustra bem o fato de que, ainda que o caratê nos desse um nível de foco e disciplina que a maioria não tem na nossa idade, mesmo assim éramos garotos (garotOs: em seis anos no <i>dojo</i>, acho que vi umas quatro ou cinco meninas, e uma era filha do professor), e, como nove entre dez garotos, adorávamos filmes de artes marciais. Entre os mais populares estava a trilogia <i>Karate Kid</i>, cujos filmes saíram em 1984, 86 e 89; vi o primeiro quando fazia cerca de um ano que treinava – passou na TV, que era como a gente via filmes na época, de modo que todo mundo viu ao mesmo tempo, e, a partir daí, ele foi o assunto forte na academia durante semanas. O segundo chegou aos cinemas pouco depois que o primeiro passou na TV, e o terceiro, alguns anos depois, e eles também causaram seu impacto, ainda que menor. Nosso <i>sensei </i>nunca disse uma palavra sobre esses filmes; pensando a respeito hoje, creio que ele apreciava a motivação que aquilo nos trazia, e preferia não nos desiludir explicando que muito do que os filmes mostravam era pura fantasia. De todo modo, descobriríamos isso mais cedo ou mais tarde, caso continuássemos treinando.<br /><br />Acho difícil que alguém que esteja me lendo não tenha visto o primeiro <i>Karate Kid</i>, ou não teria se interessado em ler a respeito de <i>Cobra Kai</i>, então talvez eu nem precisasse falar sobre ele, mas não parece certo não dar ao menos um resumo básico (prometo tentar mantê-lo realmente <i>básico</i>). O jovem Daniel Larusso (Ralph Macchio) começa a frequentar uma nova escola depois de mudar-se, e nela conhece e se interessa por Alison "Ali" Mills (Elizabeth Shue), uma garota bonita, rica e popular que é animadora de torcida (é um filme para adolescentes, então relevem os clichês). Ela também gosta dele, embora Daniel seja apenas um calouro magrelo, pobre e sem nada de excepcional (relevem também as inverossimilhanças). Ocorre que Ali, até pouco tempo antes, namorava Johnny Lawrence (William Zabka), que por acaso é o campeão regional de caratê e não aceitou a decisão dela de terminar. Como resultado, Daniel passa a sofrer <i>bullying </i>violento com frequência – e nem sempre de forma inocente: por vezes ele bem que provoca. Quando está levando uma surra particularmente dura aplicada por Johnny e vários de seus amigos que também são lutadores, o garoto é salvo pelo Sr. Miyagi (Noriyuki "Pat" Morita), que trabalha como zelador e faz-tudo no condomínio modesto onde ele mora. Ao ver aquele japonês idoso e baixinho nocautear cinco atletas de caratê de uma vez só, Daniel percebe que o homem é muito mais do que aparenta, e o convence a lhe ensinar caratê para que possa se defender. Durante seu treinamento, ele recebe de Miyagi uma série de lições que, embora direcionadas ao caratê, encontram aplicação nas mais diferentes situações da vida. O filme termina com Daniel e Johnny se enfrentando no torneio regional, e o final dá a entender que a vitória (dramática, como teria que ser) alcançada pelo primeiro deve ter posto fim ao seu tormento. <br /> <br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhZPNA7v2RZpl3z3CdiqXH81mthBSjTmrs83yKG8O1ubOaQeDKQE-C0hAOCZwGVISA6PvHUMBLFtajNRmE0tUJGcsniUKGreiaFM14HGUZHEociz4oPpYDCa8j1PSv6OTet_j_KhsG6qfxEU_P-9xTg872CvPd1Qpi8L6UXNaS75h0RbbvVZ98=s348" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="348" data-original-width="293" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhZPNA7v2RZpl3z3CdiqXH81mthBSjTmrs83yKG8O1ubOaQeDKQE-C0hAOCZwGVISA6PvHUMBLFtajNRmE0tUJGcsniUKGreiaFM14HGUZHEociz4oPpYDCa8j1PSv6OTet_j_KhsG6qfxEU_P-9xTg872CvPd1Qpi8L6UXNaS75h0RbbvVZ98=s16000" /></a></div>Os outros dois filmes são apenas desdobramentos do primeiro. O segundo, ambientado na maior parte em Okinawa (a província natal do Sr. Miyagi, no sul do Japão, e provável local de origem do caratê) é legal; o terceiro é fraco, praticamente uma reciclagem do roteiro do primeiro, mudando apenas os detalhes. Existe um quarto filme que, apesar de contar com Morita novamente no papel de Miyagi, é considerado constrangedor por quase todos os fãs da saga; nele, o mestre treina uma nova aluna, interpretada por Hilary Swank. Ralph Macchio não participa – não que sua ausência seja o motivo da ruindade do filme, pois no terceiro ele está tão irritante que dá vontade de socá-lo, não fosse ele um lutador treinado. Esse quarto filme é solenemente ignorado nos roteiros de <i>Cobra Kai</i>, que têm sempre o maior cuidado em levar em consideração cada mínimo detalhe dos três primeiros.<br /><br />A série estreou em 2018 no YouTube Premium, mas, depois de duas temporadas bem recebidas pelo público, foi adquirida pela Netflix. A terceira temporada saiu no início de 2021, e a quarta, no final do mesmo ano; a quinta já foi confirmada e é esperada para algum momento de 2022. A primeira coisa que chama atenção é o fato de os produtores terem conseguido trazer de volta praticamente todos os atores principais dos filmes (com exceção de Morita, que faleceu em 2005) e até mesmo muitos dos secundários. Os protagonistas são Daniel Larusso e Johnny Lawrence, novamente interpretados por Ralph Macchio e William Zabka, mas, diferente do que acontecia nos filmes, aqui a história é narrada, <i>a priori</i>, do ponto de vista do segundo. Isso fica evidente já no início do primeiro episódio, que exibe as cenas finais do primeiro <i>Karate Kid</i>, com Daniel nocauteando Johnny com o hoje clássico golpe do grou (ou garça), mas, depois do chute que decidiu a final do torneio em 1984, a câmera deixa de lado a comemoração de Daniel e seus amigos para focar em Johnny caído no <i>tatami</i>, atordoado e vencido. A seguir, corta para os dias atuais. Trinta e poucos anos depois de perder o título de campeão de caratê, Johnny sobrevive fazendo serviços de manutenção residencial e mora num condomínio humilde, muito parecido com aquele onde Daniel morava na adolescência – de certo modo, os papéis se inverteram, pois, na época, Johnny parecia ser um rapaz rico, que circulava numa imponente moto e frequentava o elitista <i>country club</i> local. Ficamos sabendo então que ele tem um padrasto rico, mas com quem nunca se deu bem e de quem não quer aceitar favores. Para piorar, tem uma tendência a beber demais. Daniel, em contrapartida, subiu na vida, e agora é dono de várias concessionárias de veículos espalhadas pelo Vale de San Fernando, um distrito de Los Angeles, bem perto de Hollywood e famoso por concentrar as produtoras de filmes adultos (não que isso tenha algo a ver com a história – risos). É casado com Amanda (Courtney Henggeler) e tem dois filhos, a patricinha Samantha (Mary Mouser) e o caçula Anthony (Griffin Santopietro), típico pré-adolescente pé-no-saco que sofre crise de abstinência se ficar uma hora sem celular ou videogame. Samantha, na infância, chegou a aprender caratê com o pai e com o Sr. Miyagi (agora já falecido), mas não pratica há anos, enquanto Anthony nunca teve o menor interesse na arte marcial.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span> </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgCgD7udgh8lJOOxlDhWe6AqlgkkeqrZqkDNdbxzofzsLLFpqQgJ5U0cTtbYxGZCuDBR28Fc81KZA4K_AOlrp2RicUQNXpcDuVQDIhS1YeX1sNefG8HAoA991hXwh3aIQIyxZLdZfzII9VpM045iZtBaTD8aFsfJjMeVO1KCFLQGw-5e1yNI8M=s495" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="369" data-original-width="495" height="298" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgCgD7udgh8lJOOxlDhWe6AqlgkkeqrZqkDNdbxzofzsLLFpqQgJ5U0cTtbYxGZCuDBR28Fc81KZA4K_AOlrp2RicUQNXpcDuVQDIhS1YeX1sNefG8HAoA991hXwh3aIQIyxZLdZfzII9VpM045iZtBaTD8aFsfJjMeVO1KCFLQGw-5e1yNI8M=w400-h298" width="400" /></a></div><br /><span>Johnny encontra algum estímulo para sair de sua estagnação ao conhecer Miguel Diaz (Xolo Maridueña), filho de uma imigrante equatoriana, que acaba de se mudar para o mesmo condomínio junto com a mãe e a avó. Meio por acaso, salva-o de levar uma surra de um grupo de valentões da escola (é curioso como o mundo dá voltas), e nota-se sua satisfação, apesar de tudo, ao constatar que ainda é um excelente lutador. Começa por recusar os pedidos de Miguel para ensiná-lo, mas acaba não só aceitando, como decide recriar o Cobra Kai, nome do <i>dojo </i>no qual treinava na juventude. O Cobra Kai foi originalmente fundado por John Kreese (Martin Kove), um veterano da Guerra do Vietnã que, ao ensinar caratê, punha ênfase na agressão, inculcando em seus discípulos que "compaixão é para os fracos", o que explica, ao menos em parte, o comportamento truculento de Johnny e seus amigos nos velhos tempos. Portanto, as recordações de Johnny a respeito de seu mestre e do lugar onde aprendeu a lutar são ambivalentes: ali ele não aprendeu apenas como dar golpes e como defender-se deles – aprendeu também sobre disciplina e autoconfiança, lições que lhe podem ser úteis agora, que ele está novamente tentando dar um rumo a sua vida; por outro lado, sofreu uma lavagem cerebral que o transformou num indivíduo irracional e violento, um condicionamento do qual ele ainda luta para se livrar. Seu objetivo é passar aos jovens somente o que havia de bom nos ensinamentos que recebeu: como ele próprio diz, quer ensiná-los a "serem durões sem serem babacas". Infelizmente, nem todos os seus alunos assimilam essa lição, e alguns se aproveitam do fato de agora saberem lutar para virarem eles próprios os <i>bullies</i>.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span><br />Daniel fica inconformado ao saber que Johnny trouxe o Cobra Kai de volta e decide contra-atacar abrindo seu próprio <i>dojo</i>, o Miyagi-do, para ensinar caratê focado na autodefesa, tal como aprendeu com seu falecido <i>sensei</i>. Isso reacende a rivalidade entre os dois, mas nota-se que ambos amadureceram (embora nem sempre aparentem) e que têm respeito um pelo outro como lutadores, ainda que cada um ache que sua abordagem do caratê é superior. Em vários momentos chega a parecer que estão a ponto de se tornar amigos, mas, é claro, algo sempre acontece para estragar tudo.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span> </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh-BRaZ2u_lXV8wLgi8H1Ax0q-A0Kq9itxnPA0bxwoC3pSFRi9Ndfe8vGLAdhs4B4TmGl6rDjE20wXhWGuEzpi4cNZTZ26MwAy8CX4ELoU85PkxwEIz4lrW6rsCbiakoahsOITw8SIfXm5QNXbZOuq1TlaYhXwEMAPi0Y6raUAMTU_liQOJt98=s488" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="318" data-original-width="488" height="261" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh-BRaZ2u_lXV8wLgi8H1Ax0q-A0Kq9itxnPA0bxwoC3pSFRi9Ndfe8vGLAdhs4B4TmGl6rDjE20wXhWGuEzpi4cNZTZ26MwAy8CX4ELoU85PkxwEIz4lrW6rsCbiakoahsOITw8SIfXm5QNXbZOuq1TlaYhXwEMAPi0Y6raUAMTU_liQOJt98=w400-h261" width="400" /></a></div> </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span>Paralelamente ao conflito entre os dois <i>senseis</i>, a série também acompanha o que se passa com seus discípulos. Miguel, o primeiro aluno de Johnny, faz progressos impressionantes e torna-se um lutador de primeira linha, ao mesmo tempo que se envolve com Samantha, a filha de Daniel, que, por sua vez, redescobre o interesse pelo caratê e volta a treinar. Johnny, embora nunca tenha se casado, tem um filho com uma ex-namorada; o rapaz, Robby (Tanner Buchanan), tem a mesma idade de Miguel e Samantha e faz o tipo adolescente revoltado. Não quer ver o pai nem pintado e vive com a mãe, mas ela também não é nenhum grande exemplo de comportamento, nem se responsabiliza de fato por ele, de modo que Robby aprendeu a se virar sozinho desde muito cedo – a se virar do jeito errado, diga-se de passagem. Anda nas piores companhias, não estuda e se dedica a praticar pequenos furtos e outras contravenções. Consegue um emprego na concessionária de Daniel apresentando um currículo falso, e, na verdade, é tudo parte de um plano que fez com seus amigos pilantras para infiltrar-se no local e mais tarde roubá-lo, mas acaba se afeiçoando a seu chefe, que o trata de forma justa e lhe ensina muitas coisas – caratê inclusive – sem saber que ele é filho de seu velho rival, pois o garoto usa o sobrenome da mãe. Os ensinamentos de Daniel e o equilíbrio trazido pela prática do caratê vão gradualmente colocando Robby nos eixos; para Johnny, é como se Daniel estivesse roubando seu filho, tal como lhe "roubou" o título de campeão tanto tempo atrás. A certa altura, as coisas entre Miguel e Samantha desandam, e, por treinarem juntos no Miyagi-do, a garota já tinha proximidade com Robby, que sempre foi a fim dela (que é muito bonita, meiga, e ao mesmo tempo corajosa) e aproveita o afastamento entre ela e o namorado para "atacar"; esse triângulo amoroso está destinado a render muita história ao longo da série. Outros personagens jovens também têm lugar na trama, e a maior parte do elenco <i>teen </i>se sai surpreendentemente bem.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span><br />Sem dar muito <i>spoiler</i>, adianto que outros rostos do passado vão surgindo e trazendo reviravoltas que obrigam Johnny e Daniel a trabalharem juntos, o que, no entanto, nunca acontece sem atritos. A série tem roteiros ágeis, com as doses certas de ação e drama; as partes românticas não são exageradas a ponto de se tornarem enjoativas, nem as partes de luta a ponto de cansarem (há também momentos de humor aqui e ali). Como dito acima, muitos atores da trilogia de longas-metragens (<i>muitos </i>mesmo) vão reaparecendo um por um, dando vida novamente a seus antigos personagens, o que é empolgante e divertido – puro <i>fan service</i> da melhor qualidade! Para dar uma ideia, até Randee Heller, que interpretava Lucille Larusso, mãe de Daniel, está de volta, velhinha como sua personagem teria que estar depois de mais de 30 anos. Rob Garrison, que fazia o papel de Tommy, um dos lutadores do Cobra Kai original e amigo de Johnny, retorna num episódio que investe na nostalgia – já muito debilitado pela doença que o mataria pouco depois.<br /> </span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiAQzR1yz47sankbHqttCSVzWnMYYIxhZUsE-ZwA9vO_UKLFDb7EP6lJOzhbukLDC57z86aXEVGOS9LMYmEx7JnNjJ2p8rBuOTUQIbVVdMuKP01kAWogWoY-VvXHgjwWKaDKkyPI3wFAbQ_i8DKxwrXEU27OV3ayv56Knk_0jKqRCiyO3QRVDU=s426" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="426" data-original-width="246" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiAQzR1yz47sankbHqttCSVzWnMYYIxhZUsE-ZwA9vO_UKLFDb7EP6lJOzhbukLDC57z86aXEVGOS9LMYmEx7JnNjJ2p8rBuOTUQIbVVdMuKP01kAWogWoY-VvXHgjwWKaDKkyPI3wFAbQ_i8DKxwrXEU27OV3ayv56Knk_0jKqRCiyO3QRVDU=w186-h320" width="186" /></a></div>No que diz respeito ao caratê em si, não sou um especialista, mas, como contei, cheguei a ter contato com a coisa e digo que, nesse quesito, <i>Cobra Kai</i> supera bastante os filmes que lhe deram origem. Nos filmes, sempre me incomodaram a falta de postura (postura mesmo, física) e os movimentos moles de Ralph Macchio; mesmo um aprendiz como eu podia ver que ninguém conseguiria lutar um caratê decente daquele jeito. Nosso <i>sensei </i>sempre nos cobrou energia e firmeza: cada movimento devia ser feito com força, os músculos precisavam funcionar. Em comparação com os filmes, a série cuidou muito melhor dessa parte; com certeza contou com mestres de artes marciais como consultores, e provavelmente os atores tiveram que treinar de verdade, o que não significa que tudo ali seja realista. Entre outras coisas (naturalmente), no mundo real ninguém se torna um lutador em questão de algumas semanas, como os alunos de Johnny e Daniel, mas, na minha opinião, dá para perdoar essa "licença poética" numa boa.</span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">Vou confessar, tive um certo receio do que iria encontrar quando decidi assistir <i>Cobra Kai</i>; teria sido péssimo descobrir que o legado dos filmes <i>Karate Kid</i> só estava sendo usado como pretexto para empurrar um monte de lacração (o que não seria inesperado vindo do YouTube, e ainda menos da Netflix), mas, depois de ver alguns episódios e ter tempo de sentir a <i>vibe </i>da série, a sensação foi de alívio, além da empolgação. Pois <i>Cobra Kai</i>, surpreendentemente, não só nos poupa do insuportável discurso politicamente correto, como até mesmo tem a ousadia de tirar um leve sarro dele. Johnny é o próprio estereótipo do "macho hétero top" que, para os progressistinhas de Twitter, resume tudo o que há de errado no mundo (em muitos círculos, "hétero" virou pejorativo): gosta de cerveja, de rock das antigas (nada posterior aos anos 80), de carros, motos, filmes de ação (tem uma epifania ao assistir a uma reprise do clássico <i>Águia de Aço</i>), esportes de combate (claro!!) e não entende muito bem o mundo moderno com sua tecnologia e suas frescuras – e isso tudo rende momentos engraçados, mas não é apresentado de forma negativa. Mesmo com seu passado de vilão, Johnny é um personagem com quem nos importamos e por quem torcemos. Há uma cena impagável em que uma nova aluna se apresenta à turma e, depois de dar o nome, acrescenta que seus pronomes são "ela" e "dela". (Parêntese: para quem não sabe que besteira é essa, é costume na Lacrolândia colocar no seu perfil nas redes sociais os pronomes que você quer que as pessoas usem para falar de você, porque, no mundo do politicamente correto, é considerado violência presumir o sexo [ou "gênero", como eles dizem] de alguém mediante uma mera inspeção visual; se um sujeito barbudo, peludo e musculoso, cujo RG o identifica como Alcides, declarar que está se sentindo mulher, quiser ser chamado de Shirley e que se refiram a ele como "ela", todo mundo tem que fazer isso. Fim do parêntese.) Johnny replica que os únicos pronomes que importam ali são "<i>sensei</i>" e "aluno". A garota diz que esses são substantivos, e o mestre encerra o papo: "Oh, desculpe. Eu quis dizer CALE A BOCA!" Perfeito!! Ao longo da série, mais de um garoto moloide e cheio de não-me-toques se transforma depois de algum tempo no <i>dojo </i>– em qualquer dos <i>dojos</i>.</div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span><br />Colocando a questão em palavras simples, o fato é que o caratê e outras artes marciais são a antítese dessa cultura da glorificação da fraqueza que nos cerca hoje. O mundo está cheio de jovens "floquinhos de neve" – mimados, frágeis, hipersensíveis – que se ofendem e se magoam com tudo e são absolutamente incapazes de qualquer coisa que exija um mínimo de determinação ou sacrifício, e isso nem é o pior: o pior é que a mídia e grande parte da sociedade incentivam e recompensam esse tipo de atitude. No caratê, você precisa de força de vontade para obter qualquer progresso, precisa se acostumar à obediência pronta, a treinar sempre, não importa se está disposto ou não, a conviver com a dor, a esforçar-se pela vitória mas encarar serenamente a possibilidade da derrota, e precisa aprender a não se abalar com um corretivo severo aplicado pelo seu <i>sensei</i>; precisa fortalecer o corpo e o espírito. Enfim, ele desenvolve virtudes que aqueles que controlam a mídia atual não querem que as pessoas tenham. Portanto, apostar numa série com essa temática foi uma iniciativa corajosa, e a excelente recepção que ela vem tendo é um bem-vindo sinal de que ainda podemos ter alguma esperança de que a humanidade não acabe morrendo afogada num oceano de cancelamentos e pronomes neutros.</span></div></span></span></span></div>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-29154614323796283312021-11-22T21:39:00.001-04:002022-01-22T22:26:33.344-04:00O Ano em que a Terra Parou<div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: georgia;"><span><span style="color: #cc0000;"><span style="font-size: medium;">Seguidor</span></span> <br /></span></span></i></div><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><i>Acalme-se e preste atenção<br />Faça o que disserem,<br />o que todos os outros fazem.<br />Vende seus olhos e pule de cabeça<br />Não questione, não pense<br />Não exista.<br /></i></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><i>A verdade é real demais para você.<br />Ela estraga a imagem, não é?<br />Não queira acreditar, não queira ver,<br />pois a realidade é o inimigo.</i></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><i>Um cenário nascido de<br />imagens censuradas na TV<br />Um mundo construído a partir<br />de uma realidade censurada.</i></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><i>É tão simples apenas entrar na linha<br />Faça o que disserem,<br />o que todos os outros fazem.<br />Não conserte o que está errado,<br />apenas faça brilhar o que é legal.<br />Não questione, não pense<br />Nem mesmo abra a boca.</i></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><i>Cada história cortada para caber<br />na tela e nos olhos do público<br />Transformada para caber <br />na sua mente pequena e frágil.</i></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><i>É longe demais...</i></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><i>Certeza inquestionável,<br />uma fé cega na autoridade<br />e uma confiança que vai<br />mantê-lo subjugado.</i></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><i>É longe demais...</i> </span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><br /></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span>Machinae Supremacy<br /><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><i>Follower</i><br /><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span><span> </span>Álbum: <i>Arcade </i>(2003)</span></span></p><p style="text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><span> * * *<br /></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span></span></span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-family: georgia;"><span></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><span></span></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhUOAXA4oDYi37FC2Y2NHVBJQlyUcb1WxyNOTBbzMWIWfF6aZ6dHnrSZUhue2VBvijv84vi7Y-CtJXulT_u-vZ83O2xQL-7KJowy0XmppGcJpiYMiKh4TLuCwQwDmHRkSkmtI6vHWoyTVTPw96suFVlnM43giiGBimud3aWIjO-q4Yakp_2TdQ=s320" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhUOAXA4oDYi37FC2Y2NHVBJQlyUcb1WxyNOTBbzMWIWfF6aZ6dHnrSZUhue2VBvijv84vi7Y-CtJXulT_u-vZ83O2xQL-7KJowy0XmppGcJpiYMiKh4TLuCwQwDmHRkSkmtI6vHWoyTVTPw96suFVlnM43giiGBimud3aWIjO-q4Yakp_2TdQ=s16000" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><span><div style="text-align: justify;">Este blog sempre foi muito mais voltado para a literatura de ficção, e, embora algumas obras de não-ficção tenham eventualmente ganho espaço (como <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2009/09/o-culto-do-amador.html" target="_blank"><span style="color: red;"><i>O Culto do Amador</i></span></a>, de Andrew Keen, e, mais recentemente, os <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2019/12/manual-politicamente-incorreto-da.html" target="_blank"><span style="color: red;">Manuais Politicamente Incorretos</span></a></i>), procuro comentar temas ligados a política e sociedade apenas quando eles se imiscuem na literatura – o que inevitavelmente acontece: a coisa mais magnífica a respeito da literatura é sua capacidade de retratar (e transformar em objeto de reflexão) todo e qualquer aspecto da experiência humana, de modo que esses não seriam exceções. De qualquer forma, há momentos em que um tema se impõe, e assim foi com <i>O Ano em que a Terra Parou</i>, livro que praticamente me atropelou e me manteve num estado reflexivo durante vários dias. Preciso esclarecer, <i>a priori</i>, que meu conhecimento sobre os temas tratados pelo autor Luciano Trigo não é profundo, e estou ciente disso; na verdade, vai pouco além daquilo que qualquer pessoa minimamente bem informada e sem antolhos presos na cara pode ver todos os dias nesses tempos estranhos e ruins que atravessamos, mas concluí que escrever a respeito desse livro será bom para mim, porque me ajudará a organizar as ideias. É inevitável que em algum momento eu escreva alguma bobagem e/ou acredite ter entendido algo que, na verdade, é muito diferente de como eu imagino; tudo o que posso dizer em minha defesa é que mesmo esses tropeços terão sido motivados por um esforço sincero para entender uma realidade muito, muito confusa. Caso meus estudos posteriores me façam identificar algum erro, volto e corrijo. E, se por acaso alguém ler este post e se beneficiar de algum ponto dele, ou eventualmente chegar a ler o livro por causa do que vou dizer, melhor ainda.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span><div style="text-align: justify;">Quem lê o título <i>O Ano em que a Terra Parou</i> pensa, é claro, em 2020, quando a explosão da pandemia de COVID-19 e suas consequências viraram de pernas para o ar a vida da maioria das pessoas em todos os países, e, de fato, o assunto é tratado nestas páginas, mas não é o assunto principal do livro, e também não será o meu aqui, pois não quero deixar o texto exageradamente longo e há outros pontos abordados por Trigo sobre os quais tenho bem mais a dizer. O subtítulo, <i>Polarização da política e a escalada da insanidade</i>, dá uma ideia de quais são. O livro, publicado no início de 2021, é baseado em vários artigos sobre política e sociedade que o autor escreveu ao longo do ano anterior.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span><div style="text-align: justify;">Vivemos tempos muito estranhos, mas não dá para dizer que não fomos avisados. George Orwell, em seu <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2006/10/um-livro-proftico.html" target="_blank"><span style="color: red;">1984 </span></a></i>(cuja primeira edição é de 1949) previu uma sociedade na qual a simples constatação da realidade não seria mais permitida: nela, as coisas só teriam permissão de existir, ou de ser desta ou daquela forma, com a condição de se coadunarem com a ideologia dominante – e é exatamente o que acontece hoje. A diferença é que o mundo previsto por Orwell era mais sincero: a ideologia era imposta, na maior parte das vezes, de maneira franca, por meio de uma repressão violenta de qualquer visão discordante. Hoje, por outro lado, o que vemos é uma miríade de grupos e movimentos que invariavelmente apregoam defender a liberdade, o respeito, a democracia e o amor – e, em nome da liberdade, do respeito, da democracia e do amor estão sempre prontos a lançar ataques virulentos e covardes contra qualquer um que discorde deles, ou que simplesmente não seja como eles acham que deveria ser. Movimentos que afirmam defender a dignidade dos negros, na verdade só estimulam o ódio contra os brancos. O feminismo há muito tempo que deixou de lutar por igualdade de direitos para as mulheres (se é que esse já foi alguma vez seu objetivo); hoje só faz reclamar por privilégios e, talvez mais importante, tentar desmoralizar os homens e ensinar o maior número possível de garotas a odiá-los (dando lugar, entre outras coisas, ao curioso fenômeno das adolescentes ou jovens universitárias que dedicam seus dias a entupir as redes sociais com frases feitas de apelo misândrico como "morte ao pênis" e "abaixo o patriarcado", usando o <i>smartphone </i>que ganharam do papai). Grupos "LGBT" propagam (em geral de forma velada, mas às vezes nem se dão ao trabalho) que heterossexuais são escória. De tudo isso se conclui que, se você é homem, branco e heterossexual, já está errado pelo mero fato de existir, e sua única possibilidade de se redimir um pouco (porque totalmente é impossível) é pedir desculpas diariamente por ser o que é, reconhecer que nenhum homem branco hétero merece qualquer tipo de respeito ou consideração, e ainda ouvir quieto as pessoas papagaiarem que você é "privilegiado" e "opressor". E a grande mídia abraça com entusiasmo toda essa ideologia, o que explica por que já não se pode confiar nem mesmo em veículos de imprensa que tinham outrora uma reputação sólida. Hoje, noticiar a realidade já não tem importância; o que importa é corroborar as narrativas que estiverem na ordem do dia.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span><div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhRrCvpcl8wfg3IgC6iOH_q8U4AInWftC3uwPQ7Ec9BTeznod2K-pj9xIcgh9ekFT4lVyUWIjQkXhX9opp7oA3ShUkKcU6-IwuLC5sxztUrx5yErQj84nl8B3dzzHeFFiOrZlykNcXDn6XMqzd7nz2sS9VE6gGDuiBB0ec7tls-ZUQGsVl3D64=s290" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="290" data-original-width="194" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhRrCvpcl8wfg3IgC6iOH_q8U4AInWftC3uwPQ7Ec9BTeznod2K-pj9xIcgh9ekFT4lVyUWIjQkXhX9opp7oA3ShUkKcU6-IwuLC5sxztUrx5yErQj84nl8B3dzzHeFFiOrZlykNcXDn6XMqzd7nz2sS9VE6gGDuiBB0ec7tls-ZUQGsVl3D64=s16000" /></a></div>Em meio a esse cenário, a internet tem um papel ambivalente. Como não se pode mais confiar na mídia <i>mainstream</i>, o que nos resta é recorrer a sites, blogs e vídeos produzidos de maneira independente para buscar informações e interpretações menos tendenciosas (não que isso seja fácil, pois também não faltam produtores independentes de conteúdo alinhados com essa agenda "progressista"). Ao mesmo tempo, as redes sociais se transformaram no paraíso dos <i>haters</i>, pessoas cuja razão de viver consiste em destilar ódio contra qualquer um que seu movimento identitário favorito rotule como O Mal. E, é preciso reconhecer, esses movimentos sabem como explorar a necessidade básica que os seres humanos sentem de fazer parte de algo, de pertencer a uma "tribo". Como, ao longo das últimas décadas, instituições como religião e família, que, historicamente, sempre cumpriram o papel de ajudar o indivíduo a achar seu lugar no mundo, vêm sendo sistematicamente demolidas, a militância digital tornou-se, para muitas pessoas – quase sempre jovens – a única âncora que encontram, a única coisa que lhes proporciona um simulacro de sentido e evita que sintam que suas vidas são um completo desperdício. Escondidas por trás da tela de um computador (hoje em dia, aliás, quase sempre do celular), multidões de pessoas medíocres e covardes se deliciam a praticar o linchamento virtual de quem ousar levantar alguma objeção ao discurso hegemônico – discurso hegemônico esse que <i>sempre </i>se apoia no pretexto de defender as "minorias". O mais assustador é ver que um número enorme dessas pessoas realmente <i>não percebem</i> o absurdo da contradição em que caem: escrevem "textões" ou gravam longos vídeos pedindo por uma sociedade mais "plural" e "inclusiva", condenando os preconceitos e o "discurso de ódio", para, um instante depois, liberar todo o seu <i>ódio </i>contra qualquer um que pense diferente sobre qualquer assunto, ou que meramente não faça parte de nenhuma das "minorias" pelas quais essas pessoas acreditam estar lutando. Não basta, por exemplo, defender os negros: se você insinuar que os brancos também merecem respeito, você é um "racista" desgraçado e se transforma automaticamente num alvo; daí em diante, enxames de heroicos militantes, defensores incansáveis da liberdade e da democracia, começarão a bombardear suas redes sociais com milhares de mensagens xingando-o de tudo em que conseguirem pensar e desejando abertamente a sua morte – é o que chamam de "cancelamento". Para alguém que é apenas um cidadão anônimo, com um trabalho comum, pode parecer que esse tipo de perseguição cibernética não tem um potencial de dano tão grande assim (desde que você seja adulto e tenha uma cabeça forte): basta esperar que a "galera do bem" se canse de ofendê-lo e ameaçá-lo e parta em busca do próximo alvo. Já para pessoas públicas, que dependem de sua imagem para sobreviver, o buraco é bem mais embaixo, já que o "cancelamento" não move apenas indivíduos isolados: não faltam exemplos de atores, músicos, jornalistas etc. que perderam contratos e patrocínios, ficando, na prática, impossibilitados de trabalhar, simplesmente por terem expressado alguma opinião conservadora ou de outra forma impopular, o que os grandes conglomerados de mídia não podem tolerar, para não ficarem mal na foto com o pessoal lacrador, que será sempre uma fatia expressiva de seu público, e, dependendo do segmento, forma com frequência a maioria dele. Pensando bem, dependendo de onde aquele cidadão anônimo de que eu falava há pouco trabalhe (leia-se: dependendo de quem seja o seu empregador), virar alvo da militância pode acabar em desastre também para ele.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span><div style="text-align: justify;">Novamente é inevitável pensar em George Orwell. Winston Smith, o protagonista de <i>1984</i>, tem um diário no qual registra pensamentos esparsos – muitos deles, coisas que o Partido consideraria subversivas, e por isso ele mantém o segredo. Espero que não se importem se não cito com exatidão literal, pois li o livro há mais de 30 anos e nunca o reli (por sinal, talvez esteja na hora), mas lembro que uma das anotações de Winston é, na ideia geral, assim: "Liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isso, tudo o mais decorre." Para a minha versão adolescente, o sentido dessas palavras não era muito claro; hoje é, graças, em parte, a um outro autor, <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2007/09/histria-sem-fim.html" target="_blank"><span style="color: red;">Michael Ende</span></a>, que escreveu que "os homens vivem de ideias, e as ideias podem ser dirigidas". Se isso é verdade para o indivíduo, também o é para a sociedade, que é feita de indivíduos. E hoje vivemos um tempo em que a liberdade de dizer que dois e dois são quatro nos foi tirada. Não se pode mais olhar para as coisas, analisá-las por meio dos sentidos e da razão, e concluir "isto é assim". Agora, é a ditadura do politicamente correto que decide como as coisas são e como não são, e, se os fatos refutarem a ideologia, então "cancelam-se" os fatos; simples assim. Dentre inúmeros exemplos possíveis, virou "fascismo" e "discurso de ódio" afirmar que um ser humano com pênis e testículos é um homem, e um ser humano com vagina e ovários é uma mulher. Agora cada um decide o que quer ser, e todo o restante da sociedade precisa acatar sua doideira em vez de acatar a realidade – e, se você não aceita, merece ser "cancelado", porque é um "fascista", o que virou um xingamento-padrão, sempre na ponta da língua de milhões de pessoas que não têm a menor ideia do que essa palavra significa. Chamam de fascista qualquer um de quem não gostem por qualquer motivo; é o equivalente pós-moderno de "feio e bobo".</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh_djGut5A-j7Fwq1YwwWQpaqUl-9Dc14zrCWBUv_DVpazhCsNQ5iR3MC0B-ITgQlTdyn5QqtsglmnEr5oXiS4mktfB3paw4nHAcRNd2U80tateslhJTl1VqoR-DBYJk9KmJzxZiqaagueGKe_Zjr1cPUOL70_kJdNtQ-SiukXuW1zFE9Kjie0=s473" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="370" data-original-width="473" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh_djGut5A-j7Fwq1YwwWQpaqUl-9Dc14zrCWBUv_DVpazhCsNQ5iR3MC0B-ITgQlTdyn5QqtsglmnEr5oXiS4mktfB3paw4nHAcRNd2U80tateslhJTl1VqoR-DBYJk9KmJzxZiqaagueGKe_Zjr1cPUOL70_kJdNtQ-SiukXuW1zFE9Kjie0=s16000" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;">Isso me leva a outro ponto abordado por Trigo: a total dominação do ambiente universitário pela esquerda, que abandonou o discurso clássico da "luta de classes" (que não cola mais, nem mesmo no meio acadêmico) para adotar as pautas identitárias mencionadas acima. Dizendo de outro modo, as faculdades se tornaram essencialmente antros de lacração – todas elas, mas em especial as de ciências humanas, cuja esfera de estudos oferece mais espaço a essas pautas – e, hoje em dia, são pouca coisa além disso, o que vem agravar um problema que já existia antes: o baixíssimo nível de conhecimento com que a maior parte dos alunos do ensino superior sai das faculdades. Pode não ser politicamente correto dizer isso, mas o fato é que nem todo mundo nasceu para o trabalho intelectual; porém, ao longo dos últimos dois séculos mais ou menos, um diploma universitário passou a ser um acessório indispensável para que uma pessoa alcançasse sucesso profissional e financeiro (é verdade que hoje em dia um diploma não garante mais nada, mas funcionava assim até recentemente). Isso fazia com que milhares de pessoas sem qualquer talento para trabalhos acadêmicos, ou sequer interesse por eles, seguissem qualquer caminho torto que fosse necessário para obter o famigerado diploma; adquirir conhecimento não era uma preocupação. E hoje está ainda pior: com uma ou outra exceção, o universitário brasileiro (e os de outros países) sai da faculdade sem saber interpretar um texto simples, que dirá escrevê-lo, mas plenamente capacitado para repetir um discurso pronto cheio de palavras compridas e levantar mil e uma bandeiras "em prol das minorias", sem enxergar que está agindo como um idiota útil para movimentos que na verdade nunca ligaram a mínima para mulheres, negros, homossexuais ou o que for, e sim para seus próprios objetivos puramente políticos. E o problema nem é o fato de o estudante ser exposto a pautas esquerdistas – é o fato de ele ser exposto <i>exclusivamente </i>a pautas esquerdistas, sem nenhum contraponto, nenhuma possibilidade de comparar ideias e informações para formar a própria opinião. Há todo um aparato cultural, dentro e fora das universidades, dedicado a inculcar nas cabeças ainda em formação dos jovens a noção de que essa é a única forma aceitável de pensar e que, se alguém vier com qualquer discurso diferente, a coisa certa a fazer é tapar os ouvidos e xingar (aos berros, de preferência) essa pessoa de fascista, sem nem querer saber o que ela tem a dizer e se faz algum sentido ou não. É claro que jovens assim sempre existiram, pois a juventude é, por definição, uma fase da vida em que sabemos pouco e temos um monte de certezas (quanto mais uma pessoa sabe, menos certezas ela tem, mas isso é algo que ela só compreende quando fica mais velha; algumas, nem mesmo então), mas talvez seja a primeira vez na História que vemos isso numa escala tão absurdamente grande e com tal potencial destrutivo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span><div style="text-align: justify;">É fácil notar, olhando-se para o passado e o presente, que, enquanto muitas coisas mudam constantemente de uma época para outra, algumas permanecem sempre iguais, e uma destas é o fato de que, quando algum projeto social mal-intencionado precisa de uma numerosa massa de manobra, são sempre os jovens o alvo preferencial. Eles têm uma tendência natural ao entusiasmo (que pode facilmente se converter em fanatismo), e, como ainda estão construindo suas identidades, também têm inseguranças; o anódino mais comum para essa sensação angustiante e crônica consiste em se verem aceitos num grupo – e, se o grupo que encontrarem for alguma militância progressista, está feita a porcaria. Em geral eles são presas fáceis, já que esses movimentos, além de tudo, dão ao jovem a sensação de ter o poder de fazer alguma diferença no mundo. Além disso, por ainda não terem tido tempo de adquirir um grande conhecimento do mundo, os jovens tendem a não enxergar a complexidade das coisas e a ver tudo de maneira binária: tudo é preto ou branco, bom ou mau, "nós" ou "os outros"; ou seja, é mais fácil convencê-los a aderir a uma determinada visão de mundo (por mais incoerente e estúpida que seja) do que seria convencer um adulto. É claro que mesmo um adolescente pode já ter princípios firmados e conceitos morais bem definidos, dependendo da educação que tenha recebido. No passado, movimentos como o nazismo e o comunismo precisaram de muito trabalho para remodelar todas aquelas mentes jovens; já para os movimentos esquerdistas identitários de hoje, está muito mais fácil, porque a maioria da juventude atual recebeu pouca ou nenhuma formação moral e só tem noções vagas e "elásticas" a respeito de certo e errado. Também há o fato de que, graças à educação "inclusiva" e à tecnologia que nos dá tudo fácil e na hora, no século XXI estamos testemunhando um fenômeno inédito na história: crianças e jovens com QI mais baixo que o de seus pais e avós. Esse conjunto de fatores talvez explique a aparente incapacidade de muitos militantes de rede social para compreender, por exemplo, que não apoiar o Black Lives Matter, que promove terrorismo e incita a violência, não faz de ninguém um racista; que ser contra o feminismo, que tem como único resultado prático transformar mulheres em criaturas azedas e histéricas, cheias de ódio, não significa ser machista; que não é preciso ser socialista ou comunista para se preocupar com os pobres. Não: se tecer a menor crítica a qualquer um desses movimentos, você é um "fascista" e merece a morte. Enquanto isso, naturalmente, eles podem dizer o que quiserem de quem quiserem, pois, afinal, a liberdade de expressão é sagrada – a deles, é claro. E essas são as pessoas que estarão conduzindo o mundo daqui a alguns anos… Sem querer ser apocalíptico demais (mas já sendo), acho que estamos vendo o palco armado para a instauração de uma nova forma de totalitarismo que o próprio Orwell provavelmente nunca imaginou, nem em seus piores pesadelos.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span><div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEi_OMVanOJHFGaaEX4gkV6_rP6u8G1lQECzqiLARQV9MBca-WQjpETUznfZypRwqv0Y-6ClselpKcznB2012qRow7kZvKZ5Gx8MV4wRpmMNp5e6TebxM6PEaqVlMTUQCJcFejYgCX01lYvc-0dyKbnVbyA5xpgIpgRNOy9oeFFPQoxSWNTAjWw=s363" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="363" data-original-width="270" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEi_OMVanOJHFGaaEX4gkV6_rP6u8G1lQECzqiLARQV9MBca-WQjpETUznfZypRwqv0Y-6ClselpKcznB2012qRow7kZvKZ5Gx8MV4wRpmMNp5e6TebxM6PEaqVlMTUQCJcFejYgCX01lYvc-0dyKbnVbyA5xpgIpgRNOy9oeFFPQoxSWNTAjWw=s16000" /></a></div>(Como seria inevitável acontecer num quadro como o já descrito, os vários discursos "em prol das minorias" volta e meia entram em colisão, o que coloca as militâncias numa sinuca de bico. O movimento negro [esse sim, racista até não poder mais] e o feminismo, por exemplo, deveriam ser aliados naturais, já que ambos têm os mesmos objetivos – fomentar a discórdia e criar conflitos –, mas como se supõe que eles devam se posicionar num caso como o da mulher que deu piti dentro de uma daquelas megapadarias de São Paulo e, durante seu surto, ofendeu e agrediu, fisicamente inclusive, vários funcionários, alguns deles negros e/ou gays? Havia seguranças e policiais no local, mas nenhum se atreveu a fazer nada, pois sabiam que poderiam ser presos por encostar a mão numa mulher, não importa o que ela estivesse fazendo [ela também sabia disso, como se nota no registro em vídeo que um funcionário fez do incidente – confiram <a href="https://www.youtube.com/watch?v=NBR2Z17cMpo" target="_blank"><span style="color: red;">este vídeo</span></a> do Canal Tragicômico, que, além do registro em si, traz comentários pertinentes sobre o caso e sobre os absurdos da cultura da lacração em geral; por sinal, esse canal é excelente, considerem a possibilidade de inscrever-se]. Nessa situação, o que um militante que honra sua conta no Twitter deve fazer? Por um lado, ela é mulher e, portanto, é intocável e está sempre certa. Por outro, está tendo condutas racistas e homofóbicas! Apesar de tudo, não deixa de ser engraçado ver as múltiplas cabeças da hidra identitária lutando entre si.)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span><div style="text-align: justify;">(Por mais que eu fosse adorar receber o crédito por bolar essa magnífica imagem comparando a esquerda identitária a uma hidra com várias cabeças, preciso assinalar, por uma questão de honestidade, que não fui eu o autor da façanha, e também não lembro quem foi: ouvi isso em algum outro vídeo no YouTube.)</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><div style="text-align: justify;">Não será novidade para ninguém que siga este blog (ou que tenha, no mínimo, dado uma olhadela nele) a minha admiração pela civilização romana, mas nem por isso fecho os olhos ao fato de que muitas de suas conquistas só foram possíveis graças ao expediente maquiavélico (palavra que não existia naquele tempo, mas que serve bem) do <i>divide et impera</i> – dividir para dominar. Em geral não era preciso fazer muita coisa para promover a divisão entre os povos da época, que, em sua maioria, se organizavam em tribos, frequentemente inimigas entre si, mas, quando necessário, os romanos eram hábeis em achar maneiras de jogar essas tribos umas contra as outras, sabendo que assim seria muito mais fácil conquistá-las do que se todas elas se pusessem lado a lado contra o invasor. A esquerda do século XXI (ironicamente, financiada pelo grande capital internacional, aquele mesmo que os marxistas abominavam e queriam combater) também conhece esse método, conta com todo o poder da mídia a seu favor, e é isso o que ela tem feito e continua fazendo: criar o máximo possível de divisões dentro da sociedade, jogando negros contra brancos, mulheres contra homens, gays contra héteros e assim por diante, pois, dessa forma, a sociedade como um todo tem muito menos condições de oferecer resistência a um plano de dominação cultural em grande escala. Os movimentos que compõem essa esquerda identitária não têm o menor interesse no fim do racismo, do sexismo ou da homofobia, porque, se essas formas de segregação e discriminação desaparecessem, os tais movimentos perderiam sua justificativa para existir. O que eles realmente fazem é açular cada vez mais os conflitos, a fim de sempre terem munição para seus discursos e transformar isso em ganho político – da mesma forma como não é do interesse da maioria dos políticos do Brasil erradicar a miséria em meio à população, e sim administrá-la, de modo a sempre contar com uma massa de eleitores pobres e desesperados que vendam facilmente seus votos em troca de qualquer pequeno benefício financeiro que lhes permita sobreviver por mais um mês. Trigo dedica algumas páginas a isso também.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><i>O Ano em que a Terra Parou</i> é leitura altamente recomendável para todos os que já perceberam o quanto o mundo mudou nos últimos poucos anos, notaram que essa mudança não foi para melhor, mas ainda estão tentando entender o que aconteceu, o que ainda está acontecendo, e como as coisas ficaram e podem ficar nos próximos anos. Ou seja, é recomendável para <i>muita</i> gente. Para mim, ajudou muito a interpretar certos fenômenos que eu já tinha observado, mas ainda não tinha compreendido completamente o que podiam significar, e também a fazer as ligações entre certas coisas e certas outras – e sempre entendemos melhor a situação geral quando conseguimos estabelecer ligações entre fatos que, à primeira vista, podem parecer não ter nada em comum. Naturalmente que não concordo com todos os pontos do autor (com a grande maioria, mas não com tudo), mas, concordando ou não, posso atestar que ele nunca falha em estimular o leitor a refletir. Há muito mais que eu poderia comentar sobre os assuntos em que já toquei acima e sobre outros que estão presentes no livro, mas o texto já está mais longo do que eu pretendia. Além disso, creio que não faltarão oportunidades de abordar esses assuntos – mais oportunidades do que eu gostaria, já que, para infelicidade nossa, esses fenômenos estão aí, e ignorá-los é inútil.</div></span>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-15649936682808991762021-10-28T22:20:00.071-04:002021-12-10T22:05:00.762-04:00Duna, o Filme (2021)<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhvtMnPHLTBW5lpcpCMzMXUUVSWMEHewHcu9Oy0c0PqVD9aEQyusM7PjO8OnmyKPNMYFfxIys2wDK4AZEp1XxN4ik_IGz7B1PKvRAkkq7qsNJr08dkl0XIDsA7HqImDouQmTxYe8Q/s400/ca5b9160371f176a522a110136e2dcc1.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="400" data-original-width="270" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhvtMnPHLTBW5lpcpCMzMXUUVSWMEHewHcu9Oy0c0PqVD9aEQyusM7PjO8OnmyKPNMYFfxIys2wDK4AZEp1XxN4ik_IGz7B1PKvRAkkq7qsNJr08dkl0XIDsA7HqImDouQmTxYe8Q/s16000/ca5b9160371f176a522a110136e2dcc1.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Como um fã da obra de Frank Herbert desde a adolescência, eu tive o cuidado de dizer a mim mesmo, antes de ir ao cinema conferir a nova versão de <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2013/10/duna.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Duna</span></a></i> dirigida por Denis Villeneuve, para não ser exigente demais – além de orar fervorosamente para que o diretor (que também é corroteirista) não tivesse desfigurado muito a história original só para fazer concessões à tirania politicamente correta que afeta praticamente tudo nesses anos loucos que estamos vivendo. Por outro lado, estava empolgado para ver o que as novas tecnologias do cinema poderiam ter feito para recriar o universo de Herbert com um visual ainda mais espetacular.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A primeira surpresa não tardou a surgir, e nem era relacionada a roteiro ou imagens: ocorre que nada na (intensa) publicidade que tenho visto na internet a respeito do filme dava a entender que esta era só a <i>primeira parte</i>. Entrei no cinema acreditando que fosse ver um filme único, e sua mui considerável duração de duas horas e 36 minutos parecia confirmar isso, já que é maior que a do filme de 1984, dirigido por David Lynch, que contava, ou tentava contar, a história de cabo a rabo. Mas não: era mesmo só a primeira parte, e acabo de ver, depois de uma rápida pesquisa, que as filmagens da segunda ainda nem começaram, e que sua estreia está prevista para o distante outubro de 2023, se o mundo não acabar antes, naturalmente. Teria sido legal deixar isso claro com antecedência, mas não me importei: se os dois filmes de Villeneuve, juntos, tiverem um resultado satisfatório, a espera terá valido a pena, e talvez, dispondo de mais tempo (tempo de filme, quero dizer), o diretor consiga contar a história de uma maneira mais redondinha, mais inteligível para quem não leu o livro, como já acontecia na minissérie de 2000 do Sci-Fi Channel, que é bem mais amigável ao espectador não iniciado que o filme de Lynch, embora eu, pessoalmente, não goste muito de sua parte visual.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E contar uma história como <i>Duna </i>na tela, de uma maneira que possa ser acompanhada até por quem não conhece bulhufas sobre seu universo (o que sempre será o caso da maior parte do público no cinema), é muito, mas <i>muito </i>difícil. A todo momento aparecem coisas que parecem impor ao diretor uma escolha entre incluir um diálogo expositivo totalmente artificial ou deixar o público boiando. Um exemplo banal, mas bem prático, é o dos campos de força individuais que os personagens usam e chamam simplesmente de "escudos": o livro explica que eles repelem objetos que se aproximem em alta velocidade, mas podem ser penetrados se a lâmina, projétil ou o que for, se aproximar lentamente, o que exigiu o desenvolvimento de técnicas de combate muito específicas. O problema é como explicar isso a quem não leu o livro sem recair no famigerado diálogo expositivo, aquele tipo de cena forçada em que dois personagens começam a falar sobre algo que, pela lógica do enredo, ambos já deveriam estar carecas de saber, mas falam mesmo assim, só para que o espectador receba essas informações. Em algumas situações, Villeneuve encontrou maneiras de evitar isso, como, por exemplo, ao incluir uma cena em que Paul está estudando e, de carona com ele, captamos o que o livro-filme que ele está vendo ensina a respeito da especiaria e de sua importância dentro do universo conhecido. É verdade que em sua idade, e sendo filho de um governante planetário, ele certamente já saberia tudo isso, mas todos sabemos que é impossível estudar, seja qual for a matéria, sem acabar revendo coisas que já se sabe.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8cwA9I9r7l0hrm_32DpTCebpfdt-8qOUdNmWSg8N-65rOfTWlgQ4J4JniXqlJ_qXqxLCKzOMre3iXC-8zlvCub9n-wjSedbvb5M-iV2giwtS0rnK7rVuKngBtwSc0kWkOsuEnsQ/s340/20200909-dune1.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="340" data-original-width="315" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8cwA9I9r7l0hrm_32DpTCebpfdt-8qOUdNmWSg8N-65rOfTWlgQ4J4JniXqlJ_qXqxLCKzOMre3iXC-8zlvCub9n-wjSedbvb5M-iV2giwtS0rnK7rVuKngBtwSc0kWkOsuEnsQ/s16000/20200909-dune1.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Porém, ao ver o filme, não foi esse o primeiro comentário que me veio à cabeça, e sim (inevitavelmente) um a respeito do protagonista: dos três atores que já encarnaram Paul Atreides nas telas, Timothée Chalamet, americano de origem francesa, é sem dúvida o que tem mais a cara do personagem. Tanto ele quanto Kyle MacLachlan, que fez o papel no filme de 1984, já tinham cerca de 25 anos ao interpretarem o personagem de 15, mas Chalamet aparenta muito menos, convence mais como adolescente, e não só pela aparência: o cara é bom de atuação, conseguindo passar aquela sensação de insegurança, de incerteza a respeito da própria capacidade de fazer o que é esperado dele – enfim, a própria essência da adolescência. Não estou de forma alguma tirando o mérito de MacLachlan: o Paul que ele fazia era mais do tipo arrogante e mimado (no início), o que não seria nada inesperado no herdeiro único de uma poderosa casa nobre; o personagem seria, muito em breve, forçado a amadurecer muito depressa, amadurecimento esse que MacLachlan também conseguiu expressar com eficiência. Quanto a Alec Newman, da minissérie, não sei, não é que o cara não tenha feito um bom trabalho, mas eu simplesmente não consigo olhar para ele e pensar "eis aí Paul Atreides". É subjetivo sim, admito.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Nota de rodapé: entre outros papéis, Timothée Chalamet interpretou <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2008/02/henrique-v.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Henrique V</span></a> num filme da Netflix de 2019 intitulado simplesmente <i>O Rei</i>. Considerando suas origens francesas, é curioso ele ter sido selecionado para esse papel.)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Ainda dando rápidas pinceladas sobre o elenco, Oscar Isaac (o Poe Dameron de <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/12/rogue-one-uma-historia-star-wars.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Star Wars</span></a></i>) me surpreendeu como o duque Leto Atreides, sendo tudo o que o personagem deveria ser: imponente, com uma presença marcante, um ar de nobreza transparecendo até nos gestos mais simples, e uma combinação equilibrada de severidade e gentileza. Rebecca Ferguson está OK como Lady Jessica, companheira de Leto e mãe de Paul, mas confesso que sempre imaginei Jessica como uma mulher linda, e quem chegou mais perto de preencher esse requisito foi Francesca Annis, do filme de David Lynch. Stellan Skarsgård aparece quase irreconhecível como o vilão barão Vladimir Harkonnen, mas mostra a mesma versatilidade de sempre. Dave Bautista está adequadamente bestial interpretando Rabban, o sobrinho do barão, por ele nomeado governador de Arrakis, mas, curiosamente, o outro sobrinho, Feyd-Rautha, não aparece. Será que ele aparecerá na segunda parte, ou Rabban acumulará seus atributos e ações? Só o tempo vai dizer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O papel de Chani, a futura companheira de Paul, ficou com uma para mim desconhecida Zendaya, que tem uma aparência interessante, uma beleza não óbvia (quero dizer, você precisa se acostumar com ela antes de começar a achá-la bonita) e plausível considerando que, no filme, ela é filha da ecologista imperial Liet-Kynes, interpretada por Sharon Duncan-Brewster, que é negra, de modo que o estilo mestiço de Zendaya vem a calhar. Kynes, por sinal, foi a única grande concessão feita por Villeneuve ao "sistema de quotas" politicamente correto, já que, tanto no livro quanto nas duas produções anteriores, esse personagem era <i>homem</i>. Este também é o primeiro <i>Duna </i>a apresentar uma grande variedade étnica, com muitos personagens negros e pelo menos um oriental (o Dr. Yueh, cujo nome até combina bem com isso), e não creio que esse fato seja coincidência, mas a coisa não foi feita de maneira forçada, então não há do que reclamar.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgWevcAx1fsJhIDa2ux522hvrNyb_Hndzxq_HeFs2Lski4Xd7WL21LIgWBzLg-baYpYNRTwGOuZjvdiQ0b-3F00D9ZqvVEOh5GxG4zv_H39CoLmqwomHk4XDiZ2W-oL2Kq3E-LNwQ/s439/dune__exp_04.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="342" data-original-width="439" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgWevcAx1fsJhIDa2ux522hvrNyb_Hndzxq_HeFs2Lski4Xd7WL21LIgWBzLg-baYpYNRTwGOuZjvdiQ0b-3F00D9ZqvVEOh5GxG4zv_H39CoLmqwomHk4XDiZ2W-oL2Kq3E-LNwQ/s16000/dune__exp_04.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Josh Brolin (o Thanos dos filmes dos Vingadores) captou bem o estilo de seu personagem, o guerreiro-trovador Gurney Halleck, que, em geral, faz o tipo fleumático, embora uma das primeiras cenas em que ele aparece (cena essa, aliás, indispensável em qualquer adaptação de <i>Duna </i>que se preze) seja justamente uma em que perde a paciência: aquela em que Paul declara que "não está com disposição" para treinar, e Halleck, indignado, lhe dá uma bronca dizendo que "disposição é coisa para gado, para tocar <i>baliset </i>e fazer amor", e que "você luta quando é necessário, independentemente de disposição". Além disso, me agradou muito que essa nova versão tenha resgatado uma característica de Gurney que tanto o filme de David Lynch quanto a série do Sci-Fi haviam deixado de fora: como um bom trovador, ele sempre tem uma citação de poesia na ponta da língua para qualquer situação.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E, claro, não dá para não mencionar o mestre espadachim Duncan Idaho, que, além de ser professor de Paul (junto com Gurney, Thufir Hawat e o Dr. Yueh), também é provavelmente o melhor amigo do rapaz. No novo filme, o papel foi dado a Jason Momoa, já nosso conhecido por ter interpretado <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/03/conan-o-barbaro-livro-1.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Conan</span></a> no sofrível <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2011/10/conan-o-barbaro.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">filme de 2011</span></a> dirigido por Marcus Nispel, além de ter sido Aquaman nos filmes da DC e também o bárbaro Khal Drogo em <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2015/08/cronicas-de-gelo-e-fogo-guerra-dos.html" target="_blank"><i><span style="color: #cc0000;">Game of Thrones</span></i></a>. Momoa está ótimo na pele desse guerreiro valente e leal.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Chegou o momento de falar, mesmo que só brevemente, sobre a história, ou melhor, sobre o jeito como o novo filme a conta, e, ao me preparar para isso, acho necessário observar que não vou repetir aqui tudo a respeito de Arrakis, da especiaria e outras coisas que já comentei do <i>plot </i>de <i>Duna </i>e do universo no qual ele se ambienta, uma vez que já existe no blog um post referente ao livro, que contém muito disso; sugiro que sigam o link que está no início deste post e leiam também aquele.)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A história, no filme, começa de uma maneira interessante, com uma breve narração em <i>off </i>feita por Chani, falando sobre seu planeta natal, Arrakis (ou Duna) e sobre a opressão sofrida por seu povo, os Fremen, durante 80 anos por parte dos Harkonnen, até um decreto do imperador forçá-los a ir embora, para serem substituídos pelos Atreides, que, até onde a garota sabe, podem não ser melhores. Funciona bem como introdução, e a transição para outro ponto de vista ocorre suavemente, quando o filme passa a se ocupar da casa Atreides, que, até então, ainda governa Caladan, planeta onde existem oceanos e chuva, o que produz um contraste chocante quando eles se mudam para Arrakis. O duque Leto, líder da casa, vive há muitos anos de forma conjugal com Lady Jessica; os dois se amam e são marido e mulher em tudo, exceto no nome: Leto não se casou porque, mantendo-se solteiro, podia usar a possibilidade de um eventual casamento como trunfo político. Paul é o filho único (até então) em quem o casal deposita grandes esperanças, e, de fato, o rapaz possui muitas capacidades, inclusive algumas inesperadas: tem visões, sonhos premonitórios, percebe muitas coisas de maneira instintiva, e, se tudo isso já era verdade quando ele vivia em Caladan, aumenta ainda mais em Arrakis, onde, querendo ou não, é impossível não se entupir da especiaria, que está literalmente em toda parte, suspensa no ar, impregnada nos alimentos… E, como se sabe, ela amplia a percepção em todos, e muito mais em quem já possui poderes latentes. E aqui o filme tropeça em outro problema: embora as visões e os sonhos de Paul sejam uma peça importante na história (já era assim no livro), tive a sensação de que o roteiro abusa um pouco disso, colocando diante de nós várias e várias cenas representando essas visões, o que prejudica o ritmo da narrativa – por vezes de forma desnecessária.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhRK3HT98PIeyNpwKr1CCcKZs8k4_lWXkNZ6g1qyEzWx9-BpwCC6EILpzaww8t0u058w8CVTqtiJuDDkcvpd-RecurGkH51PQ4WdkPDxGKzEsMtKZKOrZkciJ4soAE8ZAtKVW36Ag/s461/dune-1-DU-07195rv4_High_Res_JPEG-1024x683.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="349" data-original-width="461" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhRK3HT98PIeyNpwKr1CCcKZs8k4_lWXkNZ6g1qyEzWx9-BpwCC6EILpzaww8t0u058w8CVTqtiJuDDkcvpd-RecurGkH51PQ4WdkPDxGKzEsMtKZKOrZkciJ4soAE8ZAtKVW36Ag/s16000/dune-1-DU-07195rv4_High_Res_JPEG-1024x683.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Passando a falar sobre a parte visual, eu <i>babei </i>ao ver os veículos conhecidos como ornitópteros, embora a concepção deles no filme tenha pouco a ver com seu nome, que significa, literalmente, 'asas de pássaro': os ornitópteros que aqui vemos parecem um cruzamento de helicópteros com gigantescas libélulas dotadas de vários pares de asas que vibram tão depressa que se tornam invisíveis, como as das libélulas mesmo. As cenas deles voando sobre o deserto de Arrakis são magníficas – e o visual do deserto também é diferenciado, alguma coisa ali sugere uma ambientação alienígena, talvez o padrão das dunas ou a coloração da areia; ainda é identificável como o que chamaríamos de deserto, mas sem se parecer completamente com os desertos da Terra.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E do deserto, é claro, chegamos aos vermes. Minha versão favorita deles é a do filme de David Lynch, diretamente baseada nas ilustrações feitas para as capas dos livros de Frank Herbert nos anos 60 e 70; nessa versão, a bocarra da criatura possui mandíbulas triplas, que se abrem como uma gigantesca flor de três pétalas, tendo o interior guarnecido por centenas de dentes que lembram facas – e não por acaso, já que esses dentes são a matéria-prima para a fabricação da faca cristalina, a arma sagrada dos Fremen (na dublagem nacional do filme de Villeneuve, a palavra usada é <i>dagacris</i>, ou coisa parecida; suponho que seja como se lê na tradução brasileira mais recente, publicada pela editora Aleph; a edição que tenho é a antiga, da Nova Fronteira. Qualquer uma das duas formas seria uma adaptação possível a partir do original <i>crysknife</i>). No novo filme, eles têm a boca circular, desprovida de mandíbulas, o que lhes dá uma aparência mais semelhante à dos vermes terráqueos… E confesso que essa concepção não me agrada muito, justamente porque o verme da areia de Arrakis deveria ser algo de admirável, grandioso, e, portanto, bem distinto dos vermes que conhecemos aqui na Terra, e que normalmente achamos repulsivos. Usa-se, inclusive, como insulto: você chama alguém de "verme" para dar a entender que a pessoa é insignificante ou desprezível; os Fremen, com toda a certeza, jamais usariam essa palavra dessa forma. Ainda sobre o novo design dos vermes, os dentes também mudaram, ficaram parecidos com barbatanas de baleia, e preciso admitir que essa aparência, embora menos estética, faz mais sentido, já que a criatura filtra a maior parte de seu alimento a partir da areia tal como as baleias fazem na água. Talvez, então, a faca seja feita com uma parte do dente, possivelmente a raiz ou a parte logo acima dela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><p style="text-align: justify;">Os Sardaukar, ou as Legiões do Terror do imperador, também merecem ser mencionados, pois, no filme de Villeneuve, foram pela primeira vez retratados da maneira tenebrosa e cruel que lhes é adequada. No livro consta a informação de que, tal como os guerreiros espartanos, eles são recrutados ainda crianças e submetidos a um treinamento brutal – mais brutal que o dos espartanos, já que a maioria nem mesmo sobrevive até a idade adulta, mas os que sobrevivem tornam-se soldados terríveis. O fato de Shaddam IV ter cedido um grande número de Sardaukar para reforçar o exército Harkonnen no ataque a Arrakeen (a capital e maior cidade de Arrakis) foi o principal motivo para que o barão Vladimir tenha apostado tudo no sucesso desse golpe traiçoeiro, confiando numa vitória contra as bem treinadas tropas Atreides.</p><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Na verdade, o universo de <i>Duna </i>é tão vasto e cheio de detalhes que nenhum filme ou série jamais conseguirá explorar todas as riquezas dos livros, mas foi agradável ver que, nesse novo filme, o diretor (também corroteirista, lembrem-se) decidiu incluir algumas pequenas coisas que os realizadores anteriores deixaram de lado, e que, mesmo pequenas, são fascinantes e significativas. Exemplo: nas paredes do Castelo Caladan (a fortaleza ancestral de onde os Atreides governaram durante séculos o planeta de mesmo nome) há um quadro retratando o velho duque, pai de Leto, paramentado como toureiro, e lá está também a cabeça empalhada do enorme touro que o matou. O livro menciona de passagem que ele morreu na arena, dando um espetáculo para seu povo, o que não é essencial para a história, mas rende um detalhe cheio de significado: como Paul conhece a história de como seu avô morreu, a cabeça do touro, que ele vê todos os dias, torna-se para ele um <i>memento mori</i>, como aquelas caveiras que pintores cristãos punham em seus quadros para lembrar a quem os visse que a vida humana é finita, e que é assim para ricos e pobres, para poderosos e gente comum.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhY5e3qMElJqTvcMFxCGnC4jcXYiAmy5nuEixkg47vRhGM5EGv9bHjKUPtN1mfEpIpWjNo2FitEO9UvkAzL4FxB3_X3JP4Z9g4d2w5nVwOH2WsLkbErnQxNxkBOHwMYIABO3CWk3xx4iZa7_N6APvjJqX7RSWnyCQQqeQhgAMgeXrul1mSWOrI=s489" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="278" data-original-width="489" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEhY5e3qMElJqTvcMFxCGnC4jcXYiAmy5nuEixkg47vRhGM5EGv9bHjKUPtN1mfEpIpWjNo2FitEO9UvkAzL4FxB3_X3JP4Z9g4d2w5nVwOH2WsLkbErnQxNxkBOHwMYIABO3CWk3xx4iZa7_N6APvjJqX7RSWnyCQQqeQhgAMgeXrul1mSWOrI=s16000" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Como inevitavelmente aconteceria em qualquer adaptação de <i>Duna</i>, seu universo futurista possui algumas características muito próprias, que impactam o roteiro e o visual. Por exemplo, graças ao Jihad Butleriano (também referido como a Grande Revolta, ou ainda como a Cruzada das Máquinas), na época retratada não existem robôs nem grandes computadores – é por isso que a especiaria é essencial para as viagens espaciais, pois, sem a ajuda de computadores, só mesmo capacidades extrassensoriais poderiam guiar um piloto com segurança em deslocamentos em velocidade superior à da luz. Armas laser existem, mas não parecem ser comuns, talvez porque seu custo seja muito alto para que seja possível equipar grandes exércitos com elas, de modo que as batalhas envolvem um amplo uso de armas brancas como punhais e espadas – quem diria: as batalhas do futuro se assemelham às medievais, pelo menos nesse aspecto. E uma das poucas ressalvas que preciso fazer ao filme é justamente a respeito das batalhas: achei a maior parte das cenas de combate confusas, aquela balbúrdia visual em que você não consegue distinguir direito o que está acontecendo, uma coisa que, pessoalmente, me incomoda. É uma pena ainda maior se considerarmos que Duna poderia ter cenas de batalha do nível das de <i>Coração Valente</i> ou <i>O Último Samurai</i> – claro que com um clima e um visual compatíveis com o universo criado para o filme. Tais cenas não ficariam deslocadas, não pareceriam gratuitas, e com certeza empolgariam o público. Quem sabe na segunda parte?</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Por falar em continuações, é inevitável nos perguntarmos: será que, uma vez feita a segunda parte e concluída a história de <i>Duna</i>, e admitindo-se que o resultado nas bilheterias seja bom, Denis Villeneuve e os outros realizadores se darão por satisfeitos, ou prosseguirão com a saga adaptando os livros seguintes de Frank Herbert? (Sempre me perguntei se David Lynch teria continuado, caso seu filme tivesse feito sucesso, o que, infelizmente, não foi o caso.) O autor concluiu seis volumes antes de sua morte em 1986, e seu filho, Brian Herbert, tentou continuar o trabalho do pai, tendo lançado vários livros em parceria com Kevin J. Anderson, expandindo ainda mais o universo de <i>Duna </i>e aprofundando pontos que só eram tratados por alto nos escritos do criador original. Não li nenhum desses ainda, mas sei que existem volumes dedicados a várias das casas nobres (Atreides, Harkonnen, Corrino etc.) e também um a respeito do Jihad Butleriano, entre outros. Sei o que estão pensando e concordo: mesmo que esses livros sejam bons, é difícil dizer se eles são realmente uma parceria criativa, ou se Anderson escreveu quase tudo enquanto Brian Herbert contribuía, basicamente, com o peso de seu nome. Viajando bastante na maionese, eu diria que os seis volumes escritos por Frank Herbert poderiam ser adaptados para o cinema, enquanto as obras de Brian Herbert e Kevin J. Anderson talvez rendessem uma ou mais séries de TV… Mas estou pondo o carro na frente do verme: como disse, não li os livros dessa dupla, não sei se a adaptação valeria a pena, e, mesmo que a resposta seja positiva, quem garante que algum produtor se interessaria? Já os livros de Frank Herbert, esses não há dúvida de que valem a pena. Se pelo menos o segundo volume, <i>O Messias de Duna</i>, chegar às telas, prevejo que a escolha da atriz que interpretará Alia, a irmã de Paul, será uma questão sensível para mim. A história desse livro passa-se alguns anos depois da de <i>Duna</i>, e Alia, que no final do primeiro livro era pouco mais que uma criança de colo, está com 15 anos; eu tinha a mesma idade quando li o livro pela primeira vez, e me apaixonei pela personagem. Ou seja, não sou ninguém pra julgar as meninas que se apaixonam pelo Edward de <i>Crepúsculo</i>.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Tirando uma média geral, <i>Duna 2021</i> é um baita filme, não perfeito, é claro, mas que corresponde com honra às expectativas. Preciso ver a segunda parte antes de formar uma opinião definitiva, mas parece ter potencial para vir a ser a melhor das adaptações audiovisuais do romance de Frank Herbert, e também para ser o piloto de uma saga cinematográfica que poderá se tornar legendária. Resta-nos torcer para que esse potencial não seja posto a perder.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-7910868132904202372021-09-20T21:56:00.065-04:002021-10-08T20:07:06.627-04:00Capa, Espada e Lacração<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihQC3mxqTj3Z06lfS0JT6MAE1wZghyphenhyphenQ2l5k1239D57CQ31UVVSCB5cUS9KZoNjBvDXvEED5LeTioeerc0Dx7CQxU8tdj4FAi_ZfxVMxZRPd9WGJloqcQYeM4qKavMHEdrhABVtkQ/s516/estauta.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="516" data-original-width="269" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihQC3mxqTj3Z06lfS0JT6MAE1wZghyphenhyphenQ2l5k1239D57CQ31UVVSCB5cUS9KZoNjBvDXvEED5LeTioeerc0Dx7CQxU8tdj4FAi_ZfxVMxZRPd9WGJloqcQYeM4qKavMHEdrhABVtkQ/s16000/estauta.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Já fui leitor assíduo e inclusive assinante da revista <i>Aventuras na História</i>, que várias vezes me forneceu informações úteis aqui para o blog – pelo menos <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/01/politicamente-corretos.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">uma vez</span></a>, aliás, ela foi a fonte mais importante. Parei de acompanhar ao sentir em suas matérias uma tendência cada vez maior para o politicamente correto, o que, coincidência ou não, começou a acontecer por volta de 2014, quando a revista foi vendida pela editora Abril, que a publicava até então, para a editora Caras (sim, a da revista de fofocas), que, por sua vez, é vinculada ao UOL, que só não ostenta o título de "portal oficial da lacração" porque a concorrência é feroz. Mesmo assim, e pelo menos até a época em que parei de ler a revista, eu, apesar de ter notado que as interpretações eram, por vezes, enviesadas, ainda confiava, em linhas gerais, nas informações concretas ali fornecidas, até março do ano passado, quando… Bem, é melhor começar pelo começo.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Acho que isso acontece com todos vocês: ao abrir o aplicativo do Google no meu celular para fazer uma busca qualquer, o referido aplicativo me apresenta uma série de notícias, matérias, anúncios etc., que seu algoritmo presume, baseado no meu histórico de buscas, que poderão ser do meu interesse. Como minhas buscas muitas vezes envolvem personalidades ou eventos históricos, é frequente que o <i>app </i>me recomende matérias do site da <i>Aventuras na História</i>, ou apenas AH, como ela se intitula agora. Em março de 2020, dizia eu, ao abrir mais uma vez o tal do Google, me deparei com uma dessas matérias, artigos, ou como quer que eles chamem, assim intitulada: <i>Livro de receitas de 3500 anos indica que os antigos romanos inventaram o hambúrguer</i>. Era evidente, ao menos para mim, que "algo errado não estava certo": como poderia um livro de 3500 anos indicar fosse o que fosse relacionado a Roma, cidade que não existiria ainda por mais de sete séculos, já que a data tradicional de sua fundação é em 753 a.C.?… Mandei um e-mail para a revista apontando o erro e recebi em resposta uma mensagem curta agradecendo pelo aviso (não consigo deixar de achar inacreditável que alguém que escreve para uma revista especializada em História precise que um leitor lhe "avise" sobre a data da fundação de Roma) e dizendo que a notícia já tinha sido "atualizada". Uma busca no site depois dessa resposta mostrou que a tal "atualização" consistiu na discreta remoção da notícia em causa. E foi isso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Aí, na semana passada, ao abrir o Google, achei a chamada para outra notícia na AH, assinada por Isabela Barreiros e intitulada da seguinte forma: <i>Embranquecido e reconhecido apenas no século 21: a saga de Alexandre Dumas</i>. E o subtítulo: <i>O autor de </i>Os Três Mosqueteiros<i> se inspirou na vida do pai para escrever clássicos da literatura</i>. Os problemas já começam aí: como alguém que só foi reconhecido no século XXI – ou seja, em algum momento durante os últimos 21 anos – pode ter obras que já são consideradas <i>clássicos</i>? Um livro só começa a ser chamado de clássico depois de ter suas qualidades amplamente reconhecidas tanto pelo público quanto, pelo menos, por uma expressiva parcela da comunidade acadêmica, e depois que sua influência já pode ser sentida nas obras de autores mais jovens. Isso tudo demora, no mínimo, uma geração, e normalmente mais. Portanto, não há como Dumas ter <i>primeiro </i>se tornado clássico para só depois ser "reconhecido"; trata-se de uma impossibilidade lógica. Se você afirma que Dumas só foi reconhecido no século XXI, está dizendo, por implicação, que suas obras ficaram no ostracismo durante os séculos XIX (época do autor, que viveu de 1802 a 1870) e XX, o que definitivamente não é o caso: <i>Os Três Mosqueteiros</i>, cuja primeira edição é de 1844, foi um sucesso estrondoso e imediato, fazendo do autor um homem rico, e continuou a ser um sucesso durante todo o tempo transcorrido de lá para cá, tornando-se, entre outras coisas, um dos livros com maior número de adaptações para o cinema e a TV. Quem foi criança durante os anos 1980 talvez se lembre até do desenho animado que, no Brasil, era chamado <i>D'Artagnan e os Três Mosqueteiros</i>, uma coprodução Espanha/Japão, na qual os personagens de Dumas eram representados por simpáticos cachorros e outros animais (o título original era <i>D'Artacán y los Tres Mosqueperros</i>, um trocadilho com as palavras <i>cán </i>e <i>perro</i>, ambas significando cão em castelhano). Todo mundo já ouviu a frase "um por todos e todos por um", e tem sido assim há quase 200 anos, então como é possível dizer que Alexandre Dumas só foi "reconhecido" recentemente?</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7fZwiNG5mm49Bs_KL4o8__SBHqu5HIzGSxrYcdufsU291kYypdHS3c9JrAF6Ai1oHoLEQs_MoqGG6D2ov_09S-yhn6pdL1RnGfhk5fMuT4O5ssJD_NQD4H6IYS8vqpvywokWEUQ/s539/Los+Tres+Mosqueperros.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="310" data-original-width="539" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi7fZwiNG5mm49Bs_KL4o8__SBHqu5HIzGSxrYcdufsU291kYypdHS3c9JrAF6Ai1oHoLEQs_MoqGG6D2ov_09S-yhn6pdL1RnGfhk5fMuT4O5ssJD_NQD4H6IYS8vqpvywokWEUQ/s16000/Los+Tres+Mosqueperros.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Continuando a ler o texto, os absurdos prosseguem, ao mesmo tempo em que a intenção por trás vai-se fazendo clara (se é que dizer que alguma coisa é "clara" também já não é considerado racismo). Cito:</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Em 2002, o então presidente da França, Jacques Chirac, foi responsável por um projeto que exumou os restos mortais de Alexandre Dumas da cidade de Villers-Cotterets, onde ele nasceu em 24 de julho de 1802, e os enterrou novamente no Panteão, mausoléu do Estado francês. O autor das obras clássicas da literatura </i>Os Três Mosqueteiros<i> e </i>O Conde de Monte-Cristo<i>, entre inúmeras outras, foi colocado em uma cripta ao lado de outros romancistas tão importantes quanto ele, como Victor Hugo, e outras figuras históricas francesas notáveis, como Voltaire. Foi apenas naquele ano que o escritor recebeu o reconhecimento máximo de seu país natal. Durante a cerimônia que colocou Dumas onde ele sempre deveria ter estado, Chirac reconheceu o motivo que levou a importante figura a não ter sido originalmente enterrada ali: o racismo.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Aí a autora já começa a revelar a intenção lacratória por trás da matéria. A seguir diz que, embora Dumas "fosse negro", ele "foi representado inúmeras vezes como um homem branco; algo que já aconteceu e continua acontecendo com figuras históricas negras". Não me deterei no fato de a autora evidentemente não saber o que significa "inúmeras". A informação de que o pai do escritor, Thomas-Alexandre Dumas (cujo nome de batismo era Thomas-Alexandre Davy de La Pailleterie), nasceu no Haiti, então colônia francesa, e era filho de um marquês francês com uma escrava negra é interessante e, para mim, nova, assim como o fato de ele ter-se tornado um proeminente general no exército da França e tido uma vida cheia de aventuras, o que forneceu parte da inspiração para as histórias que seu filho viria a escrever. Agora, dizer que Dumas era <i>negro </i>soa como uma óbvia tentativa de vitimizá-lo, e, pelo pouco que sei sobre sua personalidade, ele não teria ficado nada contente de ser retratado dessa forma (e antes que alguém levante alguma bandeira, com "dessa forma" quero dizer como vítima, não como negro). Primeiramente, se uma das avós do escritor era negra, isso significa que ele seria, no máximo, um mulato claro. Não estou afirmando que até mesmo isso não fosse motivo frequente de discriminação contra alguém que viveu na França do século XIX, mas é interessante observar como esse pessoal "progressista" escolhe cuidadosamente o viés através do qual irá mostrar os fatos. Dumas era o que hoje chamaríamos de "pardo" – e, como alguns comentaristas da internet já observaram com sagacidade ao abordarem situações parecidas, esse tipo étnico é muito "versátil", podendo ser apresentado como negro ou como branco, conforme a conveniência de quem fala ou escreve. Como era para pintar Dumas como um grande escritor injustamente menosprezado, o texto fala dele como sendo negro; se, ao invés disso, o objetivo da matéria fosse contar sobre suas safadezas, na certa seria considerado branco. Enfim, é o "pardo de Schrödinger".</span></p><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjiTDtIaL61HM1jN4rvCiGR5hn0PSVIbBm0li3Ya8A0Lng9pklF_qugeWv4p8TblqNTs-MFWATLMpOwZaNGn6xMDMkvWMyhjszBwuE4h_41A4i1F0U_t94WVf25R4j-5eosKVtnPA/s276/Alexandre+Dumas.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="276" data-original-width="180" height="276" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjiTDtIaL61HM1jN4rvCiGR5hn0PSVIbBm0li3Ya8A0Lng9pklF_qugeWv4p8TblqNTs-MFWATLMpOwZaNGn6xMDMkvWMyhjszBwuE4h_41A4i1F0U_t94WVf25R4j-5eosKVtnPA/s0/Alexandre+Dumas.jpg" width="180" /></a></div>(E sim, Dumas foi um escritor maravilhoso <i>e também</i> um safado de primeira ordem: casado com a atriz Ida Ferrier-Dumas, os casos extraconjugais faziam parte de sua rotina. Teve vários filhos, dos quais o único a ficar famoso foi o também escritor Alexandre Dumas Filho, autor do célebre romance e peça teatral <i>A Dama das Camélias</i>. E esse era filho de uma de suas amantes, não da esposa.)</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Poucos anos depois da morte de Dumas Pai, seu amigo, o escultor Albert-Ernest Carrier-Belleuse, convenceu a municipalidade de Villers-Cotterêts a homenageá-lo com um monumento, que ele próprio esculpiu e foi inaugurado em 1884, na praça central da cidade, bem em frente à prefeitura, onde está até hoje. Há outra estátua de Dumas em Paris, também de fins do século XIX. Se isso não puder ser considerado reconhecimento, então que diabos "reconhecimento" significa, afinal de contas?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como curiosidade, o general Thomas-Alexandre Dumas, cuja pele era certamente mais escura que a do filho, também tinha uma estátua em sua homenagem; os nazistas a derrubaram durante a ocupação de Paris (1940-44), junto com estátuas de vários outros heróis de guerra, porque achavam que a contemplação das imagens desses homens poderia incitar orgulho patriótico nos franceses.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Não pela primeira e certamente nem pela última vez, vejo-me diante de um exemplo da veracidade daquele provérbio gramatical que sei que já citei por aqui: "Mais importante que o <i>verbo </i>é o <i>advérbio</i>", o que significa que o modo como se faz alguma coisa é mais importante (ou, ao menos, mais revelador) que a coisa em si que está sendo feita. A transferência dos restos mortais de Dumas é um fato curioso, que os fãs do escritor, sem dúvida, teriam gostado de conhecer, mas a atitude da AH de, em vez de simplesmente informar, meter no meio um libelo "antirracista", parece coisa de quem quer ficar bem na foto com o público politicamente correto – sem contar que tal libelo é totalmente desnecessário, já que a cor da pele de Dumas não o impediu de ser um dos escritores mais amados e mais lidos de todos os tempos, dentro e fora da França, tendo inclusive colhido em vida os frutos materiais de seu trabalho, um privilégio que muitos escritores não tiveram. Estou ciente de que, na visão binária e pouco inteligente da militância "progressista", o simples fato de eu estar questionando isso já faria de mim um racista – o que seria, no mínimo, uma idiotice de minha parte, já que, como Dumas, tenho ancestrais negros, além de portugueses, espanhóis e índios, e isso é só a parte que eu sei (espero não estar chocando ninguém com a revelação de que nem todo gaúcho é loiro de olhos azuis). Com uma árvore genealógica dessas, quem me sobra pra discriminar? Os orientais? Opa, também não: estou namorando uma há anos. Porém, não consigo ter expectativas muito boas quanto aos rumos que a sociedade atual vai tomando à medida que a imprensa em geral vai deixando para trás o ideal de apresentar os fatos de forma objetiva, com o mínimo possível de filtros ideológicos – coisa que, no passado, já foi considerada questão de honra para jornais e revistas. Hoje, a ideologia parece estar em tudo, e, cada vez mais, parece que difundi-la é mais importante que informar.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-11157555215250418282021-04-17T22:13:00.024-04:002024-02-10T07:18:16.194-04:00DVD: Devoção Verdadeira a D.<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXJmw1oEpQ-6jA6txwAz-TYPPgDyHqv1dHpn2ED6sRo3eyOyxfSGqZbMJAeA4qUfiIzRPCMP1wp-d4EIPBwRT79k73yBQ_wQMqjR4NKOVUGP_az1qgAMB6OjXPB7ouTlf8zAfeYcG8T6jl5mueipRapp69cSzPWu8VzBlOcFSONhIYLgTFfmqJbg/s320/dvd.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXJmw1oEpQ-6jA6txwAz-TYPPgDyHqv1dHpn2ED6sRo3eyOyxfSGqZbMJAeA4qUfiIzRPCMP1wp-d4EIPBwRT79k73yBQ_wQMqjR4NKOVUGP_az1qgAMB6OjXPB7ouTlf8zAfeYcG8T6jl5mueipRapp69cSzPWu8VzBlOcFSONhIYLgTFfmqJbg/s1600/dvd.jpg" width="207" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Os que leram <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2020/02/vhs-verdadeiras-historias-de-sangue.html" target="_blank"><span style="color: red;">VHS</span></a></i> viram com curiosidade e expectativa a chegada deste novo livro de Cesar Bravo, que nos leva de volta àquele mesmo universo para nos mostrar o que mudou e o que continua igual, alguns anos depois, na cidade fictícia de Três Rios e sua região. A paixão pelo cinema em geral e o de terror em particular (naturalmente) continua escorrendo de cada página, unindo o autor, os leitores e os personagens, e fornecendo a lente através da qual iremos ver uma nova coleção de horrores e bizarrices. Se vocês se identificam com tudo isso, preparem a pipoca, pois o livro vai mantê-los absortos por horas, tanto quanto ficariam ao assistir a um bom filme.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>VHS</i>, se não me falha a memória, não mencionava datas específicas, mas dava para inferir que os acontecimentos envolvendo a locadora FireStar e os personagens Pedro, Dênis e Renan deviam passar-se entre o final dos anos 80 e o início dos 90, podendo os outros contos ambientar-se um pouco antes ou depois; já <i>DVD </i>informa que o ano em curso é 2002. Pedro e Dênis, que eram meros sócios-proprietários de uma videolocadora, expandiram o escopo de seus negócios, embora continuem lidando com o universo dos filmes: agora são produtores cinematográficos, e, além disso, a FireStar virou uma rede, da qual eles são os franqueadores – e, na qualidade de franqueado, o outrora ajudante Renan é agora o proprietário e gerente da Loja Um, a primeira FireStar, aquela mesma onde ele começou, e que segue funcionando no centro de Três Rios. Acompanhando a mudança dos tempos, a locadora está trocando seu acervo de fitas VHS pelo novo formato… Mas, seja em fitas analógicas ou em discos digitais, o famigerado Lote Nove continua respondendo por boa parte do movimento, constituindo, inclusive, o principal interesse de alguns clientes. Como o mundo não para de dar voltas, há um novo jovem ajudante, conhecido simplesmente por "Guri", em quem Renan frequentemente se vê tal como era em seus primeiros tempos de FireStar, e em quem agora já confia o suficiente para chamá-lo para uma conversa mais franca, a portas fechadas, sobre o Lote Nove, tal como Pedro e Dênis um dia fizeram com ele. Isso tudo é revelado em <i>FireStar DVD & Vídeo</i>, o primeiro conto propriamente dito do livro, que vem depois de dois enigmáticos introitos intitulados <i>Águas Turvas</i> e <i>Prelúdio em Dó Menor</i>. Nessa história, além de Renan, revemos também Millôr Aleixo, o sujeito que amputou a própria perna utilizando um trem como instrumento cirúrgico no conto <i>Torniquete</i>, do primeiro livro – ele agora vive numa cadeira de rodas, fuma compulsivamente e parece ter envelhecido umas três vezes o que seria normal nos poucos anos transcorridos desde o incidente. Além disso, nunca superou o término com sua antiga namorada, Kelly Milena, cujo nome está, de alguma forma misteriosa, ligado aos fatos tenebrosos que aconteceram e talvez ainda aconteçam no Matadouro 7, em cuja administração ela trabalha.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Pandemonium </i>lida com certos dramas e desafios que todo mundo que já foi adolescente conheceu, com a possível exceção dos mais populares – que, na certa, enfrentaram problemas de outros tipos para compensar. Gabriel, um garoto aparentemente comum de 13 anos, decide aproveitar uma saída dos pais para promover uma sessão de cinema em sua casa, com a aparente intenção de galgar alguns degraus na pirâmide social do colégio; para tanto, convida um pequeno grupo escolhido a dedo, composto de garotas bonitas e caras "descolados". Normalmente, tais pessoas ignorariam um convite desses vindo de um pária como Gabriel, mas ele conta com um trunfo: depois de seu nome ficar por semanas numa lista de espera, ele acaba de conseguir alugar na FireStar o "filme maldito" do momento, o tal <i>Pandemonium </i>do título, cujas cenas chocantes, ao que se diz, já "maluqueceram" algumas pessoas; para adolescentes, e mesmo para muitos adultos, não poderia haver propaganda melhor que essa para um filme – é ainda melhor (ou pior, vai saber) que "proibido em trocentos países" escrito em letras berrantes na caixa da fita. Anda todo mundo doido para ver esse filme, mas, por alguma razão inimaginável, uma cláusula no contrato de licenciamento estabelece que a distribuidora só pode vender uma cópia para cada locadora. Com tudo isso, a sessão de cinema de Gabriel tem tudo para ser um sucesso… mas o final não será feliz. A ação transcorre em 1989, o que só ficamos sabendo bem depois de ler o conto, embora já tivesse ficado evidente que devia ser por volta dessa época, já que, nele, Dênis e Pedro ainda administram a FireStar, e Renan ainda é apenas um ajudante, ou seja, cronologicamente, <i>Pandemonium </i>poderia fazer parte de <i>VHS</i>.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgnqehznibqwSNiXttnBnOXcuuTKnVZQfm3xu7uwlMksLU_YCp1Q4kSMcTB2nZvOlc5i_ykOR-mX6JpCJzHAfSF9IA7LjEQcon0vjZx4UdKmTrr9NTtjLy6JAmxMO1vnczxfH9ozz1Be8eBqSUhQYzazP9A-VpcvblDz4LTctjthkIeEvsF9A1k4Q/s450/4d3a7636907129c25a70e3de4ff12faeb9562c3f.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="299" data-original-width="450" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgnqehznibqwSNiXttnBnOXcuuTKnVZQfm3xu7uwlMksLU_YCp1Q4kSMcTB2nZvOlc5i_ykOR-mX6JpCJzHAfSF9IA7LjEQcon0vjZx4UdKmTrr9NTtjLy6JAmxMO1vnczxfH9ozz1Be8eBqSUhQYzazP9A-VpcvblDz4LTctjthkIeEvsF9A1k4Q/s16000/4d3a7636907129c25a70e3de4ff12faeb9562c3f.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Em <i>A Voz que Caminhava</i>, a pequena Rafaela, ajudando o irmão a esvaziar o quartinho dos guardados na casa da família, encontra uma relíquia: um velho <i>walkman </i>que pertencia a seu pai, que não o usa há mais de 20 anos. A menina se encanta com a velha engenhoca, e o pai, achando graça, permite que fique com ela. O primeiro sinal de que nem tudo está normal vem quando Rafa se mostra assustada ao ouvir, nas estações de rádio que ela sintoniza em seu novo-velho brinquedo, notícias sobre uma iminente guerra nuclear que poderá acarretar o fim do mundo – notícias essas que refletem a situação mundial lá pelos anos 80, quando a catástrofe foi evitada por um triz mais de uma vez. Ela ouve também sobre um menino que foi achado morto no banheiro do mesmo colégio onde ela e o irmão estudam, o tradicional Aureliano Gomes, na cidade de Velha Granada, vizinha de Três Rios – e, embora ela não guarde o nome, o menino não era outro senão o encrenqueiro Jonas Duna, mencionado no conto <i>Branco Como Algodão</i>, de <i>VHS</i>. Quando Rafa começa a fazer coisas estranhas (e perigosas), totalmente alheias ao seu comportamento habitual, o pai se vê forçado a admitir que tudo está interligado… e que o <i>walkman </i>vagabundo de seus tempos de escola, que sua filha agora carrega para todo lado, pode estar assombrado. O conto é curto, eficiente, e sua ligação com algo que os leitores de Cesar Bravo já conhecem parece potencializar o efeito tenebroso.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O título de <i>Ballet Royale</i> é um trocadilho com "battle royale", expressão que se popularizou a partir do romance homônimo do escritor japonês Koushun Takami publicado em 1999 e acabou dando nome ao que se tornou praticamente um subgênero dentro da ficção distópica, tendo seu mais famoso exemplo na franquia <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/03/jogos-vorazes.html" target="_blank"><span style="color: red;">Jogos Vorazes:</span></a></i> é aquele tipo de enredo em que um grupo de pessoas é jogado em alguma espécie de arena e obrigado a lutar entre si até que só um reste vivo. Aqui, as regras são um pouco diferentes, mas tão brutais quanto: várias mulheres aparentemente sem qualquer ligação umas com as outras são sequestradas e levadas ao que parece ser uma mansão isolada no meio da mata, onde são forçadas por três carcereiras mascaradas a dançar balé – coisa que a maioria delas jamais fez na vida –, sendo exigido que executem com perfeição os mais difíceis movimentos, e qualquer falha é punida com violência absurda. A lógica do conto é a mesma de <i>Bicho-Papão</i> (que chega a ser mencionado dentro da história!): no começo ficamos chocados, penalizados e torcendo por alguma reviravolta que faça as cativas levarem a melhor sobre suas algozes, mas depois há certas revelações que mudam tudo; essas revelações mostram também que, ao contrário do que parecia, todas essas mulheres têm, sim, alguma coisa em comum.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Em <i>Sopa de Letrinhas</i>, somos apresentados a Bia, uma menina pequena, e a sua avó, D. Eslovena, com quem a garotinha vive desde que sua mãe (a filha de Eslovena) foi embora não se sabe para onde. Por várias páginas nos perguntamos o que aquela história está fazendo num livro de terror, pois o que lemos é uma sucessão de cenas fofas que mostram Bia descobrindo o mundo sob o olhar da avó carinhosa, que a educa com infinita bondade e paciência. Mas, como sei que já escrevi em algum lugar deste blog (e talvez mais de uma vez), começar com cenas da vida normal é um recurso que o terror usa há muito tempo e que parece nunca perder a eficácia: as coisas começam a ficar estranhas quando Bia, que ainda nem chegou à idade de alfabetização, mas já consegue ler palavras simples, passa a ver as letrinhas de macarrão na sopa que a avó lhe serve formarem mensagens, como numa espécie de tábua Ouija para crianças do pré-maternal. Talvez a sinopse, colocada assim, pareça boba, mas, se for o caso, a culpa é minha, e não de Bravo: a justaposição da inocência infantil com sugestões preternaturais tem um efeito poderoso quando a coisa é bem feita, tanto que, mesmo sendo muito mais curta, muitíssimo mais simples, e não tendo qualquer semelhança notável em termos de enredo, <i>Sopa de Letrinhas</i> me fez pensar em <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/06/o-grande-deus-pa.html" target="_blank"><span style="color: red;">O Povo Branco</span></a></i>, de Arthur Machen. Ah, e existe uma conexão entre <i>Sopa de Letrinhas</i> e <i>Pandemonium</i>, conexão essa que evidencia novamente que é melhor o leitor não fazer muita questão de uma cronologia precisa, primeiro porque cada conto pode transcorrer num ano diferente e eles não estão colocados em ordem, e segundo porque, no universo de Cesar Bravo, existem certas, digamos, singularidades no que diz respeito ao tempo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Lar, Doce Lar</i> segue os personagens Duque e Paloma – um gângster do interior paulista e sua amante –, que acabam de assaltar um banco, escapar da polícia e, em sua fuga, utilizam estradas secundárias que os levam em direção à microrregião maldita formada por Três Rios e os municípios menores que a cercam. Nessa viagem, vários fenômenos estranhos se manifestam: tanto a aparência do céu quanto a dos campos que ladeiam a estrada muda de repente, trovões ensurdecedores soam do nada, sem que haja sinal de chuva e, o mais desconcertante, olhando pelo espelho retrovisor veem-se coisas que simplesmente não estavam ali quando o carro passou pelos mesmos locais, segundos antes. A região parece ser uma encruzilhada, mas não de estradas: uma encruzilhada no tempo, e talvez também entre dimensões.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjmNiy8WAIeqKh8zgsqMQnJfJotedqTmTdUudPngKhl8CEJfwgaxhE7Ex_D0o1QPq-C1S9uQfC-CBxfibYXB8-JZHZ__pcFiOCxEGh1E24kovzUlxF0Lm99fx0YeD4_Gf4EhFsyrniChnK6IdAuD7lJojwHX-IZtpDYZqTyd0nDgeItjPApS1Zcvg/s500/road-in-dark-forest-2210x1473.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="334" data-original-width="500" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjmNiy8WAIeqKh8zgsqMQnJfJotedqTmTdUudPngKhl8CEJfwgaxhE7Ex_D0o1QPq-C1S9uQfC-CBxfibYXB8-JZHZ__pcFiOCxEGh1E24kovzUlxF0Lm99fx0YeD4_Gf4EhFsyrniChnK6IdAuD7lJojwHX-IZtpDYZqTyd0nDgeItjPApS1Zcvg/s16000/road-in-dark-forest-2210x1473.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;"><i>O Homem da Terra</i> leva-nos de volta ao final do século XIX para nos apresentar a Ítalo Dulce, um imigrante italiano e personagem arquetípico, já que, como ele próprio observa, "ítalo" é a mesma coisa que italiano (falta uma boa explicação para que seu sobrenome seja "Doce" em <i>espanhol</i>). Ele e sua esposa, Gemma (não poderia haver nome mais adequado) vivem todas as durezas que os imigrantes enfrentavam naqueles anos; são colonos, quer dizer, receberam do governo um lote de terra para trabalhar por conta própria, diferentemente de outros imigrantes que vinham como empregados para as fazendas de café, para, na prática, substituir a mão de obra dos escravos, que haviam sido libertados pouco antes. Não tenho conhecimento suficiente para dizer em qual das duas situações um imigrante batia mais cabeça; é provável que ambas fossem igualmente ferradas de maneiras diferentes, embora ainda fosse melhor que ficar no país de origem, onde, na época, a imigração era para muita gente a única alternativa para (tentar) escapar da miséria. Tudo indica que Ítalo terá o mesmo destino de muitos outros italianos em terras brasileiras, que era o de trabalhar de sol a sol pela simples sobrevivência enquanto tivesse forças para tanto e, depois disso, só Deus sabe… Até que certo dia, tirando mel numa gruta junto à nascente do rio Escuro (um dos três que dariam nome à cidade que mais tarde existiria ali), não muito longe de sua casa, o imigrante encontra um misterioso personagem que lhe propõe um pacto. Para evitar <i>spoilers</i>, direi apenas que, nos tempos nos quais se ambienta a maior parte das histórias de <i>VHS </i>e <i>DVD</i>, Ítalo Dulce é considerado um vulto histórico, uma espécie de patriarca, um dos homens que tornaram possível a prosperidade econômica de que a região viria a gozar – e o Mel da Gruta ainda é um produto muito apreciado, com "tradição de mais de um século".</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Gladiadores em Technicolor</i> é protagonizado por Lívia, filha de Renan (ela já havia aparecido, pequenininha, em <i>FireStar DVD & Vídeo</i>, e aqui ressurge um pouco mais velha, mas não muito). Ela e seus amigos Juliano e Cléber estão fazendo um filme, uma fita caseira de ação/fantasia inspirada nos clássicos dos anos 80, como <i>Os Aventureiros do Bairro Proibido</i>, filme estrelado por Kurt Russell que chega a ser citado, entre outros. A história é curta e tem um sabor nostálgico de infância e de amizades separadas, pois Lívia está prestes a mudar-se de Três Rios com os pais – Renan, muito a contragosto, está tentando vender a locadora. Chega a parecer que o conto vai ser feito apenas desse misto de diversão e melancolia, mas boatos sobre acontecimentos estranhos em Três Rios e arredores aparecem na conversa das três crianças, e ela termina num elo explícito com <i>Lar, Doce Lar</i>. Ah, e tem um detalhe que não se pode deixar passar: o título do filme que os garotos estão fazendo é <i>A Batalha de Devorac</i> – e <i>Devorac </i>é um nome que voltará a aparecer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Em <i>Solo Sagrado</i>, lemos sobre o esforço de Saulo Renan Sampaio, um jovem pastor evangélico que chega a Três Rios decidido a instalar uma nova igreja, e, para tanto, adquire o terreno da antiga locadora FireStar (e digo isso apenas para deixar vocês curiosos; não contarei o que aconteceu com a locadora). Conforme encara a luta para erguer sua igreja e depois para fazê-la começar a funcionar, Saulo vai ficando menos cético a respeito das histórias macabras que ouviu sobre Três Rios: é como se alguém, ou mais provavelmente <i>algo</i>, estivesse tentando impedir ou ao menos dificultar o máximo possível a pregação da palavra de Deus naquele lugar – sendo que "lugar" pode significar o local específico onde ficava a locadora, ou a cidade como um todo. Perto do final do conto, o pastor se vê dialogando com um misterioso "homem de camisa vermelha" que lhe desperta sensações não muito agradáveis, e que menciona de passagem ter conhecido há muito tempo um sujeito de nome Deodoro… Leitores atentos e de boa memória que leram <i>VHS </i>matarão a charada. Por falar nisso, conforme vamos nos aproximando do final de <i>DVD</i>, vai crescendo um impulso de, ao terminá-lo, emendar com uma releitura do livro anterior, pois há uma viva sensação de que, agora que temos novas informações, muitas coisas dele serão melhor compreendidas e se encaixarão melhor no grande e tenebroso quebra-cabeça que Bravo está criando.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Em <i>Devorac</i>, a região de Três Rios está sendo aterrorizada pelos ataques do que a polícia e a imprensa assumem ser um <i>serial killer</i> que, por alguma razão, mata apenas idosos – mas que, fora isso, não parece fazer nenhum tipo de distinção, atacando homens, mulheres, brancos, negros, o que for. Os corpos dos anciãos são sempre encontrados com terríveis mutilações que desafiam os peritos da polícia e enchem de pavor qualquer um que as veja. Como acontece tanto no terror, há aquela teimosa obstinação por parte das pessoas "racionais" em tentar obrigar a realidade a encaixar-se dentro da moldura do "plausível": um <i>serial killer</i> é uma coisa horrenda, mas que ainda pertence ao campo dos fatos explicáveis, e portanto (pensam as tais pessoas "racionais") essa deve ser a resposta. Tem que ser. <i>Por favor, seja, porque a alternativa é muito pior! </i>As mutilações nas vítimas são coisas que não poderiam ter sido feitas por nenhum ser humano, não importa o quão louco, e nem mesmo por qualquer animal conhecido, mas ninguém quer pensar nisso. Mais uma vez, o leitor atento terá reunido pistas, ao longo da leitura deste livro e do anterior, que lhe permitirão ir construindo uma teoria sobre o que pode ser o tal Devorac. A AlphaCore Biotecnologia, empresa do magnata Hermes Piedade, pode ter algo a ver com isso. Piedade (eita sobrenome irônico) é considerado por muitos um homem de visão e um benfeitor que trouxe o progresso para a região – e por outros tantos uma cria do demônio, que, junto com o tal “progresso”, pode ter trazido também outras coisas bem menos desejáveis. O conto <i>Bom pra Cachorro</i>, que vem logo depois de <i>Devorac</i>, fornece mais algumas pistas nessa direção, mas sem revelar demais. Ainda sobre <i>Devorac</i>, preciso confessar que o jeito como o narrador fala sobre o predador misterioso me fez pensar na igualmente misteriosa Besta de Gévaudan (caso essa referência não lhes seja familiar, vejam o excelente filme <i>O Pacto dos Lobos</i>, de Christophe Ganz, com Vincent Cassel e Monica Belucci).</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjyYeg6SsPL22e-ppRE30gYZGVSpoP7x2ke3S3jfQFBGIxRJkePk5-_2Xb8p7adLjLqSqlwoRALIvsRtk-07EwSrSVp6PabbI1aLiX-iX3kE-_8vCfss2XKoN0E1q2ikwElM6cIcNkNC7SG94qgO69dhMcdJ2ZLVyRGMq4RM9GRmiY7S9uod8i2A/s517/devorac.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="252" data-original-width="517" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjyYeg6SsPL22e-ppRE30gYZGVSpoP7x2ke3S3jfQFBGIxRJkePk5-_2Xb8p7adLjLqSqlwoRALIvsRtk-07EwSrSVp6PabbI1aLiX-iX3kE-_8vCfss2XKoN0E1q2ikwElM6cIcNkNC7SG94qgO69dhMcdJ2ZLVyRGMq4RM9GRmiY7S9uod8i2A/s16000/devorac.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;"><i>Polaroid Colorpack 80</i> leva o nome de um tipo de câmera fotográfica que já foi bastante popular graças ao diferencial de não precisar de revelação (a garotada que já nasceu na era das fotos digitais talvez nem entenda do que estou falando, mas, se for o caso, basta ir até a <i>Wikipédia </i>e pesquisar um pouco sobre história da fotografia). Você tirava a foto e, em segundos, ela saía por uma fenda na câmera, já impressa e pronta. Quem chegou a ter uma Polaroid conta que as fotos não eram tão boas, deixavam a desejar em nitidez e colorido, e, além disso, desbotavam depois de alguns anos, mas, mesmo assim, a praticidade da coisa conquistou alguns fãs – sem contar que essa câmera era a favorita dos <i>serial killers</i> e outros <i>freaks </i>para registrar seus "feitos", já que as câmeras convencionais tinham o sério inconveniente de que seus filmes precisavam ser levados até um estúdio ou loja de fotografia para serem revelados – e o laboratorista que topasse com imagens de natureza potencialmente criminosa, sem dúvida notificaria a polícia… a menos que o próprio <i>serial killer</i> soubesse revelar, como alguns de fato sabiam, mas isso não vem ao caso aqui. A história tem como protagonista um sujeito de nome Leone Dantas, proprietário, gerente e atendente da Paraíso Perdido, loja em Três Rios especializada em comprar e vender todo tipo de item usado, desde móveis até discos e revistas, passando por antigos eletrodomésticos (ou "eletromésticos", como diz o anúncio da loja nos classificados) que agora têm basicamente o valor de curiosidades. Certo dia, Jaime Extremo (sobrenomes improváveis, e às vezes nomes também, são meio que uma peculiaridade regional em Três Rios e arredores), um idoso que é uma espécie de ajudante informal de Leone, aparece com uma notícia potencialmente interessante: um cidadão chamado Amâncio Gruta acaba de morrer e, como vivia sozinho e não tinha esposa, filhos ou outros parentes chegados, sua casa passou em herança à família extensa, e vai ser leiloada. Enquanto isso não acontece, os bens móveis que o falecido deixou na casa podem ser arrematados em lote por um valor razoável, e, com alguma sorte, alguns itens podem dar lucro ao serem postos à venda na Paraíso Perdido. Há um detalhe que pode fazer bastante diferença: apesar de não levar o sobrenome, Amâncio era descendente dos Dulce, talvez um bisneto do semilendário Ítalo Dulce, e, considerando a estreita ligação dessa família com a história da região, há uma possibilidade real de que a casa do velho guarde alguns objetos dotados de valor histórico. Assim, Leone aceita o negócio e, tempos depois, ele e Jaime vão até a casa para conferir seu conteúdo. Entre a esperada coleção de itens comuns, com variados graus de interesse para venda, eles encontram uma caixa contendo fotos – fotos que mostram, muitas delas, pontos conhecidos de Três Rios e cidades vizinhas, mas, naqueles panoramas familiares, há por vezes alguma coisa que não parece estar certa, e Leone acaba entendendo o que é: algumas das imagens mostram os lugares com alterações que <i>ainda vão</i> acontecer, tal como o atual local da locadora FireStar ocupado por uma igreja evangélica… Outras fotos mostram imagens perturbadoras e inexplicáveis, que o leitor reconhecerá como sendo registros de cenas descritas em vários dos contos de <i>VHS </i>e <i>DVD</i>, e examiná-las acaba afetando a sanidade do lojista. Na minha humilde opinião, <i>Polaroid Colorpack 80</i> merece um lugar entre as melhores histórias do "bravoverso" publicadas até agora.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A penúltima história do livro é <i>Tomada En Passant</i>, cuja maior parte é dedicada a narrar uma reunião dos Filhos de Jocasta, que parecem ser uma espécie de "maçonaria" local, congregando as figuras mais destacadas da sociedade desse noroeste paulista fictício. O ponto de vista é o de um homem chamado Almirante Querido (!!!), que veio de origens humildes e agora é um rico homem de negócios, tão importante, de fato, que até ganhou uma cadeira nesse seleto clube. Inesperadamente, a sessão é invadida por ninguém menos que Hermes Piedade, que, por sinal, já foi por várias vezes convidado a tornar-se membro dos Filhos, mas nunca aceitou. O magnata veio apresentar à assembleia seu novo parceiro nos negócios, um jovem empresário que, diz ele, veio para "revolucionar" a economia local. Considerando o que já sabemos sobre as atividades de Piedade, é difícil esperar boas coisas dessa tal "revolução", e Almirante encara a novidade com bastante ceticismo… mas descobrirá que ficar no caminho de Hermes Piedade significa arriscar muita coisa. Esse conto parece ter sido bolado para preparar certos acontecimentos que podem estar por vir em volumes futuros dessa… série? Também parece ser esse o objetivo de algumas notícias enigmáticas dos jornais da região, "reproduzidas" nas últimas páginas do livro. Em tempo: eu me pergunto se eventualmente receberemos uma explicação para o nome dessa irmandade. "Filhos de Jocasta" evoca associações de incesto e/ou tragédia, e, como se fosse para assinalar que a escolha do nome não foi casual, o "mestre da ordem" recebe o título de “Édipo”.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>DVD </i>termina com <i>Sete Vidas</i>, que narra (com detalhes agoniantes) o destino final de Sagitário Piedade, filho caçula de Hermes Piedade e mau elemento irremediável desde sempre: era colega de Gabriel Cantão (o do <i>Pandemonium</i>) em fins dos anos 80, sendo já então um dos piores <i>bullies </i>do colégio, e sua carreira a partir daí consistiu numa sucessão de roubos, sequestros, assassinatos, estupros e coisas que tais, tendo constante necessidade da intervenção do pai, com sua influência e seu dinheiro, para repetidamente livrá-lo das garras da justiça e mantê-lo livre para praticar novas vilanias – até ser apanhado por dois personagens misteriosos, decididos a fazer justiça com as próprias mãos e, aproveitando a oportunidade, usar "Sági" como cobaia para uma curiosa experiência envolvendo memória e viagem no tempo. Mais uma vez, o esporear de emoções causado pela história segue o mesmo itinerário de <i>Bicho-Papão</i> e <i>Ballet Royale</i>, como se lançasse um desafio ao leitor: e aí, vai ficar com peninha, ou acha que ele só está recebendo o que merece? De todo jeito, a leitura é pra lá de incômoda, e os resultados da tal experiência, ainda que inconclusivos, abrem uma infinidade de possibilidades.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Tal como já havia feito em <i>VHS</i>, atribuindo a essa conhecida sigla o novo significado de "Verdadeiras Histórias de Sangue", Cesar Bravo também brincou com o título de <i>DVD</i>: ao mesmo tempo que designa o novo formato de vídeo com o qual a FireStar e demais locadoras passaram a trabalhar, essa é também a sigla de "Devoção Verdadeira a D.", mas ainda não é neste livro que ficamos sabendo o que significa essa inicial misteriosa: ela aparece aqui e ali, mas não é objeto de explicações. Com esse novo livro, Bravo promove uma considerável ampliação em seu universo sombrio, deixando seus leitores fiéis (pois ele já os tem) cada vez mais curiosos e ansiosos por mais. Em algum canto da internet, já vi alguém se referir ao escritor como o "<a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/03/danca-macabra.html" target="_blank"><span style="color: red;">Stephen King</span></a> tupiniquim", uma comparação que, tenho certeza, o deixaria satisfeito, já que, assim como (pelo menos) grande parte de seu público, ele é provavelmente um fã do mestre do Maine, e, de fato, o que Bravo está fazendo com sua Três Rios lembra o que King fez com <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2019/11/a-hora-do-vampiro.html" target="_blank"><span style="color: red;">Jerusalem's Lot</span></a>, Derry e Castle Rock – está construindo uma mitologia, tijolo por tijolo. Como só os realmente bons conseguem fazer, Bravo foi capaz de aprender com King (e com outros mestres do terror) sem se transformar num mero <i>copycat</i>: seu estilo é muito pessoal, marcante e fácil de reconhecer. Se a DarkSide topou publicar mais este livro, é porque o anterior deve ter sido bem-sucedido, e com muito mérito. Torço para que essa parceria continue.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-71118610505305519322020-08-18T20:22:00.017-04:002021-10-11T23:48:08.817-04:00A Legião do Tempo<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEit8TyRkaWONjGe4-x-3XtULznlHBUkIg7Klu3rzY9E3WLTLcOaWQBwTaRw7dZjeKIb9a2gZtFD35QmREYScOGqlzRNO1p8fuEwkQuFdHbtauQDkkPkjLRZJxA4-BxIEB8yh4dxrw/s320/legion+of+time.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEit8TyRkaWONjGe4-x-3XtULznlHBUkIg7Klu3rzY9E3WLTLcOaWQBwTaRw7dZjeKIb9a2gZtFD35QmREYScOGqlzRNO1p8fuEwkQuFdHbtauQDkkPkjLRZJxA4-BxIEB8yh4dxrw/s0/legion+of+time.jpg" width="207" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Estudantes que estão se familiarizando com a cultura dos países anglófonos costumam achar curioso e engraçado quando descobrem como é que se diz "telenovela" em inglês: é <i>soap opera</i> – literalmente, 'ópera de sabão'. Vi meus colegas terem exatamente essa reação numa aula de inglês no primeiro ano do ensino médio, muitos anos atrás, e, quando uma menina perguntou o porquê desse nome, a mestra (professora Sandra, lembro bem) confessou que não sabia. Se fosse nos dias de hoje, uma rápida busca na internet teria satisfeito a curiosidade, mas na época as coisas não eram tão fáceis. De qualquer forma, embora a timidez dos 15 anos tenha mantido meus lábios grudados naquela ocasião, a verdade é que eu sabia a resposta: acontece que nos Estados Unidos, da mesma forma que aqui no Brasil, as novelas nasceram no rádio, só mais tarde migrando para a TV, e, durante a "era de ouro do rádio", que, lá, foi nas décadas de 1920-30, elas, além de extremamente populares, eram notórias por serem patrocinadas por fabricantes de sabão em pó, cujos <i>jingles </i>sempre antecediam o início do capítulo do dia. Isso explica o porquê do <i>soap</i>; quanto ao <i>opera</i>, ainda é um mistério para mim (mesmo hoje, com internet e tudo), e ficarei grato se alguém que me lê souber esclarecer.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A essa altura vocês talvez estejam se perguntando (e parabéns pela perspicácia se estiverem): peraí, moleque, como é que você, sendo brasileiro, com 15 anos de idade e numa época sem internet, sabia de tudo isso? Simples: aos 15 anos (e bem antes) eu já era nerd e apaixonado por ficção científica. Acontece que, embora a maior parte das novelas de rádio se ocupassem de tramas dramáticas e sentimentais (o mesmo tipo de coisa que move as novelas da TV até hoje), tendo como público-alvo basicamente moças e senhoras, havia uma ou outra <i>soap opera</i> alternativa, por assim dizer: essas visavam ouvintes adolescentes e jovens-adultos do sexo masculino e ofereciam mais ação e aventura. Como já existia o termo <i>soap opera</i>, essas produções ganharam nomes adaptados a partir dele e levemente brincalhões: se fossem histórias de faroeste, eram chamadas de <i>horse operas</i> ('óperas de cavalos'); se fossem de ficção científica, eram <i>space operas</i> ('óperas do espaço'). Esses dois eram os gêneros mais comuns. Li isso tudo na introdução de alguma velha antologia de ficção científica.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Por extensão, o termo <i>space opera</i> passou a designar um subgênero dentro da ficção científica, aplicando-se a toda história – mesmo em livro, quadrinhos ou cinema – que apresentasse as mesmas características que aquelas aventuras espaciais do rádio: narrativa vertiginosa, cheia de reviravoltas e com muita ação, personagens simples mas mesmo assim carismáticos, batalhas espaciais em profusão, vilões sinistros e superpoderosos para enfrentar, e, muitas vezes, uma bela mocinha em perigo precisando de um herói, já que a garotada que ouvia, lia e assistia a essas histórias, embora torcendo o nariz para as tramas lacrimosas que suas mães e irmãs acompanhavam pelo rádio, no fundo também tinha a sua parcela de romantismo – sem contar que, se trocarmos as pistolas laser por espadas e os planetas exóticos por reinos medievais na Europa, muitas <i>space operas</i> se transformam facilmente em romances de cavalaria, e o que é um romance de cavalaria sem uma donzela para ser salva?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como é fácil supor, esse subgênero produziu muita coisa descartável, mas também deu espaço (hehehe!) à ascensão de autores que, faz agora quase um século, turbinam os sonhos de milhares de adolescentes de todas as idades, caras como <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2011/08/uma-princesa-de-marte.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Edgar Rice Burroughs</span></a>, <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/04/guerra-dos-homens-alados.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Poul Anderson</span></a>, Edmond Hamilton, E. E. "Doc" Smith e C. L. Moore, entre outros. Não estou atribuindo a todos esses autores o mesmo nível de qualidade, apenas dizendo que são alguns dos nomes que emergiram na <i>space opera</i> para ganhar um lugar na história da ficção científica. Mesmo autores de maior peso, conhecidos por obras mais sérias e profundas, chegaram, em algum momento, a flertar com o subgênero, vide as aventuras de Lucky Starr escritas por <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2019/02/o-futuro-comecou.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Isaac Asimov</span></a>.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgqkcF6B6flsg78b1bVpbm5oVjMMu-jOqnhGXfkid1XjSn7hBgvDnkx2SUlRG3oNEVU4qpnNtlIt9mkV6Qc8kgviHsJ5rOFh390EGuK0yAEmQ8HpeR-JAPZhedR6i2FyTN9a29n-g/s478/legion+of+time+02.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="478" data-original-width="277" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgqkcF6B6flsg78b1bVpbm5oVjMMu-jOqnhGXfkid1XjSn7hBgvDnkx2SUlRG3oNEVU4qpnNtlIt9mkV6Qc8kgviHsJ5rOFh390EGuK0yAEmQ8HpeR-JAPZhedR6i2FyTN9a29n-g/s16000/legion+of+time+02.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">(Não resisto a fazer mais um desses meus parágrafos entre parênteses, mas prometo que este será breve. Ocorre que, embora eu tenha me referido àquele punhado de autores ali em cima como "caras", o "C" de C. L. Moore é de Catherine, e a autora adotou a abreviatura porque ela, ou seu editor, e provavelmente ambos, sabiam muito bem que o adolescente-americano-leitor-de-ficção-científica típico da época ficaria seriamente cabreiro se soubesse que a história que estampava a capa da edição do mês de sua revista favorita havia sido escrita por uma mulher. Embora já houvesse uma mulher entre os pioneiros do gênero em pleno século XIX – claro que me refiro a Mary W. Shelley, autora de <i>Frankenstein </i>–, temos que admitir que a ficção científica foi durante muito tempo uma espécie de clube do Bolinha literário, sendo escrita e lida quase exclusivamente por "cuecas". Felizmente, isso mudaria com o tempo.)</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Antes de prosseguir, preciso adverti-los de que a definição de <i>space opera</i> com a qual estou trabalhando é a que encontrei, como disse, em artigos ou introduções de livros de ficção científica que li ao longo dos anos, mas parece que a definição não está muito bem pacificada, pois, pesquisando na internet, encontrei até mesmo <i>2001: Odisseia Espacial</i>, de Arthur C. Clarke, classificado como <i>space opera</i> em determinados sites – sendo que eu dificilmente conseguiria pensar num livro de ficção científica que estivesse mais distante de tudo o que esse rótulo me traz à cabeça. Se me pedissem para classificar <i>2001</i>, eu diria que é <i>hard science-fiction</i>, assim como <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2013/10/duna.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Duna</span></a></i>, de Frank Herbert, ou a saga <i>Fundação</i>, de Isaac Asimov: são todos livros muito densos e complexos, que não são para qualquer um, e certamente não recomendáveis para leitores muito jovens e inexperientes. Portanto, tenham em mente que a expressão <i>space opera</i> pode ser usada com sentidos diferentes em outros lugares.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E não é possível contar a história da <i>space opera</i> sem citar o nome de John Stewart Williamson (1908-2006), imortalizado como Jack Williamson, autor que brilhou durante a era de ouro da ficção científica (sim, não é só o rádio que tem direito a isso), que durou, aproximadamente, do final dos anos 30 ao final dos 40. Williamson, entretanto, já era um veterano nessa época, pois estava em atividade desde fins dos anos 20. Suas primeiras histórias foram publicadas na legendária revista <i>Amazing Stories</i>, fundada e, na época, ainda editada por ninguém menos que o pioneiro Hugo Gernsback, o homem que deu nome a um dos mais importantes prêmios da ficção científica. Um nome frequentemente presente nessa revista era o de Miles J. Breuer, americano de origem tcheca, médico de profissão e escritor por paixão, amigo de Gernsback e que se tornou uma influência importante na fase inicial da carreira de Williamson; os dois chegaram a escrever em parceria.</span></p><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Paralelamente a uma carreira acadêmica na área de língua e literatura inglesa, Williamson publicou, ao longo das décadas seguintes, mais de 30 romances, além de dezenas de contos em várias das mais prestigiosas revistas de ficção científica e fantasia: <i>Wonder Stories</i>, <i>Astounding Stories</i>, <i>Weird Tales</i>… Pode-se destacar <i>The Reefs of Space</i> ('Os Recifes do Espaço'), em parceria com <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/01/nave-escrava.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Frederik Pohl</span></a>, que foi publicado como uma série na revista <i>Worlds of If</i> durante os anos 60 antes de sair em forma de livro. Para dar uma ideia do lugar especial que Williamson ocupa na galeria de honra da ficção científica, ele teve entre seus ávidos leitores e fãs o adolescente Isaac Asimov, que registrou em sua autobiografia que, quando conseguiu vender sua primeira história para publicação, quase tão empolgante quanto o fato em si foi ter recebido uma carta de Williamson congratulando-o e dando-lhe boas-vindas ao time dos escritores. Eu sei, é estranho pensar em Asimov como um jovem escritor iniciante em vez de um monstro sagrado da ficção científica, mas é sempre bom não esquecer que todo mestre também teve seus próprios mestres.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>The Reefs of Space</i> não foi a primeira experiência de Jack Williamson em se tratando de publicar romances serializados em revistas. <i>The Legion of Space</i>, publicado em seis partes pela <i>Astounding </i>em 1934, só ganharia a primeira edição em livro 13 anos depois. Trata-se de uma das mais cultuadas <i>space operas</i> de todos os tempos e se tornaria o piloto de uma série de romances. Esse livro ganhou edição brasileira, dentro da tão querida e importante coleção Mundos da Ficção Científica, da editora Francisco Alves; graças a isso, pude lê-lo na minha adolescência, e há algum tempo consegui adquirir um exemplar, de modo que uma releitura está nos meus planos, e, quando isso acontecer, não há dúvida de que merecerá um post aqui no blog. Porém, embora fosse um épico de qualidades inegáveis, <i>The Legion of Space</i> não apresentava nada de muito inusitado em relação ao que já vinha sendo feito na ficção científica da época. Coisa bem diferente acontece com <i>The Legion of Time</i> (publicado como série na <i>Astounding </i>em 1938, e em forma de livro em </span><span style="font-family: georgia;">1952), que, mesmo trabalhando com dois conceitos bem conhecidos – viagem no tempo e realidades alternativas –, faz isso de uma forma inovadora e empolgante.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj7LYIqOAJ3cw_ffHqunRYozeyDpjlcHx4DKlPIkJ5PQZarSyX5UVLswJ18CrsRMPgmCa5Nvb-hWiKkHRB1K35A4fiFj5E7TaRdx2YPwNI00JlU8xB24jPzMQa5YlVdMbonZ0iwIA/s517/Jack+Williamson.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="284" data-original-width="517" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj7LYIqOAJ3cw_ffHqunRYozeyDpjlcHx4DKlPIkJ5PQZarSyX5UVLswJ18CrsRMPgmCa5Nvb-hWiKkHRB1K35A4fiFj5E7TaRdx2YPwNI00JlU8xB24jPzMQa5YlVdMbonZ0iwIA/s16000/Jack+Williamson.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Jack Williamson se manteve em atividade até seus últimos dias de vida. Em 2001, aos 93 anos, ganhou o Prêmio Hugo pela história <i>The Ultimate Earth</i>, publicada no ano anterior, tornando-se o mais idoso escritor a receber essa distinção. Publicou seu último livro, <i>The Stonehenge Gate</i>, em 2005, aos 97 anos. Faleceu no Novo México, onde vivera a maior parte de sua vida, em 10 de novembro de 2006.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Pois bem… Apesar do paralelismo dos títulos, <i>A Legião do Tempo</i> não tem conexão alguma com <i>A Legião do Espaço</i>, e, enquanto este último, como dito acima, tem edição nacional, o outro, pelo menos até onde eu sei, nunca foi publicado em português, fosse no Brasil ou em Portugal. Encontrei na internet uma versão em inglês em PDF, li assim e, como um exercício pessoal, eu mesmo o traduzi; imprimi, mandei encadernar, e agora essa edição de um único exemplar está na minha estante, ao lado de <i>A Legião do Espaço</i> da Francisco Alves. Trabalhoso demais? Certamente que não, em se tratando de um livro que eu queria ler há tanto tempo. Além disso, gostei da experiência de traduzir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Assim como os escritores de terror do século XIX e início do XX adoravam lançar mão do recurso da "narrativa dentro da narrativa", fazendo seus personagens encontrarem alguém que contava uma história, ou acharem um manuscrito que a continha, os autores de ficção científica que vieram depois também tinham seus expedientes favoritos, e um deles era o de fazer um personagem do presente receber, de alguma maneira, mensagens do futuro. É assim em <i>A Legião do Tempo</i>. Dennis "Denny" Lanning, um adolescente de 18 anos que vive no ano de 1927, está prestes a colar grau na Universidade de Harvard (parece que, na época, as pessoas se formavam bem mais cedo do que hoje) quando, numa noite aparentemente comum, sozinho no apartamento que divide com alguns colegas, ele recebe a visita de uma linda e misteriosa jovem que aparece do nada (depois Lanning percebe que ela não está realmente ali – o que ele vê é algum tipo de projeção) e se identifica como Lethonee. Ela vem apelar ao rapaz em nome de sua cidade, Jonbar, sobre a qual tudo o que se sabe nesse momento é que existe num futuro distante, talvez na Terra, talvez em algum mundo que a humanidade haja colonizado. Lethonee afirma que o destino de Jonbar está nas mãos de Lanning, mas o que isso significa na prática permanece um mistério. Ela o alerta de que deve faltar a sua aula de voo do dia seguinte, na qual ele e seu melhor amigo, Barry Halloran, voariam solo pela primeira vez. Denny faz o que Lethonee pede – e Halloran morre num trágico acidente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Lethonee dá também outro aviso: Lanning será certamente procurado por alguém de nome Sorainya ("a mulher da guerra, a flor do mal"), de um lugar chamado Gyronchi, e, quando isso acontecer, não deve dar-lhe ouvidos em hipótese alguma, pois, caso o faça, isso será o fim de Jonbar e também dela, Lethonee. Dito e feito: Sorainya aparece, tempos depois, também por meio de uma projeção, e, assim como Lethonee, faz um apelo a Lanning em nome de sua cidade, Gyronchi, e do império do qual ela é a capital. É nesse momento que o livro revela a grande sacada de seu enredo: Jonbar e Gyronchi são dois futuros possíveis, e, se uma delas se concretizar, a outra terá sido varrida para sempre da existência. A encruzilhada é algum ato que Lanning ainda vai praticar, ou alguma decisão que ele irá tomar, e é por isso que ambas as governantes procuram ganhar a boa vontade do jovem para suas respectivas causas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Assim como diversas mocinhas da ficção atual (alguém disse <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/03/jogos-vorazes.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Jogos Vorazes</span></a></i>?) ficam divididas entre o amor de dois rapazes – um mais gentil e sensível, o outro mais visceral e selvagem –, o nosso Denny Lanning, cuja experiência anterior com o sexo oposto parece ser nula, se vê atordoado pelas figuras de Lethonee e Sorainya: a primeira é meiga e serena, de uma beleza etérea; a outra é impetuosa, sensual e sedutora. As visitas de ambas poderiam parecer um sonho, se não fossem, para o rapaz, mais reais que a própria realidade cotidiana, mas ele não mais as vê durante muito tempo, e sua vida segue. Dennis Lanning torna-se um repórter arrojado, um correspondente destemido que está sempre nos lugares mais perigosos do mundo, cobrindo guerras, revoluções e convulsões sociais de todo tipo. Não raras vezes se vê envolvido na ação direta, precisa manejar armas, sofre ferimentos, prisões; passa por todos os apertos imagináveis. Os dez anos seguintes transformam o rapazinho sonhador num homem rijo, de nervos de aço, mas que não perdeu nem seu idealismo nem seu romantismo. Ele não se esquece de Lethonee nem de Sorainya, e esta última lhe aparece de novo, alguns anos depois da primeira visita, encontrando um Lanning, naturalmente, mais velho, ao passo que ela não mudou nada. Ela usa de todo o seu poder de sedução e de outras tentações, garantindo ao jovem que, se ele quiser, poderá viver com ela e governar ao seu lado o império de Gyronchi.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJ67r1vj2MD27TKg6DRSlH20Y5ZLo6WMN58rdjiHi2wK_JatNXaQS1zELtr_pibYFNIIZOE-AsW7MBRQOqYBqNi-ZVmkFxOd5nziXXlQiEpT3Y41zYHgbvxFDa-o90TTgRj0oYPQ/s467/zero.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="396" data-original-width="467" height="339" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhJ67r1vj2MD27TKg6DRSlH20Y5ZLo6WMN58rdjiHi2wK_JatNXaQS1zELtr_pibYFNIIZOE-AsW7MBRQOqYBqNi-ZVmkFxOd5nziXXlQiEpT3Y41zYHgbvxFDa-o90TTgRj0oYPQ/w400-h339/zero.jpg" width="400" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Intrigado, Lanning chega a tentar contato com um de seus antigos colegas de quarto na faculdade, Wil McLan, um físico e matemático que se dedicava a estudos sobre a natureza do tempo, desejando ouvir sua opinião – mas descobre que McLan deixou o cargo que tinha numa prestigiosa universidade para dedicar-se a pesquisas particulares, e que seu paradeiro é desconhecido. Mais anos se passam, Lanning se envolve em mais aventuras, até que chega 1937 e ele recebe uma mensagem de outro antigo colega, Lao Meng Shan, perguntando-lhe se está disposto a ajudar a defender a China contra a invasão japonesa. Por sinal, Williamson parece ter pesquisado bastante: o livro apresenta um rigor histórico surpreendente ao mencionar batalhas e guerras. Essa invasão fez parte da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), conflito cujos desdobramentos se entrelaçaram com os da <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/09/inverno-do-mundo.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Segunda Guerra Mundial</span></a> (1939-1945).</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Lanning atende ao chamado, e ele e Shan voam juntos na Batalha de Xangai, na qual o avião dos dois está para ser abatido pelos japoneses quando eles são salvos por uma estranha nave que se desloca tanto no tempo quanto no espaço. Seu comandante é ninguém menos que Wil McLan, mas uma versão idosa dele – uma versão que veio do futuro, já que seus estudos o conduziram à descoberta dos segredos da viagem no tempo. McLan e sua tripulação estão percorrendo as datas e locais de várias batalhas e desastres aéreos históricos, "recolhendo" pilotos hábeis e corajosos de diferentes nacionalidades, no exato momento de suas mortes, ou melhor, no momento em que <i>teriam </i>morrido, para alistá-los numa força que vai lutar por Jonbar – a Legião do Tempo. Jonbar e Gyronchi, apesar de não existirem na mesma realidade, estão em guerra uma com a outra, uma guerra que será lutada em diferentes lugares e épocas, e cujo resultado trará somente uma das duas cidades à existência. Espiando ainda mais longe no futuro de cada uma das duas linhas temporais (o que as engenhocas de McLan conseguem fazer), verifica-se que, na linha que inclui Jonbar, a humanidade terá um destino glorioso, enquanto a outra linha, a de Gyronchi, termina em guerras catastróficas e na extinção de nossa espécie.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjASBiIOPlIOaQ9nRb8hBkBwxP-WSMHIc9Qmo-k3hWXA3HfvQBWrt8MwgLlV9QHb1UQ6afl0FdNHUmGlnnVElHV-M9ozFEfbphRGHLxUXKgILCXriCnctf-SJmlfgxGi1NPAzXPFw/s379/legion+of+time+01.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="379" data-original-width="286" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjASBiIOPlIOaQ9nRb8hBkBwxP-WSMHIc9Qmo-k3hWXA3HfvQBWrt8MwgLlV9QHb1UQ6afl0FdNHUmGlnnVElHV-M9ozFEfbphRGHLxUXKgILCXriCnctf-SJmlfgxGi1NPAzXPFw/s16000/legion+of+time+01.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Histórias sobre guerras futuristas já não eram nenhuma novidade na era de ouro da ficção científica, e menos ainda em 1952, mas sem dúvida que estamos diante de algo diferente quando nos deparamos com um <i>plot </i>no qual a maneira de um lado derrotar o outro não é destruindo-o, e sim impedindo que ele surja. Claro que isso deve ter feito vocês lembrarem do filme <i>O Exterminador do Futuro</i>, mas não esqueçam que ele é de 1984, e certamente que o diretor e roteirista James Cameron tem uma dívida para com os mestres da ficção científica de décadas anteriores, entre eles Jack Williamson (um chega a ser nomeado: no final do filme, logo antes dos créditos, aparece a informação de que o roteiro foi livremente inspirado em contos de Harlan Ellison, mas as contribuições deste referem-se mais à parte da rebelião das máquinas, e não às possibilidades da viagem no tempo). O mais interessante é que, pelo fato de Jonbar e Gyronchi serem realidades alternativas (de modo que a existência de uma delas é a negação da outra), é impossível qualquer contato físico, e por consequência, também é impossível um confronto entre as forças militares de ambas. Wil McLan explica a Denny Lanning a respeito do que ele chama de <i>geodesias </i>(palavra usada aqui com um sentido diferente do que encontramos nos dicionários), que seriam algo como nós ou encruzilhadas, pontos da História onde as diferentes realidades possíveis se ramificam; não há geodesias diretas ligando Jonbar e Gyronchi, e por isso as duas não podem interagir diretamente. Já McLan, Lanning e seus companheiros são do século XX, um período que faz parte do passado de ambas as linhas temporais, e assim, ao viajarem no tempo, podem chegar a qualquer uma delas, dependendo das geodesias que seguirem.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>A Legião do Tempo</i> representa perfeitamente a atmosfera da era de ouro da ficção científica, ou, ao menos, de um estilo que deixou sua marca nela: é uma história cheia de ação, que até procura se ancorar na ciência, mas não hesita em sacrificar a precisão científica, se com isso puder injetar doses extras de aventura e drama. Não sei se um crítico especializado seria da opinião de que a história "envelheceu bem", como eles dizem, mas, falando como um leitor que passou a adolescência lendo tanto Jack Williamson quanto outros gigantes da ficção científica, digo que, mais de 80 anos depois de sua primeira publicação, ela continua a oferecer um entretenimento formidável. Um de meus sonhos enquanto leitor é que apareça uma editora disposta a fazer pela ficção científica o que a Clock Tower tem feito pelo terror e pela fantasia, lançando novas edições de autores antigos que há muito não eram publicados no Brasil, ou que nunca o foram, mas que são importantes para a história do gênero em nível mundial, além de terem muito a oferecer às novas gerações de leitores.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Fiel à minha velha mania de montar trilhas sonoras para as histórias que leio, recomendo aos que forem fãs tanto de metal quanto de ficção científica que experimentem ler <i>A Legião do Tempo</i> ao som da banda sueca Sabaton, cujas músicas inspiradas em grandes batalhas históricas (históricas mesmo: eles deixam a fantasia para outras bandas) encaixam bem em vários trechos do livro.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-91751742932860159762020-07-30T22:15:00.098-04:002021-05-30T23:22:30.290-04:00Black Mirror<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKwSrypOoFkTnqNhcUP3-ihtBsDKosk3jreEcNtf76DFxHe5J8l9CSUAJHLdLM3Dxvi_LnU_cgKnLyCps7AE8Ef3KJzLCfug-QnAE-en9VWd6xCcKcxJqwMRFlUeusvaAXPwDzgw/s290/Black-Mirror-DVD-4-disc-set-FYC-Netflix-promo.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="290" data-original-width="230" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKwSrypOoFkTnqNhcUP3-ihtBsDKosk3jreEcNtf76DFxHe5J8l9CSUAJHLdLM3Dxvi_LnU_cgKnLyCps7AE8Ef3KJzLCfug-QnAE-en9VWd6xCcKcxJqwMRFlUeusvaAXPwDzgw/s16000/Black-Mirror-DVD-4-disc-set-FYC-Netflix-promo.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">O uso imprudente (ou simplesmente tolo) da tecnologia é mais um dentre os muitos aspectos de uma questão muito maior: o <i>Homo sapiens</i> está, no mínimo há alguns séculos, vivendo num mundo para o qual ele não foi feito. Ao longo da nossa evolução, sempre precisamos lutar dia a dia por comida, e, na natureza, essa luta é constante e quase sempre feroz. Antes de aprenderem a estocar e conservar alimentos, nossos ancestrais se condicionaram durante centenas de milhares de anos a comer o quanto conseguissem quando havia comida disponível, já que ninguém sabia quando isso aconteceria de novo. De modo semelhante, nosso paladar evoluiu para achar agradáveis os sabores doces, porque coisas como mel ou certas frutas forneciam muitas calorias – que, naqueles tempos, eram preciosas. Hoje, graças à agropecuária moderna, aos transportes e ao comércio, a maioria de nós tem comida disponível na hora que precisar e na quantidade que quiser, mas o instinto de se empanturrar e o de gostar de doces continuam vivos no ser humano. Em consequência, as outrora escassas e valiosas calorias viraram um problema, e agora vamos à academia para gastá-las, fazendo movimentos que não têm qualquer finalidade prática – coisa que nossos ancestrais considerariam loucura. Coisa parecida acontece com o sexo: em uma hora navegando no <i>XVideos</i>, você provavelmente se expõe a mais estímulo sexual do que um ser humano médio era exposto durante toda a vida, um mero século atrás – e, como o nosso cérebro não sabe a diferença entre sexo virtual e real, não há dúvida de que isso, de algum modo, nos afeta. A tecnologia (e por esse nome não me refiro apenas a coisas como computadores e <i>smartphones</i>: a clava do homem primitivo já era tecnologia) surgiu para nos ajudar com problemas que tínhamos dificuldade em resolver sozinhos, e contribuiu de forma decisiva para a sobrevivência de nossa espécie mais vezes do que conseguimos contar – era o caminho mais recorrente que encontrávamos para usar nossa inteligência de maneiras que compensassem nossa debilidade física. Hoje, porém, ela mudou seu foco e, eu ousaria dizer, sua própria razão de ser: com nossa sobrevivência já garantida (pelo menos em relação às coisas que nos ameaçavam no passado), a tecnologia se propõe agora a ser uma extensão do próprio ser humano, mudando radical e talvez irreversivelmente a nossa maneira de interagir com o mundo e uns com os outros. Neste post tentarei comentar uma obra que trata de tudo isso.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Se me pedissem para descrever <i>Black Mirror</i> usando um único adjetivo, isso seria bem fácil, e esse adjetivo seria <i>necessária</i>. A série criada por Charlie Brooker apresenta uma história independente em cada episódio (apesar de vários deles parecerem frouxamente interligados entre si, muitas vezes por meio de detalhes que, para serem notados, exigem do espectador um certo grau de atenção), mas todos têm algo em comum: tratam da relação dos seres humanos com a tecnologia, e, na maioria das vezes, não de uma forma que nos deixe otimistas. E, ainda que isso seja penoso e exija de nós um bocado de coragem, essa questão precisa ser enfrentada – temos que respirar fundo e olhar nesse "espelho" (em inglês, <i>mirror</i>), pois dificilmente poderia haver um tema mais atual e que fosse mais relevante para um número tão grande de pessoas – praticamente a humanidade toda, a bem dizer.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjY4W6Y2LOd4JdW3J5w2grX8iRzpWp-_oeQ8N8CuxsSl-pw77frVRZMdBgqsgPPwdltIqkunRUBU4tmnonnKz1kxKyx7A9pW0WFr-ITQyR3dQThdaYrxtAJCj5deZ6YsaHQ6G7I9Q/s346/brooker.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="346" data-original-width="259" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjY4W6Y2LOd4JdW3J5w2grX8iRzpWp-_oeQ8N8CuxsSl-pw77frVRZMdBgqsgPPwdltIqkunRUBU4tmnonnKz1kxKyx7A9pW0WFr-ITQyR3dQThdaYrxtAJCj5deZ6YsaHQ6G7I9Q/s320/brooker.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">A série nasceu na rede de TV britânica Channel 4, e sua primeira temporada foi ao ar em 2011. Eram apenas três episódios, já que se tratava de uma aposta um tanto arriscada: implicava em custos de produção consideráveis e não se sabia como seria a receptividade do público, entretanto parece que o saldo foi positivo, pois uma segunda temporada surgiu dois anos depois, com mais três episódios (como se vê, não é uma série recomendável para pessoas ansiosas). Em 2014 veio um único episódio, um especial de Natal com duração mais longa que o normal da série e seguindo aquela estrutura de filme-antologia que era popular no gênero terror durante os anos 80: havia uma história-moldura e, dentro dela, por meio de narrações, eram apresentadas três histórias curtas e (relativamente) independentes. No ano seguinte, a Netflix comprou a série, e, na sequência, anunciou novas temporadas, que chegaram em 2016 e 2017, cada uma com seis episódios. Outro especial foi lançado em 2018, <i>Bandersnatch</i>, um "filme interativo", no qual o espectador, via controle remoto, escolhe as ações do protagonista dentre duas ou três opções, e a soma de todas as suas decisões levará a um dos vários finais possíveis – é como naqueles livros tipo <i>Enrola & Desenrola</i>. A quinta e, até este momento, última temporada estreou em 2019 e tem três episódios.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O único gênero no qual consigo encaixar <i>Black Mirror</i> é a ficção científica, embora fazer isso pareça um pouco estranho, por razões fáceis de entender para quem vê a série, mas difíceis de explicar. Alguns episódios poderiam facilmente acontecer no mundo de hoje, com a tecnologia que já existe – na verdade, coisas parecidas já acontecem –, e outros parecem estar a um estalar de dedos de distância, quando pensamos em como a sociedade em que vivemos lida com coisas como redes sociais ou realidade virtual. O episódio da terceira temporada <i>Queda Livre</i>, por exemplo, retrata uma realidade na qual a dinâmica de <i>like/dislike</i> das redes sociais foi estendida para as interações presenciais do dia a dia: cada vez que interage com alguém no trabalho, na rua ou até em casa, você avalia essa pessoa numa escala de cinco estrelas; graças a certos implantes biocibernéticos que, nessa época, todo mundo tem, qualquer pessoa sabe instantaneamente a média de avaliações de qualquer outra, tão logo põe os olhos nela. Essa média é o que determina o que você é: um indivíduo popular, de quem todos querem ser amigos (para elevar <i>suas próprias</i> médias, é claro) ou um pária que as pessoas fingem não enxergar, tendo a entrada barrada em muitos lugares e sendo preterido no atendimento em estabelecimentos comerciais, aeroportos e até mesmo hospitais. Conclusão: hoje, em 2020, nós <i>já vivemos</i> num mundo onde o que você aparenta nas redes sociais é mais importante que o que você realmente é; tudo o que o mundo de <i>Queda Livre</i> tem de diferente é um tiquinho de tecnologia a mais – e as consequências assustadoras disso tudo. Talvez só a falta desse tiquinho de tecnologia esteja nos poupando, <i>por enquanto</i>, de arcar com essas consequências.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Em certa ocasião, numa entrevista, Charlie Brooker declarou que a tecnologia também é um tipo de droga, e, sendo assim, é uma preocupação válida se nos perguntarmos quais podem ser os seus efeitos colaterais – e esse é o motor que move <i>Black Mirror</i>. Não é mera força de expressão. Li tempos atrás na <i>Superinteressante</i> (salvo engano) a respeito de um estudo que indicava que é mais fácil uma pessoa se livrar do vício em crack que em redes sociais. O paralelo é completo: pode-se ter crise de abstinência de Facebook, Twitter e sei lá o que mais – nunca me interessei por essas coisas, e parece que foi melhor assim. É claro que a série não poderia ignorar esse assunto, que é pincelado em vários episódios, mas tem papel central em <i>Smithereens</i>, da quinta temporada, que conta a história de um homem em crise, que se culpa pela morte da noiva, há alguns anos: ele estava dirigindo o carro em que ambos viajavam, quando seu celular deu o alerta de alguma atualização em sua rede social favorita, e ele olhou. Esses segundos de distração causaram o acidente que custou a vida dela. Ele decide então sequestrar um alto executivo da empresa proprietária da rede social e ameaçar matá-lo, a menos que o todo-poderoso CEO da tal empresa converse com ele. Eis um episódio que pode levantar polêmica – polêmica de verdade, não do jeito como a <i>tchurma</i> da internet usa, chamando de "polêmica" qualquer coisa que cause <i>hype</i> e deixando claro que quem produz o conteúdo não tem a menor ideia do que essa palavra significa. Aqui cabe polêmica <i>mesmo</i>. À primeira vista, pôr a culpa nas redes sociais pelo uso obsessivo que muita gente faz delas (e que pode prejudicar seriamente suas vidas, de várias maneiras) parece tão sem sentido quanto querer processar o McDonald's exigindo indenização pela sua obesidade ou problemas cardiovasculares – afinal, ninguém obriga ninguém a se entupir de <i>junk food</i> cinco vezes por semana, nem a ficar 12 horas por dia numa rede social até isso ferrar seu cérebro e acabar com qualquer vida normal que porventura tivesse… Porém, a coisa muda de figura quando ficamos sabendo que as empresas de redes sociais têm departamentos inteiros que trabalham em tempo integral para encontrar maneiras de tornar o uso delas cada vez mais compulsivo, recorrendo para isso a todo o conhecimento que as ciências do comportamento podem oferecer.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqSNjvQrJIvSsp0GwehIi456OQloct0ANQdF9Gc771IiB4I6-LjeOUA91go336J-gHFmbXvEzC8uyClABDiOro-1LVQa4bAcoW5BK7o9Tz_iMfGg2ih8GOh8U-Lh7-ejKZaMyvCg/s558/15+million.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="385" data-original-width="558" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqSNjvQrJIvSsp0GwehIi456OQloct0ANQdF9Gc771IiB4I6-LjeOUA91go336J-gHFmbXvEzC8uyClABDiOro-1LVQa4bAcoW5BK7o9Tz_iMfGg2ih8GOh8U-Lh7-ejKZaMyvCg/s16000/15+million.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Se alguns episódios de <i>Black Mirror</i> parecem se ambientar no presente (em geral, numa versão alternativa do presente), ou num futuro que pode ser real dentro de cinco, dez anos, outros chutam mais longe no campo da ficção científica, descrevendo futuros um pouco mais distantes, mas sempre com foco na questão da tecnologia e/ou mídias sociais. É o caso de <i>Quinze Milhões de Méritos</i> (primeira temporada), que retrata o cotidiano de pessoas que passam seus dias pedalando em bicicletas fixas para gerar energia, dentro de complexos aparentemente construídos para isso, sem contato com o mundo exterior. De acordo com a quantidade de energia que produzem, eles ganham <i>méritos</i>, que são uma espécie de moeda virtual com a qual podem adquirir desde comida até pequenas bobagens tecnológicas, acesso a jogos, TV etc. E, como a política do <i>pão e circo</i> nunca perde a atualidade, há um programa de talentos estilo <i>The Voice</i> que é extremamente popular; por meio dele um punhado de ex-<i>pedaladores </i>tornaram-se artistas de sucesso e alcançaram uma vida de <i>glamour </i>e conforto, o que, naturalmente, é o sonho de milhares, quiçá milhões. A inscrição para participar custa os 15 milhões de méritos do título, o que equivale a meses de trabalho frenético nas bicicletas. A história do episódio gira em torno de um jovem (o excelente Daniel Kaluuya, de <i>Corra!</i>), que se apaixona por uma garota com talento de cantora, mas que não tem como pagar a inscrição no programa. Ele a patrocina e ela realmente consegue participar, mas o resultado acaba sendo desastroso – muito pior do que ela levar "buzina", ou o equivalente a isso. O episódio termina dando-nos um doloroso tapa na cara para mostrar como até mesmo o protesto pode virar mercadoria comerciável e um instrumento a mais para fortalecer o <i>status quo</i>.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Pesquisando na internet em busca de informações sobre <i>Black Mirror</i>, vim a saber que as duas primeiras temporadas (as que foram lançadas enquanto a série ainda pertencia ao Channel 4) são as favoritas da maioria dos fãs; para mim, parece que essas pessoas estão cedendo ao instinto (tão comum) de dar mais valor ao que é alternativo só <i>por ser</i> alternativo, como quem pensa "ah, a Netflix é muito <i>mainstream</i>, não vai pegar bem se eu disser que ela fez um bom trabalho, tenho que ser da opinião de que a série só foi boa enquanto estava num canal menor e que, quando passou para a Netflix, decaiu – assim todo mundo vai me achar <i>fodão</i>". Minha própria opinião é que a primeira temporada é, de fato, muito intensa, mas não dá para dizer o mesmo da segunda, que tem um episódio forte, <i>Urso Branco</i>, um mediano, <i>Volto Logo</i>, e tem também <i>Momento Waldo</i>, a meu ver um dos episódios mais fracos de toda a série. A terceira e a quarta temporadas têm muito mais momentos marcantes, e mesmo a quinta, de modo geral execrada, tem coisas interessantes (já citei <i>Smithereens</i>). Suponho que a maior parte da bronca que muitos têm com essa temporada seja por causa do episódio <i>Rachel, Jack e Ashley Too</i>, uma história leve (para os padrões de <i>Black Mirror</i>, bem entendido) e com final otimista, o que deve ter decepcionado muita gente que, num episódio da série, espera ver coisas terríveis, trágicas ou chocantes. A participação da cantora Miley Cyrus, no papel de uma estrela pop (nããão, jura?!), também deve ter desagradado aos mais radicais. De minha parte, acho a variação de tons entre os episódios uma boa coisa; caso venham mais temporadas, espero ver um equilíbrio entre histórias mais tensas e outras mais divertidas. Não há motivo para que o futuro precise ser <i>sempre</i> retratado de modo tão negro e ameaçador. E, para falar francamente, <i>Rachel, Jack e Ashley Too</i> está longe de ser o melhor episódio de <i>Black Mirror</i>, mas está ainda mais longe de ser o pior.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Embora vários temas ligados à tecnologia sejam abordados na série, talvez o mais recorrente (e, pelo menos para mim, de longe o mais inquietante) é a possibilidade (teórica) da migração da consciência humana para algum tipo de dispositivo artificial. Em <i>San Junípero</i> (terceira temporada), pessoas próximas da morte podem ter a totalidade do conteúdo de suas mentes escaneada, copiada e carregada em poderosos servidores que rodam simulações virtuais perfeitas do mundo real, em qualquer época ou lugar que se deseje; na teoria, a pessoa pode passar a eternidade revivendo os momentos agradáveis de sua vida e/ou vivendo experiências novas, e, como o corpo que ela tem nas simulações é puramente virtual, pode descartar a idade e quaisquer doenças, voltar a ser jovem e forte e permanecer assim para sempre. <i>Na teoria</i>. À primeira vista, isso de fazer <i>upload</i> da sua mente para um computador pode parecer ótimo, e, em princípio, deve ser possível, pois, como dizia <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/07/a-flor-de-vidro.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Joachim Kleronomas</span></a>, uma mente humana é feita de memórias, memórias são dados, e dados podem ser copiados. Porém, se isso um dia se tornar factível, me parece, por simples lógica, que sua versão digitalizada não será realmente <i>você</i>. Para dar um exemplo: se sua mente for copiada para um substituto eletrônico de cérebro, e este for implantado num corpo robótico ou clonado (<i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2017/05/westworld.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Westworld</span></a></i> também lida com essa ideia), a criatura resultante pode parecer você, agir como você, pensar como você, pode até <i>acreditar </i>ser você, mas não creio que a sua consciência vá estar ali, que você realmente vá ver através daqueles olhos e experimentar as sensações daquele corpo. Será uma cópia sua, uma máquina programada para agir como se fosse você, e não mais que isso. Seu verdadeiro "eu" terá sido extinto ou terá migrado para outro plano de existência, conforme a crença que você tenha – enfim, você terá <i>morrido</i>, como sempre aconteceu com os seres humanos desde o princípio. Em palavras simples, acredito que seja possível <i>copiar </i>uma mente, mas não <i>transplantá-la</i>. Mas posso estar enganado, é claro.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiTdG1FQwjoLd8sVmgY-OTBjfVB2SqB1_75_XzGCGLevEg02JOn2wj6A3ANpVnPnz7tkNFmi8MJZ20hi4cOohyphenhyphenO0EWx0Nag6YWv81dWvDO4kddoU1skbJj3xNnWjdozfhV7ErAJSg/s524/black+museum.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="403" data-original-width="524" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiTdG1FQwjoLd8sVmgY-OTBjfVB2SqB1_75_XzGCGLevEg02JOn2wj6A3ANpVnPnz7tkNFmi8MJZ20hi4cOohyphenhyphenO0EWx0Nag6YWv81dWvDO4kddoU1skbJj3xNnWjdozfhV7ErAJSg/s16000/black+museum.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">O <i>upload</i> de consciência tem um papel-chave, também, no que talvez seja o episódio mais perturbador de todos (e é sem dúvida um dos melhores), <i>Black Museum</i>, o último da quarta temporada – mas se eu fosse descrever exatamente de que forma esse conceito é usado no episódio, teria que dar um <i>spoiler</i> pelo qual ninguém me perdoaria. Assim como <i>Natal</i>, trata-se de um filme-antologia. Na história principal, acompanhamos uma jovem que está viajando de carro pela estrada que corta o deserto no estado de Utah (Salt Lake City é mencionada) quando para num posto de combustíveis no meio do nada, só para descobrir que ele está fechado e vazio. Ela põe o carro para carregar usando a energia solar, mas isso demorará horas, e então, como se fosse uma decisão tomada de improviso, só para matar o tempo, ela vai até um estranho museu que fica exatamente ao lado – o Black Museum, cujo proprietário, administrador e cicerone é um homem chamado Rolo Haynes. Haynes explica à visitante que trabalhou durante muito tempo para a TCKR (empresa de tecnologia que aparece também em outros episódios) e esteve envolvido com certas experiências inovadoras e pouco ortodoxas, uma das quais acabou causando sua demissão. Então criou o museu, que reúne uma coleção de itens tecnológicos ligados de alguma forma ao crime ou tragédias. Ele conta as histórias de três dos objetos em exibição, mas o espectador atento reconhecerá outros, mostrados quase de relance, que tiveram papéis fundamentais em episódios anteriores. Por fim, a visitante é conduzida à atração principal do museu, sobre a qual não darei detalhes, mas, talvez mais que qualquer outro tema na série, essa revelação nos leva a refletir que a simbiose homem/máquina, que já começa a se tornar realidade em nossos dias, pode, sim, ter possibilidades (teóricas, insisto) fascinantes, mas também tem outras extremamente assustadoras e macabras. Tudo vai depender de como essas possibilidades vierem a ser exploradas, é claro, mas, se levarmos em conta o jeito como outras tecnologias têm sido aplicadas ao longo da História… Bem, acho que vocês me entendem.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Meu objetivo com este post foi apenas dar a quem ainda não assistiu uma ideia preliminar do que é <i>Black Mirror</i>, mencionando alguns episódios que considero relevantes; há vários outros que mereceriam destaque, e, se outra pessoa for redigir um texto com a intenção de apresentar a série, ela certamente escolherá episódios diferentes para citar. Há muitos sites e blogs por aí com análises aprofundadas, seja da série como um todo ou de episódios específicos – recomendo especialmente o <i><a href="http://farofageek.com.br/series/black-museum-a-queda-de-lucifer-a-banalidade-do-mal-e-a-sociedade-do-espetaculo/" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Farofa Geek</span></a></i>, que oferece uma interpretação fascinante a respeito de <i>Black Museum</i>, mas só leiam depois que tiverem assistido ao episódio. Minha conclusão será modesta, apenas reiterando que <i>Black Mirror</i> é muito necessária. Deveria ser vista por todos, já que todos vivemos nesse mundo maluco, e a maioria de nós viverá o suficiente para vê-lo tornar-se mais maluco ainda. É claro que a série dificilmente escapará da mesma sina que afeta a maior parte da ficção científica: por mais que suas previsões nos pareçam espantosas, a realidade, no devido tempo, muito provavelmente fará essas previsões parecerem tímidas e conservadoras. Ainda assim, ela vale por uma espécie de vacina mental, e talvez nos deixe um pouco mais preparados para o que devemos ver aparecer durante os próximos anos e décadas.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-50180833573004304352020-06-19T21:26:00.007-04:002021-10-09T12:42:57.541-04:00Manual Politicamente Incorreto da Civilização Ocidental<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZctXnL1wb_gBygrbJwi7ESbMDXGWQGkQJwqyeMUFsQtVFFYz669RWt4DvfHcw9SMiGmWfnRIMRtU02PQ6YLf26WejGRXIwJvLSC5vdAuL-kDBRUZ0Bm-gjX6IqoHTZK25bfZE9g/s320/11387-515x800.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZctXnL1wb_gBygrbJwi7ESbMDXGWQGkQJwqyeMUFsQtVFFYz669RWt4DvfHcw9SMiGmWfnRIMRtU02PQ6YLf26WejGRXIwJvLSC5vdAuL-kDBRUZ0Bm-gjX6IqoHTZK25bfZE9g/s16000/11387-515x800.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;"><i>Caso queira ser chamado de simplório ou de repressor perverso, a maneira mais rápida é reconhecer que o mal realmente existe. No relativismo atual, a única coisa errada é dizer que algo é errado.</i> (Anthony Esolen)</div></span><p></p><p style="text-align: center;"><span style="font-family: georgia;">* * *</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Não invoco nenhum mérito pessoal nisso (não decorre de nada que eu tenha feito conscientemente – me parece algo natural, como o formato do meu nariz), mas sempre fui atraído pela História, sempre desejei conhecer os fatos do passado, como eles estavam interligados uns com os outros e como influenciavam o presente. Sempre tive a curiosidade de saber como os povos de outros tempos viviam, lutavam e amavam – e, mais importante, saber <i>o que</i> eles amavam e <i>pelo que</i> lutavam. Sempre compreendi a dificuldade, e também a necessidade indispensável, de tentar "pensar com a cabeça da época", em vez de simplesmente aplicar os padrões atuais à realidade de séculos passados, como a maioria das pessoas faz sem perceber. E, sinceramente, não entendo como é que tanta gente vê a História como uma coisa estática, sem vida, tediosa, algo que, até onde lhes importa, se resume a decorar meia dúzia de nomes e datas para fazer uma prova, receber uma nota, e depois esquecer tudo. Tampouco consigo ver sentido naquelas duas frases repetidas à exaustão (e geralmente ditas juntas) por milhões de estudantes e por outros que já não o são há um bom tempo: "Estudar História é uma perda de tempo! Pra que eu vou <i>usar </i>isso?"</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Para os poucos que compartilham essa minha vontade de saber por que o mundo e a humanidade são como são, e a quem devemos aquilo que temos e somos (o que traz junto o peso de uma grande <i>responsa </i>sobre os nossos ombros), livros como este são um achado. O autor Anthony Esolen promove nestas páginas uma extensa viagem às raízes do ocidente, além de buscar respostas para as questões que estão na cabeça de todo intelectual que, mesmo nesse desvairado século XXI, ainda insiste em prezar esse legado inestimável de arte, filosofia e princípios que recebemos de nossos antecessores. Dessas questões, a primeira que vem à mente nestes tempos é: a quem interessa a destruição sistemática de todos os valores que serviram de alicerce à nossa civilização – e por quê? Questão essa que levanta imediatamente uma outra: e quando esse mundo, que direta ou indiretamente nos deu tudo o que temos (pelo menos, tudo de bom e digno) estiver definitivamente demolido, ele será substituído… pelo quê? O livro de Esolen também discute possíveis maneiras de resistir, mesmo que nossa resistência seja como a dos poloneses no Levante de Varsóvia: há momentos em que devemos lutar porque essa é a coisa certa a se fazer, mesmo que a esperança de vitória pareça ser nenhuma.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como sabemos, a Europa, e, por consequência, todo o ocidente, nasceu do tríplice encontro entre a filosofia grega, o direito romano e a fé judaico-cristã, e Esolen faz o percurso lógico, dedicando a cada uma dessas bases um capítulo logo no começo do livro. O mais interessante é que ele não se limita a discorrer sobre a "coisa em si": em vez de focar só na filosofia grega, por exemplo, oferece-nos um painel (bem resumido, é claro) do amadurecimento da civilização helênica, que tornou possível o nascimento dessa filosofia, com copiosas indicações bibliográficas para quem quiser se aprofundar na matéria, embora, infelizmente, a maioria dos livros que ele indica não tenha edição brasileira. Qualquer pessoa com um pingo de cultura sabe que a Grécia antiga foi o berço da democracia, é claro – mas Esolen nos mostra que, por mais que a democracia seja uma coisa magnífica, já naquela época, como hoje, ela, sozinha, não era e não é garantia de nada. Liberdade é um bonito conceito, mas, se entendida simplesmente como "cada um faz o que quer", leva à libertinagem e ao caos. O homem só é verdadeiramente livre quando compreende que a liberdade não vem de graça: ela traz consigo deveres e responsabilidades, e, se ele não se mostrar à altura, desonra-se perante si mesmo e perante seus pares – isso para não mencionar outras consequências piores que o deslustro de sua honra, piores por poderem afetar seus filhos, netos e demais descendentes, caso esse homem livre de que estamos falando falhe em fazer o que tempos de crise exigem dele. Isso explica, por exemplo, o que manteve os <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2007/04/logo-que-ele-estreou-algumas-semanas.html" target="_blank"><span style="color: red;">soldados de Leônidas</span></a>, homens livres, firmes em seus postos mesmo diante da morte certa, numa situação na qual os soldados-escravos do rei da Pérsia já teriam debandado, ou o que levava um legionário romano a dar a vida para impedir que o inimigo se apossasse da <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2010/09/aguia-da-nona.html" target="_blank"><span style="color: red;">águia</span></a> de sua legião. Como Esolen diz em algum lugar, essas civilizações só alcançaram o que alcançaram porque dispunham de homens assim – homens que temiam menos a morte que a desonra. Graças, em grande parte, ao que a Grécia e Roma nos legaram, foi possível construir uma civilização na qual um sacrifício tão drástico raramente é necessário, mas, hoje, cabe a nós lutar outro tipo de batalha. Em nossos dias, a guerra é cultural, o inimigo é ardiloso e sem escrúpulos e, como dizia Thomas Jefferson, o preço da liberdade é a vigilância constante.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfdPZUxpI4d2hL6FOfuuQU3J1TWIbLcNIL_OdlUS7D1t3rjnl3VUkOJGnk1QKhCeRX_CIAs8hDD-ByffjEoQNxXu2Vm3n1XqSZlz3LJ9-ItY6-7iHKjDZuBaRsvdFOXEJ93oYWYQ/s285/esoulen.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="285" data-original-width="255" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfdPZUxpI4d2hL6FOfuuQU3J1TWIbLcNIL_OdlUS7D1t3rjnl3VUkOJGnk1QKhCeRX_CIAs8hDD-ByffjEoQNxXu2Vm3n1XqSZlz3LJ9-ItY6-7iHKjDZuBaRsvdFOXEJ93oYWYQ/s0/esoulen.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Falei em liberdade porque estava pensando em democracia; as duas não são a mesma coisa, é claro, mas estão estreitamente relacionadas, e, assim como a liberdade precisa ser merecida, a democracia traz em si alguns pressupostos: o povo precisa ter um nível mínimo de educação e de virtudes cívicas para estar em condições de fazer bom uso do poder que esse sistema coloca em suas mãos. O que nos deixa (a nós, brasileiros) numa sinuca de bico que não preciso explicar. Bem, vamos adiante.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Boa parte do <i>Manual Politicamente Incorreto da Civilização Ocidental</i> é dedicada a desmontar o mito politicamente correto que pinta a Idade Média como a "idade das trevas" ou até mesmo a "noite dos mil anos" (esta última só pode ter sido cunhada por algum historiador francês, provavelmente filiado ao Iluminismo). A origem desse mito é fácil de entender: a Idade Média foi o período de maior poder e influência da Igreja Católica – portanto, por razões ideológicas, é da mais alta importância para os politicamente corretos que ela tenha sido um período obscurantista e miserável, quase sem nenhum progresso. É claro que essa noção é muito mais antiga que esses movimentos lacradores que hoje tentam com tanto empenho tornar a nossa vida insuportável, mas deve-se àqueles que, poderíamos dizer, foram os ancestrais ideológicos desses movimentos: os iluministas do século XVIII (sempre eles). Esolen nos toma pela mão para um passeio instrutivo no qual mostra que coisas como as catedrais, palácios e até fortalezas militares espalhadas pela Europa são testemunhas de um progresso técnico notável nos campos da engenharia e da arquitetura, o que não teria sido possível numa era culturalmente estagnada; que os primeiros hospitais e universidades surgiram precisamente na Idade Média e por iniciativa da Igreja; que, ainda que as pessoas da época estivessem longe de ter uma vida fácil, ela também não era tão horrível quanto quiseram nos fazer acreditar. O engraçado (ou revoltante, depende de como você escolha encarar) é ver que, à medida que mais e mais descobertas de evidências arqueológicas e documentos históricos vão mostrando, para além de qualquer dúvida, que a Idade Média trouxe muitos e importantes progressos em muitas áreas, a mídia vai mudando seu discurso: diante da impossibilidade de negar que esses progressos aconteceram, ela passa a insinuar que eles foram alcançados <i>apesar </i>da Igreja Católica, e não <i>graças a ela</i>. Não que isso surpreenda a alguém, considerando o habitual <i>modus operandi</i> da mídia e dos grupos que a controlam, e o tipo de opinião que eles tentam plantar na cabeça da população pouco instruída – e, o que é pior, daquela parte da população que <i>teve </i>alguma instrução, mas não enxerga o quão ideológica e enviesada ela foi. O resultado disso, é claro, é que essas pessoas se julgam altamente "críticas" e "conscientes", quando na verdade tudo o que estão fazendo é engolir um discurso que receberam pronto, sem questionar nada, ir atrás da maioria e repetir as opiniões que as deixam "bem na foto".</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Você certamente conhece o relato padrão da Renascença. Os plebeus se libertaram da tirania da Igreja, e – recém-libertos – tornaram-se mais felizes e sábios. Grandes artistas, escritores e pensadores, livres para se concentrar em algo além da fé empoeirada, criaram a maior revolução artística, filosófica e cultural já vista pela Europa. A Renascença, em suma, nos é vendida como uma rejeição da Idade Média e o glorioso triunfo do secularismo. (…) Todas essas formulações servem às finalidades de nossos dias. Denigrem a religião, exaltam a modernidade e permitem que os secularistas exijam o crédito pelo florescimento da criatividade. Elas também possuem a virtude da simplicidade. O absurdo também é simples. (p. 166)</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Impossível não concordar, até porque a estratégia da mídia não tem muito como fugir da obviedade nesse particular: quando você está tentando vender uma versão tendenciosa, ela não funciona se não for óbvia. Logo, se a Idade Média era ruim por causa da influência da Igreja, a Renascença (e notem como até esse nome já está carregado de ideologia), por ter, alegadamente, rompido com a Idade Média, só podia ser boa. E não se trata aqui de negar as maravilhosas realizações que os artistas desse período alcançaram nos campos das artes plásticas e da música, principalmente, nem os progressos científicos que também ocorreram; afinal, a Renascença nos deu Leonardo da Vinci, que, só ele, já teria bastado para conferir relevância a essa época, mesmo que tivesse sido o seu único expoente importante – e não foi, aliás longe disso. Acontece que essa suposta ruptura com a Idade Média (e, por conseguinte, com a fé cristã) é quase sempre muito exagerada por conta do viés ideológico de quem está contando a história; em muitos casos, se corretamente examinadas, as grandes realizações renascentistas foram muito mais um desenvolvimento natural do que já vinha sendo feito durante a Idade Média do que um grito de independência em relação a ela. Por outro lado, é um engano achar que houve progresso em todas as áreas. Houve o surgimento de muitas obras incríveis, como já dito, nas artes plásticas (pintura, escultura), na música, além de avanços nas ciências naturais etc., mas o que dizer, por exemplo, da filosofia? Na Idade Média tivemos uma vasta e rica tradição filosófica (de base cristã), iniciada por Santo Agostinho e que encontrou sua coroação com São Tomás de Aquino, que conciliou de forma brilhante o pensamento de Aristóteles com a teologia cristã. Na Renascença, o que tivemos? Maquiavel? A comparação fala por si.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDPy5dp1PUgO0z-G9Jhm_MvOxO6CL-yKR0Q3cvrICqDoeIMS0v7o-sfWxiW5g-e5lEhsUSlDqwhcEJvKmWrn2BmGnJfo9wIjwlemC02sBAHAnZfygDtYJcYPbj9UMic8z0LFVIUw/s564/acropolis-top-1-1280.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="322" data-original-width="564" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDPy5dp1PUgO0z-G9Jhm_MvOxO6CL-yKR0Q3cvrICqDoeIMS0v7o-sfWxiW5g-e5lEhsUSlDqwhcEJvKmWrn2BmGnJfo9wIjwlemC02sBAHAnZfygDtYJcYPbj9UMic8z0LFVIUw/s16000/acropolis-top-1-1280.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">(É fato que Santo Agostinho, que viveu de 354 a 430, ainda pertence, cronologicamente, à Antiguidade, mas faz sentido considerá-lo um dos fundadores da filosofia medieval, devido à enorme influência que teve nos séculos seguintes e ao fato de que viveu apenas algumas décadas antes da data tradicionalmente considerada como a da transição da Idade Antiga para a Média, com a queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476.)</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Vou admitir, por uma questão de honestidade intelectual, que por vezes, ao longo do livro, Esolen parece apoiar-se um pouco demais em sua fé católica para embasar seus pontos – e quem está dizendo isso é também um católico devoto. Se o objetivo do livro é defender as bases da civilização ocidental contra os ataques orquestrados pelos movimentos "progressistas" do nosso tempo, a meu ver o autor deveria fazê-lo de forma que soasse convincente para qualquer leitor, independentemente de sua fé ou da falta dela. Você pode ser um ateu, mas se, acima de tudo, for intelectualmente honesto (e não tiver se rendido à lavagem cerebral da mídia), não deverá ter problema em reconhecer que manter de pé a civilização que a Igreja Católica tornou possível seria benéfico para a humanidade de maneira geral, quer no campo cultural, social ou espiritual (e se você, como ateu, não gostar da palavra espiritual, pode substituí-la por "psicológico"; não é bem o que eu queria dizer, mas me falta palavra melhor – em todo caso, estou me referindo à saúde mental média da população do ocidente). Demolir as bases da nossa cultura e ensinar às novas gerações que não há ordem alguma no universo, muito menos algum sentido, e que o bem e o mal não passam de construções sociais, não vai criar um mundo mais livre e feliz; vai criar um mundo cheio de gente frívola, sem objetivos e com uma enorme tendência à depressão, às drogas e ao suicídio. Isso é algo que deveria ser evidente para qualquer pessoa razoável, fosse ela religiosa ou não. Infelizmente, o mundo sempre esteve em falta de pessoas razoáveis, e hoje não é diferente, com o agravante de que as facilidades de comunicação que a tecnologia trouxe, agora permitem que doidos de toda espécie arrastem para o seu lado multidões de jovens e de pessoas influenciáveis em geral, e que movimentos políticos com intenções escusas se aproveitem disso. Esolen estaria alcançando seus objetivos de forma bem mais eficiente se convencesse seu leitor de tudo isso sem precisar antes fazê-lo compartilhar de suas próprias convicções de fé – mas não o culpo, pois sei o quanto isso é difícil, ainda que os fatos e os exemplos históricos estejam aí à vista de todos, porque a mentalidade progressista já prendeu seus antolhos na cara de muita gente, e removê-los não é tarefa fácil.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A primeira vez que ouvi falar em "politicamente correto" foi durante os anos 90, e não dá para dizer que propriamente tenha <i>ouvido falar</i>; na verdade li sobre o assunto, numa revista (acho que era a <i>Veja</i>, mas não posso dar certeza) que folheava aleatoriamente na casa de alguém ou na sala de espera de um consultório qualquer – não lembro os detalhes. O texto era uma resenha sobre o livro <i>Contos de Fadas Politicamente Corretos</i>, de James Finn Garner (é claro que eu não lembrava o nome do autor também: procurei agora na internet), que, por sua vez, tinha o claro objetivo de ridicularizar a moda que estava então se popularizando nas universidades americanas, consistindo em fazer todo o esforço para purgar a linguagem de qualquer traço de racismo, sexismo, culturalismo, preconceito contra portadores de qualquer tipo de deficiência, e por aí afora… e de tudo o que as cabeças paranoicas e ultrassensíveis dos adeptos dessa ideologia <i>entendessem </i>como sendo qualquer uma dessas coisas, mesmo que o resultado fosse esquisitíssimo e, não raro, ridículo. Na prática, aplicado aos contos de fadas, isso gerou títulos como <i>A Jovem de Origem Caucasiana e Seus Sete Amigos Prejudicados Verticalmente</i> (para quem não entendeu, <i>Branca de Neve e os Sete Anões</i>). Nunca cheguei a ler o próprio livro, mas é fácil imaginar que a reação de quem o lesse seria, muito provavelmente, aquela pretendida pelo autor: dar risada. Naquele tempo, ainda parecia mais ou menos seguro confiar que essa "nova linguagem" seria encarada pela grande maioria das pessoas exatamente como aquilo que era – uma completa idiotice. Só que não era uma idiotice aleatória, e sim dotada de método e objetivo. Em 2020, em meio a notícias a respeito de escolas que estão adotando oficialmente o "gênero neutro" no ensino da língua portuguesa, fica bem mais difícil achar graça em tais coisas. "Politicamente correto", hoje, engloba muito mais que linguagem, virou designação de toda uma mentalidade que basicamente busca realizar o sonho dos marxistas mais radicais de décadas passadas: arrasar por completo a cultura e a sociedade existentes, para construir outras novas sobre as suas ruínas. Para conseguir isso, usa-se a mídia, que manipula informações de modo a moldar a opinião pública da maneira que mais favoreça esse objetivo, e a educação "moderna", que trata de inculcar cada vez mais cedo nas mentes de crianças e jovens a ojeriza a todos os valores tradicionais (em especial religião e família) e a crença de que não existe bem ou mal, certo ou errado, de que tudo é relativo, maleável, questão de opinião e ponto de vista… E, embora tudo seja questão de opinião, </span><span style="font-family: georgia;">só determinadas opiniões é que são aceitáveis. Agora é possível ver o que havia por trás da tal linguagem politicamente correta que nos arrancava risos há alguns anos: as palavras podem não ter poder sobre a realidade objetiva, mas têm poder sobre as mentes – o que, a longo prazo, vem a dar no mesmo. George Orwell, ao descrever a novilíngua em seu </span><i style="font-family: georgia;"><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2006/10/um-livro-proftico.html" target="_blank"><span style="color: red;">1984</span></a></i><span style="font-family: georgia;">, profetizou o que estamos vendo na prática hoje.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">É revelador observar como, nessa nova cultura que tanto insiste em justiça e igualdade, tudo é seletivo, tudo tem dois pesos e duas medidas. O caso da linguagem apenas exemplifica o que acontece em todos os campos. A fala politicamente correta pisa em ovos para não deixar passar nada que possa soar longinquamente ofensivo a qualquer uma das assim chamadas minorias (você deve dizer "afrodescendente", porque “negro”, supostamente, traz conotações pejorativas), mas faz questão de ser o mais brutal e odiosa possível quando se trata de atacar o "outro lado": a expressão para "marido" é "estuprador legalizado". Foram inventadas até palavras e expressões totalmente novas, mas com objetivos óbvios, como "descolonização do corpo", que significa tornar-se lésbica… Porque, segundo o feminismo radical que acolheu de braços abertos a cultura politicamente correta, toda relação heterossexual é um estupro (elas afirmam isso com todas as letras), e, portanto, ser lésbica não é apenas uma característica que algumas pessoas apresentam e que deve ser respeitada: é uma escolha, um ato político – um ato de "libertação". Não podia ser mais evidente a intenção de pulverizar a família tradicional, que costuma ser um empecilho à implantação de regimes totalitários (com uma ou outra exceção, como o nazismo, que conseguiu, de certa forma, instrumentalizá-la). O mesmo com a religião: o “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, proferido por Jesus Cristo, deixou claro que há espaços na vida do indivíduo, e mesmo da sociedade, nos quais o Estado não deve interferir – ou seja, regimes totalitários são intrinsecamente maus e errados. Não causa surpresa, portanto, que os politicamente corretos de todas as vertentes tenham elegido o cristianismo como inimigo número um e alvo preferencial, e isso apesar de defenderem com tanto zelo (da boca para fora) a liberdade individual. No mundo de hoje, é opinião geral que toda pessoa deve ser livre para professar e praticar qualquer fé – contanto que não seja cristã. É malvisto criticar, ainda que moderadamente, o budismo, o islamismo ou qualquer forma de crença indígena/aborígine (é intolerância!), mas tudo bem dizer qualquer absurdo contra Deus, Jesus ou a Igreja (aí é liberdade de expressão). Há muito, mas <i>muito </i>objetivo por trás de tudo isso. O politicamente correto não é mais (se é que alguma vez o foi) um instrumento para proteger minorias; hoje, ele nada mais é que um meio que movimentos políticos usam para arrebanhar essas minorias – que, em termos de números, são na verdade a maioria – para usar como massa de manobra e, de quebra, calar quem discorda. Muito deste parágrafo e do anterior são observações minhas, aproveitando um ou dois ganchos fornecidos no livro de Esolen.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhwemtHjk5FLOiJpIkdGZtoHrFj1uetBt6A_wgA5bTgdFb6v7FoJk4SacId4Ya4AsJvKlM-gtHQuG4Ow-lVe0B0wnrdDzsGXjnIb9F441TTrjBWpvEKLFrFJsGpVCfgrocGV6M1Yg/s534/as-marchinhas-e-o-politicamente-correto.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="348" data-original-width="534" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhwemtHjk5FLOiJpIkdGZtoHrFj1uetBt6A_wgA5bTgdFb6v7FoJk4SacId4Ya4AsJvKlM-gtHQuG4Ow-lVe0B0wnrdDzsGXjnIb9F441TTrjBWpvEKLFrFJsGpVCfgrocGV6M1Yg/s16000/as-marchinhas-e-o-politicamente-correto.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">O capítulo VIII, já próximo do final do livro, intitula-se <i>O Século XIX: o Homem é um Deus; o Homem é uma Besta</i>, e inclui reflexões sobre mais de um ponto interessante. Primeiro, o que lhe dá título – no século XIX, impulsionada pelo romantismo, instaurou-se uma tendência de endeusar a natureza, o que, por sua vez, abriria caminho para a divinização do homem, que ganhou um porta-voz em Friedrich Nietzsche (1844-1900). Não que o romantismo, de maneira geral, fosse particularmente propenso ao ateísmo – muitos de seus expoentes eram cristãos, e mesmo os que não o eram, geralmente cultivavam alguma forma de espiritualidade –, mas a ênfase que ele punha nos sentimentos, no "mundo interior" de cada um, na coisa subjetiva, levou muitos (não todos, nem a maioria, mas muitos) a uma tendência perigosa para o individualismo, e daí para o ateísmo o caminho costuma ser curto. Uma vez que se admita que não há Deus, os próximos passos são previsíveis. O ideal do comportamento humano seria que o simples fato de compreendermos o que é certo e o que é errado fosse suficiente para nos levar a buscar o primeiro e evitar o segundo – porque isso é o correto a se fazer e pronto, sem necessidade de qualquer promessa de recompensa ou de castigo. Mas, repito, isso seria o ideal. Na prática, o ser humano não é assim. Se ele achar que ninguém nunca irá lhe pedir contas do que andou fazendo, quase sempre agirá conforme suas inclinações o inspirarem, fará o que tiver vontade sem se importar com quem prejudica. Ou seja, como escreveu Dostoiévski de forma tão concisa e certeira, "se Deus não existe, tudo é permitido". O homem fica livre (pelo menos, tem a impressão de que isso é liberdade) para agir ao sabor dos impulsos, deixar-se conduzir unicamente por seus instintos. Esolen exemplifica citando certas "comunidades alternativas" que surgiram na Europa no século XIX, nas quais se praticava o assim chamado amor livre. "O homem é um deus, o homem é uma besta (no sentido de animal ou fera); o homem é tudo, menos um homem."</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O último capítulo, <i>O Século XX: um Século de Sangue</i> é dedicado a mostrar como as bases do ocidente foram sendo lentamente (ou nem tão lentamente assim) solapadas ao longo do século passado, por muitos e variados meios. A crescente intromissão do Estado na vida do indivíduo levou ao enfraquecimento da autonomia da família e dos laços entre seus membros; hoje em dia, sob o pretexto de proteger as crianças contra abusos, vem-se tirando dos pais, cada vez mais, o direito de dar a seus filhos o tipo de educação que julgarem melhor. A revolta infantiloide da maior parte da comunidade artística contra as convenções "burguesas" da arte clássica mudou as coisas, e, na minha opinião, não foi para melhor: achar que o objetivo da arte deve ser a beleza é considerado agora um ponto de vista míope e atrasado, ou até mesmo elitista – e quem contraria essa corrente é sistematicamente boicotado. O poder que a arte – aí incluídas não apenas as artes plásticas, mas também a literatura, a música e assim por diante – exerce sobre a mente do indivíduo e, por consequência, sobre a sociedade, é subestimado em muitos círculos, mas parece que o grupo dos que se interessam pela implosão da cultura ocidental o conhece muito bem. A análise de Esolen a respeito disso é elucidativa e perturbadora.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como uma observação final sobre o livro, quero registrar que, tal como no único outro <i>Manual Politicamente Incorreto</i> que já tinha lido (ver <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/12/manual-politicamente-incorreto-do.html" target="_blank"><span style="color: red;">aqui</span></a>), senti o peso de um ponto de vista fortemente norte-americano, em especial quando o autor se alonga por páginas e mais páginas que pouco dizem aos não-estadunidenses, por abordarem a história dos EUA – da qual, sem dúvida, seria útil termos um conhecimento maior – ou aspectos do cotidiano daquele país, muito descolados da nossa realidade. Mesmo assim, o livro é valioso e importante, por acrescentar muitos conhecimentos e fornecer <i>insights </i>aos que desejam fazer a sua parte, por menor que seja, no esforço de resistência contra a demolição sistemática que vem sendo empreendida contra a nossa civilização.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-20349833649903178802020-05-22T17:58:00.001-04:002020-12-17T11:12:01.094-04:00As Crônicas de Nárnia<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEZ599p9h5p3GHGDGLKv4QqPd8RFoAbxjf-xw-7rti7_a-5Rk55cWsbCkhlZKKSELZrOo3ML52Nz7ZwQhaEotg-5-36eFoi1JPkHPRa3iR4CVlNgqN-yUq8QdBNFa2UaZk5UxJuA/s1600/N%25C3%25A1rnia+001.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEZ599p9h5p3GHGDGLKv4QqPd8RFoAbxjf-xw-7rti7_a-5Rk55cWsbCkhlZKKSELZrOo3ML52Nz7ZwQhaEotg-5-36eFoi1JPkHPRa3iR4CVlNgqN-yUq8QdBNFa2UaZk5UxJuA/s1600/N%25C3%25A1rnia+001.jpg" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">É claro que eu sempre soube que em algum momento leria as <i>Crônicas de Nárnia</i>; já tenho o livro há alguns anos, mas o dia de realmente pegá-lo para ler vinha sendo protelado devido ao apelo irresistível de outros livros, que sem a menor cerimônia furavam a fila. Foi minha namorada, Cintia, quem providenciou o empurrão de que eu precisava ao reclamar, e não pela primeira nem segunda vez, que não aguentava não ter com quem comentar algo de muito surpreendente, empolgante ou curioso que acontece ou é revelado no último livro da saga, adequadamente intitulado <i>A Última Batalha</i>. Quando o protesto foi substituído pela ameaça de "spoilear" a coisa para poder comentar de um jeito ou de outro, me rendi. Bem-vindos aos domínios do poderoso Aslam!</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Na verdade eu já tinha lido os dois primeiros livros, <i>O Sobrinho do Mago</i> e <i>O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa</i>, na primeira edição da Martins Fontes, que era em pequenos volumes separados; tenho até mesmo um velho exemplar de <i>O Príncipe e a Ilha Mágica</i>, que vem a ser o mesmíssimo <i>Príncipe Caspian</i> (1951), segundo livro a ser publicado (quarto pela ordem cronológica), em sua primeira edição brasileira, lançada pela obscura editora ABU lá nos anos 80. Porém, depois de tanto tempo, o melhor era começar de novo e ler de uma tacada o volume único, também da Martins Fontes, como se fosse tudo um livro só. E foi o que fiz.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Se Clive Staples Lewis (1898-1963) não tivesse se dedicado à literatura fantástica, é provável que, hoje em dia, só fosse conhecido no restrito círculo dos estudos profundos de teoria literária e história da literatura, e possivelmente, também, pelos interessados em apologética cristã. Pois ele se dedicou a tudo isso, e sobressaiu em todas essas áreas. Irlandês de nascimento, Lewis ensinou nas universidades britânicas de Cambridge e Oxford; nesta última, foi colega de <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2017/11/o-silmarillion.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">J. R. R. Tolkien</span></a>, com quem firmou uma profunda amizade, reforçada pelos interesses comuns em língua e literatura, especialmente literatura medieval. Apesar da amizade, os dois divergiam em alguns pontos fundamentais, como no fato de Tolkien ser um católico fervoroso, enquanto Lewis era ateu. Depois de anos de discussões filosóficas, em 1931, ao final de uma conversa legendária que varou a madrugada, Tolkien por fim logrou êxito em converter Lewis ao cristianismo, ainda que tenha ficado um tanto decepcionado porque o amigo optou por voltar à Igreja Anglicana, na qual fora educado e da qual se afastara na adolescência, ao invés de abraçar a fé católica, como ele esperava. Os dois e mais alguns amigos literatos fundaram um grupo, uma espécie de pequeno clube informal denominado The Inklings; a tradução é difícil, o mais próximo que consigo chegar é "os da tinta", assim como <i>Earthling </i>significa "da Terra", com o sentido de terráqueo. Esse grupo se reunia num <i>pub </i>nas noites de quinta-feira para conversar sobre literatura; nessas ocasiões trocavam manuscritos ou os liam uns para os outros. Foi assim que Lewis tornou-se uma das primeiras pessoas a ler <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2013/01/o-hobbit-uma-jornada-inesperada.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">O Hobbit</span></a></i>, e incentivou fortemente Tolkien a publicá-lo, tal como também o incentivaria durante o demorado processo criativo de <i>O Senhor dos Anéis</i>. Tudo indica que a influência de Tolkien tenha sido um dos fatores que levaram Lewis a, por sua vez, dedicar-se a escrever fantasia, embora também seja verdade que ele sempre teve um fascínio por folclore e mitologia, as fontes originais desse tipo de literatura.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">As <i>Crônicas de Nárnia</i> só tiveram seu primeiro livro publicado em 1950, sendo que as reuniões dos Inklings deixaram de realizar-se no ano anterior, mas é provável que Tolkien e os outros tenham tido acesso a versões iniciais; sabe-se que o Professor nunca gostou muito delas, por serem essencialmente alegóricas, coisa que ele não apreciava, já que considerava a alegoria como uma forma de coerção intelectual – o autor estaria como que obrigando o leitor a interpretar a história da mesma maneira que ele. Em todo caso, Tolkien reconhecia às <i>Crônicas </i>o mérito de fábulas morais que poderiam contribuir para transmitir às novas gerações a moralidade cristã e os valores humanos fundamentais.</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiP8y4SGSbZDAhrzrcwm4ijh_uVj-iXo4TIGg_r-g_XEuxG1pHwbCS_hN4_Ii24QNjt8NIxexpgdE5hS_msEdBvHhE4riZAc2zfomILGSg4y6d9aTgxDrJdJMEpxcW3379XmnU-tg/s1600/Narnia+004.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="257" data-original-width="558" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiP8y4SGSbZDAhrzrcwm4ijh_uVj-iXo4TIGg_r-g_XEuxG1pHwbCS_hN4_Ii24QNjt8NIxexpgdE5hS_msEdBvHhE4riZAc2zfomILGSg4y6d9aTgxDrJdJMEpxcW3379XmnU-tg/s1600/Narnia+004.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">Quando me referi a </span><i style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">O Sobrinho do Mago</i><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;"> como sendo o primeiro livro das </span><i style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">Crônicas</i><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">, considerei a ordem cronológica da leitura, que é como os sete livros são apresentados nesta edição em volume único; pela ordem de publicação, ele seria o penúltimo, pois sua primeira edição é de 1955, depois de cinco outros livros e antes apenas de </span><i style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">A Última Batalha</i><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">. Entretanto, é em </span><i style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">O Sobrinho do Mago</i><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;"> que vamos encontrar a narrativa da criação do mundo que abriga o reino de Nárnia e dos primeiros contatos entre esse mundo e o nosso. O narrador afirma que os acontecimentos ali descritos tiveram lugar quando "Sherlock Holmes ainda vivia em Londres", o que significa algo entre o fim do século XIX e os primeiros anos do XX. O sobrinho do mago em questão é o garoto Digory Kirke, que acaba de mudar-se do interior da Inglaterra para Londres, em companhia da mãe doente, para morar com os tios André e Letícia, dois irmãos solteirões. O tio André é que é o mago… Ou, ao menos, acha que é: ele tem uma noção extremamente exagerada a respeito de seus próprios conhecimentos e poderes. Não sou muito de ficar procurando pelo em ovo, tenho uma tendência de me impacientar quando vejo alguém analisar uma obra e começar a atribuir-lhe "sentidos ocultos" e "mensagens nas entrelinhas" que provavelmente fariam o autor dar boas risadas se lhe perguntassem a respeito, mas, desta vez, não pude evitar que esse personagem me fizesse pensar em certo tipo de cientista, que se empolga tanto com os progressos alcançados, que por vezes não se dá conta de estar lidando com coisas que podem ser perigosas. Tio André herdou de sua falecida madrinha (segundo ele, uma descendente de fadas) um punhado de pó que teria vindo de outro mundo, ou outra dimensão, como diríamos hoje, e, trabalhando com esse material, consegue descobrir um meio de viajar magicamente para esse lugar, mas, em vez de ir pessoalmente, recruta Digory e sua amiga Polly como exploradores. Dessa forma as duas crianças chegam ao mundo de origem do tal pó, que, como descobrem, não é exatamente um mundo, mas uma espécie de encruzilhada entre as dimensões; tem a aparência de um bosque onde existem inúmeros pequenos lagos, cada um deles, na verdade, um portal para um mundo diferente. Passando por um deles, Digory e Polly vão sair num imenso palácio, uma edificação majestosa, mas quase em ruínas, como se já estivesse abandonado há séculos. Lá, inadvertidamente, acabam despertando a temível rainha-bruxa Jadis de uma espécie de sono mágico no qual ela se encontrava aprisionada sabe-se lá há quanto tempo. A feiticeira vem parar no nosso mundo, e, vendo o estrago que ela poderá causar caso sua estada se prolongue, Digory e Polly encontram um jeito de levá-la novamente ao Bosque Entre os Mundos, e, de lá, para qualquer mundo aleatório – e o mundo em questão acaba sendo aquele, ainda recém-criado, que abrigará Nárnia e outros reinos. Lá, Jadis estará entre os principais vilões da saga que irá se desenrolar.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Merece destaque a narração a respeito do nascimento da vida em Nárnia, que ainda é um lugar escuro e informe quando os personagens chegam lá; eles testemunham o primeiro nascer do sol e a criação da vida vegetal e animal, incluindo os seres míticos. Lewis é extremamente bem-sucedido ao narrar esses eventos com uma combinação de delicadeza e grandiosidade, tudo isso corporificado em Aslam, o Leão, cuja canção vai dando forma ao novo mundo (ou seja, aqui, como no <i>Ainulindalë </i>de Tolkien, o mundo nasce por meio da música!). Ao contrário de Tolkien, Lewis não via problema em recorrer a alegorias, e Aslam é sem dúvida a maior delas: o Leão é Jesus Cristo em pessoa sob uma aparência fantástica. Isso já fica suficientemente claro nesta primeira história, mas vai sendo reforçado por meio de suas palavras e atos ao longo das próximas.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A segunda história neste volume único foi a primeira a ser publicada; trata-se de <i>O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa</i> (1950), cuja narrativa apresenta os quatro irmãos Pevensie: Peter, Susan, Edmund e Lucy, que na tradução são chamados de Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia (não sei ao certo o que penso a respeito de traduzir nomes próprios; às vezes isso parece necessário e adequado, às vezes não, e aqui é um dos casos em que não parece, mas OK). Os quatro são mandados pela mãe para longe de Londres, que sofria com os bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mundial, e hospedam-se na casa de campo de um amigo da família, o professor Kirke – que é ninguém menos que o garoto Digory, agora já um homem idoso, que teve uma carreira notável como intelectual e aventureiro. Tenho a "sensação" de que o professor pode ter sido inspirado em Tolkien – quero dizer, na pessoa de Tolkien, não em sua obra. Posso estar presumindo demais, mas há pelo menos um indício a favor dessa teoria: a mãe de Digory chama-se Mabel, o mesmo nome da mãe de Tolkien. Isso, porém, não é importante aqui.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiUwrP6schx26h9aRD34q-ToY84VzkV8c_pgKesQ9zpC2EbOTWeiRTnnkujKYGk-tCR8DlH_VhNNaY-tuIT8tIdj4K-Hjsrw3N8moTiXhIfplMyxDVb5N4mtcqS1Z6Fg7MRand_GA/s1600/Narnia+009.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="407" data-original-width="542" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiUwrP6schx26h9aRD34q-ToY84VzkV8c_pgKesQ9zpC2EbOTWeiRTnnkujKYGk-tCR8DlH_VhNNaY-tuIT8tIdj4K-Hjsrw3N8moTiXhIfplMyxDVb5N4mtcqS1Z6Fg7MRand_GA/s1600/Narnia+009.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A casa do professor Kirke é uma daquelas mansões rurais do interior da Inglaterra: muito antiga, e tão grande que o próprio professor declara que não a conhece muito bem. É nela, num dos muitos quartos desocupados, que Lúcia, a caçula dos quatro irmãos, acidentalmente descobre um guarda-roupa cujas portas dão acesso a uma passagem entre mundos. A origem desse guarda-roupa é contada no final de </span><i style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">O Sobrinho do Mago</i><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">: ele foi construído com a madeira de uma árvore cuja semente veio de Nárnia, e é lá que Lúcia vai sair. O tempo transcorre de maneiras diferentes em cada lugar, e parece que nem sempre do mesmo jeito: às vezes parece correr mais lento em Nárnia que na Inglaterra, e outras vezes sucede o contrário. Faz apenas algumas décadas que Digory Kirke esteve em Nárnia, mas, quando a pequena Lúcia põe os pés lá, séculos se passaram. O país está dominado pela temida Feiticeira Branca, que não é outra senão Jadis, outrora a imperatriz de um mundo já desaparecido, que ficou aprisionada em Nárnia em <i>O Sobrinho do Mago</i>, e lá tratou de consolidar seu poder. Agora se diz rainha de Nárnia, mas, embora parte dos narnianos (que são seres míticos ou animais falantes) tenha-se colocado a seu serviço, a grande maioria não a reconhece como tal e espera pelo cumprimento de uma profecia que promete o fim da tirania da feiticeira e a liberdade para toda a terra e seus habitantes. A profecia tem duas partes: uma fala sobre o retorno de Aslam, que não é visto em Nárnia há séculos; a outra diz que, quando os quatro tronos no castelo de Cair Paravel forem ocupados por "filhos de Adão e filhas de Eva", quer dizer, seres humanos, o poder de Jadis terá fim, e o inverno permanente que sua magia lançou sobre Nárnia finalmente acabará. A feiticeira, é claro, mantém observadores e presta a máxima atenção a quaisquer informes sobre a possível presença de humanos em Nárnia; quando Edmundo também faz a travessia pelo guarda-roupa, ela o encontra vagando sozinho pelos bosques gelados e facilmente obtém dele toda a informação de que precisa, engambelando-o com promessas de adotá-lo e fazer dele um príncipe, se trouxer até ela seu irmão e irmãs. Por serem justamente quatro, dois meninos e duas meninas, Jadis vê neles o potencial para cumprir a profecia, o que ela quer impedir a todo custo. Isso já é suficiente para dar uma ideia do enredo, e não vou continuar para não dar <i>spoilers</i>, mas não dá para deixar de comentar como Aslam se oferece como vítima em sacrifício em troca da vida de Edmundo, que deveria morrer por ter traído os irmãos, e, mesmo com todo o seu poder, deixa-se matar sem opor resistência, para depois ressuscitar mais poderoso e glorioso que antes – coisa com a qual Jadis não contava, porque, como Aslam explica, ela pode conhecer a Magia Profunda, mas ignora que existe outra magia ainda mais profunda, que vem de antes da aurora dos tempos.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Para completar, quando Edmundo retorna ao convívio dos irmãos, o Leão diz a estes que não devem recriminá-lo e que "o que passou, passou". Subentende-se que Edmundo já foi suficientemente castigado pela própria consciência, arrependeu-se e recebeu o perdão – isso é cristianismo puro. Deve-se notar que, ao ser resgatado das garras de Jadis e trazido até o acampamento onde estão Aslam, seu exército e também Pedro, Susana e Lúcia, Edmundo não é imediatamente conduzido para se juntar aos irmãos; antes disso, ele e Aslam têm uma conversa a sós, na qual, como o narrador sublinha bem, somente os dois sabem o que foi dito, e mais ninguém – uma clara alusão ao sacramento da confissão, muito prezado pelos católicos, mas alvo de controvérsia entre os anglicanos. Parece que, nesse ponto, Lewis se inclinava ao catolicismo.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSNdsrEYiU9-swZJeSAkqZzUTbLsuNpMHjQE_gFCQAX4yYYifvH8ad1Aj4gwHJpnfye71HxCFe2VCtU8n1kIP8GaesEguSSpzBRoOKFfFbY7y9SBc7R44MDcPaJ8dj54tfWdZj4A/s1600/Narnia+008.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="440" data-original-width="359" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSNdsrEYiU9-swZJeSAkqZzUTbLsuNpMHjQE_gFCQAX4yYYifvH8ad1Aj4gwHJpnfye71HxCFe2VCtU8n1kIP8GaesEguSSpzBRoOKFfFbY7y9SBc7R44MDcPaJ8dj54tfWdZj4A/s1600/Narnia+008.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A história seguinte é <i>O Cavalo e seu Menino</i> (1954), que tem lugar durante o reinado de Pedro como Grande Rei em Nárnia (com os irmãos como corregentes), mas começa em outro reino, Calormânia, onde o garoto Shasta vive com um pescador que o adotou e sonha em conhecer as terras do norte – quer dizer, Nárnia –, sobre as quais seu pai adotivo e os vizinhos evitam até mesmo falar. A sorte de Shasta tem uma reviravolta quando um <i>tarcaã </i>(parece ser um título nobiliárquico calormano; gostaria de saber como era isso no original…) se hospeda na cabana de seu pai e propõe comprá-lo como escravo, negociação essa que o pescador está disposto a aceitar, sendo o valor da transação a única dúvida. Shasta descobre que o cavalo do tarcaã nasceu em Nárnia e, como muitos animais lá, é capaz de falar e tão inteligente quanto um ser humano, detalhes esses que o animal sempre escondeu cuidadosamente de seu amo, mas revela a verdade ao garoto, e os dois decidem fugir juntos rumo ao norte. Por não conseguir pronunciar o nome com o qual o cavalo se apresenta, Shasta passa a chamá-lo de Bri. Durante sua viagem, os dois eventualmente se encontram com Aravis, a filha de um tarcaã que está fugindo da casa do pai para evitar um casamento arranjado, e a montaria de Aravis é Huin (onomatopeia de um relincho!), uma égua também de origem narniana e falante, como Bri. Como todos têm o mesmo destino, seguem viagem juntos; será inevitável passarem por Tashbaan, a capital da Calormânia, onde Shasta vem a conhecer Edmundo e Susana, dois dos quatro reis de Nárnia. Eles estão ali para as tratativas de um possível casamento entre Susana e o príncipe Rabadash, filho do Tisroc (título dado ao monarca calormano), mas a jovem acaba decidindo que não quer se casar com ele, e a delegação narniana parte de surpresa, para evitar que ela e o irmão acabem sendo feitos reféns. O príncipe, inconformado, convence o pai a invadir Nárnia, e, de formas que vocês saberão quando lerem o livro, esse plano chega ao conhecimento de Shasta, Aravis e seus amigos equinos, que precisam então avisar os reis de Nárnia e ajudá-los a impedir essa invasão. Não sei se alguma coisa do tipo foi levantada enquanto C. S. Lewis era vivo, mas hoje em dia, na "era da lacração", <i>O Cavalo e Seu Menino</i> é alvo de críticas, acusado até mesmo de racismo, porque a Calormânia e seus habitantes, nitidamente inspirados nos povos árabes, ficam com o papel de "império do mal", que tenta atacar a livre e pacífica Nárnia, que faria as vezes da Europa. Como sabemos, o discurso que garante os aplausos nestes nossos tristes dias consiste em pintar a longa e geralmente turbulenta relação entre o Oriente Médio e a civilização ocidental como se tivesse sido feita exclusivamente de ataques covardes e gratuitos desta última contra o primeiro; afinal, esses povos brancos e, pior ainda, <i>cristãos</i>, têm que ser apontados sempre como os vilões da História, não é mesmo? Eu não me surpreenderia se aparecesse gente propondo uma "reescrita" das obras de Lewis, como já quiseram fazer com as de <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/01/politicamente-corretos.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Mark Twain</span></a>… Antes de passar ao próximo livro, duas notas de pé de página. Primeira: no capítulo 14, uma conversa entre Aslam, Bri, Huin e Aravis toca num ponto importante da fé e da teologia cristãs; esse trecho deve ser lido mantendo em mente que o Leão simboliza Cristo. Seria empolgante esmiuçar a coisa, mas não posso permitir que este texto atinja dimensões demasiado absurdas, e, além disso, tem que sobrar algo para o leitor descobrir quando for ler o livro!… Segunda: a maneira de falar dos personagens calormanos de alta estirpe poderá cansar alguns leitores pelo excesso de floreios retóricos e poéticos, mas, correndo o risco de parecer pedante, devo dizer que me diverti muito com essas passagens. Lewis era certamente um mestre das palavras, e creio que isso tenha sido uma alfinetada proposital no estilo desnecessariamente rebuscado adotado por certos escritores e/ou oradores (assumo minha parcela de culpa).</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Em <i>Príncipe Caspian</i> (1951), os irmãos Pevensie estão completando um ano desde seu retorno ao "mundo real" depois das aventuras vividas em <i>O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa</i>, e estão no meio de sua viagem de volta à escola, ao fim das férias, quando são novamente chamados a Nárnia, onde chegam de um jeito diferente da primeira vez – pois, segundo o ensinamento de Aslam, "nada acontece duas vezes da mesma maneira". Ao chegarem lá, descobrem que 13 séculos se passaram desde os tempos de seu reinado, e que Nárnia foi invadida pelos homens de Telmar, que a conquistaram de forma violenta e quase exterminaram os narnianos originais. Há alguns anos, o rei Caspian IX morreu, deixando um filho de mesmo nome, ainda pequeno, que, desde então, está sob a tutela de seu tio Miraz; este deveria atuar como regente até que o jovem Caspian chegasse à maioridade, mas acaba por fazer-se ele próprio rei. Caspian leva a vida normal de um príncipe herdeiro, mas tem uma particularidade: é fascinado pelas histórias da antiga Nárnia, que lhe são contadas primeiro por uma velha ama e mais tarde pelo Dr. Cornelius, seu preceptor – mas esse interesse não é bem visto pelo tio. Tudo a respeito dos narnianos é considerado mero conto de fadas nessa época, como se nunca tivesse existido de fato, e tanto Miraz quanto as demais figuras importantes da sociedade telmarina prefeririam que tudo isso fosse completamente esquecido.</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Quando a esposa de Miraz tem um filho, o usurpador decide dar um fim em Caspian, que é salvo por Cornelius e parte em busca dos descendentes que restaram dos antigos narnianos, pedindo sua ajuda para conquistar o trono que por direito lhe pertence e prometendo que, se ele se tornar rei, iniciará uma nova era de paz entre telmarinos e narnianos, e reinará com justiça sobre ambos os povos. Pedro, Edmundo, Lúcia e Susana são figuras legendárias nesses tempos; como o próprio narrador compara, o retorno deles é para Nárnia o que seria para a Inglaterra a volta do </span><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2004/12/rei-arthur.html" style="font-family: georgia, "times new roman", serif;" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">rei Artur</span></a><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">, como profetizado na lenda, e, ao que se espera, a presença deles fortalecerá a fé dos seguidores de Caspian durante a guerra que se prepara para estourar. Novamente, a narrativa de fantasia e aventura funciona por aquilo que é, e funcionaria mesmo que não houvesse qualquer mensagem em particular a ser passada – mas a mensagem existe, e desta vez o momento-chave está no capítulo 10, no qual um diálogo entre Lúcia e Aslam aborda a necessidade de acreditar mesmo que ninguém mais acredite, e de ter a coragem de seguir o caminho certo ainda que para isso seja preciso abandonar a segurança de um grupo e ir sozinho – coisas que sempre foram necessárias ao cristão, desde os primórdios, e hoje, talvez, mais do que nunca. Provavelmente vocês viram o filme, eu também vi e gostei, mas não se contentem com ele: leiam o livro. Há detalhes importantes que foram deixados de fora, importantes especialmente para quem está procurando interpretar o simbolismo cristão na obra de Lewis. Por outro lado, o roteiro do filme fez alguns acréscimos interessantes à história, coisas que não estão no livro, mas que são muito plausíveis e, poderíamos dizer, até mesmo adequadas, como a rivalidade que surge entre Pedro e Caspian, o antigo e o atual rei. E a parte sobre as árvores da floresta marchando para a batalha, essa eu poderia jurar que foi inspirada numa conversa entre Lewis e Tolkien!…</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKz1ix_QFQX6zbZq6rizWVX-vzU34Uyqa-VYQaQpyUgY_TrUZRXRDQ-yzntz2wFsM1JZA0r5RmdzLFTi3Hch6vZoAxPqFNQRnGu41WTYdRZ3z3tFs6NenkRvM2sFombNWJwZv9Ww/s1600/Narnia+007.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="398" data-original-width="577" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKz1ix_QFQX6zbZq6rizWVX-vzU34Uyqa-VYQaQpyUgY_TrUZRXRDQ-yzntz2wFsM1JZA0r5RmdzLFTi3Hch6vZoAxPqFNQRnGu41WTYdRZ3z3tFs6NenkRvM2sFombNWJwZv9Ww/s1600/Narnia+007.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Em <i>A Viagem do Peregrino da Alvorada</i>, mais um ano se passou no "mundo real", a guerra já acabou (eu sei, no filme não) e Edmundo e Lúcia, os dois Pevensie mais jovens, estão hospedados, muito a contragosto, com seus tios Arnold e Alberta, que têm um filho chamado Eustáquio, o protótipo daquele primo insuportável que todo mundo tem ou já teve – a menos que você <i>seja </i>o primo insuportável. Não é por acaso que, dos quatro protagonistas anteriores, apenas Lúcia e Edmundo estão em cena: Aslam havia predito (ou decidido, como parece mais provável) que só os dois retornariam a Nárnia depois dos eventos do livro anterior, pois Pedro e Susana já haviam aprendido tudo o que podiam lá. E quando os dois fazem pela terceira vez a passagem entre os mundos, Eustáquio acaba indo junto. O trio se vê no meio do mar e é recolhido pela tripulação do Peregrino da Alvorada, um navio da novíssima armada de Nárnia, que o agora rei Caspian fez construir após ter conseguido, ao menos em parte, domar o pavor instintivo que seus patrícios telmarinos tinham do mar. E o rei em pessoa está a bordo; ele explica a Lúcia e Edmundo que o objetivo de sua viagem é procurar por sete nobres telmarinos que eram amigos de seu pai, o rei Caspian IX, e por isso foram exilados pelo usurpador Miraz, para impedir que apoiassem o jovem príncipe quando ele reivindicasse seu direito ao trono. A jornada vai levá-los a mares raramente navegados antes e a descobertas fantásticas; é uma narrativa de "viagens maravilhosas" que segue uma tradição antiga na literatura popular do ocidente – e não só do ocidente: alguém lembra das aventuras do marinheiro árabe Sinbad? As origens desse tipo de história remontam, pelo menos, à <i>Odisseia</i> de Homero (que Edmundo chega a citar) e às viagens de Jasão e os Argonautas, e digo <i>pelo menos</i> porque, pelo pouco que sei sobre a <i>Epopeia de Gilgamesh</i> e outros textos legendários sumérios e assírio-babilônicos, suas raízes podem ser ainda mais profundas. Como também é comum em narrativas de viagens por terras desconhecidas, <i>A Viagem do Peregrino da Alvorada</i> acaba sendo, ao mesmo tempo, uma jornada de autodescoberta para diversos personagens; os exemplos mais marcantes são Eustáquio, que vai aos poucos mudando para algo melhor que aquele garoto de maus instintos e desprovido de imaginação, e Caspian, ainda aprendendo a ser um bom rei e a controlar seu temperamento impulsivo e por vezes autoritário. Mais sutilmente, também Lúcia aprende e "cresce"; já Edmundo parece ter aprendido sua lição em <i>O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa</i>, e não faz novas grandes descobertas interiores, embora vá ganhando experiência e demonstrando mais maturidade. Além de tudo isso, Lewis não resistiu a fazer uma crítica bem-humorada a uns e outros por meio dos Tontópodes, criaturas simpáticas, embora um tanto ridículas (engraçadas, vá), que os aventureiros encontram numa das ilhas onde aportam: eles sempre concordam enfática e energicamente com quem estiver falando no momento, e, se logo em seguida outra pessoa tomar a palavra e disser exatamente o contrário do que disse a primeira, imediatamente lhe dão razão com o mesmo entusiasmo… Caramba, espero que o recado tenha sido entendido pelo menos por alguns. Ao final, Lúcia e Edmundo descobrem, entristecidos mas conformados, que essa aventura, na qual não chegaram a pôr os pés em Nárnia propriamente dita, marcou sua última visita àquele mundo. Tal como já acontecera a Pedro e Susana, daí em diante terão que encontrar seus caminhos em seu próprio mundo, onde Aslam também está, mas, como ele mesmo informa, é conhecido por outro nome.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Como, portanto, os dois últimos dos irmãos Pevensie não mais voltarão a Nárnia, é seu primo Eustáquio quem sobra para servir de elo com a história do sexto livro, <i>A Cadeira de Prata</i>. Durante o ano letivo que se segue às férias em que teve sua primeira experiência em Nárnia, Eustáquio está bastante mudado, e sua colega de escola, Jill Pole, que já o conhecia antes, não deixa de notar o fato. Os dois estudam num colégio experimental, e Lewis, experiente professor, não fazia questão alguma de esconder o que pensava daquela pedagogia <i>moderna</i>:</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>Os diretores achavam que as crianças podiam fazer o que desejassem. Infelizmente, porém, havia uns dez ou quinze da turma que só queriam atormentar os outros. Lá acontecia de tudo: coisas horríveis que, numa escola comum, seriam descobertas e punidas. Mas ali, não. Mesmo que se descobrisse quem as havia feito, o responsável não era expulso nem castigado. O diretor achava que se tratava de "interessantes casos psicológicos" e passava horas conversando com tais alunos. E estes, se encontrassem uma resposta adequada para dizer ao diretor, acabavam se tornando privilegiados.</i></span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">E mais:</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>Devido aos curiosos métodos de ensino do Colégio Experimental, lá não se aprendia muito Matemática ou Latim, mas todos sabiam desaparecer rapidamente e sem ruído, quando eles </i>[os <i>bullies</i>, diríamos hoje]<i> estavam atrás de alguém.</i></span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Jill, então, acompanha Eustáquio quando ele é novamente transportado para o mundo onde fica Nárnia – e, para manter a tradição da saga, a viagem acontece de uma maneira nova, diferente de todas as passagens anteriores. Jill, de certa forma, recebe um privilégio, pois encontra-se com Aslam praticamente assim que chega a Nárnia, o que não acontecera com nenhum outro protagonista até então. O Leão explica-lhe que ela e Eustáquio estão ali porque têm uma missão a cumprir: o único filho do velho rei de Nárnia foi raptado, e eles devem encontrá-lo e trazê-lo de volta, já que a morte de um rei sem herdeiro pode facilmente lançar o reino no caos. Quando as duas crianças chegam à corte em Cair Paravel, Eustáquio sofre um choque ao ter seu primeiro contato com o fenômeno da marcha diferente do tempo no nosso mundo e em Nárnia: o rei não é outro senão Caspian X, que ele conheceu como um rapaz em sua visita anterior, e agora é um homem idoso, pois naquele mundo 70 anos se passaram, enquanto na Terra transcorriam apenas alguns meses.</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Além de longo, o reinado de Caspian foi próspero e marcado pela justiça, mas também por uma tragédia: seu filho, o príncipe Rilian, foi raptado, faz vários anos, aparentemente por uma feiticeira por quem ele se havia apaixonado, que tinha o poder de metamorfosear-se numa serpente (acredito que qualquer semelhança com outras histórias envolvendo criaturas em forma de serpente que seduzem ou enganam os incautos <i>não</i> seja mera coincidência). Muitos dos mais bravos cavaleiros e guerreiros de Nárnia – humanos ou não – partiram em busca do príncipe desde então; nenhum obteve sucesso, e a maioria não voltou, então Caspian, embora arrasado pela perda, proibiu novas buscas, para impedir que mais valorosos narnianos perdessem a vida. Agora, porém, o velho rei, sentindo a proximidade da morte, decide partir, ele próprio, acompanhado de um grupo de súditos fiéis, para uma última e desesperada tentativa de encontrar o filho. A missão que Aslam designa a Eustáquio e Jill é a de fazerem sua própria busca a fim de localizar o príncipe e trazê-lo de volta. O Leão dá algumas indicações, e as duas crianças partem, tendo como guia um <i>paulama</i>; esses seres são semelhantes aos humanos de maneira geral, mas com pernas e braços muito mais longos em relação ao corpo, parecendo adaptados à vida nos pântanos – e, muito de acordo com isso, o nome desse paulama em particular é Brejeiro. O guia é o que Eustáquio chama de <i>pé-frio</i>, pois quase todas as suas falas consistem em previsões pessimistas, mas, ao mesmo tempo, mostra-se um companheiro corajoso e leal, que se mantém fiel mesmo ante as eventuais malcriações dos garotos, que por vezes se irritam com suas intermináveis lamúrias.</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiuHoGguJlAO5AUqGOJ73qASegWCNky3IxZ6yCgg90Cs5tg1Qr4rVNBto1UMVApoMmWOsHX7SVyDZy6wzHd7Z-6vo71gaVbW2AxrXjKOSL9p1MNV0Pi15oGCBxcOz-7rurA8D4pOg/s1600/Narnia+010.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="387" data-original-width="494" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiuHoGguJlAO5AUqGOJ73qASegWCNky3IxZ6yCgg90Cs5tg1Qr4rVNBto1UMVApoMmWOsHX7SVyDZy6wzHd7Z-6vo71gaVbW2AxrXjKOSL9p1MNV0Pi15oGCBxcOz-7rurA8D4pOg/s1600/Narnia+010.jpg" /></a></div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Não há dúvida de que a Busca é uma das situações mais recorrentes em aventuras heroicas, desde a lenda de Jasão e os Argonautas, que citei não faz muito, até <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2007/09/histria-sem-fim.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">A História Sem Fim</span></a></i>, e aqui temos mais um exemplo. Eustáquio, Jill e Brejeiro nos conduzem numa viagem que descortina uma série de paisagens desse mundo fantástico, e que, é claro, não está isenta de perigos e sofrimentos – enfim, podemos, se quisermos, ver essa aventura como uma alegoria para a vida humana… Mas será que o "se quisermos" não faz com que deixe de ser uma alegoria, entrando no campo da aplicabilidade? Eis de novo o choque entre as visões de Lewis e de Tolkien, que nunca está muito longe enquanto lemos as <i>Crônicas de Nárnia</i>.</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Bem, se a história <i>for</i> uma alegoria da vida humana, então torna-se claro o significado de certo detalhe. Ao falar com Jill, logo no começo, Aslam descreve à menina uma série de sinais que ela e seus companheiros encontrarão ao longo do caminho e a orienta sobre como devem agir diante de cada sinal, faz com que ela memorize e repita tudo para ele, porém, mais tarde, envolvida com tantas outras coisas, ela se esquece da maior parte do que o Leão lhe disse; um sinal após outro é perdido e as coisas não saem como deveriam. É fácil ver aí mais um paralelo com o cristianismo: uma pessoa pode amar Cristo e desejar sinceramente agir conforme Seus ensinamentos, mas fazer isso no dia a dia ao longo da vida é difícil, e ela inevitavelmente irá falhar muitas vezes. Faz parte. Também quero registrar que no capítulo 12 há um diálogo que resulta ser uma afiada crítica a certos segmentos religiosos e principalmente filosóficos que tentam fazer com que as pessoas se fechem dentro de uma bolha, esquecendo o que existe lá fora, e ainda se julguem muito inteligentes por fazê-lo. É tentador falar mais sobre esse capítulo, mas não poderia fazê-lo sem dar um sério <i>spoiler</i>.</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">As <i>Crônicas </i>terminam com <i>A Última Batalha</i>, e esse livro começa numa pegada que lembra as fábulas de Esopo. Numa floresta de Nárnia vivem um velho macaco, Manhoso, e seu amigo, o jumento Confuso, que pertencem à classe dos animais falantes narnianos. Como assinalei ao tratar de <i>O Cavalo e Seu Menino</i>, esses animais não só falam como também possuem inteligência equivalente à de um ser humano – só que, não adianta negar, os seres humanos não têm todos a mesma inteligência, e entre eles não é diferente: Confuso faz jus a seu nome e ao estereótipo (falso, por falar nisso) que pesa sobre toda a sua espécie. Já Manhoso é esperto e matreiro, conseguindo sempre engambelar o amigo para que faça todo o trabalho pesado enquanto ele colhe os benefícios. Um belo dia, os dois encontram por acaso uma pele de leão, e Manhoso decide fazer com que Confuso a vista; como o narrador observa, os habitantes daquela região de Nárnia nunca viram nem sequer um leão comum, de modo que muitos se deixam enganar quando o macaco começa a apresentar o jumento disfarçado como sendo o próprio Aslam, e se autonomeia seu porta-voz. É claro que o pobre asno nem mesmo entende direito o que está acontecendo, limitando-se a fazer o que Manhoso lhe diz. Aproveitando-se de sua nova posição de poder, o macaco passa a dar ordens "em nome de Aslam" para conseguir que os outros animais façam tudo o que ele quer – mais uma alegoria fácil de identificar, na qual Manhoso é o falso profeta, representando tanto líderes religiosos quanto reis e potentados em geral que, ao longo da História, arrogaram-se autoridade divina.</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A farsa começa como um problema apenas local, mas ganha dimensões maiores quando Manhoso, também à semelhança de muitos desses líderes, vai longe demais com sua ganância e passa a negociar com os calormanos, obrigando os animais a trabalhar para eles e até vendendo muitos para os inimigos, tudo em benefício do "profeta" (que, é claro, assegura que o dinheiro será usado para o bem da comunidade) e supostamente por ordem de Aslam. Quando as notícias chegam aos ouvidos do jovem rei Tirian (bisneto do bisneto de Rilian, filho de Caspian, pois, novamente, séculos se passaram), ele decide investigar pessoalmente, acompanhado apenas por seu melhor amigo, o unicórnio Precioso, e acaba capturado pelos calormanos. Quando, em desespero, o rei clama pelo socorro do verdadeiro Aslam, este lhe envia ajuda nas pessoas de Eustáquio e Jill, e os três, com o reforço de mais alguns aliados, encaram a missão de recolocar as coisas nos devidos lugares. A história aborda não apenas a questão do falso messianismo, mas também uma de suas mais graves consequências: quando o deus falso é desmascarado, muita gente acaba descrendo até mesmo do verdadeiro, como um grupo de anões que declaram que não existe Aslam nenhum e se põem a bradar "vivam os anões!", o que só pode simbolizar o ateísmo e a visão antropocêntrica moderna, para a qual o homem é a medida e a finalidade de tudo, e não existe nada acima dele. Por fim, a tentativa de Manhoso e do comandante calormano de fazer com que os narnianos acreditem que Aslam e o deus dos calormanos, Tash – uma divindade sanguinária, em cujos altares fazem-se sacrifícios humanos – são o mesmo deus, é um alerta contra aqueles que, em nome de uma suposta tolerância, trabalham para sabotar a fé dos cristãos tentando convencê-los de que o Deus em que acreditam é a mesma coisa que as divindades de outras religiões, e que, portanto, não faria sentido crer em dogmas que são exclusivamente cristãos.</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
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<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpBgB2IqZl4ZRvH0fTpB6EP5q2QY6nxZvpHkEkVKiUc0m625shsIe93KRkBKv831nMIQw5iwILgT6G8E5GwQfSke4BS1LNyUv-iJbNB05RBSMsSeBb58ny5ylpxPeFMop6fDvcqA/s1600/lastbattle.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="314" data-original-width="560" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpBgB2IqZl4ZRvH0fTpB6EP5q2QY6nxZvpHkEkVKiUc0m625shsIe93KRkBKv831nMIQw5iwILgT6G8E5GwQfSke4BS1LNyUv-iJbNB05RBSMsSeBb58ny5ylpxPeFMop6fDvcqA/s1600/lastbattle.jpg" /></a></div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Curiosidade da vez: Tirian, por especial graça de Aslam, tem a oportunidade de reunir-se com os Sete Amigos de Nárnia que habitam no mundo dos filhos de Adão e filhas de Eva, e que vêm a ser os protagonistas de todas as histórias narradas nas </span><i style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">Crônicas</i><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">. O leitor atento provavelmente fará a mesma coisa que eu fiz ao chegar a esse trecho: vai pausar a leitura e fazer um cálculo. Sete? Como assim? Digory, Polly, Pedro, Susana, Edmundo, Lúcia, Eustáquio e Jill: são oito! Só que tem um porém…</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>– Senhor – disse Tirian, após saudar a todos –, a não ser que eu tenha entendido mal as crônicas, deve haver mais alguém. Vossa Majestade não tem duas irmãs? Onde está a rainha Susana?</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>– Minha irmã Susana – respondeu Pedro, breve e gravemente – já não é mais amiga de Nárnia.</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>– É verdade – completou Eustáquio. – E toda vez que se tenta conversar com ela sobre Nárnia, ou fazer qualquer coisa que se refira a Nárnia, ela diz: "Mas que memória extraordinária vocês têm! Continuam no mundo da fantasia, pensando nessas brincadeiras tolas que a gente fazia quando era criança!"</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>– Essa Susana! – disse Jill. – Agora só pensa em lingeries, maquilagens e compromissos sociais. Aliás, ela sempre foi louquinha para ser gente grande.</i></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>– Gente grande, pois sim! – disse Lady Polly. – Gostaria que ela crescesse de verdade. Quando estava na escola, passava o tempo todo desejando ter a idade que tem agora, e agora vai passar o resto da vida tentando </i>ficar<i> nessa idade. Tudo em que ela pensa é correr para atingir a idade mais boba da vida o mais depressa possível e depois parar aí o máximo que puder.</i></span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Muita gente vê machismo aí, e no meio dessa "muita gente" estão nomes de peso como <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2015/11/morte-subita.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">J. K. Rowling</span></a>, que tem uma dívida visível com Lewis (é só comparar o modo como os centauros são descritos na obra de cada um, e esse é apenas um exemplo dentre vários possíveis), mas já chegou a criticar especificamente esse trecho. À primeira vista, as alegações levantadas por ela e outros parecem fazer sentido: Susana é retratada como a pessoa que escolheu a pior parte de duas maneiras diferentes (em outro texto eu poderia dizer que ela escolheu "o pior de dois mundos", mas aqui isso causaria confusão), pois, em nome de sua vontade de se afirmar como uma mulher adulta, abandonou a imaginação, mas ao mesmo tempo, não alcançou a verdadeira maturidade e vai provavelmente passar a vida, como diz Polly, ocupando-se de frivolidades próprias de moças jovens-adultas. Porém, a meu ver, Lewis poderia igualmente ter excluído Pedro do rol dos Amigos de Nárnia e colocado Susana para explicar a Tirian que seu irmão mais velho agora só pensa em trabalho e carreira e diz que tudo sobre Nárnia é "fantasia" ou "brincadeira tola"; alguém tinha que ser exemplo da tolice que há em enterrar a imaginação em prol de um suposto crescimento, e calhou de ser Susana. A patrulha politicamente correta vai objetar: e por que é que trabalho e carreira são "coisas de homem", enquanto maquiagem e compromissos sociais são "coisas de mulher"? Sei que é inútil pedir a esse pessoal que leve em consideração a perspectiva histórica (um conceito que eles parecem incapazes de compreender), mas, em todo caso, a resposta é simples: as <i>Crônicas de Nárnia</i> foram escritas durante a década de 50, quando relativamente poucas mulheres tinham carreiras profissionais, e a maioria das pessoas via como normal que a empreitada mais importante da vida delas consistisse em aproveitar o breve período de beleza na juventude para conseguir o melhor casamento que pudessem. Sessenta e poucos anos depois, a sociedade vê isso tudo de forma diferente, mas Lewis não tinha como prever isso.</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Esta edição termina com <i>Três Maneiras de Escrever para Crianças</i>, um brevíssimo e agradável ensaio que, ao contrário do que poderia parecer, não se propõe a dar diretrizes sobre como escrever histórias infantis – poderíamos dizer que é muito mais <i>descritivo </i>que <i>normativo</i>. Não vou resumir tudo aqui, este texto já está longo demais e, além disso, vale a pena ler o próprio ensaio; será suficiente dizer que, nele, Lewis tece interessantes considerações sobre o que define a literatura infantil como tal, sublinhando que "literatura infantil" e "literatura para adultos" não são compartimentos absolutamente estanques. Sua opinião, com a qual eu concordo inteiramente, é que uma das marcas de uma boa história para crianças é a capacidade de interessar também ao leitor adulto; faço, porém, uma ressalva: uma boa história infantil é a que consegue interessar a <i>certo tipo</i> de leitor adulto. As próprias <i>Crônicas de Nárnia</i> são um bom exemplo, pois, mesmo classificadas como literatura infanto-juvenil, têm multidões de fãs de todas as idades. Nenhum leitor <i>verdadeiramente </i>maduro deixará de ler o que o agrada e atrai por receio de que este ou aquele o julguem "muito criança" por causa disso; Lewis, afiado e certeiro, resume o caso parafraseando São Paulo: "Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino, inclusive o medo de ser infantil e o desejo de ser muito adulto". Desta vez vou juntar-me aos Tontópodes e afirmar enfaticamente que "ninguém jamais disse palavras mais sábias!"</span><br />
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">As <i>Crônicas de Nárnia</i>, sem dúvida, integram a seleta lista das obras de fantasia mais importantes do século XX, sendo, ao lado de <i>O Senhor dos Anéis</i> e mais algumas, uma das mais fortes e recorrentes influências dos autores do gênero que estão em atividade hoje, ou estiveram durante as últimas décadas. Como Lewis também observa em seu ensaio, há histórias de fantasia que são mais adequadas ao público infantil, e outras, a leitores mais maduros, mas não é raro que o público de ambos os tipos acabe sendo o mesmo; ele poderia estar falando exatamente sobre sua própria obra e a de seu amigo. Há leitores de todo o mundo que leram as <i>Crônicas </i>na infância e, depois de um pouco mais velhos, apaixonaram-se pela beleza intrincada do mundo de Tolkien, mas há também muitos outros que só chegaram a Nárnia depois de já conhecerem a Terra-média (meu caso) e nem por isso a amaram menos. As <i>Crônicas</i> são mais simples e despretensiosas que o <i>SdA</i>, mas não menos inspiradoras, empolgantes, comoventes ou cheias de significado. Todo fã de fantasia deveria conhecê-las.</span></div>
Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-36730828256573418302020-04-29T00:27:00.011-04:002020-12-17T11:16:15.178-04:00Terceira Humanidade<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiKAPuX2jr-bBp9rMfK3sYmK8bq_ElsnQ6wMsPXpq7MRwsyaP31pKxml81MOyVwCphLpvSqerPel-I-c6_VxjxCRmpeEMYRDSJhbZ61-TP-wxyZ1tVMZKcYzFPvsXJSxO0QG9aiGg/s1600/91lZ%252Bk7WqZL.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiKAPuX2jr-bBp9rMfK3sYmK8bq_ElsnQ6wMsPXpq7MRwsyaP31pKxml81MOyVwCphLpvSqerPel-I-c6_VxjxCRmpeEMYRDSJhbZ61-TP-wxyZ1tVMZKcYzFPvsXJSxO0QG9aiGg/s1600/91lZ%252Bk7WqZL.jpg" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Em pleno continente antártico, sob uma camada permanente de milhares de metros de gelo, exploradores encontram uma imensa caverna dentro da qual há um lago congelado… E no lago, dois esqueletos humanos e um terceiro espécime inteiro, perfeitamente conservado no gelo, com idade estimada em cerca de oito mil anos. Uma descoberta notável, é claro, pois, por tudo o que se sabia até aí, a Antártida nunca teve populações humanas, estando isolada e coberta de gelo desde bem antes que nossos ancestrais deixassem a África, berço de nossa espécie. A nova descoberta possivelmente exigirá que a trajetória já rastreada das migrações humanas ao longo da Pré-história seja revista. Mas isso tudo é <i>pinto </i>se comparado a um certo detalhe do achado: esses humanos antigos tinham em torno de 17 metros de altura.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A equipe parece ser composta de apenas três pessoas (!): o paleontólogo Charles Wells (francês apesar do sobrenome, que claramente homenageia <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2011/03/ilha-do-dr-moreau.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">H. G. Wells</span></a>), sua assistente e uma repórter e cinegrafista, cuja presença foi exigência do canal de TV que patrocinou a expedição. Os três parecem ter montado sozinhos a perfuratriz que abriu no gelo um túnel de quilômetros de comprimento, e sozinhos desceram para explorar o que houvesse lá embaixo; se eu estiver enganado, corrijam-me, mas a ideia de três pessoas – nenhuma delas um engenheiro – fazerem tudo isso sozinhas me parece bem ingênua. Ainda na mesma linha de abordagem simplista, a assistente de Wells, com a naturalidade de quem esquenta uma lasanha <i>Sadia </i>no microondas, saca um maçarico e descongela ali mesmo parte do corpo do gigante a fim de recolher amostras de seus tecidos!… Se algo assim fosse mesmo descoberto, a coisa não seria feita desse jeito, no total improviso: o espécime provavelmente seria removido ainda congelado e levado para um local onde pudesse ser analisado por cientistas de ponta de diferentes áreas, tendo à disposição a última palavra em equipamentos. Mas o autor Bernard Werber não parece muito preocupado em retratar fielmente os procedimentos científicos.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Wells exulta, imaginando o furor que sua descoberta irá causar nos círculos científicos. Simultaneamente, em Paris, seu filho, o biólogo David Wells, apresenta um projeto diante de uma comissão julgadora na Sorbonne, tentando obter uma bolsa que lhe permita levar adiante sua pesquisa: ele pretende provar que o caminho da evolução leva as espécies a diminuírem progressivamente de tamanho. Para ele, os pigmeus da África central, há muito considerados pela antropologia como um dos mais primitivos grupos humanos ainda existentes em nossos dias, representam, na verdade, um passo à frente na evolução em relação ao resto da humanidade, sendo menores e apresentando uma extraordinária resistência às doenças tropicais – resistência essa que, a meu ver, não é preciso ser cientista para compreender que deve resultar do mero fato de seus ancestrais terem vivido expostos a essas doenças durante centenas de gerações, nada tendo a ver com seu tamanho. Mas a explanação de David não para por aí:</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>Tenho um título de doutorado pela faculdade de biologia de Paris, e sou especialista no estudo da influência do meio na fisiologia humana e animal. Meu projeto gira em torno da redução do tamanho das espécies. Acredito que tudo se miniaturiza: os dinossauros se transformaram em lagartos, e os mamutes, em elefantes. Antigamente, as libélulas tinham até um metro e meio de envergadura, e agora medem 15 centímetros. Mais recentemente, os lobos se transformaram em yorkshires, e os tigres, em gatos siameses. (…) E também poderíamos citar os vegetais (…). Em outros tempos, certas sequoias chegavam a cem metros de altura. Mas agora são arbustos de dez metros, em média. Recentemente, descobriu-se que as baratas diminuíram para circular nos encanamentos das casas modernas. E, finalmente, no mundo dos objetos: os carros tornaram-se menores para se adaptar ao aperto e aos engarrafamentos das cidades, os computadores tendem a se miniaturizar, até a superfície média dos apartamentos se restringe com a superpopulação das megalópoles.</i></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Certo, Bernard Werber é jornalista por formação, e eu certamente não vou afirmar que só cientistas deveriam escrever ficção científica (mesmo que ter formação em ciências represente uma enorme vantagem para quem se dedica ao gênero), mas, mesmo assim, é difícil ler esse amontoado de bobagens, dito por um personagem que se diz doutor em biologia, e continuar levando o livro a sério. A redução – ou o aumento – do tamanho nas espécies vivas ao longo do tempo é, sem dúvida, uma resposta evolutiva às condições do ambiente – só que essas condições não são sempre as mesmas, e, ainda que fossem, é ingenuidade pensar que um mesmo problema só pode ser resolvido de uma maneira. Pode perfeitamente acontecer de duas espécies expostas às mesmas condições ambientais encontrarem caminhos evolutivos diferentes e até opostos: uma pode crescer, a outra diminuir, e, naquele momento da evolução, cada uma delas terá se adaptado da maneira que melhor lhe permitiu enfrentar essas condições e sobreviver. Dinossauros não se "transformaram em lagartos"; em primeiro lugar, os lagartos que conhecemos hoje pertencem a um ramo dos répteis bem distinto daquele que incluía os dinossauros – aliás, filogeneticamente falando, as aves estão mais próximas dos dinossauros que os lagartos modernos. Em segundo, como qualquer criança aficionada por dinossauros sabe, nem todos eles eram gigantescos: havia espécies que eram do tamanho de um canário, e talvez ainda menores. Tampouco "mamutes viraram elefantes": no tempo dos mamutes já existiam elefantes como os de hoje. Os dois animais são <i>parentes</i>, é diferente; além disso, não havia apenas uma espécie de mamute, mas várias, e, tirando uma média, seu tamanho era mais ou menos equivalente ao dos elefantes – algumas espécies eram um pouco maiores, outras até menores. O mamute-anão da Sardenha, quando adulto, tinha porte semelhante ao de um boi, e nem por isso era menos mamute que o mamute-imperador da América do Norte, que ultrapassava quatro metros de altura e dez toneladas. </span><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">David também "esquece" de mencionar que um dos ancestrais comuns de mamutes e elefantes, o </span><i style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">moeritherium</i><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">, que viveu há cerca de 35 milhões de anos, era do tamanho de um porco… Libélulas gigantes existiram de fato; insetos enormes eram comuns durante o período Carbonífero, há uns 300 milhões de anos, mas elas mediam em torno de 70 centímetros, não um metro e meio. Quanto a </span><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/09/o-tigre.html" style="font-family: georgia, "times new roman", serif;" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">tigres</span></a><span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;"> terem virado gatos siameses, isso chega a ser ofensivo: o gato doméstico derivou de uma ou mais espécies de gatos selvagens do norte da África, e só tem um parentesco distante com os grandes felinos como tigres e leões. Finalmente, a transformação de lobos em centenas de diferentes raças de cães, algumas delas minúsculas, foi resultado de cruzamentos seletivos promovidos pelo homem, não de evolução natural. Para não dizer que nada nesse discurso faz sentido, é plausível que as baratas tenham mesmo diminuído de tamanho para melhor se adaptarem a viver nas cidades humanas, mas isso não significa que, se as condições do ambiente fossem outras, elas não pudessem ter, ao invés, aumentado. Não vou nem comentar a parte que fala de automóveis, computadores e apartamentos como se fossem seres vivos…</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjElsQxS7qqejLCGsnP3FPPxwpYZDYYWP5jrH7TjxFf6UDLZF72HX_ELRA9HkIzcmqdkVxboX-Ptd9nAx0bGBq9dMfjwWPuVgdEtInAjiI_n2_TlEpzomY7AvoPm2Bup2QygJj9ug/s1600/moeritherium.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="337" data-original-width="469" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjElsQxS7qqejLCGsnP3FPPxwpYZDYYWP5jrH7TjxFf6UDLZF72HX_ELRA9HkIzcmqdkVxboX-Ptd9nAx0bGBq9dMfjwWPuVgdEtInAjiI_n2_TlEpzomY7AvoPm2Bup2QygJj9ug/s1600/moeritherium.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">(Isso foi a título de alerta, além de ser algo que eu não conseguiria calar, e deve dar-lhes uma ideia da reserva com que devem encarar o restante de <i>Terceira Humanidade</i>. Vamos em frente…)</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Se o sobrenome Wells homenageia o escritor britânico a quem a ficção científica tanto deve, a escolha do primeiro nome do personagem tampouco foi gratuita: David é Davi, aludindo ao pastor adolescente que, de acordo com o Primeiro Livro de Samuel, na Bíblia, deu aos israelitas a vitória na guerra contra os filisteus, ao abater com um tiro de funda o maior guerreiro destes últimos, Golias, um gigante de quase três metros de altura. Mais tarde, Davi se tornaria rei de Israel, por sinal um dos mais importantes. O nome cai bem para o jovem cientista de baixa estatura que está tentando provar que "gigantes" não estão com nada e que o futuro pertence aos pequenos – e que, ao tomar conhecimento do que seu pai encontrou na Antártida, verá aí um forte elemento corroborador de sua teoria, já que os gigantes de 17 metros do passado distante se extinguiram, enquanto nós, que, para eles, deveríamos parecer pouco mais que camundongos, continuamos por aqui.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Outra candidata à bolsa de pesquisa é Aurore Kammerer, médica endocrinologista cujo projeto versa sobre as supostas descendentes das legendárias amazonas citadas na mitologia grega, que ainda hoje viveriam na região próxima à fronteira da Turquia com o Irã, e que, graças ao uso terapêutico que fazem do mel e outros produtos das abelhas, gozariam de saúde muito superior à média, raramente apresentando qualquer doença. Para Aurore, os hormônios femininos das abelhas, presentes em profusão na "geleia real" que alimenta a rainha da colmeia, seriam o segredo – e uma progressiva "feminização" seria o caminho para criar uma humanidade mais sadia e próspera. Dentre 69 candidatos, David, Aurore e mais um são os únicos a terem seus projetos selecionados, e partem em suas respectivas expedições – ele para as selvas do Congo, ela para as estepes da Turquia. <i>Sozinhos</i>. Bem, a essa altura já acho que Werber não estava mesmo tentando soar crível.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A característica mais curiosa de <i>Terceira Humanidade</i> foi inspirada pela "Hipótese Gaia", proposta nos anos 70 pelo médico e ambientalista britânico James E. Lovelock e muito popular desde então. A propósito, o nome foi sugestão do escritor William Golding (ele mesmo, o autor de <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2017/02/o-senhor-das-moscas.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">O Senhor das Moscas</span></a></i>), amigo de Lovelock. Gaia, na mitologia grega, é a divindade primordial que personifica a Terra; seu nome em grego, Γαία, às vezes é transliterado como <i>Gea</i>, que originou o radical <i>geo</i>, presente em muitas palavras que fazem referência à Terra: geografia, geologia, geofísica e assim por diante. Ela e outras divindades primordiais teriam sido geradas pelo Caos; Gaia, sozinha, gerou Urano (o Céu), que se tornaria seu consorte. Os dois foram os pais dos titãs, que, por sua vez, gerariam os deuses do Olimpo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Essa hipótese, basicamente, considera que os elementos físicos da Terra (sua atmosfera, massa terrestre, oceanos etc.) e sua biosfera (quer dizer, o conjunto formado por todos os ecossistemas do nosso planeta e pela totalidade dos organismos vivos que os habitam) mantêm uma estreita e delicada interdependência, cujo equilíbrio seria essencial para manter as condições necessárias à vida. A Terra, então, seria, de certo modo, um único e vasto ecossistema com a capacidade de se autorregular. Trata-se de uma hipótese séria e digna de atenção, mas que já foi alvo de muito sensacionalismo. Por vezes se diz, numa simplificação grosseira, que a Hipótese Gaia descreve a Terra como um grande ser vivo – que, como todo ser vivo, teria seu próprio "sistema imunológico", com a função de combater possíveis ameaças. Disso decorre que se nós, humanos, viéssemos a nos tornar um perigo para a saúde do planeta, "Gaia" encontraria um jeito de nos eliminar. Werber aproveita a Hipótese Gaia da maneira mais fantasiosa, intercalando capítulos (impressos em itálico) que seriam um monólogo da suposta consciência planetária, contando (resumidamente, é claro) sua história desde seu nascimento, há mais de quatro bilhões de anos, passando pelo surgimento e evolução da vida e pelo sofrimento trazido por repetidos impactos de asteroides, três deles especialmente grandes e que causaram estragos proporcionais a seu tamanho. O primeiro foi antes do surgimento da vida, já os outros dois causaram extinções em massa, sendo a última delas a que pôs fim ao reinado dos dinossauros, há cerca de 60 milhões de anos.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><br /></span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEinBc7bHHgTOP-NNXbziuofLHHvrAVqR6clLNL5V6heDs31FPsyEwqeMJq1jMY5LLjTRdiqfQE-k87jpZFaaoakFoYm_n3J_YZgMB1dMRJSEVE87SSlFszGW15equ0Lzfkytx5d7A/s1600/troodon+gracilis.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="398" data-original-width="305" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEinBc7bHHgTOP-NNXbziuofLHHvrAVqR6clLNL5V6heDs31FPsyEwqeMJq1jMY5LLjTRdiqfQE-k87jpZFaaoakFoYm_n3J_YZgMB1dMRJSEVE87SSlFszGW15equ0Lzfkytx5d7A/s1600/troodon+gracilis.jpg" /></a></div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Gaia teria tido a ideia de selecionar, dentre as espécies animais que a habitavam, uma que tivesse o potencial para desenvolver inteligência e habilidade suficientes para criar uma tecnologia avançada e inventar uma maneira de protegê-la contra o perigo de novos impactos. Sua primeira aposta teriam sido os troodontes, uma linhagem de dinossauros que estava em ascensão quando o último grande asteroide atingiu o planeta. Eram bípedes carnívoros de tamanho semelhante ao nosso (a única espécie descrita até o momento, denominada <i>Troodon formosus</i>, tinha cerca de dois metros de comprimento do focinho à cauda e peso aproximado de 50 quilos), dotados de cérebros excepcionalmente grandes, estando, com toda a probabilidade, entre os animais mais inteligentes da época. Werber dá uma "viajada" ao assegurar que eles até já começavam a utilizar ferramentas rudimentares, coisa que dificilmente poderá algum dia ser provada (ou refutada), mas quem pode garantir que, se tivessem tido a oportunidade, esses répteis não teriam se tornado mais e mais inteligentes e habilidosos, até o ponto de construírem uma civilização? Um artigo que li há muitos anos na <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/07/a-flor-de-vidro.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Isaac Asimov Magazine</span></a></i> dizia que todos aqueles répteis inteligentes dos quais a ficção científica tanto gosta eram biologicamente impossíveis, porque inteligência (no sentido de autoconsciência, raciocínio abstrato etc., quer dizer, uma inteligência de nível comparável ao nosso) exige um cérebro grande e complexo, e os organismos reptilianos, por serem pecilotérmicos (o popular "sangue frio"), não teriam um metabolismo capaz de fornecer energia suficiente para desenvolver um cérebro assim e mantê-lo funcionando – só que, de lá para cá, a ciência descobriu muito sobre os dinossauros, inclusive o fato de que muitos deles, diferentemente dos outros répteis e à semelhança de nós, mamíferos, eram homeotérmicos ("sangue quente"). Alguns paleontólogos teorizam que os troodontes talvez tivessem penas – sabe-se que várias espécies de bípedes carnívoros as tinham; são um recurso eficaz para regular a temperatura corporal, e talvez tenham até mesmo permitido a esses dinossauros colonizar regiões de clima relativamente frio, que seriam inabitáveis para répteis comuns. Em teoria, portanto, nada impediria que uma espécie descendente deles se tornasse inteligente. Não é preciso dizer que, se essa civilização "troodôntica" tivesse se tornado realidade, nós, hominídeos, não teríamos tido o espaço que tivemos para evoluir, e é muito provável que não chegássemos ao nosso estágio atual. É tudo um grande "e se", mas, mesmo assim, as possibilidades são fascinantes e assustadoras.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Concretamente falando, a esperança que Gaia depositava nos troodontes foi baldada, pois aquele inesperado terceiro asteroide caiu e os varreu da existência, junto com cerca de 90 por cento das outras espécies animais de então, muito antes que eles chegassem sequer ao que chamaríamos de Idade da Pedra Lascada. A lista de candidatos que ela cogitou ao longo das próximas dezenas de milhões de anos variou de polvos a porcos, passando por golfinhos, formigas e outros, mas todos apresentavam alguma deficiência que os desclassificava. No caso dos golfinhos, a título de exemplo, era o fato de que, por mais inteligentes que eles fossem, sua conformação física os impossibilitava de criar ou utilizar ferramentas, edificações etc., de modo que nunca chegariam a ter uma civilização no verdadeiro sentido do termo (nisso Werber está correto). Polvos e formigas, é claro, são outra "viagem", ainda que ambos tenham, sob algum aspecto, uma inteligência notável. Por fim, essa Terra autoconsciente e capaz de deliberação voltou sua atenção para os primatas, que tinham uma característica que ela muito admirava: mãos dotadas de dedos preênseis, capazes de movimentos muito precisos. Infelizmente, segundo ela, ainda que os primatas tivessem essa ferramenta fenomenal, faltava-lhes capacidade intelectual que os habilitasse a tirar dela o máximo proveito. Por outro lado, havia o porco, o "animal terrestre mais inteligente" (<a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2006/10/um-livro-proftico.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">George Orwell</span></a> deve ter dado uma risadinha lá no Além), mas que, com cascos no lugar de dedos, dificilmente chegaria muito longe no caminho civilizatório, pelo mesmo motivo que o golfinho. Eis a genial solução encontrada:</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>Ocorreu-me inicialmente a ideia de um projeto original: levar um primata a fazer amor com um… porco. Certo dia, em consequência de um terremoto, um primata viu-se preso num fosso com uma fêmea facóquera (ancestral do porco). Os dois se estranharam, lutaram e, não conseguindo se matar, acabaram fazendo amor. Nove meses depois, nascia um novo animal híbrido com a pele lisa e rosada como os porcos, a sensibilidade e a inteligência dos porcos, mas a postura sobre as duas patas traseiras e a capacidade de agarrar objetos e manipulá-los, como os primatas. Parecia mais ou menos um macaco sem pelos, com pele de porco. Eu conseguira juntar a boa mente com o bom físico, numa repartição de 60% de genes suínos e 40% de genes primatas. Foi como "inventei" o meu defensor: o ser humano.</i></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Eu poderia ficar aqui dizendo o óbvio, ou seja, que, mesmo que essa bizarra relação sexual chegasse a acontecer, ela jamais produziria uma descendência, que a "pele lisa e rosada" é uma característica do porco doméstico (na verdade, nem isso: só de algumas raças), e não do facóquero, ou facócero (javali africano), nem do javali europeu que foi quem realmente deu origem aos nossos amigos fornecedores de bacon… Mas acho suficiente observar que, com essa, todas as bobagens anteriormente ditas por Werber perdem a relevância, já que agora ele escancarou o fato de que não tem nenhuma pretensão de ser levado a sério.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">(Destaque para o "bem-humorado" detalhe de nos atribuir uma porcentagem maior de genes suínos que primatas, e para a "sutileza" de emendar, logo a seguir a esse capítulo, outro no qual David Wells aparece praticando um ato "semicanibal" ao devorar sanduíches de presunto.)</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKvh5FUpO9mO0IZALKpfSYAISwZheR-07Usinq4t8Ur07ureRPNWkuOkKZ9wO-0YaLHtI-VI7xaacNn_TNKYvZ0nNAbWE7AnnAUbFEZ48EdIehhW1Jmt0B9GIt6OYnKhwWKwQ9EA/s1600/werber+bernard.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="319" data-original-width="239" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKvh5FUpO9mO0IZALKpfSYAISwZheR-07Usinq4t8Ur07ureRPNWkuOkKZ9wO-0YaLHtI-VI7xaacNn_TNKYvZ0nNAbWE7AnnAUbFEZ48EdIehhW1Jmt0B9GIt6OYnKhwWKwQ9EA/s1600/werber+bernard.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Se, portanto, Gaia "inventou" o homem para que ele concebesse e executasse uma maneira de proteger-se (e, por tabela, também a ela) contra o perigo do impacto de asteroides, então, apesar de alguns sucessos pontuais obtidos pelos gigantes nos tempos antigos, parece que o saldo geral do experimento até agora é contraproducente, pois a humanidade atual não só permanece basicamente tão vulnerável a esse risco quanto estavam os dinossauros, como ainda tem maltratado um bocado o planeta, extinguindo espécies às centenas, destruindo florestas e poluindo a atmosfera, o solo e as águas com resíduos tanto comuns quanto radioativos.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Absurdos científicos e fantasias <i>new age</i> à parte, a narrativa prossegue. David, Aurore e o terceiro selecionado retornam de suas expedições preliminares financiadas pela Sorbonne e voltam a se apresentar à mesma comissão julgadora para a fase seguinte da seleção, na qual somente um passará – e acaba não sendo nenhum dos dois. Entretanto, uma integrante da comissão procura ambos e oferece-lhes a possibilidade de tocarem seus projetos sob a chancela do Ministério da Defesa da França. Seu nome é Natália Ovitz, <i>coronel </i>Natália Ovitz (curiosamente, uma anã), e ela parece ter como uma de suas funções manter o presidente da república (um abobado cheirador de cocaína) a par dos avanços da ciência que possam afetar os interesses da nação. A coronel Ovitz acredita que o estudo de David sobre a redução de tamanho e o de Aurore sobre a feminização da humanidade – ambos tendo a ver também com resistência a doenças – podem ser valiosas ferramentas para impedir possíveis desastres causados pela guerra nuclear e biológica.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Apesar de todas as sandices, <i>Terceira Humanidade</i> é notavelmente eficiente ao aproveitar-se da experiência de David na África para retratar – e denunciar – a situação revoltante vivida pelos pigmeus, outrora um povo livre e orgulhoso. Algumas tribos, cada vez menos, ainda conseguem continuar vivendo como seus ancestrais, isoladas na selva, sustentando-se com a caça e a coleta, mas a própria selva não cessa de diminuir por causa da exploração desordenada da madeira e da demanda por terra para a agricultura e a pecuária, o que força cada vez mais pigmeus a se renderem à "vida civilizada", o que, no caso deles, em geral significa trabalhar para os bantos (etnia majoritária no Congo e outros países da África central), em condições que só podem ser descritas como escravidão. Isso tudo é muito real e muito bem descrito por Werber – pena que, estando no meio de tanta bobagem, o leitor pode ser levado a menosprezar essas informações. Já as amazonas de Aurore podem ser fictícias (se alguém souber do contrário, por favor me informe!), mas a situação delas, de minoria perseguida, reflete bem a de várias etnias e culturas que ainda tentam resistir à extinção, no Oriente Médio e em outros lugares.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Por meio de um ritual dos pigmeus, turbinado por alucinógenos, David faz uma "viagem" a uma suposta encarnação anterior, na qual ele era um cientista da raça gigante que habitava a Atlântida, e cujas pesquisas teriam tornado possível a "miniaturização" da humanidade, dando origem a versões reduzidas dos seres humanos da época – e, como vocês já adivinharam, as miniaturas somos nós. Isso fazia parte do plano de Gaia: as naves espaciais que os gigantes atlantes construíram com o objetivo de defender a Terra contra meteoros eram, naturalmente, em escala para seus tripulantes, e, por serem tão grandes, elas se desintegravam ao chegarem ao espaço (não entendi o como ou o por quê, mas tudo bem). Com uma tripulação de criaturas pequenas, seria possível fazer naves menores e mais estáveis. O que David vê nesse vislumbre de sua vida passada lhe traz <i>insights</i> que permitem a ele e seus companheiros repetir o processo para gerar a "terceira humanidade" que dá título ao livro: os primeiros humanos, cuja estatura média era de 17 metros, "inventaram" a segunda humanidade, que somos nós, com nossa média de um metro e setenta centímetros; o próximo passo seria um ser humano de 17 centímetros de altura, que cresceria dez vezes mais depressa, chegando à fase adulta em menos de dois anos, e que, por consequência, viveria dez vezes menos, mas que, com esse tamanho reduzido, estaria em condições de tornar-se o espião e sabotador perfeito. Esse é o objetivo: criar uma equipe de miniespiões que possam se infiltrar em lugares-chave do governo e das forças armadas do Irã, país que, naqueles dias, ameaça precipitar o planeta na Terceira Guerra Mundial. Maluco? Totalmente.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Ah, sim: já perto do final do livro, Werber decide criticar e satirizar a religião. Seu "embasamento" é do mesmo nível de quando ele fala sobre ciência:</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>(…) São Paulo, cujo nome era Saulo de Tarso, foi inicialmente um grande perseguidor dos amigos de Jesus. Chegou inclusive a participar do apedrejamento de Estêvão, um dos companheiros mais próximos de Cristo. O que não o impediu de inventar o cristianismo, embora nunca tivesse encontrado Jesus pessoalmente. Por sinal, o dito-cujo, na verdade chamado José, deixou claro em vida que não queria "de modo algum criar uma nova religião, mas apenas lembrar a lei dos pais aos que a haviam esquecido sob o jugo da ocupação romana".</i></span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Que São Paulo começou por perseguir os cristãos, é fato, mas notem como o autor evita chamá-los por esse nome para não entrar em conflito com o que diz depois, isto é, que o próprio Paulo teria inventado o cristianismo, bobagem repetida com certa regularidade pelos detratores deste último. De onde Werber terá tirado que o nome de Jesus era José, não me perguntem, mas a declaração que ele coloca na boca de Cristo, se não me engano, foi copiada quase palavra por palavra do romance <i>Operação Cavalo de Troia</i>, de J. J. Benítez. Dos Evangelhos é que não foi.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Talvez alguém que me leia esteja pensando: mas Marcos, por que é que você, um assumido apreciador de literatura de fantasia, que sempre protestou quando via algum crítico malhar uma obra sob a alegação de que ela era "inverossímil", e sempre considerou uma atitude burra achar que a ficção deve se limitar a copiar a realidade, agora resolveu criticar esse livro específico dizendo que ele é "maluco"? A resposta não é simples, e eu absolutamente não tenho certeza da minha capacidade de explicá-la de forma satisfatória, mas acho que devo tentar.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">É o seguinte: se você está lendo fantasia, significa que você e o autor celebraram um acordo tácito, e a sua parte nesse acordo, como leitor, consiste em <i>suspender a descrença</i> enquanto estiver lendo: você sabe que elfos e dragões não existem no mundo real, mas, ao abrir as <i>Crônicas de Dragonlance</i>, "esquece" momentaneamente esse fato e passa a pensar conforme a lógica interna do mundo de Krynn, onde existem dragões, elfos e muito mais. Isso pode valer também, embora de forma menos explícita, para a ficção científica: nenhum ou quase nenhum físico sério acredita na existência do famigerado <i>hiperespaço</i>, mas, se um autor de ficção científica tem uma ideia empolgante para uma história, e, para que essa história funcione, é indispensável que haja uma maneira de viajar mais rápido que a luz (coisa, até onde se sabe, impossível pelas leis da física), apenas um leitor <i>muito</i> chato torceria o nariz só porque o autor se permitiu essa "licença poética". Porém, se outro autor está escrevendo uma história que ele quer que tenha uma cara de realidade, que se pareça com algo que poderia acontecer no mundo que conhecemos, a meu ver ele precisa ser <i>bem</i> mais sutil em sua liberdade autoral. Colocar na boca de um personagem cientista declarações que qualquer pessoa com conhecimentos básicos de ciência sabe que são absurdas, e tornar imprescindível dar a esses absurdos o status de fatos, fazendo disso elemento essencial para que a história se sustente, compromete logo de cara toda a estrutura da narrativa e torna muito difícil "mergulhar" nela. Para falar de modo mais concreto, não me importo que Werber brinque o quanto quiser com a ideia de três humanidades sucessivas, cada qual dez vezes menor que sua antecessora – mas dinossauros <i>não</i> viraram lagartos e tigres <i>não</i> viraram gatos siameses, ponto. Trechos de resenhas (elogiosas, é claro) reproduzidas na contracapa do livro colocam ênfase na crítica que o autor faz ao mundo atual e também em seu "humor ácido"; é fato que tentativas de humor (negro, muitas vezes) pululam por todo o livro, mas, pelo menos para mim, ao longo de suas 500 páginas há no máximo duas piadas que funcionam.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">É possível, entretanto, que vocês não se importem com nada disso, e, nesse caso, <i>Terceira Humanidade</i> até vale como passatempo, pois é inegável que a narrativa é fluente e entretém… Principalmente o <i>Ato 2: a Era da Mutação</i>, que narra uma pandemia mundial de uma "nova antiga" forma de gripe, um vírus que o professor Charles Wells e suas companheiras inadvertidamente "acordaram" na Antártida, depois de ter ficado inativo durante milênios. O médico-legista que examina seus corpos em Paris se contamina e, viajando de férias para o Egito logo em seguida, transmite a doença para outros turistas, profissionais de saúde, funcionários de companhias aéreas… Com isso, e graças ao transporte aéreo que hoje permite a qualquer um (saudável ou infectado) chegar a qualquer lugar do mundo em questão de horas, esse patógeno rapidamente se dissemina por dezenas de países e afeta milhões de pessoas, acabando com a economia e com a ordem social. E, casualmente, li o livro entre os meses de março e abril de 2020, bem durante a crise do COVID-19, o que resultou numa coincidência um tanto sinistra… É claro que o vírus da ficção é muito mais terrível que o real – transmite-se com mais facilidade e é cem por cento letal –, pois descrever uma doença relativamente controlável não teria um efeito satisfatório numa narrativa de tom apocalíptico, como a dessa parte do livro. Mas, mesmo assim, a coincidência é perturbadora. A partir daí, a história ganha mais ação, com coisas que já vimos em muitos outros lugares antes, como cidades mergulhadas no caos e sobreviventes encerrados em <i>bunkers</i>, tendo que rechaçar à bala outros que vagam pela terra devastada em busca de comida e abrigo. Nada de novo, mas funciona como narrativa de ação e de "ficção científica de terror".</span></div>
Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-3556862829869402122020-02-20T20:49:00.042-04:002021-07-22T23:35:53.790-04:00VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgl01QcSiarRUdtFutiwcqr1BNvso8pfe5f3kBaW-HhKz2wIkxabnLGMPReg0FmmD42hWruTsCkdg_Ta2RP2pm3LYtL_tTYjb3ysYyFmOaMn4m1UWu_XLfkVGqwT_KqJk9o4Fmzyg/s320/vhs.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgl01QcSiarRUdtFutiwcqr1BNvso8pfe5f3kBaW-HhKz2wIkxabnLGMPReg0FmmD42hWruTsCkdg_Ta2RP2pm3LYtL_tTYjb3ysYyFmOaMn4m1UWu_XLfkVGqwT_KqJk9o4Fmzyg/s16000/vhs.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Essa geração acostumada a ver filmes e séries por meio de serviços de <i>streaming </i>deve achar bizarro o próprio conceito de "videolocadora", fosse qual fosse o formato de mídia utilizado. Um lugar até onde você precisava se locomover, e onde ficava circulando por entre prateleiras cheias de caixinhas vazias, cada uma tendo na frente uma reprodução do cartaz do filme, atrás uma pequena sinopse (geralmente mal traduzida) e às vezes algumas fotos – e essa costumava ser toda a informação que você tinha para decidir se iria ou não investir seu tempo e seu dinheiro para vê-lo, a menos que se tratasse de um filme famoso ou que você tivesse alguma informação prévia a respeito dele, o que, naqueles tempos sem internet, não era frequente. (Certa prima minha tinha por método de seleção descartar automaticamente qualquer filme não famoso, declarando em tom de desprezo: "nunca ouvi falar", como quem diz "nunca ouvi falar, logo não é bom".) Aí você levava essas caixinhas vazias até o balcão, onde um atendente as recebia e ia até o acervo buscar as fitas (mais tarde, discos). Você saía da locadora transportando essas mídias físicas (!) e as levava para casa, onde tinham que ser inseridas no aparelho adequado, conectado à sua TV por meio de uma selva de cabos, para que você pudesse ver o filme. Sei o quanto isso tudo parece absurdamente primitivo e trabalhoso para quem hoje escolhe seus filmes do conforto de sua poltrona, usando nada além de seu <i>smartphone </i>ou controle remoto; parece tosco mesmo se você pensar em DVDs ou blu-rays, mídias razoavelmente confiáveis e que oferecem um bom desempenho de imagem e som, que dirá então se formos falar nas velhas fitas de vídeo VHS, coisas enormes e pesadas que pareciam (e, no fundo, eram) uma versão maior e mais desajeitada das fitas cassete de áudio, tinham uma qualidade de imagem sofrível e uma desesperadora tendência a embolar, enguiçar e dar mil e um outros defeitos. Ah, e antes de devolvê-las à locadora, você tinha que <i>rebobiná-las</i>.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Apesar de tudo isso, a era do VHS deixou saudade. Quem for da minha faixa etária, ou ligeiramente mais velho ou mais novo, certamente se lembra do porquê, e quanto à garotada, peço que considere isso como uma pequena lição de História. Acontece que o advento do videocassete nos trouxe, pela primeira vez, a liberdade de escolher o que queríamos assistir. Até então, só havia duas maneiras de se ver um filme: ir ao cinema ou assistir aos que fossem veiculados nos canais da TV aberta, em horários muitas vezes pouco convenientes, com comerciais no meio e, não raro, em versões tesouradas, fosse por conta de alguma cena mais "ousada" ou simplesmente para que o filme pudesse ser encaixado na grade de programação sem atrasar o programa seguinte. Ou seja, o vídeo VHS representou um enorme progresso para a época. Que época?, perguntarão vocês. Bem, pelo que me lembro, já ouvíamos falar em videocassete desde o início dos anos 80, mas era "coisa de rico". Ele só foi se popularizar lá pelo fim dessa mesma década, e viveu seu auge durante a seguinte. Passar na locadora na sexta-feira à tardinha fazia parte da magia da chegada do fim de semana. Era bom.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxiBAuBu_2ks1j40M5nHgCZZRQ79ndKK6GddGLxRcNFGgrXXJsgGtZl_SD6CIc4n2iOYWkaeTigJGRon1jQw1KqZPB-Yw3eBdyEk4PR_W3OtTJieCCx8wrrVZqUk5VMC_xYU29QA/s272/cesar+bravo.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="272" data-original-width="176" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxiBAuBu_2ks1j40M5nHgCZZRQ79ndKK6GddGLxRcNFGgrXXJsgGtZl_SD6CIc4n2iOYWkaeTigJGRon1jQw1KqZPB-Yw3eBdyEk4PR_W3OtTJieCCx8wrrVZqUk5VMC_xYU29QA/s0/cesar+bravo.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">E eis que Cesar Bravo, paulista de Monte Alto, escritor em franca ascensão no ainda limitado campo do terror <i>made in Brazil</i>, decidiu revestir sua mais nova obra (por enquanto, a única que li) de uma atmosfera saudosista, ambientando-a precisamente na era de ouro do VHS. O palco dos acontecimentos é a fictícia Três Rios, no noroeste paulista (há uma Três Rios real no estado do RJ, mas não tem nada a ver com esta), onde, em fins dos anos 80, a videolocadora FireStar vai de vento em popa, liderando o segmento na cidade. Devido ao crescimento da clientela, os sócios-proprietários Pedro e Dênis, que até então cuidavam sozinhos do estabelecimento, decidem contratar um ajudante, o adolescente Renan. Além disso, implementam uma ideia destinada a tentar reduzir a prática da pirataria: quem trouxer fitas de vídeo usadas ganha um desconto na locação de lançamentos. Quando, por engano, uma das fitas caseiras recebidas na promoção vai parar entre as locações de um cliente esquisitão, surpresa: em vez de reclamar de ter pago para ver a gravação de uma reles festa de aniversário com gente que nem conhece, o sujeito pergunta se a locadora não tem mais fitas do mesmo tipo… É assim que Pedro e Dênis descobrem que podem aumentar seus lucros oferecendo (na surdina) a seus clientes a oportunidade de ver imagens da intimidade de outras pessoas. Esse seria um negócio supimpa em qualquer lugar (o conceito de <i>reality show</i> só surgiria nos anos 90, se não me engano, mas seu sucesso só foi possível graças à tendência voyeurística preexistente numa grande parcela do público), e mais ainda numa cidade pequena, onde, em geral, as pessoas estão sempre interessadíssimas na vida alheia e a fofoca é uma espécie de esporte popular. Certo, de acordo com as informações presentes no livro, Três Rios não é tão pequena assim, tendo pouco mais de 310 mil habitantes no censo de 2019, mas é fato que esses 30 anos são tempo suficiente para uma cidade crescer bastante, e, além disso, talvez os critérios de cidade grande ou pequena variem de um estado para outro.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Quando Renan já está trabalhando na locadora há algum tempo e conquistou uma certa confiança por parte de seus chefes, eles lhe revelam esse novo filão que estão explorando por baixo dos panos e lhe fazem uma proposta: ele deve levar para casa as fitas do Lote Nove (um codinome que usam para as gravações caseiras), algumas de cada vez, e assistir ao seu conteúdo para então classificá-las. Seu salário terá um aumento substancial, não tanto para compensá-lo por levar trabalho para casa quanto para comprar seu silêncio a respeito dessa atividade ilegal. O que ninguém esperava era que o conteúdo de algumas das fitas pudesse se mostrar tão perturbador quanto acaba se mostrando. Para saber mais, vocês terão que ler o livro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O conto <i>FireStar Videolocadora</i>, do qual acabo de falar, é o primeiro, e, considerando a caprichada apresentação visual do livro, confesso que eu tinha a ideia de que a locadora e os personagens Pedro, Dênis e Renan compusessem uma espécie de painel que englobaria as outras histórias, como naqueles filmes-antologia, geralmente de terror, que eram tão populares nos anos 80 – havia uma história principal, e as outras eram encaixadas dentro dela por meio de um personagem que as narrava, ou de um livro, manuscrito etc. Mas não é o que acontece aqui: <i>FireStar Videolocadora</i> termina e os contos que se seguem não parecem ter ligação com ele, exceto pelo fato de todos se ambientarem na mesma microrregião fictícia que engloba Três Rios e vários municípios vizinhos. A apresentação visual a que me refiro já fica evidente antes de abrirmos o livro: a capa faz com que ele pareça uma fita VHS, não as que você encontrava nas locadoras, que normalmente já vinham das distribuidoras com uma embalagem oficial do filme (que era a tal caixinha vazia que ficava nas prateleiras), mas as fitas que você podia comprar ainda virgens e usar para gravar programas de TV ou copiar o conteúdo de outras fitas; elas também podiam ser usadas em filmadoras caseiras – como no caso das fitas do Lote Nove. A inspiração direta para o design da capa veio da embalagem de uma fita da marca TDK, que era comercializada nos anos 80. Ao abrirmos o livro, o cuidado com a parte visual continua: há recortes de jornais fictícios (completos, incluindo até mesmo fotos com aquela textura granulada que fotos de jornais tinham na época) e anúncios classificados que imergem o leitor no cotidiano de uma cidade do interior e traçam ligações com os elementos presentes em um ou outro conto – é num desses classificados que ficamos sabendo, por exemplo, que a FireStar está localizada na rua <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2006/10/o-meu-1984.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">George Orwell</span></a>, n.° 1984 (risos). Essas notícias e anúncios já começam a nos fazer repensar aquela impressão de que não há relação entre o primeiro conto e os outros, e mais indícios do contrário vão aparecendo. Ou seja, o livro pode não seguir o esquema dos tais filmes-antologia, mas certamente é bem mais que uma simples coleção de contos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Alguns de vocês devem estar pensando, e não sem alguma razão, que a existência de uma "rua George Orwell" numa cidade com as características da Três Rios de Cesar Bravo é um tanto dura de "engolir". Nomes de ruas são, em geral, sugeridos por vereadores, e, em cidadezinhas do interior, quase sempre homenageiam personalidades locais – seria muito improvável que algum vereador de um lugar assim conhecesse Orwell, para não falar na coincidência inimaginável de a numeração do prédio ser justamente 1984! Concordo com tudo isso, mas, independentemente de sua verossimilhança, a homenagem é legal!)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-AU2sdJoT6wwCoe3Gu9wO9IxuUS2P2SWmefjzpeXzpk-iFCohw0XWCmPm6CvOw13eq683rkrB4vAHvTfBMd6ECbaDU3RWnofzKhz4iobObYNrE-oLmgHpTJfxQ8xyDNp_UUbqdA/s422/locadora-vhs.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="422" data-original-width="270" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-AU2sdJoT6wwCoe3Gu9wO9IxuUS2P2SWmefjzpeXzpk-iFCohw0XWCmPm6CvOw13eq683rkrB4vAHvTfBMd6ECbaDU3RWnofzKhz4iobObYNrE-oLmgHpTJfxQ8xyDNp_UUbqdA/s16000/locadora-vhs.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Os contos contemplam desde o terror sobrenatural até outro tipo de horror, aquele gerado por atos humanos, e às vezes as duas coisas se entrelaçam, como em <i>Chuva Forte</i>, no qual a cidade de Cordeiros é atingida por uma chuva de sangue – sangue humano de verdade, e não alguma coisa explicável que apenas se pareça com ele: análises laboratoriais demonstram que é sangue mesmo. O fenômeno fantástico e inacreditável, como ficamos sabendo depois, está relacionado a um segredo obscuro que ficou oculto durante muitos anos, e que se refere a uma decisão tomada em conjunto por vários figurões da sociedade local, decisão essa que custou vidas humanas. E agora parece que alguns espíritos querem vingança.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Um dos contos de que mais gostei foi <i>Branco Como Algodão</i>, que lida com a conhecida lenda urbana da "loira do banheiro", que, com diferentes nomes e certas variações nos detalhes, parece existir no mundo todo, e a cidade de Velha Granada não é exceção: quando um aluno da escola local é encontrado morto no banheiro sob circunstâncias estranhas, o detetive de polícia Louis Trindah vai investigar. Louis é aquele típico policial durão e cético, que tem certeza de que há uma explicação racional e provavelmente bem simples para a coisa toda – mas descobrirá que não é bem assim.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Três que Capturaram o Diabo</i> apresenta uma conversa entre o velho homem do campo Deodoro e seu neto Tavinho; ao ouvir o avô mencionar aleatoriamente o diabo, o garoto quer saber mais sobre esse misterioso personagem, e recebe em resposta uma história da juventude de Deodoro, sobre como o <i>coisa-ruim</i> já andou por aquelas bandas sob disfarce humano. Cesar Bravo obtém um belo efeito nesse conto ao retratar esse mundo interiorano que muitos de nós chegamos a conhecer pelo menos um pouco, onde as pessoas de mais idade geralmente tiveram pouca ou nenhuma instrução, não têm qualquer intimidade com livros, mas mesmo assim, sem saber, dominam uma forma de literatura, já que, para elas, ouvir e contar histórias sempre foi uma parte normal do cotidiano.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Bicho-papão</i> causa mal-estar (e não há a menor dúvida de que a intenção era essa), e eu não o chamaria realmente de terror, pelo mesmo motivo pelo qual, para mim, filmes como <i>Jogos Mortais</i> e <i>O Albergue</i> também não fazem parte do gênero: não há nada de sobrenatural e também não há mistério, ou, se há, ele é acessório. Esse conto é basicamente sobre tortura e degradação, mostrando o dia a dia de um homem que vive há meses acorrentado num porão imundo onde constantemente recebe visitas de três sujeitos fardados como policiais, que o submetem a todo tipo de tratamento horripilante, chamando isso de "terapia". Ao longo de várias páginas o autor usa e abusa do privilégio de chocar o leitor, levando-o a sentir horror e pena, e principalmente a ficar perplexo, querendo saber qual o sentido daquilo tudo… Até revelar que o homem está ali por causa de algo que fez, o que pode fazer muitos dos leitores mudarem de ideia. Não vou criticar, mas não é o tipo de literatura que eu, pessoalmente, estou procurando quando abro um livro de terror.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Acho pertinente uma rápida observação sobre <i>Jogos Mortais</i>, já que o citei como exemplo de "não-terror": acho difícil falar dessa franquia como uma coisa só. Gostei do primeiro filme, que considero um suspense na tradição de <i>Seven </i>e <i>O Silêncio dos Inocentes</i> – não é tão bom quanto eles, mas segue numa pegada parecida, o <i>clima</i> é parecido, e o sadismo que existe está a serviço da narrativa, não o contrário, como aconteceria nos filmes seguintes, que, a meu ver, não são nem suspense nem terror, e sim mero <i>torture porn</i>. Vi, se não me engano, o segundo e o terceiro, depois perdi o interesse, junto com a esperança de que a franquia eventualmente voltasse a apresentar as qualidades do primeiro filme.)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Torniquete</i> é um conto agoniante, mas que te pega de uma maneira que não dá para interromper a leitura. É totalmente subjetivo dizer isso, mas ele me causou uma sensação semelhante à de <i>Eu Sou o Umbral da Porta</i>, de Stephen King, e aí não sei dizer se é só porque as duas histórias têm em comum protagonistas que tomam a decisão drástica de "cortar o mal pela raiz" livrando-se de uma parte do próprio corpo, ou se existe alguma semelhança mais sutil. Millôr Aleixo é um jovem morador de Três Rios que ganha a vida trabalhando pendurado num rapel, limpando janelas de prédios altos, e de repente, por motivo nenhum, começa a sentir uma coceira atroz na perna direita, que nenhum tratamento consegue resolver, simplesmente porque não parece ter qualquer causa que se possa detectar para tratar. Quando a coceira se transforma numa dor, também sem causa aparente, e o rapaz está a ponto de enlouquecer, sem conseguir trabalhar, nem dormir, nem nada, ele decide amputar a perna com o "auxílio" de um trem. Para narrar a história, o autor pega carona numa entrevista na qual Millôr conta o acontecido a um repórter – pois, é claro, um caso grotesco e sanguinolento como esse tem muito valor para a imprensa, e nesse caso nem dá para criticar muito, pois, afinal, estamos aqui lendo o conto, não estamos?… O entrelaçamento de histórias continua, pois a ex-namorada de Millôr, que o largou quando ele começou a ter o problema com a perna, era uma certa Kelly Milena, nome que o leitor, nessa altura do livro, já "ouviu" antes.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7mWfqjzBAW2ODTcO-V8daekk1HdEqcHyTrgGr5agrfmJLfqPLHiq6CI9vfzi95pw3RGmzLQRE18YCdSYoKOGj7Oa0k1kD0VTOkde8_Q9jPxucBVOq4cLAu29EiGUXfc09CPpepg/s451/vhs+pgs+internas.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="373" data-original-width="451" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7mWfqjzBAW2ODTcO-V8daekk1HdEqcHyTrgGr5agrfmJLfqPLHiq6CI9vfzi95pw3RGmzLQRE18YCdSYoKOGj7Oa0k1kD0VTOkde8_Q9jPxucBVOq4cLAu29EiGUXfc09CPpepg/s16000/vhs+pgs+internas.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;"><i>O Último Centavo da Sra. Shin</i> conta-nos sobre uma senhora idosa, descendente de japoneses, que, apesar de ter nascido e, pelo que entendemos, sempre ter vivido no Brasil, nunca realmente se adaptou ao país; o jeito espalhafatoso dos brasileiros, a falta de disciplina e de respeito para com os mais velhos, e em especial o famoso "jeitinho" a deixam exasperada. Não dá para deixar de refletir que o Japão do qual ela sente saudade (o que é paradoxal, pois como alguém pode ter saudade do que não conheceu?) é provavelmente um Japão que já não existe há muito tempo. Para encontrar um pouco de paz, ela costuma ir ao templo budista que existe em sua cidade (não é explicitado de qual cidade se trata), onde tem conversas com a estátua de Shinigami, o deus da morte. No conto, "Shinigami" é usado como um nome individual, como sendo o nome desse deus específico, mas, se formos pesquisar nos contextos do budismo e xintoísmo, veremos que "shinigami" designa toda uma classe de deuses (talvez "espíritos" seja mais adequado) que teriam por função determinar o momento da morte dos seres humanos – é mais ou menos o que quem viu <i>Death Note</i> já conhece. De qualquer forma, hoje em dia a maioria dos japoneses considera tais entidades como figuras puramente simbólicas, o que não é bem o caso nesta história… Pode parecer mórbido, ou ao menos esquisito, alguém orar para um <i>deus da morte</i>, mas a cultura japonesa tradicional lida, ou lidava, com a morte de uma maneira mais filosófica que a nossa, vendo-a como uma coisa natural e inevitável, uma passagem que todos nós faremos mais cedo ou mais tarde e que, portanto, é melhor aceitar com tranquilidade desde já. Tínhamos algo parecido no ocidente: os romanos (seguindo a tradição de outros povos pagãos antes deles) e depois os cristãos dos primeiros séculos, encaravam a morte com serenidade, mas essa atitude se perdeu com a secularização e o avanço do materialismo, até chegarmos à sociedade atual, na qual o simples ato de mencionar a morte é considerado de mau gosto. Em tempo: <i>O Último Centavo da Sra. Shin</i> está evidentemente ambientado alguns anos depois da maior parte dos outros contos do livro – em 1994 ou depois, já que a moeda mencionada é o real.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Assim como <i>Torniquete</i>, <i>Lugar Algum</i> também tem um <i>feeling </i>stephenkinguiano, mas neste não dá para apontar uma história específica do <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2019/11/a-hora-do-vampiro.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">mestre do Maine</span></a> como possível inspiração, já que a situação da qual ele parte aparece em várias: alguns homens (somente homens) estão num bar, tomando umas e outras e conversando sobre assuntos aleatórios, quando chega um cliente esquisito, e a partir daí a aura de normalidade começa a se deformar. Em <i>Lugar Algum</i>, a participação desse cliente vai além de contar histórias estranhas, embora ele comece fazendo justamente isso: parece trazer consigo alguma coisa sombria e malévola, que costuma se manifestar, diz ele, às três da madrugada – a "hora morta", a hora inversa à da morte de Cristo na cruz, que foi às três da tarde, e que por isso os demônios, por zombaria, teriam escolhido como "sua" hora. A atmosfera de tensão vai aumentando à medida que o desconhecido, de nome Estêvão, vai contando sua história e os ponteiros do relógio vão caminhando implacavelmente rumo às três… Concordo que algumas interrupções bobas por parte dos ouvintes são um recurso eficiente para dar um ar de "verdade" à narrativa, mas, no lugar do autor, teria sido mais parcimonioso ao usar esse truque, pois o excesso de interrupções deixa o leitor impaciente. Tirando esse pequeno problema, é um excelente conto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Talheres de Ossos do Rei Invertebrado</i> tem o título mais enigmático e curioso dentre todos os contos em <i>VHS</i>. Na primeira vez em que o li (em que li o título, quero dizer), ele me evocou vislumbres da obra de <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2015/04/o-rei-de-amarelo.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Robert W. Chambers</span></a>, não sei ao certo se só por causa do "rei" aparecendo num livro de terror ou por mais alguma coisa. Em todo caso, não tem nada a ver: não há aqui nada de sobrenatural. A história é narrada por Julian, filho de um homem que foi durante anos um dos mais temidos chefões do tráfico do estado de São Paulo e provavelmente de todo o país, e que era apelidado de "Rei Invertebrado" por causa de sua capacidade de escapar de qualquer lugar, como se "não tivesse ossos". É uma alcunha interessante, levemente macabra, mas que nunca "pegaria" na vida real: bandidos e traficantes notórios precisam de apelidos que caiam facilmente na boca do povo. Uma palavra comprida e de sentido (para a maioria das pessoas) obscuro como essa não teria chance de se tornar corrente. E, vejam só, o Rei, ao mesmo tempo em que era um criminoso da pior espécie, era também um bom pai – sempre foi presente na vida do filho, além de justo e afetuoso com ele, e inclusive diz com todas as letras ao adolescente Julian que ficará furioso caso venha a saber que ele anda metido com drogas. Quando Julian está contando a história, ele já é adulto e seu pai está morto há muito tempo (seu fim, como o da maioria das pessoas de seu ramo, não foi agradável); a narrativa é feita de reminiscências e gira em torno do dia em que, quando ele tinha 14 anos, o Rei Invertebrado o levou a certo lugar para que ele "entendesse o negócio da família" e "se tornasse homem".</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Whey Protein</i> é surpreendente! Também não tem nada de sobrenatural e, no começo, dá a impressão de que será apenas um vulgar "conto de polícia" (não é conto policial, é "conto de polícia" mesmo, coisa massivamente praticada por escritores brasileiros e para a qual eu, pessoalmente, tenho pouca paciência). A premissa é simples: um detetive de polícia, denominado apenas de "Prestes", está tomando o depoimento de um homem de nome Cassiano, cuja esposa desapareceu. Como era do conhecimento de muitos que o casamento já não ia bem há anos, e, além disso, Cassiano não deu parte do sumiço da mulher, pairam suspeitas sobre ele. Até aí, é tudo comum; o que torna o conto surpreendente é a habilidade com que o autor trabalha os perfis psicológicos dos dois personagens, criando um paralelo e até uma empatia entre eles. Conforme Cassiano conta sobre o inferno em que o mau gênio da mulher havia transformado sua vida, e confessa repetidamente que, apesar de tudo, ele ainda a amava, Prestes acredita cada vez menos que ele a tenha assassinado e começa a gostar do rapaz – sendo que, para isso, contribui o fato de o detetive ter passado por coisas parecidas em seu próprio casamento, como é revelado por meio de pensamentos que ele não partilha com o suspeito, mas aos quais nós, leitores, temos acesso. Na última página há uma reviravolta, que ainda mantém a possibilidade da dúvida quanto à culpa ou inocência do cara, mas abala todas as quase-certezas que Prestes tinha e nós também.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Os dois últimos contos, <i>Zona de Abate: Matadouro 7</i> e <i>HSBF6-X</i>, estão nitidamente interligados e tratam de uma combinação pavorosa de horror sobrenatural com corrupção e ganância empresarial que passa por cima de qualquer lei ou preocupação com a preservação ambiental ou a vida humana. O primeiro se alonga na descrição dos "horrores" de um matadouro, como se tentasse motivar o leitor a tornar-se vegetariano, e acompanha um detetive particular (ex-policial) que está investigando o desaparecimento de um homem que foi visto pela última vez nesse local. O conto termina de repente – mais que isso, dá a impressão de estar inacabado, mas na verdade já lemos seu final, lá no início do livro, na descrição do conteúdo de uma das fitas recebidas pela FireStar. O outro leva o nome de um produto corrosivo que é usado para sumir com os restos das carcaças dos animais abatidos, e deixa no ar a dúvida sobre quem estará por trás dos acontecimentos macabros que têm lugar no matadouro: um empresário inescrupuloso? Um demônio? Ambos?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Com os altos e baixos que são normais em livros de contos, VHS é uma adição de peso à lista das obras de terror de autores brasileiros disponíveis nas nossas livrarias, e não se pode negar que a apresentação visual diferenciada conta pontos quando se trata de atrair o interesse de leitores em potencial; o autor e a DarkSide Books (selo que, por sinal, é sempre garantia de edições caprichadas) estão de parabéns. Há algumas falhas, a bem dizer inevitáveis num projeto tão intrincado e cheio de detalhes, que poderão ser facilmente consertadas nas próximas edições. Lembro agora, por exemplo, que, no conto <i>FireStar Videolocadora</i>, uma personagem cujo nome era Alessandra é de repente chamada de Cris. Sei exatamente o que aconteceu: com o texto já pronto (provavelmente já revisado, inclusive) o autor, de última hora, decidiu trocar o nome da personagem, e o fez utilizando o recurso "localizar e substituir" no Word – só que, numa de suas ocorrências, o nome tinha sido digitado diferente das outras, e por isso escapou da busca. A mesma coisa acontece em <i>Branco Como Algodão</i>, na qual o menino assassinado se chama Jonas Cravinho na primeira vez em que é mencionado, e depois passa a ser Jonas Duna. No mesmo conto, a escola onde o fato ocorre chama-se Aureliano Gomes, já numa página de classificados que aparece depois, é Aureliano Chaves.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como de costume ao escrever sobre livros de contos, não estou mencionando todas as histórias, apenas aquelas de que mais gostei, as que apresentam alguma curiosidade, ou as de particular relevância para a compreensão do universo do autor. Segundo comentários que rolam na internet, <i>VHS </i>não é a primeira incursão de Cesar Bravo nesse universo: um livro anterior, <i>Ultra Carnem</i>, também publicado pela DarkSide, já explorava os segredos sombrios de Três Rios e região. E tenho a sensação de que ainda ouviremos falar muito sobre esses lugares e sobre o que acontece neles.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-13134867313406748812020-01-09T21:55:00.033-04:002021-10-09T14:10:20.062-04:0013 Reasons Why<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLWMs3AdcZRb8rAJJYXsvGMurK2Em9zt9h61iSh13iZaxjQUYPqNldDm_5kt5F1pD7LBT23KA5eTfTmy3Bd-6c1TTbiV6Fx5guSDiXYhIN0NOLWmq9Yz2vDXfnq910URJ-Gc3nyA/s411/13+reasons+01.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="411" data-original-width="280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjLWMs3AdcZRb8rAJJYXsvGMurK2Em9zt9h61iSh13iZaxjQUYPqNldDm_5kt5F1pD7LBT23KA5eTfTmy3Bd-6c1TTbiV6Fx5guSDiXYhIN0NOLWmq9Yz2vDXfnq910URJ-Gc3nyA/s16000/13+reasons+01.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Dramas protagonizados por indivíduos comuns não são bem o tipo de obra que costuma me atrair a atenção; meus gostos inclinam-se muito mais para coisas que me permitem esquecer um pouco a realidade, que, via de regra, consegue a proeza de ser ao mesmo tempo tão complicada e tão pouco interessante. Daí a minha preferência por fantasia, ficção científica, terror, ficção histórica, e, no campo do audiovisual, filmes e séries que transponham para a tela esses mesmos gêneros. Mesmo assim, às vezes é bom aventurar-se com algo diferente, e, xeretando o catálogo da Netflix um dia desses, topei com <i>13 Reasons Why</i>, sobre a qual já havia lido algo. Decidi dar uma chance à série e não me arrependi.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A adolescência tem seus espinhos e desafios, isso faz parte dela; são coisas que, na maioria, podem parecer bobas se vistas pelos olhos de um adulto, a menos que ele ainda lembre como é ter 15, 16, 17 anos – e um número surpreendente parece não lembrar. OK, há coisas que são <i>mesmo </i>bobagens, e os jovens que hoje dão muita importância a elas provavelmente vão se sentir envergonhados ou rir de si mesmos ao pensarem nisso daqui a 20 anos, mas outras são questões sérias, ao menos para quem as está enfrentando e não tem ainda a experiência e a sabedoria que poderiam torná-las mais fáceis. Seja como for, a maioria de nós, aos trancos e barrancos, acaba superando essas chuvas e trovoadas e seguindo a vida. A maioria, mas nem todos. <i>13 Reasons Why</i> gira em torno de uma jovem que faz parte da minoria para quem a aventura da adolescência acaba mal. Trata-se de uma obra de ficção, mas inspirada (talvez se possa dizer baseada) em um grande número de casos reais – isso fica claro e aparente, mas infelizmente não encontrei mais detalhes sobre o provável trabalho de pesquisa levado a cabo pelo autor Jay Asher, e que resultou no livro que deu origem à série. No Brasil, esse livro foi publicado como <i>Os 13 Porquês</i>; em Portugal, chama-se <i>Por 13 Razões</i>.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A escola secundária Liberty está de luto, e com ela toda a comunidade da pequena cidade de Evergreen. Hannah Baker (Katherine Langford), aluna do último ano, tirou a própria vida poucas semanas atrás. Ainda em meio à comoção geral, um rapaz de nome Clay Jensen (Dylan Minnette) recebe uma caixa contendo sete fitas cassete, que, como ele descobre, foram gravadas pela própria Hannah e contam o que a levou a fazer o que fez. Cada fita tem 60 minutos, e, com exceção da última, cada uma está gravada de ambos os lados; em cada uma dessas 13 sessões de 30 minutos, Hannah se dirige a uma pessoa diferente, que, segundo ela, contribuiu por meio de seus atos para levá-la ao suicídio.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Sim, vocês leram certo: fitas cassete. Para os colegas de Hannah (e para o resto dessa geração nascida na virada do século), é mais ou menos como se ela tivesse registrado sua história num conjunto de tabletes de argila, utilizando caracteres cuneiformes sumérios. A maioria não tem em casa qualquer aparelho capaz de reproduzir esse tipo de mídia, e muitos nunca nem viram um aparelho desses – um sinal de que ela não estava disposta a facilitar as coisas para aqueles a quem essa mensagem final era dirigida. A garota deixou instruções precisas: a caixa deve ser enviada a essas mesmas pessoas, uma por vez, na mesma ordem em que elas aparecem nas gravações. Quem a recebe deve: 01) ouvir todas as fitas; 02) passá-las ao próximo da lista. Naturalmente, Hannah não tinha como obrigar os destinatários a cumprir a primeira parte, mas a segunda, sim: ela garante que outra cópia das fitas foi deixada com uma pessoa de sua inteira confiança, e que, se alguém quebrar a corrente, essa pessoa levará o material a público, o que será, no mínimo, constrangedor para todos, e poderá causar enormes problemas a um ou dois dos contemplados, que praticaram atos bem mais graves que mero <i>bullying </i>ou espalhar boatos.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhQPTUB4saa9Fd0lDQMIvZ8Vd4steCgajdz22jO5c6Ytz_YnT8ff5JqyK8ajW6KB89UcVo3KsN_QVrx7SMyIs8UToFMHqdycujRINKkdURS5_hoLrIRBCj3P7ewvOubJcPpPfojBA/s516/13+reasons+02.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="333" data-original-width="516" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhQPTUB4saa9Fd0lDQMIvZ8Vd4steCgajdz22jO5c6Ytz_YnT8ff5JqyK8ajW6KB89UcVo3KsN_QVrx7SMyIs8UToFMHqdycujRINKkdURS5_hoLrIRBCj3P7ewvOubJcPpPfojBA/s16000/13+reasons+02.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Hannah não era natural de Evergreen e era quase uma novata: só estava na escola Liberty desde o início de seu penúltimo ano. Portanto, não tinha grandes amigos, estava um tanto insegura em relação a sua integração social e, embora fosse muito atraente, não desfrutava de nenhuma popularidade notável. Essa questão da "popularidade", por sinal, sempre me intrigou. Qualquer pessoa que assista regularmente a filmes e/ou séries (de qualquer gênero que for) feitos nos EUA, e que retratem o cotidiano daquele país, está mais ou menos a par de como o universo dos adolescentes americanos parece funcionar. Já me perguntei se seria mesmo do jeito que o cinema e a TV mostram, mas, a julgar pela consistência com que o fazem, a resposta parece ser positiva – sem esquecer os livros de <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/12/ao-cair-da-noite.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Stephen King</span></a>, principalmente <i>Carrie </i>e <i>Christine</i>, que corroboram isso tudo, e olhem que King foi professor antes de ser escritor, de modo que devia saber do que falava ao escrever esses romances. Eu passei pelo ensino médio, vocês também devem ter passado, então sabemos como é a vida numa escola secundária no Brasil. Há <i>bullying</i> e todo tipo de comportamento estúpido, naturalmente, mas em lugar nenhum vi uma estratificação explícita e rígida como parece existir nas escolas norte-americanas: de um lado o <i>hot people</i>, do outro os <i>losers</i>. Lá, os atletas e as animadoras de torcida; aqui, os aficionados da informática, os jogadores de RPG, o pessoal do clube de xadrez, os nerds em geral. E os dois grupos não se misturam. Os <i>hots</i>, embora possam, em teoria, andar por onde quiserem, certamente não vão jogar RPG nem participar do clube de xadrez, para não mancharem sua imagem – pois, afinal, imagem é <i>tudo</i>. Já os <i>losers </i>não podem andar por onde quiserem: se um deles sentar no lugar errado na lanchonete, apanha. Felizmente, esse estado de coisas parece só durar o tempo que se leva para sair do ensino médio: os nerds que hoje ganham salários de seis dígitos no Vale do Silício devem se divertir lembrando dos atletas bonitões que os oprimiam e humilhavam alguns anos atrás, e que agora estão provavelmente trabalhando em postos de gasolina. De qualquer forma, essa microssociedade das escolas secundárias parece ser sempre mais ou menos igual, e a Liberty não é exceção: também nela há aquele punhado de rapagões musculosos que andam sempre com a jaqueta do uniforme esportivo da escola, pegam as garotas gostosas e adoram tornar um inferno a vida de quem não for da sua tribo.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O espectador acompanha a história pelo ponto de vista de Clay, um garoto que pode ser definido como um tipo intermediário: não é nem um atleta pegador, nem um caso perdido de nerdice. Ele conhecia Hannah de vista, da escola, até os dois começarem a trabalhar juntos no cinema local; a partir daí, tornaram-se mais próximos, e houve um ou dois momentos em que rolou um clima, mas nunca chegaram a namorar ou mesmo a "ficar" propriamente. É fácil ver que Clay era completamente apaixonado pela garota, e que já estava sofrendo antes dela se matar, por achar que tinha "estragado as coisas" de modo irremediável entre os dois – e, o que é pior, sem saber o que tinha feito de errado. Quando Hannah consumou seu ato, acabando com qualquer possibilidade de remediar o que quer que fosse, Clay ficou devastado. Ao ouvir as fitas, ele fica sabendo de detalhes sobre alguns fatos que até então só conhecia em linhas gerais, e descobre outros que ignorava por completo. Essas revelações o abalam e chocam, e ele decide que não poderá descansar nem seguir com sua vida até que certas pessoas respondam pelo que fizeram. Os pais de Hannah (que nada sabem sobre as fitas) já estão movendo um processo contra a escola alegando que houve negligência, que a direção do estabelecimento não prestou a assistência psicológica de que a garota necessitava e tampouco adotou ações para impedir o <i>bullying</i> e outras formas de perseguição. Clay, em princípio, também quer que as coisas sigam a via regular, fazendo tudo ao seu alcance para que os culpados sejam levados à justiça – mas às vezes seu sangue ferve e ele se sente inclinado a tentar fazer justiça com as próprias mãos.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQT0OIOYUAmkhhFRIufCNbC20YN1vjsiS1YroPY8aVf78Tz9Jq3dcfwB5mx_uqG5hRszRxXbB84Z0lAJDnFZZpBcSuR1bTOPmDZxpN20MJHMIq8ZyGBzXaWI1dqgwlqpXBV-crIA/s487/13+reasons+03.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="280" data-original-width="487" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQT0OIOYUAmkhhFRIufCNbC20YN1vjsiS1YroPY8aVf78Tz9Jq3dcfwB5mx_uqG5hRszRxXbB84Z0lAJDnFZZpBcSuR1bTOPmDZxpN20MJHMIq8ZyGBzXaWI1dqgwlqpXBV-crIA/s16000/13+reasons+03.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Hannah parecia ser uma jovem de alguma personalidade, que não ligava muito para a tal popularidade – e bem que poderia tê-la conseguido se quisesse, pois, como era bonita, tinha chances de ser selecionada para as animadoras de torcida, mas parece que sua opinião a respeito disso era igual à minha: essa coisa de animadoras é uma idiotice que, no fundo, objetifica e diminui as garotas, ainda que, aos olhos da comunidade estudantil, elas sejam praticamente semideusas, disputadas pelos atletas populares e completamente inacessíveis ao resto dos rapazes. Apesar disso, Hannah não escapa das peças que o coração prega em todos nós e nos adolescentes em particular: acaba apaixonada por um dos tais atletas populares, um rapaz chamado Justin Foley (Brandon Flynn). Os dois têm um encontro no qual o máximo que acontece é um beijo – só que Justin espalha na escola uma versão bem diferente. Esse ato (tão comum) de babaquice <i>teen </i>dá início à marcha da vaca para o brejo na vida de Hannah. Mas haverá muito mais: ela tem a pouca sorte de ser colega também de Tyler Down (Devin Druid), um garoto impopular, tímido e oprimido, com quem o espectador sentiria um impulso de se solidarizar, não fosse por ele ser também um <i>voyeur </i>de carteirinha, que se aproveita de seu trabalho de extensão em fotografia (é uma espécie de fotógrafo oficial da escola) para espionar garotas bonitas e clicá-las nos momentos mais íntimos possíveis. Ele chega ao ponto de descobrir onde Hannah mora e ficar de tocaia, escondido na frente da casa, espionando-a através da janela. Por sinal, a série dá a impressão de que em Evergreen todo mundo faz tudo de janela aberta, e também de que não só espiar, mas até mesmo entrar e sair por uma (sem nunca ser visto) é a coisa mais fácil que existe. Hannah acaba por perceber que está sendo <i>stalkeada </i>e, meio por acaso, conta isso a Courtney Crimsen (Michele Selene Ang), uma garota que ela não conhece muito, mas que acredita ser uma possível amiga, e que se oferece para ajudá-la a dar uma lição no tarado. Courtney parece ter boas intenções, mas há um detalhe: ela gosta de meninas e tem uma queda por Hannah. Na casa desta última, as duas planejam uma armadilha para Tyler, e, nervosas, decidem tomar um gole de alguma coisa surrupiada da adega dos pais de Hannah "para ganhar coragem"; acabam tomando mais que um gole e, já "alegres" demais, trocam uns beijos, completamente esquecidas do <i>paparazzo</i>, que, é claro, aproveita a chance e registra o momento "desinibido" das duas garotas. No dia seguinte suas fotos já estão fazendo sucesso na escola, de modo que, além da fama de garota "fácil", Hannah agora também tem a de bissexual. Logo ela está sendo alvo de abordagens grosseiras por parte de vários rapazes, além de comentários sem noção, tanto de rapazes quanto de garotas. Por mais que ela não ligue para a popularidade, é próprio da adolescência preocupar-se com a opinião do grupo social, e isso tudo vai fazendo-a entrar em parafuso. Esses dois episódios parecem ter sido o gatilho, mas vários outros acontecem (alguns muito, muito piores), quase sempre envolvendo as "pessoas das fitas". Para Clay, ouvir a história de Hannah é uma tortura, e o pior de tudo é o próprio fato de estar incluído na "lista dos 13": o que ele pode ter feito que tenha contribuído para fazer a garota que amava se matar? Por uma ou duas vezes ele pensa estar ouvindo sua própria fita e tem um alívio momentâneo quando, ao continuar, percebe que, na verdade, estas se referem a outras pessoas, mas isso apenas adia a hora de saber qual foi realmente sua participação na tragédia. Querer desesperadamente saber algo, mas, ao mesmo tempo, ter medo da resposta, é uma situação horrível, mas pela qual acho que todo mundo já passou ou ainda passará pelo menos uma vez.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Uma pessoa citada mais de uma vez nas fitas de Hannah é Jessica Davis (Alisha Boe), que, durante algum tempo, foi de fato sua amiga. Jessica, filha de um militar que se muda com frequência por conta do trabalho, também era nova na escola Liberty, e isso serviu para aproximar as duas durante o início do penúltimo ano de ambas. Seu pai é negro, e sua mãe, loira, o que deu a Jessica uma beleza exótica, que chama atenção. Seu primeiro namorado em Evergreen é Alex Standall (Miles Heizer), filho do xerife local e, como Clay, um rapaz "mediano". Alex começa por ser amigo de Jessica e também de Hannah, e os três pegam o costume de se reunir no Monet's, o café badalado do pedaço, para trocar desabafos e risadas. Quando Alex e Jessica começam a namorar e não contam a Hannah, ela se ressente por achar que seus amigos estão lhe escondendo segredos, o que se torna o primeiro fator de afastamento entre ela e Jessica. Mais tarde, esse namoro acaba e Jessica se torna animadora de torcida; não fica claro qual das duas coisas acontece primeiro, mas, conforme as regras sociais rígidas de que falávamos há pouco, daí em diante ela só pode ter como novo namorado um dos atletas – e quem acaba sendo, senão Justin Foley em pessoa? Isso parece ser a pá de cal no que porventura ainda restasse da amizade das duas garotas, e certamente contribuiu para fazer com que Hannah visse o mundo em cores um pouco mais sombrias. Como sempre, quero evitar <i>spoilers</i>, então basta dizer que um dos episódios mais "cabulosos" narrados nas fitas envolve Jessica, Justin e um sujeito chamado Bryce Walker (Justin Prentice), amigo íntimo de Justin e que, além de atleta e popular, é <i>rico</i>; é nítido que, por causa de tudo isso, Bryce se considera o rei da escola, e o pior é que muitos dos outros alunos parecem dispostos a reconhecer-lhe esse status.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfqB5ORQhUSzYHteDXHJzMqum5tZglN5rJgwvYJiPikcosnUY7rE5j4XZskGeUHUECuREhJCKhBK7bQYGw7O84ghgt4dkLCf4DTSJ0ha48sp6n6t_jhEwdNwFZ2Yu2b8_I0uK8Fw/s301/13+reasons+04.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="301" data-original-width="188" height="301" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfqB5ORQhUSzYHteDXHJzMqum5tZglN5rJgwvYJiPikcosnUY7rE5j4XZskGeUHUECuREhJCKhBK7bQYGw7O84ghgt4dkLCf4DTSJ0ha48sp6n6t_jhEwdNwFZ2Yu2b8_I0uK8Fw/s0/13+reasons+04.jpg" width="188" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Os episódios de <i>13 Reasons Why</i> são narrados por meio de uma alternância constante entre presente e passado – ora vemos Hannah viva, ora as outras pessoas tendo que lidar com sua morte –, e por isso exige bastante atenção do espectador. Algumas cenas começam um tanto dúbias, mas logo são fornecidos elementos que nos permitem situá-las na linha do tempo. Um recurso engenhoso foi adotado para diferenciar o "Clay de agora" do "Clay de antes": logo depois de receber as fitas, o garoto sofre um acidente com sua bicicleta e leva um corte na testa; daí em diante, sempre que o vemos com um curativo, sabemos que a cena é do presente.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como costuma acontecer em séries, vários diretores se revezam nos episódios, e, de modo geral, achei que fizeram um trabalho eficiente. A criação para a TV é assinada por um certo Brian Yorkey, que também chefia o time dos produtores executivos, e o próprio Jay Asher figura nos créditos como consultor de produção. O elenco jovem, para mim desconhecido, quase sempre manda bem; já entre os atores nos papéis adultos, é fácil reconhecer figurinhas carimbadas de outras séries, como Amy Hargreaves, de <i>Blindspot</i>, e Josh Hamilton, de <i>American Horror Story</i>, que interpretam a mãe e o pai de Clay, e Mark Pellegrino, que aparece em muitos episódios de <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/07/supernatural-nunca-mais.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Supernatural</span></a></i> no papel do diabo, e aqui é o xerife Standall, pai de Alex, entre outras caras conhecidas. Como não li o livro, não posso dar certeza a respeito, mas, pelos comentários que encontrei, o que entendi foi que apenas a primeira temporada de <i>13 Reasons Why</i> é diretamente baseada nele, e as seguintes são desdobramentos; o que posso dizer é que terminei a primeira e minha opinião é que ela impacta bastante o espectador e dá o que pensar. No momento estou tentando ver a segunda, que se passa cinco meses depois e gira em torno do julgamento do caso levantado pelos pais de Hannah; infelizmente, essa está longe de ter a mesma força, mas ainda é cedo para decidir se continuo ou desisto. Em todo caso, não tenho dúvida em recomendar a primeira temporada, uma obra que fala de provações pelas quais os adolescentes passam, mas que, no fundo, continuam iguais durante toda a vida. Talvez essas provações ganhem versões mais complicadas conforme ficamos mais velhos, e, com sorte e algum juízo, podemos adquirir resistência para enfrentá-las sem ficar com vontade de acabar com tudo como fez Hannah – e como, infelizmente, muitos jovens fazem todos os anos no mundo real – mas, em essência, elas não mudam. O que nos resta é mudarmos nós, para sermos capazes de encarar essas coisas sem permitir que nos levem ao desespero. <i>13 Reasons Why</i> dá a sua pequena mas importante contribuição.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-84642181547566189782019-12-19T22:26:00.120-04:002023-01-18T23:39:27.531-04:00O Manto Sagrado<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiM8W3REZ-jjctV7Po33aRv0jPGbpPRYurXNA68vQzr_UOVB66XCbgO3eMcG8HVxzOXehggFuzrWtfnJIutqqm-5CRMajT_U1I33woHgdiaxofZn-aOqgXzaqMdNxQL5FBYxoKFooHe2ycG0-2BoHHuA0jNV7jae8HisuV3scKc0AMsKs2K5b4/s320/the%20robe.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiM8W3REZ-jjctV7Po33aRv0jPGbpPRYurXNA68vQzr_UOVB66XCbgO3eMcG8HVxzOXehggFuzrWtfnJIutqqm-5CRMajT_U1I33woHgdiaxofZn-aOqgXzaqMdNxQL5FBYxoKFooHe2ycG0-2BoHHuA0jNV7jae8HisuV3scKc0AMsKs2K5b4/s16000/the%20robe.jpg" /></span></a></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;"><i>Depois de os soldados crucificarem Jesus, tomaram as suas vestes e fizeram delas quatro partes, uma para cada soldado. O manto, porém, todo tecido de alto a baixo, não tinha costura. Disseram, pois, uns aos outros: Não o rasguemos, mas lancemos sorte sobre ele, para ver de quem será. Assim se cumpria a Escritura: Repartiram entre si as minhas vestes e lançaram sorte sobre o meu manto. Isso fizeram os soldados.</i></div></span><p></p><p style="text-align: right;"><span style="font-family: georgia;">Jo 19, 23-24</span></p><p style="text-align: center;"><span style="font-family: georgia;">* * *</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Todos os quatro Evangelhos mencionam o momento em que, tendo crucificado Jesus, os soldados romanos dividiram entre si as roupas que ele usava, mas apenas o de São João narra esse incidente com detalhes, talvez porque João, um adolescente na época, tenha sido o único dos evangelistas a ser testemunha ocular da crucificação do Filho de Deus. Lucas limita-se a um quase telegráfico "Eles dividiram as suas vestes e as sortearam", e Mateus e Marcos dizem o mesmo com pequenas variações. Só João se refere ao fato de que, depois de terem repartido entre si as peças menores usadas por Cristo, os soldados notaram que o item principal, o manto, era de boa qualidade, ainda que simples, e decidiram não fazer o óbvio, isto é, parti-lo em pedaços que também seriam distribuídos igualmente entre todos, para serem usados como pano para remendos, ou coisa parecida. Em vez disso, disputaram-no num jogo de dados.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Lloyd C. Douglas (1877-1951) contou certa vez que a ideia para escrever <i>O Manto Sagrado</i> surgiu quando, em 1940, já um escritor famoso (com obras, muitas vezes, de viés cristão), ele recebeu uma carta de uma leitora que perguntava se alguém sabia quem ganhou o manto naquele jogo ou o que foi feito dele. A questão é evidentemente complexa; consta que o manto que se supõe ter sido usado por Jesus esteve guardado em Constantinopla até o século IX, quando a imperatriz Irene o ofereceu de presente a Carlos Magno. A peça está hoje na basílica francesa de Saint-Denys de Argenteuil – quer dizer, temos a certeza de que se trata do mesmo manto que o rei dos francos recebeu; se é ou não o mesmo que teria um dia vestido Cristo, há controvérsia. Até o fiel mais devoto deve permitir-se uma dose de ceticismo quando se trata de relíquias: como dizia João Calvino, se se juntassem todos os supostos fragmentos da cruz de Jesus que eram venerados em igrejas Europa afora, o resultado seria madeira suficiente para construir um navio. E ainda que se trate mesmo do manto de Jesus, como saber por quais peripécias ele teria passado até chegar ao seu paradeiro atual? <i>O Manto Sagrado</i> trata-se, na maior parte, de ficção (sendo que o autor toma, inclusive, diversas liberdades históricas), mas, para sermos justos, existem poucos livros tão eficientes em capturar a atenção e a imaginação do leitor, em apresentar personagens cativantes e em fazer-nos mergulhar de cabeça em outra realidade a ponto de perder a noção do tempo. Enfim, um estupendo "virador de página", que, além disso, cumpre com louvor seu objetivo evangelizador (Douglas era pastor luterano) sem cair num didatismo tedioso que acabe afastando o leitor – pecado (ops…) que muitos romances inspirados na <i>Bíblia </i>cometem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A história começa em Roma, seguindo o tribuno militar Marcelo Lucan Gallio. Como já mencionei em outros posts, os tribunos militares eram oficiais que se reportavam diretamente ao legado, ou seja, o comandante de uma legião, estando, por sua vez, acima dos centuriões. Em geral eram jovens de famílias abastadas e influentes, formados numa academia militar, mas sem experiência real de combate. Passando daí, havia tribunos e tribunos: enquanto alguns davam o seu melhor e arriscavam a vida participando ativamente de ações militares, outros apenas se aproveitavam das prerrogativas do posto. Marcelo, sinto dizer, tende mais para o segundo tipo; é filho de Marco Lucan Gallio, senador e homem de grande fortuna, e ainda mora na vasta e confortável <i>villa </i>da família, com os pais, a irmã adolescente, Lúcia, e um punhado de escravos. Está com 23 anos e, ao que tudo indica, articulando o início de sua carreira política, quando comete um infeliz deslize: num banquete, já com vinho demais na cabeça, ele cai no riso na hora errada e acaba ofendendo os brios do príncipe Gaio (ou Caio), enteado do imperador Tibério e responsável pela maior parte das decisões do governo desde que o imperador, já idoso, mudou-se de vez para seu palácio na ilha de Capri (já aí o autor tomou uma grande liberdade, mas voltarei a isso depois). Gaio já tinha queixas anteriores contra os Gallio, já que o pai de Marcelo, homem íntegro, por vezes o criticou em seus discursos no senado, por conta de suas extravagâncias e má administração. Ainda assim, a família possui muitas conexões e influência, de modo que o príncipe não pode permitir-se o tipo de vingança que teria preferido, mas faz o que está ao seu alcance: trança os pauzinhos para que o jovem tribuno perca a boa vida (e, mais importante, as possibilidades de ascensão política) que tem em Roma, destacando-o para comandar a guarnição de Minoa, uma cidade de pouca importância na Palestina. Marcelo, então, ruma para lá, acompanhado por Demétrio, seu escravo grego, que cumpre as funções de ajudante pessoal, guarda-costas, camareiro, leva-e-traz, e tudo o mais que for necessário.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Não dá para apontar um único protagonista em <i>O Manto Sagrado</i>; tanto Marcelo quanto Demétrio parecem se enquadrar nessa função. O tribuno já é um personagem interessante, mas o escravo é ainda mais. Filho de uma família próspera da cidade portuária grega de Corinto, é um rapaz instruído, criado para o orgulho, e agora reduzido à escravidão, depois que sua família caiu em desgraça devido ao envolvimento do pai com a resistência à ocupação romana. Ainda assim, ele teve mais sorte que muitos: o senador Gallio é um homem justo, e em sua casa os escravos são tratados de forma digna – sem prejuízo de uma disciplina rigorosa. Demétrio foi o presente que o senador deu ao filho quando este atingiu a maioridade (aos 17 anos, conforme a lei romana), e, nos seis anos que se passaram desde então, tem servido a seu jovem senhor com dedicação e lealdade. Marcelo, por outro lado, às vezes se esquece dos papéis de senhor e escravo: é nítido que Demétrio é seu melhor amigo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhiP8fjvRLtR6kyxkG9Cq6vuSHVXEAzZIdRK8BuUNw0v9ALfjhGQkYxN7suh9QgYO1l-V_-CFF2jeZVoSdqMJwV0g-K6O6eYENzBAWS2qI46IkFZ5WyRg30i2CG6qjIajvG5NGU7ujnb5LsB3XtXE7rBUYN9O62xK2BahUm2TP2tKpdWtfEA_8/s335/carti-lloyd-c-douglas.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="335" data-original-width="198" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhiP8fjvRLtR6kyxkG9Cq6vuSHVXEAzZIdRK8BuUNw0v9ALfjhGQkYxN7suh9QgYO1l-V_-CFF2jeZVoSdqMJwV0g-K6O6eYENzBAWS2qI46IkFZ5WyRg30i2CG6qjIajvG5NGU7ujnb5LsB3XtXE7rBUYN9O62xK2BahUm2TP2tKpdWtfEA_8/s320/carti-lloyd-c-douglas.jpg" width="189" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Tenho escrito repetidamente, em diferentes posts, que o segredo do extraordinário sucesso do exército romano na grande maioria dos conflitos em que se envolveu em sua longa história era a sua disciplina férrea, e isso é fato, mas não significa que essa disciplina fosse igual sempre e em todo lugar, como Marcelo descobre. A guarnição de Minoa é uma espécie de depósito de inconvenientes, um bando desmazelado e indolente cujos oficiais tampouco têm moral ou sequer energia para tentar colocar as coisas nos devidos lugares – uma caricatura deprimente da eficiência e da ordem exemplares que caracterizam as outras guarnições romanas… Até a chegada do novo comandante. Mesmo sem experiência, Marcelo possui fibra, e não perde tempo para colocar a guarnição na linha.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O jovem Gallio, portanto, está desempenhando com excelência a missão que era para ser um castigo, quando chega a época da Páscoa judaica (lembrando que, naquele tempo, a Palestina era um país predominantemente judeu). Marcelo, sem dúvida, estudou História com seus tutores e depois na academia, mas os judeus eram um povo tão periférico na geopolítica da época, que aparentemente só foram vistos de passagem nas aulas. É seu segundo em comando, o centurião Paulo, que já está na região há muito mais tempo, quem lhe explica o que aquela festa significa no contexto da religião e dos costumes judaicos. Além de recordar sua libertação do cativeiro no Egito mais de mil anos antes, a Páscoa (palavra que vem de <i>Pessach</i>, 'passagem') é para os judeus um lembrete de que todo homem e mulher são peregrinos neste mundo, de que a vida material é algo passageiro, apenas um caminho que trilhamos rumo à eternidade – mas Marcelo foi educado conforme as correntes filosóficas mais em voga entre gregos e romanos cultos, e não acredita no sobrenatural ou em vida depois da morte. Para ele e seus pares, a fé nos deuses não passa de uma fantasia inofensiva que ajuda pessoas pobres e desfavorecidas a encarar as durezas da vida, algo que os "superiores" olham com indulgência e um certo divertimento. (O senador Gallio ensina ao filho que "há sempre alguma coisa de basicamente errado com um homem rico ou um rei que finge ser religioso"; ele está se referindo especificamente a Tibério, que, como já vimos em <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2013/03/eu-claudius-imperador.html" target="_blank"><span style="color: red;">outro lugar</span></a>, era adepto de todo tipo de crença e superstição esdrúxula – e, para homens como Gallio, religião é só uma superstição institucionalizada. Não há no livro menção à religião romana original, a do culto familiar – muito mais antiga, enraizada e importante para os romanos que a crença nos Olimpianos –, e é possível que Douglas, como quase todo mundo, nada soubesse a respeito; para sanar essa lacuna, recomendo o livro <i>A Cidade Antiga</i>, de Fustel de Coulanges.) A crença dos judeus, que adoram um Deus único, parece a Marcelo igualmente ingênua, com a desvantagem de não oferecer o mesmo campo fértil para a para a poesia, a literatura e as artes, como a religião greco-romana.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O importante no momento, porém, é que, durante a Páscoa (que, entre os judeus, dura toda uma semana), a cidade de Jerusalém recebe multidões de peregrinos, ficando apinhada, e, é claro, qualquer lugar onde se reúna muita gente torna-se propício a agitações, de modo que, enquanto dura a festa, todas as guarnições romanas da Palestina têm que deslocar parte de seus efetivos para a Cidade Santa, a fim de ajudar a manter a ordem e desencorajar tumultos. Ao aproximar-se a primeira Páscoa desde que assumiu seu posto, Marcelo quer incumbir Paulo de comandar o destacamento que irá a Jerusalém, mas o centurião sugere irem os dois, dizendo que é o único acontecimento interessante do ano naquelas paragens, e o jovem comandante concorda em acompanhá-lo, levando Demétrio consigo, naturalmente. Acontece então que, na chegada a Jerusalém, já durante a semana da Páscoa e poucos dias antes do sábado (o dia que os judeus consagram à oração e ao repouso), Demétrio vê uma movimentação estranha, uma multidão agitando ramos de palmeira e gritando aclamações enquanto um certo pregador da Galileia, um tal Jesus de Nazaré, entra na cidade cavalgando um humilde burrinho (conforme Mt 21, 8-11). Seu olhar cruza com o do estranho por apenas um instante, e isso basta para causar ao jovem grego uma impressão profunda, que não lhe sai da cabeça durante os dias seguintes. O que acontece a seguir, todos os que conhecem o <i>Novo Testamento</i> sabem: Jesus é preso, julgado e condenado à crucificação – uma das piores maneiras de morrer conhecidas na época. E quem, senão o destacamento de Minoa, sob o comando do legado Marcelo Lucan Gallio, recebe ordem de cumprir a sentença?</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjzxk1-VUkdGcz05XTDX2qcUzmtKlp3RJuujMbanzS5q4X0DP7km_vmZXgm5W26AiyTUS-hAwEYB-wg6S_aRfV7KQzNRmRg9FR9kzMyKlaX4lKcueyHTDO2yXjDJlF_SItVizSXvXWs5hY-OUsjDo9jg_omrN_LgFZJjzA50g4lWEwnsMLSf0A/s421/ignazio%20jacometti.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="421" data-original-width="387" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjzxk1-VUkdGcz05XTDX2qcUzmtKlp3RJuujMbanzS5q4X0DP7km_vmZXgm5W26AiyTUS-hAwEYB-wg6S_aRfV7KQzNRmRg9FR9kzMyKlaX4lKcueyHTDO2yXjDJlF_SItVizSXvXWs5hY-OUsjDo9jg_omrN_LgFZJjzA50g4lWEwnsMLSf0A/s16000/ignazio%20jacometti.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">A crucificação, ou crucifixão (as duas formas existem) foi um método de execução que os romanos aprenderam com os macedônios, que o aprenderam com os persas, a quem possivelmente cabe o "mérito" da sua invenção. É pouco provável que a cruz de Jesus tivesse a forma que estamos acostumados a ver: normalmente os madeiros utilizados tinham forma de T, às vezes de Y, não sendo raro, ainda, que o "crucificado" fosse pregado a um simples poste, com os dois braços para cima. E, por falar em pregar, uma observação é necessária. Embora a prática de fixar o sujeito à cruz usando enormes pregos seja, sem dúvida, o detalhe mais horripilante de todo o processo, eles, na verdade, eram um mero acessório, destinado a aumentar o sofrimento do condenado e a tornar a cena mais assustadora para quem a visse, a fim de desencorajar outros de incorrer no mesmo crime que havia levado o homem a terminar assim. Tanto os pregos não eram essenciais que, por vezes, eram dispensados: ao final da revolta de <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/01/spartacus-deuses-da-arena-sangue-e-areia.html" target="_blank"><span style="color: red;">Espártaco</span></a>, em 71 a.C., quando seis mil de seus seguidores foram crucificados ao longo da Via Ápia, a certa altura os pregos acabaram, mas os executores continuaram a crucificar, simplesmente amarrando os condenados às cruzes. Os pregos não eram o verdadeiro tormento. Acontece que, quando uma pessoa fica durante horas dependurada, com a maior parte do peso do corpo sendo sustentada pelos braços, a musculatura do tórax entra em fadiga, tornando o processo de expandir e contrair os pulmões cada vez mais difícil e doloroso, até o condenado morrer de exaustão lutando para respirar. No caso de Jesus, ele havia sido açoitado, o que causou uma severa perda de sangue, e depois obrigado a carregar a cruz num longo percurso, o que certamente o cansou muito, e foram esses fatores que levaram à sua morte em apenas três horas a partir da crucificação propriamente dita; há registros que dão conta de que, quando um homem vigoroso era crucificado descansado e sem ferimentos prévios, podia demorar até vários dias para morrer. A exposição aos rigores do clima e aos ataques de insetos e de aves carniceiras eram acréscimos terríveis a uma pena já tão cruel.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O jogo de dados mencionado por São João é vencido por Marcelo, que leva o manto. A partir daí, porém, o episódio todo passa a assombrar o jovem oficial e o lança numa depressão profunda. Sendo um homem essencialmente decente, Marcelo ficaria inevitavelmente chocado ao testemunhar os horrendos detalhes de uma crucificação, mesmo que fosse a de um criminoso de verdade – e, para piorar, ele sente no fundo da alma que Jesus não só era inocente, como era um homem extraordinário e único. A angústia e o desespero são tamanhos que nem mesmo a chegada, logo depois, de uma carta de Roma, encerrando seu desterro e autorizando-o a voltar, consegue animá-lo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A ordem para que Marcelo deixe Minoa e volte para casa vem do próprio imperador, e isso acontece graças à intervenção de uma personagem importante, mas que ainda não tive a oportunidade de mencionar, a adolescente Diana, filha de um certo legado Asínio Galo – Diana é provavelmente fictícia, já seu pai, se não for histórico, ao menos tem um nome que o é: pesquisando a respeito, encontrei diversos Asínios Galos com variados graus de destaque na História romana; nenhum deles se encaixa perfeitamente no que é dito no livro sobre esse personagem, mas isso pode ser apenas resultado de outra liberdade do autor. Diana é amiga inseparável de Lúcia, a irmã de Marcelo, e tem uma paixão juvenil por ele, que, ao que parece, estava apenas começando a enxergá-la como mulher quando foi mandado para a Palestina. Ela é praticamente a única pessoa de quem o senil e rabugento Tibério parece gostar; trata-o de "vovô", embora na verdade seja neta de sua ex-esposa, de quem ele foi obrigado a divorciar-se, por motivos políticos, antes de ser imperador. Diana, então, habilmente tira proveito dessa proximidade com o velho monarca para conseguir que ele anule a ordem de Gaio, e Marcelo retorna a Roma – abatido e apático, uma sombra do homem que era. O senador Gallio, sempre sagaz, toma a correta iniciativa de chamar Demétrio para uma entrevista a portas fechadas. Dessa forma fica sabendo de todo o acontecido, e imediatamente conclui que, se alguém pode ajudar seu filho e talvez fazer com que ele volte a ser o que era, é seu fiel e esperto escravo, que talvez o conheça melhor que ninguém. E decide mandar os dois numa viagem para que Marcelo mude de ares…</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhUU_wTBBu-FOyzSMaqCGW77HCiGNDnT-FjbFrPK5qznGCvg1N3R8_-DaSiJ637eVTOi1PRPA81ZQrTsV1SsG-VVJ2AzGQKe77QHDQ2naMTPL_rrD88t8jbl5OXuHaKI0O2N8YgnwkR6x1n5xd3_jkwrtsoaIjmqZTsh45HnN9bD4y9-5FvLEU/s493/villa%20jupiter.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="350" data-original-width="493" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhUU_wTBBu-FOyzSMaqCGW77HCiGNDnT-FjbFrPK5qznGCvg1N3R8_-DaSiJ637eVTOi1PRPA81ZQrTsV1SsG-VVJ2AzGQKe77QHDQ2naMTPL_rrD88t8jbl5OXuHaKI0O2N8YgnwkR6x1n5xd3_jkwrtsoaIjmqZTsh45HnN9bD4y9-5FvLEU/s16000/villa%20jupiter.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">A partir daí, enquanto Marcelo e Demétrio visitam a Grécia e depois novamente a Palestina, seus destinos se entrelaçam definitivamente com os dos homens e mulheres cujas vidas foram tocadas, e mudadas para sempre, pelo misterioso pregador galileu. Vários personagens já conhecidos por quem leu os Evangelhos vão aparecendo, criando uma teia fascinante de encontros, histórias e atos admiráveis que leva à conclusão inevitável de que tudo sempre foi parte de um grande plano divino. O Manto (que Douglas grafa com maiúscula, afinal não é um manto qualquer) funciona como um catalisador de tudo isso. Num de seus piores momentos, Marcelo, na ânsia de livrar-se de qualquer coisa que o relembre do homem a quem crucificou, ordena a Demétrio que o queime – e, por essa única vez, o fiel coríntio desobedece a seu amo. A verdade é que o contato com o Manto o conforta de uma forma inexplicável, enchendo-o de serenidade e coragem, e em nenhum momento Demétrio duvida de que esse poder vem daquele que uma vez o vestiu. E, embora não saiba ao certo como, ele tem uma intuição de que, apesar do horror que a veste do galileu crucificado inspira em seu senhor, ela poderá acabar tendo um papel-chave em sua recuperação. Tanto Demétrio quanto Marcelo são homens instruídos e esclarecidos, o que, na mentalidade da época (pelo menos entre as elites), não era considerado conciliável com qualquer tipo de crença em divindades ou no sobrenatural – mas ambos sentem e concordam que havia no tal Jesus alguma coisa de extraordinário, algo que é muito difícil não chamar de <i>sobre-humano</i>. Essa convicção só aumenta à medida que eles vão descobrindo mais coisas a respeito de Jesus.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Conversando com aqueles que conviveram com Jesus, Marcelo rapidamente se convence de que o carpinteiro de Nazaré possuía uma sabedoria muitíssimo além de sua jovem idade, o que, à primeira vista, parece-lhe contraditório com o fato de que ele evidentemente acreditava, de verdade, que sua mensagem – um apelo à honestidade, generosidade e gentileza de todos para com todos – poderia encontrar eco no mundo real, tão cheio de ganância e injustiças; mas ele começa a compreender quando passa a notar a marca que o Nazareno deixou nas pessoas em toda parte por onde passou. Na aldeia de Caná, por exemplo (o local do primeiro milagre de Jesus), Marcelo conversa com Míriam, uma moça inválida em consequência de uma paralisia, que canta com a voz de um anjo as tradicionais canções judaicas (creio que os trechos reproduzidos são dos <i>Salmos</i>); ela teve um encontro com Jesus e, mesmo não tendo sido curada de sua enfermidade como aconteceu com muitos, recebeu uma cura ainda mais importante, a do espírito, transformando-se de uma pessoa rabugenta, amargurada com sua sorte, em uma alma meiga e serena, que transmite paz a todos os que a conhecem. Cito apenas esse exemplo para não estender demais o texto, mas há outros.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Empenhado em seu objetivo de evangelizar por meio de histórias, Lloyd C. Douglas utiliza-se dos pensamentos e sentimentos de seus personagens, bem como de certas conversas entre eles, para dar ao leitor um panorama do terreno intelectual onde a semente dos ensinamentos de Cristo foi primeiramente lançada. Como já comentamos, as pessoas instruídas da época, em geral, tinham suas ideias influenciadas por filósofos que eram, em sua maioria, céticos, ou, na melhor das hipóteses, agnósticos – só que algumas dessas pessoas instruídas questionavam as concepções desses filósofos, sentindo que não respondiam a todas as suas indagações. Demétrio sente que tem que existir <i>algo mais</i>, mas não consegue conciliar a crença na existência de um Deus todo-poderoso e bom (como aquele de que falam os judeus em geral e os discípulos de Jesus em particular) com o fato de tantas coisas tristes acontecerem no mundo – coisas como a destruição de sua família e sua própria escravização. Marcelo acredita, como seu pai, num mundo lógico e previsível, no qual cada causa tem seu efeito e cada efeito, sua causa, e onde as leis naturais não abrem exceções; o próprio conceito de "milagre" ofende sua inteligência… e, mesmo assim, quando sua depressão é repentinamente curada, ele sente um desejo instintivo de render graças a alguma entidade superior, só que não acredita em nenhuma. Essas inquietações são como que o primeiro passo num longo caminho que os dois jovens vão trilhar ao longo do livro, e que os levará a passar por transformações que nunca teriam imaginado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Essas transformações, porém, não afetam a todos por igual. Em Jerusalém, cerca de um ano depois da morte e ressurreição de Jesus, Demétrio faz amizade com um conterrâneo grego, Estêvão, um cristão que faz parte da primeira comunidade dos que creem na doutrina do Nazareno, comunidade essa à qual o próprio Estêvão deu o nome de Eclésia, palavra grega que significa 'assembleia' e daria origem ao nome "Igreja". E Estêvão confessa que, a despeito do ardor que as palavras e o exemplo de Jesus lhe inspiram, muitas vezes ele se sente decepcionado e desanimado ao ver as rivalidades mesquinhas e as brigas tolas que surgem a toda hora entre muitos daqueles que, para serem fiéis aos ensinamentos do Mestre, deveriam viver como irmãos. Além disso, essa primeira comunidade cristã tentou uma experiência que poderíamos chamar de "protossocialista": "Não havia uma só pessoa necessitada entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos, que, por sua vez, o repartiam conforme a necessidade de cada um." (At 4, 34-35) Assim como o socialismo, isso parecia uma boa ideia à primeira vista – mas, tal como o socialismo, só poderia funcionar (talvez) se <i>todo mundo</i> fosse trabalhador, honesto e comprometido com o bem comum, o que nunca será o caso, nem mesmo entre uma comunidade de seguidores de Jesus, quanto mais em todo um país. O resultado prático dessa experiência foi que aqueles que haviam doado mais dinheiro para a Eclésia ficavam achando que podiam mandar nela, e também que muita gente que não era chegada a trabalhar passou a se dizer cristã só porque assim teria um teto sobre a cabeça e comida na mesa sem precisar se esforçar (isso foi antes de começarem as perseguições). Esse sistema seria mais tarde abandonado, quando ficou evidente que era mais prejudicial que benéfico à causa de Cristo. Em tempo: Estêvão, ou melhor, Santo Estêvão, seria preso e condenado pelas autoridades judaicas à morte por apedrejamento (cena que Douglas descreve de forma resumida, mas nem por isso com menos impacto), e é considerado o primeiro cristão a ter dado a vida pela fé – o primeiro mártir. Sua história está contada nos capítulos seis e sete dos Atos dos Apóstolos.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgp7P4iWjJflQrCVsrEx1Qqd56cISYOV2rS2nAFaGrBD_2Keka57NK5J0PUb0mNrrxbqVHVL3SK3t831j7Mtpwn2BA7OzgHSooToZ2Mg_Nf07XmI0xWWxPpIW4k3jgfcAv05bXaDnRhN77nx4alNQkuBNRqg2KQM0hm4NYo0c4Fglcb5Dueu9k/s483/O%20Manto%2001.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="341" data-original-width="483" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgp7P4iWjJflQrCVsrEx1Qqd56cISYOV2rS2nAFaGrBD_2Keka57NK5J0PUb0mNrrxbqVHVL3SK3t831j7Mtpwn2BA7OzgHSooToZ2Mg_Nf07XmI0xWWxPpIW4k3jgfcAv05bXaDnRhN77nx4alNQkuBNRqg2KQM0hm4NYo0c4Fglcb5Dueu9k/s16000/O%20Manto%2001.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;"><i>O Manto Sagrado</i> foi levado às telas em 1953, numa superprodução dirigida por Henry Koster, com Richard Burton no papel de Marcelo, Victor Mature como Demétrio e Michael Rennie como o apóstolo Pedro, entre outros nomes de peso do cinema da época… Mas, para ser franco, e apesar da minha simpatia <i>a priori</i> por esses velhos filmes épicos e/ou bíblicos, não posso dizer que o recomende, pois o roteiro desvirtuou completamente o caráter dos dois personagens principais, bem como a relação entre eles, além de, a meu ver, simplificar a trama de uma maneira descabida. Se quiserem conferir, fiquem espertos para esses problemas – e, é claro, se puderem, não deixem de ler o livro, que, por sinal, bem que podia ganhar uma nova edição. A que eu li, emprestada por minha mãe, é do início dos anos 80, e, mesmo na época, representou um esforço quase arqueológico por parte do pessoal da editora Record, pois antes disso o livro havia ficado fora de catálogo no Brasil durante décadas. Ainda a respeito do filme e "adjacências", curiosamente houve um <i>spin-off</i>, como diríamos hoje: <i>Demétrio e os Gladiadores</i>, dirigido por Delmer Daves, lançado apenas um ano depois do filme de Koster, e claramente feito para surfar no sucesso deste. Também estrelado por Victor Mature, o filme mostra Demétrio sendo preso devido a uma falsa acusação e sentenciado à arena, onde acaba alcançando sucesso como gladiador, apesar de atormentado por dilemas de consciência causados pela incompatibilidade entre seu novo modo de vida e sua fé cristã. O roteiro também inclui a sedução do coríntio por Messalina, a esposa de Cláudio, tio e mais tarde sucessor do imperador Calígula (que havia sucedido Tibério). Nada disso foi escrito por Lloyd C. Douglas.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como eu disse no começo, Douglas permitiu-se diversas liberdades históricas. O Tibério que ele pinta é supersticioso tal como informavam os historiadores antigos, mas aparenta ser meramente um velhinho caduco, um tanto desagradável por vezes, mas, de modo geral, inofensivo, que se transferiu de Roma para Capri a fim de aproveitar seus últimos anos num lugar de clima mais salubre, dedicando-se ao que realmente gosta, a arquitetura. Se formos ler a <i>Vida dos Doze Césares</i>, de Suetônio, ou algum romance que siga a História mais à risca, como <i>Eu, Claudius, Imperador</i>, o Tibério que ali encontramos retratado é sanguinário, frequentemente mandando prender e executar pessoas por conta de sua paranoia – para não falar em suas supostas preferências sexuais sádicas. Já o príncipe Gaio, enteado de Tibério, corresponde ao personagem histórico de nome Caio Vipsânio Agripa, filho do primeiro casamento de Júlia, esposa de Tibério e única filha do imperador Augusto. Adotado pelo avô materno, Gaio/Caio teve o nome mudado para Caio Júlio César Vipsaniano, e teria sucedido a Augusto como imperador, caso não tivesse morrido no ano 4 d.C., aos 23 anos de idade – portanto, já estava morto há cerca de 30 anos na época dos eventos de <i>O Manto Sagrado</i>. É possível que sua morte tenha sido encomendada por Lívia, mulher de Augusto e mãe de Tibério, para possibilitar a ascensão do filho ao trono, mas nada jamais foi provado. Há também o caso de Calígula, sobrinho-neto e sucessor de Tibério, cuja ascensão acontece já perto do final do romance. Em <i>O Manto Sagrado</i>, é dito que ele tinha apenas 16 anos nessa ocasião, mas na verdade Calígula, ou Caio Júlio César Augusto Germânico, nasceu no ano 12, e Tibério morreu em 37; portanto, Calígula já tinha 25 anos ao tornar-se imperador, e 29 quando foi assassinado, no ano 41.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Essas liberdades históricas, entretanto, são facilmente perdoáveis. Se vejo algum defeito em <i>O Manto Sagrado</i>, é a evidente má vontade que o autor demonstra para com a civilização romana, retratando-a sempre como tirânica, opressora, corrupta, e pouca coisa além disso – no máximo, admitindo que um ou outro romano pode ser uma pessoa decente. Claro que é ingenuidade canonizar qualquer povo ou cultura, mas é igualmente ingênuo demonizá-los: a meu ver, pintar Roma como "O Mal" é um erro tão grande quanto acreditar que as Américas eram um paraíso antes da chegada dos europeus. O Império Romano inúmeras vezes fez prevalecer sua vontade pela força das armas, escravizou populações inteiras, e, como todos os impérios, deu oportunidade a todo tipo de autoritarismo e abuso de poder, mas também alavancou a economia e a cultura em suas províncias (melhorando as condições de vida para milhões de pessoas), levou a civilização a lugares que nunca a tinham visto, e mostrou aos povos bárbaros que outro tipo de vida era possível, um em que havia leis, direito, e no qual um homem podia prosperar por meio do próprio trabalho e inteligência; além de tudo isso, os romanos aprenderam, por necessidade, a tolerar diferenças, o que era algo mais ou menos inédito até então. Nas preleções que faz a Marcelo, o senador Gallio declara, com ares proféticos, que Roma um dia sucumbirá à revolta dos povos conquistados e dos próprios escravos que importou, dando a impressão de pensar que isso pode acontecer a qualquer momento… quando sabemos que, na verdade, o Império ainda existiria por mais quatro séculos e meio e deixaria no mundo uma marca que, para o melhor e para o pior, jamais seria apagada. Roma fez grandes coisas – coisas maravilhosas e também coisas terríveis, pois, afinal, era feita de seres humanos – mas, em todo caso, grandes coisas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>O Manto Sagrado</i> faz parte daquela categoria muito especial de livros que têm o dom de capturar o leitor logo nas primeiras páginas, mantê-lo hipnotizado até as últimas, e deixá-lo triste quando terminam. Na edição que li, o texto das orelhas reproduz trechos de uma entrevista com Lloyd C. Douglas, na qual ele contava que seu pai também era pastor e um grande contador de histórias, que "pensava em todas as pessoas da <i>Bíblia </i>como se estivessem vivas, e fazia com que parecessem vivas". Sendo assim, podemos atestar que o filho do Reverendo Douglas aprendeu bem as lições do pai, e que também fazia algo mais: misturava personagens bíblicos e/ou históricos com personagens de sua própria criação com tal habilidade que tudo parecia uma coisa só. Qualquer leitor cristão, não importa de qual denominação, fatalmente se emocionará com os exemplos de fé e heroísmo destas páginas, e <i>qualquer leitor</i>, seja cristão ou não, será inevitavelmente envolvido pela prosa fluente do autor.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-69070767837210309572019-11-21T23:50:00.073-04:002020-09-20T10:34:44.558-04:00A Hora do Vampiro<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilrBUQs2cAtg-qWiBxPlw5-9LPGD1zFI3jZeFRXaDNeXqVS2D3BgA2TI7QsGOqy4Ba0ugxoOHbxpweW6GP6CEtxRTk_ROgmU3ceBSxpNNbrh2f59XBQAfLNkgInUHTRy-gXC_mpQ/s320/nova-cultural.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilrBUQs2cAtg-qWiBxPlw5-9LPGD1zFI3jZeFRXaDNeXqVS2D3BgA2TI7QsGOqy4Ba0ugxoOHbxpweW6GP6CEtxRTk_ROgmU3ceBSxpNNbrh2f59XBQAfLNkgInUHTRy-gXC_mpQ/s16000/nova-cultural.jpg" /></span></a></div><i><div style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: georgia;">Havia uma igreja em ruínas no caminho, um antigo centro de reuniões metodistas, que erguia seus destroços na extremidade de um gramado estragado pelas geadas e cheio de elevações, e quando alguém passava por suas janelas vazias e sem sentido, os passos soavam muito alto, e o que quer que se estivesse assobiando morria nos lábios, e podia-se pensar em como aquilo devia ser lá dentro – os bancos tombados, os hinários apodrecidos, o altar desmoronado, onde hoje só os camundongos guardavam o domingo, e ficava-se pensando, o que poderia haver ali além dos camundongos – que loucos, que monstros. Talvez estivessem olhando para a pessoa com seus olhos amarelos, de répteis. E talvez não bastasse espiar, uma noite; talvez uma noite qualquer aquela porta rachada, mal pendurada, se abriria repentinamente e o que se veria ali levaria à loucura, com um só olhar.</span></i></div></i><p></p><p style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: georgia;">Não se poderia explicar isso à nossa mãe ou pai, que eram criaturas da luz. Assim como não se podia explicar-lhes que, aos três anos, o cobertor sobressalente ao pé do berço transformava-se numa coleção de serpentes que ficavam olhando para a gente com olhos planos e sem pálpebras. Nenhuma criança jamais vence esses medos, pensou ele. Se um receio não pode ser formulado, não pode ser vencido. E os medos trancados em cérebros pequeninos são grandes demais para passarem pelo orifício da boca. Mais cedo ou mais tarde, a gente encontrava alguém com quem caminhar por todas as casas de reunião desertas que se tem de passar entre a infância sorridente e a senilidade ranzinza. Até aquela noite. Até aquela noite, em que ele via que nenhum dos velhos receios fora vencido – apenas guardados em seus caixões pequeninos, de criança, com uma rosa silvestre espetada em cima.</span></i></p><p style="text-align: center;"><span style="font-family: georgia;">* * *</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">No post a respeito de <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/12/ao-cair-da-noite.html" target="_blank"><span style="color: red;">Ao Cair da Noite</span></a></i>, eu já havia dado breves pinceladas sobre o início da carreira de Stephen King, assinalando que, como muitos escritores de todos os gêneros, ele começou pelos contos, mais rápidos de escrever e mais fáceis de vender, somente passando aos romances quando já estava com o nome consolidado, com leitores fiéis e um currículo que obrigaria qualquer editor a, no mínimo, dar-lhe atenção. <i>Carrie </i>(1974) foi como que um trabalho de transição – um romance, mas relativamente curto, com menos de 200 páginas, como se o autor ainda estivesse se ajustando a escrever narrativas mais longas. Assim, podemos dizer que <i>'Salem's Lot</i> (1975) foi seu primeiro romance "padrão": foi com ele que King deslanchou como romancista.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Quanto ao título nacional, bem… O exemplar que tenho, e cuja capa estou reproduzindo aqui, é da edição de 1991 da Nova Cultural, um livro barato vendido em bancas de jornal – o único tipo de livro que eu, adolescente, tinha condições de adquirir, e mesmo isso, só muito ocasionalmente; a maior parte do que eu lia na época era emprestado da biblioteca pública. O que eu ia dizer, entretanto, era que, como costuma acontecer com essas edições baratas, essa foi publicada mediante licença da editora que havia publicado o livro antes e que detinha os direitos da tradução, no caso a Record. Isso significa que a primeira edição brasileira de <i>'Salem's Lot</i> saiu, provavelmente, alguns anos antes, portanto em meados dos anos 80, em plena febre dos filmes <i>A Hora</i>. Quem é macaco velho em matéria de cinema fantástico sabe do que estou falando; para os mais jovens, explico: durante boa parte daquela década mágica, existiu (no Brasil) uma convenção de que filme de terror, para fazer sucesso, tinha que ter o título começando com <i>A Hora</i>. Creio que isso tenha começado com <i>A Hora do Pesadelo</i> (<i>A Nightmare on Elm Street</i>, 1984), que inaugurou o que seria uma das franquias mais lucrativas do gênero, mas sobre a qual confesso que sei muito pouco. No ano seguinte surgiu <i>A Hora do Espanto</i> (<i>Fright Night</i>), de Tom Holland, por sinal um ótimo filme de vampiro. Depois que ambos os filmes foram sucessos de bilheteria no país, as distribuidoras nacionais passaram a rebatizar uma infinidade de produções de variados temas e qualidade ainda mais variada como <i>A Hora</i> disso e <i>A Hora</i> daquilo: tivemos <i>A Hora dos Mortos-vivos</i>, <i>A Hora das Criaturas</i>, <i>A Hora da Zona Morta</i>, <i>A Hora do Lobisomem</i> (os dois últimos baseados em livros de Stephen King), entre muitos outros. E o modismo, que surgiu no cinema, acabou respingando na literatura, o que valeu a <i>'Salem's Lot</i> o pífio título pelo qual ficou conhecido no Brasil. A capa desta edição, apresentando uma espécie de Drácula genérico, também não ajuda, mas, felizmente, eu já conhecia um pouco de King na época (tinha lido <i>Zona Morta</i> e <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/05/sombras-da-noite.html" target="_blank"><span style="color: red;">Sombras da Noite</span></a></i>), e por isso não permiti que o título nem a capa me detivessem. E, com título ruim ou não, <i>A Hora do Vampiro</i> é um vigoroso exemplo de Stephen King no melhor de suas capacidades.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">'Salem's Lot é uma contração de Jerusalem's Lot, nome da pequena cidade do Maine que serve de cenário à história. É bem claro que se trata da mesma cidade que aparece no conto <i>A Saideira</i>, presente na coletânea <i>Sombras da Noite</i>, mas fica-se em dúvida se será também a mesma de outro conto da mesma coletânea, intitulado <i>Jerusalem's Lot</i>. No livro de que estamos tratando, não há qualquer menção à amaldiçoada família Boone, ao livro profano <i>De Vermis Mysteriis</i> ou à sinistra mansão de Chapelwaite. Em vez dela, há outra mansão com reputação de assombrada, a Casa Marsten, cujo proprietário, então o homem mais rico de Lot e região, assassinou a esposa e logo em seguida suicidou-se, isso em 1939, décadas antes dos eventos narrados no livro, que se ambienta na mesma época em que foi publicado, meados dos anos 70. Benjamin Mears, escritor de certa fama, que morou na cidade durante parte de sua infância, decide passar uma temporada lá enquanto escreve um novo romance. Cerca de um ano antes, a fatídica Casa Marsten foi comprada, de forma sigilosa, por uma dupla de forasteiros que também adquiriram o prédio de uma lavanderia há muito fechada; sua intenção declarada é a de fixar residência na velha mansão e transformar a antiga lavanderia numa loja de móveis finos e antiguidades. Parece que os preparativos necessários foram demorados, pois, coincidência ou não, o homem que diz chamar-se Richard Straker e se apresenta como um dos sócios-proprietários da loja reaparece em Lot praticamente ao mesmo tempo em que Ben Mears chega. Straker, homem de aparência distinta, fala culta, modos misteriosos e calma imperturbável, diz a todos que seu sócio, Kurt Barlow, está em viagem de negócios, adquirindo itens para a loja, e só deverá aparecer na cidade dali a semanas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como foi dito, Ben está escrevendo um novo livro, que, diferente dos anteriores, terá uma pegada sobrenatural (olha a metalinguagem!), e, nas raras ocasiões em que consente em comentar algo sobre seu trabalho, confessa que parte da inspiração para ele veio da Casa Marsten e de experiências que teve quando garoto, ali em Jerusalem's Lot. Na biblioteca pública local, ele faz extensas pesquisas em jornais antigos, e, além das informações que procurava, acaba descobrindo algo inesperado e que pode ter implicações macabras: parece que desaparecimentos periódicos de crianças foram registrados em Lot sempre coincidindo com épocas em que a Casa estava habitada – e isso volta a acontecer agora. Os irmãos Glick, Danny, de 12 anos, e Ralphie, de nove, são surpreendidos por "alguma coisa" enquanto percorrem uma trilha na mata à noite; Ralphie desaparece e Danny volta para casa num estado de confusão mental, incapaz de dizer o que aconteceu ou que fim levou seu irmão. Poucos dias mais tarde, o garoto mais velho morre de algo diagnosticado como anemia perniciosa, embora nada em seu histórico médico sugerisse esse quadro ou qualquer tendência para ele. Todos sabemos que anemia significa, em linguagem médica, uma quantidade insuficiente de glóbulos vermelhos no sangue, geralmente devido à carência de ferro no organismo, mas é interessante atentar para a etimologia da palavra, que, se traduzida literalmente de sua origem grega, exprime um conceito bem mais simples: <i>an </i>(sem) + <i>hema </i>(sangue). Uma vez que sabemos isso, a coisa torna-se autoexplicativa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2uWArrUwlqh3RfaqoUz8EyWCV7PCFdC9FLikTEXGDvypslipfjh2R9BqHVKZt7oCsi3S6D3B5SkBK5UVfE8PY01WkW5a3tljZj8bMxDYOg96hXeZ_iUy1xBSedgFNdbuh6pD0fw/s476/glenn+chadbourne.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="476" data-original-width="253" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2uWArrUwlqh3RfaqoUz8EyWCV7PCFdC9FLikTEXGDvypslipfjh2R9BqHVKZt7oCsi3S6D3B5SkBK5UVfE8PY01WkW5a3tljZj8bMxDYOg96hXeZ_iUy1xBSedgFNdbuh6pD0fw/s16000/glenn+chadbourne.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Danny Glick é a primeira peça derrubada num tenebroso efeito dominó. Poucas pessoas sabem o que realmente está acontecendo em Jerusalem's Lot, e essas precisam lutar sozinhas, pois, se revelarem ao resto da sociedade local o que sabem, só conseguirão ser trancadas num manicômio. Impossível não lembrar de uma cena do filme <i>30 Dias de Noite</i> e de uma coisa que o líder de um grupo de vampiros diz ao repreender um de seus comandados por ter feito algo que punha em risco o segredo em torno da existência de sua raça: "Levou séculos para convencermos os humanos de que somos apenas uma lenda!" Na verdade, a mais clássica de todas as histórias de vampiro (<i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2010/03/dracula.html" target="_blank"><span style="color: red;">Drácula</span></a></i>, é claro) já trazia algo parecido, quando o Dr. Van Helsing declara que o maior trunfo do vampiro é que ninguém acredita em sua existência.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">King não faz qualquer tentativa de "modernizar" o mito: seus vampiros temem crucifixos, água benta, luz do sol, talvez até alho, e não podem entrar numa casa a menos que sejam convidados. Muitos autores desprezam tais noções, especialmente as que atribuem a objetos sagrados o poder de repelir os sanguessugas; no entendimento desses autores, isso tudo é fruto da ideia popular e antiga de que os vampiros estariam necessariamente relacionados às forças do mal, quiçá ao diabo em pessoa. Bem, parece que, para Stephen King, essas ideias, pouco importa o quão populares ou antigas, podem conter um fundo de verdade: não pode ser coincidência que, num romance sobre vampiros, haja tantas menções às ligações do falecido Hubert Marsten com cultos profanos e sacrifícios de crianças.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O pequeno grupo de heróis, capitaneado por Ben Mears, conta também com Susan Norton, uma jovem que ele conheceu ao chegar à cidade e com quem rapidamente se envolveu; Matt Burke, um veterano professor de inglês e literatura; Jimmy Cody, ex-aluno de Matt e hoje médico (que sempre me fazia pensar no Dr. Jack Seward, de <i>Drácula</i>); o padre Donald Callahan, vigário da paróquia católica de Jerusalem's Lot; e Mark Petrie, um garoto de 12 anos cuja coragem, força de vontade e autodomínio deixariam muitos adultos envergonhados. Mark desempenha o papel que crianças frequentemente têm em histórias fantásticas: sua mente, não limitada pelas amarras do "racional", aceita os fatos (por mais bizarros que sejam) quando eles se apresentam, e reage imediatamente, em vez de perder um tempo precioso tentando negar a realidade ou procurando "explicações plausíveis". Se é com vampiros que estamos lidando, vamos preparar as cruzes e as estacas! Ficar repetindo como um idiota que "vampiros não existem" não vai manter as presas deles longe do seu pescoço. Mark conta, ainda, com uma vantagem: conhecimento. Sendo um garoto de muita imaginação e com um gosto natural por coisas soturnas e misteriosas, é um ávido leitor de terror e, por isso, é quem melhor conhece as particularidades e os pontos fortes e fracos dos vampiros. Nesse quesito, supera Ben e Matt, embora ambos sejam homens cultos e já tenham lido a sua quota de histórias sobrenaturais.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Kurt Barlow, como se descobre, é apenas o nome atual de um ser que provavelmente já usou muitos outros ao longo dos séculos. Trata-se de um vampiro muito velho e muito poderoso; em certo capítulo, os caçadores invadem seu covil durante o dia, apenas para descobrir que ele antecipou seu movimento e foi esconder-se em outro lugar, deixando para eles uma carta muito polida e ligeiramente irônica. A carta é para o grupo, mas há algumas linhas dirigidas especificamente a cada um, e, na parte dedicada ao Pe. Callahan, Barlow revela que, embora há muito tempo ele tenha suas "diferenças" com a <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/12/manual-politicamente-incorreto-do.html" target="_blank"><span style="color: red;">Igreja Católica</span></a>, ela não é seu inimigo mais antigo: "Eu já era velho quando ela ainda era nova, quando seus membros se escondiam nas catacumbas de Roma e desenhavam peixes no peito, para poderem distinguir-se entre os outros. Eu já era forte quando esse clube lamuriento de comedores de pão e bebedores de vinho, que veneram o seu salvador-cordeiro, ainda era fraco." Portanto, estamos falando de um ser com mais de dois mil anos de idade – bem mais, se ele já se considerava velho quando a Igreja dava seus primeiros passos, pois sabemos que a palavra <i>velho </i>tem um significado diferente para um vampiro do que tem para um humano. Perto de Barlow, Drácula, com os quinhentos e poucos anos que teria se ainda fosse "vivo" nos anos 70, não passaria de um aprendiz. Do alto dessa vasta experiência acumulada, Barlow conhece bem a natureza humana, e sabe onde deve atacar primeiro ao fechar o cerco sobre Jerusalem's Lot. Qual o seu objetivo com isso? Mistério. Tudo o que podemos depreender é que tem a ver com Hubert Marsten, com quem o velho vampiro tinha ligações e, provavelmente, algum tipo de acordo. E ele ataca primeiro onde vê fragilidade: às vezes visa crianças, como no caso dos irmãos Glick, outras vezes pessoas que estejam emocionalmente abaladas, como Floyd Tibbets, o ex-namorado rejeitado de Susan, ou Corey Bryant, logo depois de ser pego em flagrante pelo marido de sua amante. Sendo um vampiro clássico, Barlow deve possuir todos os poderes que as lendas antigas atribuem a sua raça, ou, pelo menos, aos representantes mais poderosos dela: força descomunal, capacidade de controlar animais e sabe-se lá o que mais; Bram Stoker insinua que Drácula era capaz de controlar até mesmo as condições meteorológicas. Porém, ele prefere, sempre que possível, utilizar métodos mais sutis, em especial a hipnose. Depois de um instante de medo extremo, suas vítimas experimentam uma sensação de conforto e paz, uma noção de que basta entregarem-se para que todo o medo e sofrimento acabem. Para resistir a isso, é necessária uma tremenda força de vontade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Vou admitir, <i>'Salem's Lot</i> tem trechos deprimentes, sem relação direta com nada sobrenatural; o autor se permite explorar (nunca muito longamente, graças a Deus) a sordidez que constitui uma faceta inseparável da natureza humana – embora a natureza humana <i>não </i>se resuma só a sordidez, como certa classe de chatos parece sentir prazer em papagaiar. Uma jovem mãe que alivia sua frustração com a vida batendo no filho pequeno; uma anciã cuja razão de viver é conhecer segredos escabrosos dos outros habitantes da cidade e espalhá-los para o maior número de ouvintes que puder; um homem de negócios que suborna sem hesitar um de seus trabalhadores para que ele fique calado a respeito de possíveis evidências de um crime, e por aí vai. Outros trechos retratam momentos depressivos vividos por um ou outro personagem, como o Pe. Callahan, que enfrenta problemas com álcool e uma crise de fé. Pelo menos na minha leitura, as páginas dedicadas a isso tudo são necessárias: parece haver nas entrelinhas do romance como um todo uma insinuação de que, se todas as pessoas fossem fortes, íntegras, saudáveis e felizes, seres como Kurt Barlow não teriam poder, e talvez nem conseguissem sobreviver. Para se fortalecer e exercer seu poder, ele precisa das trevas – tanto as da noite quanto as da alma humana. Entretanto, o saldo final da história não é de puro pessimismo, já que existem pessoas corajosas dispostas a arriscar tudo para deter o mal. Ainda há esperança para nossa pobre espécie.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgXIq8AxTRGU8io2pWqxDOuqyHiay3ykGjL-CS7spZdaLXaSg_MsRJlkiVhDnaRkciJT5c-07767xtiNwHsKTL52FmnHsCas7ggJQYDVw-Te7TF-589I-wVywu30G-KjYPgO9M5mg/s481/david+palumbo.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="481" data-original-width="274" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgXIq8AxTRGU8io2pWqxDOuqyHiay3ykGjL-CS7spZdaLXaSg_MsRJlkiVhDnaRkciJT5c-07767xtiNwHsKTL52FmnHsCas7ggJQYDVw-Te7TF-589I-wVywu30G-KjYPgO9M5mg/s16000/david+palumbo.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Mesmo nessa fase inicial de sua carreira, King já demonstrava uma compreensão muito precisa de como o medo funciona, e também do fato de que existem diferentes tipos de medo. Há medos que são socialmente aceitos, porque considerados racionais, como o medo da violência urbana, do futuro incerto, da guerra, de doenças; esses são temores que as pessoas confessam com relativa facilidade, porque sabem que encontrarão empatia. Porém, há outros medos, como aquele que experimentamos tarde da noite, sozinhos em casa, deitados na cama, no escuro, incapazes de dormir, quando temos a sensação inexplicável de uma presença sombria no canto do quarto, ou poderíamos jurar ter ouvido algo se mover na peça ao lado – e não temos coragem sequer de esticar o braço para acender a luz, quanto mais de ir averiguar a origem do barulho. Horas depois, à luz do dia, esses temores parecem tolos, e a maioria de nós acharia muito embaraçoso confessá-los a qualquer outra pessoa, mas isso não muda o fato de que aquele momento de medo e suor frio durante a madrugada parece durar um século, e de que, enquanto dura, esse medo sem nome é absolutamente real. Racionalmente, eu sei que o medo do escuro nada mais é que uma herança dos nossos ancestrais primatas, que, nas savanas e florestas onde viviam, estavam sempre expostos aos ataques de predadores de olhos brilhantes e presas afiadas que preferiam caçar à noite. Sendo assim, e continuando a ser racional, reconheço que esse medo está obsoleto, já que dificilmente algum leopardo ou hiena vai invadir meu apartamento – e, não obstante, algo em mim parece impermeável a toda essa racionalidade, e, como resultado, o velho medo do escuro continua a dar as caras de vez em quando. Muito menos que quando eu era criança, é verdade, mas ele ainda aparece. Talvez as únicas pessoas imunes a isso sejam as totalmente desprovidas de imaginação, e isso não é coisa que se possa escolher… E, para ser franco, ainda que fosse possível, eu não escolheria. Como dizia <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/08/o-livro-de-areia_17.html" target="_blank"><span style="color: red;">Jorge Luís Borges</span></a>, não se pode matar os demônios sem matar junto as fadas.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Mas chega de poesia. Não há muito mais que eu possa dizer sobre <i>'Salem's Lot</i> sem dar <i>spoiler</i>, exceto que, como narrativa de terror, é de uma eficiência implacável. Além disso, como acontece com quase todos os trabalhos de Stephen King, é um texto de leitura fluente, que você percorre sem sentir, o que favorece enormemente a imersão do leitor na história. Esta edição da Nova Cultural tem alguns pequenos problemas, erros que provavelmente não devem ser creditados à tradutora Luzia Machado da Costa, mas à revisão e/ou ao pessoal da composição – confesso que não faço ideia de como era o passo a passo da produção de um livro no início dos anos 90. A respeito da tradução, eu gostei dela de modo geral, tenho a impressão de que preservou bem o sabor original da prosa de King, embora haja alguns detalhes meio estranhos, em especial o fato de que nomes de lugares ou estabelecimentos comerciais são quase sempre mantidos "inteiros" como no original; por exemplo, a colina onde fica a Casa Marsten também leva o nome dos antigos proprietários, e a tradutora a chama de "Marsten's Hill" – por que não Colina Marsten? Ao chegar a Lot, Ben aluga um quarto numa pensão cuja proprietária chama-se Eva, e mais tarde diz a Susan que está hospedado em "Eva's Rooms" (!). Um senhor de nome Milt Crossen possui um bar, açougue e mercearia ao qual a tradutora se refere como "Crossen’s Store"; a meu ver, seria muito mais natural dizer "Loja Crossen", ou "a loja do Crossen", já que o texto, depois de traduzido, está em <i>português</i>. Também é engraçado que os personagens chamem uma menina ou moça de "pequena": isso me faz lembrar as dublagens de certos filmes do tempo do onça (creio que a maioria era dos anos 50, e as dublagens devem ter sido feitas logo depois) que eram reprisados à exaustão na <i>Sessão da Tarde</i> quando eu era garoto. Pode ter sido proposital, uma tentativa de reproduzir na tradução uma linguagem meio arcaica que talvez ainda fosse ouvida em lugarejos interioranos dos EUA naqueles tempos sem internet e quando rádios e TVs eram basicamente regionais. De qualquer forma, quem for adquirir o livro agora encontrará a edição da Suma de Letras, que provavelmente tem uma tradução diferente.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><b>Curiosidade 1: </b>Quando Ben e seus companheiros invadem a Casa Marsten e encontram certo personagem morto, pendurado de cabeça para baixo, Stephen King se engana ao colocar na boca do Pe. Callahan que "São Paulo foi crucificado assim, numa cruz em forma de X, com as pernas quebradas". São Paulo não foi crucificado de nenhuma maneira, porque, embora de origem judaica, possuía cidadania romana, e nenhum cidadão romano podia ser crucificado, já que esse método de execução era tido como aviltante. Em vez disso, ele foi decapitado, o que, em comparação, era considerado uma morte misericordiosa e, se não propriamente digna, ao menos decente. Quem morreu da forma que King descreve (com a possível exceção das pernas quebradas, pois não encontrei referência a isso) foi Santo André, o padroeiro da Escócia – é por isso que a bandeira desse país ostenta uma cruz em forma de X, a "Cruz de Santo André". Segundo a tradição da Igreja, André, condenado à morte no ano 60, teria pedido a seus carrascos para crucificá-lo de cabeça para baixo, porque não se achava digno de morrer do mesmo modo que Jesus Cristo. Idêntico pedido fez seu irmão, São Pedro (o primeiro papa), ao chegar sua vez, sete anos depois. A Cruz de São Pedro tem a mesma configuração da cruz comum, só que invertida, e já era reconhecida como o emblema do santo séculos antes que os <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2017/05/alem.html" target="_blank"><span style="color: red;">satanistas</span></a> decidissem adotá-la como símbolo de oposição a Cristo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><b>Curiosidade 2: </b>Depois do prólogo e antes de começar a primeira parte de <i>'Salem's Lot</i>, intitulada <i>A Casa Marsten</i>, encontramos, como epígrafe, uma citação do livro <i>The Haunting of Hill House</i>, de Shirley Jackson, publicado em 1959 e que recentemente ganhou uma adaptação para a TV, produzida pela Netflix. A citação é aquela que ouvimos logo no início do primeiro episódio, na voz do mais velho dos irmãos Crain, o escritor Steven: começa com "Nenhum organismo vivo pode continuar a existir por muito tempo num estado de realidade total", e termina com "o que quer que caminhasse ali, caminhava só". Stephen King visivelmente segue seu próprio conselho, o que ele sempre oferece aos aspirantes a escritor: ler muito, e parece que dedica especial atenção aos autores que escrevem o mesmo gênero que ele.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>'Salem's Lot</i> foi filmado em 1979 como uma minissérie de TV em seis episódios, totalizando cerca de três horas de duração, e dirigida por Tobe Hooper, mais conhecido por causa do filme "ame-ou-odeie" <i>O Massacre da Serra Elétrica</i>, e que também dirigiu ao menos um episódio de <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/05/contos-da-cripta.html" target="_blank"><span style="color: red;">Contos da Cripta</span></a></i>. Alguns anos mais tarde, apareceu nas videolocadoras uma versão editada de duas horas, apresentada como um filme único, com o título <i>A Mansão Marsten</i>. Em 2004 saiu um <i>remake</i>, desta vez feito para o cinema, com direção de Mikael Salomon, Rob Lowe no papel de Ben Mears, Rutger Hauer (de <i>Blade Runner</i> e <i>O Feitiço de Áquila</i>) como Kurt Barlow, e Donald Sutherland (de <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/03/jogos-vorazes.html" target="_blank"><span style="color: red;">Jogos Vorazes</span></a></i>) como Richard Straker. Confesso que não vi nenhum deles (assim como no caso de <i>Christine</i>, preferi preservar minhas próprias imagens da história), mas, enquanto procurava na internet por ilustrações para este post, encontrei fotos do ator Reggie Nalder caracterizado como Barlow para a antiga minissérie… O visual foi obviamente inspirado em <i>Nosferatu </i>(1922), de Friedrich Murnau: assim como Nosferatu, o Barlow de Nalder tem os dentes incisivos centrais em forma de presas, ao invés dos caninos, como é o comum em representações de vampiros – o que lhe dá uma aparência asquerosa lembrando um rato. Além disso, é calvo e tem a pele azul (!). Nada a ver com a descrição que King faz de Barlow, que deveria ter um aspecto aristocrático e atraente, podendo aparentar a idade que preferisse. Optei por não usar nenhuma dessas imagens, já que se afastam tanto da visão do autor, mas, se tiverem curiosidade, é bem fácil achá-las no Google.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-66365462604042913992019-05-22T20:42:00.000-04:002019-07-31T21:11:06.554-04:00O Cemitério<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxDbLQBam2MIzWBKY6rhhZOBnZbF32IN0TtUrFtofXEqjaygP4Clutn9hf1VRjJ12F-Hk6LTC7qcklUCS1YuPYxrS1UqCztaltJHWxQ_GzIXZ46S1MvGrVWWeM7MufZPvOARbwdQ/s1600/pet+sematary.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxDbLQBam2MIzWBKY6rhhZOBnZbF32IN0TtUrFtofXEqjaygP4Clutn9hf1VRjJ12F-Hk6LTC7qcklUCS1YuPYxrS1UqCztaltJHWxQ_GzIXZ46S1MvGrVWWeM7MufZPvOARbwdQ/s1600/pet+sematary.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Exatos 30 anos depois de ser adaptado para o cinema pela primeira vez, um dos melhores e mais assustadores romances de <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/03/danca-macabra.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Stephen King</span></a> retorna às telas numa nova versão, que tem suscitado polêmica entre os fãs do mestre do Maine e entre os apreciadores de terror em geral. Há quem considere a versão de 1989, dirigida por Mary Lambert, superior, há quem prefira o <i>remake </i>que acaba de estrear, assinado pela dupla Kevin Kölsch e Dennis Widmyer, e também há quem não aprove nenhuma das duas versões e só recomende o livro. Certo, eu já escrevi sobre muitos filmes, quase sempre explorando suas conexões com a literatura, mas não sou um comentarista de cinema – para isso, precisaria fazer as coisas numa velocidade vertiginosa, de preferência através de um canal no YouTube em vez de um blog. Ocorre que, além de eu não gostar de falar para a câmera, ter que lidar com prazos exíguos tiraria a diversão da coisa, pelo menos para mim, sem contar que sou apenas um apreciador de cinema, não um profundo conhecedor do assunto. Por tudo isso, nunca pensei a sério na possibilidade. Entretanto, não poderia deixar de ir ao cinema conferir pessoalmente o novo filme, e, enquanto assistia, uma série de possíveis comentários foi vindo espontaneamente à minha cabeça, de modo que, ao sair da sessão, já estava mais ou menos óbvio que eu teria que escrever um texto (há textos que eu decido escrever ou não escrever, e há outros que simplesmente se impõem). Então, revi o filme de Lambert, reli trechos-chave do livro, que li há anos, e lá vamos nós.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Louis Creed, médico, está se mudando com sua família para uma grande e acolhedora casa de subúrbio no município de Ludlow, no Maine (é claro!), pois vai assumir a chefia dos serviços médicos no campus da universidade desse estado, que fica em Bangor, relativamente perto. A casa fica à beira de uma rodovia por onde caminhões pesados trafegam velozmente dia e noite, o que faz Louis e sua esposa, Rachel, adquirirem o hábito de manter sempre um olho nos filhos, Ellie, de cinco anos, e Gage, um bebê que há pouco começou a andar. O quinto membro da família é o gato de Ellie, de nome Winston Churchill, mas que, no dia a dia, é chamado de "Church" – uma abreviação de Churchill e que, convenientemente, também significa 'igreja', assim como não terá escapado ao leitor atento e conhecedor da língua inglesa que o sobrenome da família pode ser traduzido por 'credo', com o sentido de fé ou sistema de crenças. King não escolheu esses nomes por acaso. Na época em que <i>O Cemitério</i> teve origem, o escritor atravessava uma crise em sua vida pessoal por conta de sua dependência do álcool (e, segundo certas fontes, de outras drogas também), correndo o risco de a esposa deixá-lo e levar os filhos consigo. O medo da perda o levou a refletir sobre outras maneiras pelas quais uma pessoa pode perder seus entes queridos, sendo a morte, é claro, a maneira mais comum e também a mais dolorosa, por representar uma perda definitiva e irreversível. Qual seria (ele deve ter-se perguntado) a verdadeira relação da fé e da religião com tudo isso? Elas oferecem conforto diante da perda, mas aquilo tudo que ensinam sobre Deus e sobre a morte não ser o fim, seria real, ou apenas algo que a humanidade criou para suavizar a própria dor? E, em crise ou não, King continuava a ser um escritor, que é um tipo de criatura que nunca realmente para: esses questionamentos se misturaram com algumas outras ideias e, a partir disso, uma nova história começou a tomar forma. O resultado está nestas páginas, que estão, sem dúvida, entre as mais poderosas, sombrias e angustiantes já escritas pelo cara.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Em sua nova residência, os Creed têm como vizinhos mais próximos um homem de nome Judson Crandall ("Jud" para os amigos) e sua esposa, Norma, um casal idoso que morou toda a vida naquela região. É Jud, profundo conhecedor dos caminhos e das histórias locais, quem mostra a Louis e sua família o "simitério de bichos" (no original, <i>pet sematary</i>), como diz a placa toscamente pintada por alguma das crianças que têm usado o local já há décadas para sepultar seus animais de estimação, muitos deles vítimas do tráfego na estrada. O próprio Jud, em criança, enterrou um cachorro ali… Ou essa é a versão que ele conta, um pouco diferente da realidade, como o leitor descobrirá depois.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">A visita ao local acaba por causar na cabecinha da pequena Ellie sua primeira reflexão para valer a respeito da morte. Ela fica angustiada ante a ideia de um dia ter que dar adeus a seu querido Church, o que obriga Louis a ter com ela aquela conversa, sempre complicada, que todos os pais, mais dia, menos dia, precisam ter com as crianças sobre esse assunto. O médico lida com o problema de maneira bastante sensata, na minha opinião, mas sua esposa não parece pensar o mesmo… Na verdade, para ela, não há uma maneira sensata de encarar essa questão. Rachel tem uma fobia anormal à simples ideia da morte, e, se dependesse só dela, seus filhos cresceriam ignorando tudo a respeito. Mais adiante, descobriremos que esse medo irracional teve origem num episódio de sua infância – um episódio terrível.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrGH8iYnGcFtqp4f7QtLPVvTZNV7_EjcVgkRD7DaR5Qy2NjouBG0gGnUHWnCI2f77dibYluE0HfhiuCkn3Ll-OYAv1vdSAf47DHAPdoZgeIRworbqIBYAW6Zr2ycISGTHYC-A8Fg/s1600/cemit%25C3%25A9rio+micmac.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="354" data-original-width="542" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrGH8iYnGcFtqp4f7QtLPVvTZNV7_EjcVgkRD7DaR5Qy2NjouBG0gGnUHWnCI2f77dibYluE0HfhiuCkn3Ll-OYAv1vdSAf47DHAPdoZgeIRworbqIBYAW6Zr2ycISGTHYC-A8Fg/s1600/cemit%25C3%25A9rio+micmac.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Outro episódio terrível é o que tem lugar na universidade, bem no primeiro dia de Louis no novo emprego: um jovem estudante sofre um acidente de moto e tem a cabeça praticamente destruída ao colidir com o tronco de uma árvore. Quando o levam ao ambulatório chefiado por Louis, o médico percebe na hora que não há nada que possa ser feito para salvar a vida do rapaz, mas, ainda assim, ele e sua equipe se esforçam o quanto podem. Antes de exalar sua última respiração, o jovem, de nome Victor Pascow, sussurra para Louis algumas frases perturbadoras a respeito do <i>simitério </i>de bichos, em especial sobre ele "não ser o verdadeiro cemitério". Mais ainda: de alguma forma, Victor chama Louis pelo nome, embora os dois nunca se tivessem visto antes. O médico racionaliza tentando convencer-se de que Pascow apenas emitiu gemidos desconexos, e de que sua própria mente, perturbada pelo estresse extremo daquela situação, fez o resto, levando-o a acreditar ter ouvido palavras que na verdade não existiam. Naquela noite, ele tem um sonho (pelo menos, tenta acreditar que foi um sonho) no qual o fantasma de Victor aparece e o guia até o <i>simitério</i>, onde lhe mostra uma barreira de troncos que delimita o lugar e o adverte de que ela nunca, <i>jamais </i>deve ser transposta, por maior vontade que ele tenha de fazê-lo. Na hora, mesmo em meio à lógica toda peculiar dos sonhos, Louis pergunta-se qual o sentido de tal aviso: por que cargas d'água haveria ele de querer transpor a barreira? A resposta virá mais tarde, e não o deixará feliz.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Todo aquele território pertenceu, em tempos, aos índios Micmac, tribo que ocupava partes do que são hoje a Nova Inglaterra (região nordeste dos Estados Unidos) e o sudeste do Canadá. Não se enganem com o nome "engraçadinho": os Micmac eram guerreiros violentos, temidos pelos colonizadores e por outras tribos. Contudo, por mais ferozes que fossem, não eram adeptos do canibalismo – pelo menos, não sob condições normais. Quando, durante invernos especialmente longos e penosos (e os invernos daquela região não são brincadeira), eram forçados a isso, também eles recorriam a racionalizações: diziam que o <i>wendigo</i>, uma entidade maligna de seu folclore, os havia tocado, despertando um apetite incontrolável por carne humana. Os restos das vítimas dessas refeições macabras eram enterrados no alto de uma colina rochosa que – adivinhem – fica poucos quilômetros além do que é agora o <i>simitério </i>de bichos, em terra selvagem e onde só se pode chegar transpondo a tal barreira de troncos. Ao longo do tempo, os Micmac deixaram de usar o cemitério e passaram a evitá-lo, dizendo que o <i>wendigo </i>tinha azedado a terra e tornado aquele um lugar ruim. Porém, o velho cemitério indígena parece ter ganho um poder que não tinha nos tempos antigos. Louis descobre isso quando Church, no que pode ser considerado uma espécie de tragédia anunciada, morre atropelado na estrada. Por sorte (bem, pelo menos é o que parece), Rachel e as crianças estão viajando, o que lhe deixa algum tempo para pensar sobre como dar a notícia a Ellie. Mas Jud tem outra ideia. Ele guia Louis numa exaustiva jornada noturna até o cemitério Micmac, e é ali que, por razões que se recusa a explicar, ele insiste para que o médico enterre o gato da filha.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Louis, homem sem qualquer inclinação para o misticismo, sente com toda a clareza alguma coisa diferente e sinistra naquele lugar e na mata que o rodeia, e, uma ou duas vezes, a coisa não fica só no nível das sensações: desafio qualquer um a não ter calafrios ao ler o trecho em que ele e Jud ouvem "alguma coisa grande" se movimentando bem perto deles, sem que cheguem a ver seja o que for… Mas ouvem uma gargalhada louca, carregada de um triunfo maligno, soar ensurdecedora pela floresta escura. Palavra de honra, essa parte é assustadora até para quem está acostumado a ler Stephen King!… Naturalmente, na manhã seguinte, Louis terá se convencido de que o que ouviu se mover no mato era apenas um alce ou talvez um urso, animais que por vezes ainda aparecem nos bosques da região. E quanto à gargalhada? O grito de algum pássaro noturno, na certa. São mesmo incríveis os contorcionismos lógicos que as pessoas "racionais" são capazes de fazer para não enxergar os fatos, quando estes não se encaixam na maneira como elas acreditam que a realidade deva se comportar.</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiIkaClwcLqZ0lz7UCXQrMzedWxYcyCx2qTR0lElrDlqcnPFd0Cb8k6EnDKcxXorChY8AzflPp7Wol_kI8ZwdXfpS6IfoCUYTZfxKYVY-d_cwb6yRigmFsXDwSm81rmxg-aJLlshw/s1600/Wendigo.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="361" data-original-width="480" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiIkaClwcLqZ0lz7UCXQrMzedWxYcyCx2qTR0lElrDlqcnPFd0Cb8k6EnDKcxXorChY8AzflPp7Wol_kI8ZwdXfpS6IfoCUYTZfxKYVY-d_cwb6yRigmFsXDwSm81rmxg-aJLlshw/s1600/Wendigo.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Mais difícil é achar uma explicação "racional" quando Church reaparece em casa – vivo, ou assim parece – no dia seguinte. Porém, o gato está mudado: seu comportamento, seu jeito de mover-se, seu olhar, tudo está diferente e um tanto desagradável. Inquirido por Louis, Jud revela o segredo do velho cemitério Micmac: ele realmente tem o poder de trazer de volta à vida as criaturas que são enterradas ali, mas elas voltam mudadas, e não para melhor. Jud nem tem certeza se fez a coisa certa ao levar Louis lá, pois, como ele diz, às vezes é melhor estar morto. Conhecer uma maneira de (tentar) enganar a morte faz, inevitavelmente, com que as pessoas pensem em coisas que não devem ser pensadas… E, em momentos de grande sofrimento, um homem pode cometer grandes erros. Parece haver algum tipo de consciência maligna, sem forma, envolvendo o antigo cemitério, uma consciência que, segundo Jud, já teve grande poder, e ele receia que esteja refazendo suas forças, explorando as fraquezas dos seres humanos, que, tendo visitado o lugar uma vez, acabam achando razões para voltar… E para levar outros até lá.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><i>O Cemitério</i>, na minha opinião, pertence ao tipo de terror mais aflitivo. Envolve elementos sobrenaturais, sim, mas também nos coloca cara a cara com o que há de tenebroso e aterrador dentro de nós mesmos. Seja lá o que for a mente sem corpo que habita o cemitério Micmac, ela não teria poder se não encontrasse nas mentes das pessoas o material de que precisa para trabalhar: o medo da morte e o impulso irracional de fazer tudo, qualquer coisa, para escapar da dor – e, para seres como nós, capazes de amar, poucas dores podem ser maiores que a da perda de um ente querido. A "coisa" sabe disso muito bem.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<span style="color: #cc0000; font-family: Georgia, Times New Roman, serif; font-size: large;">Os Filmes</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Até aqui, eu estava falando sobre o livro. Agora, quando me preparo para entrar no assunto dos filmes, percebo que será inevitável dar alguns <i>spoilers</i>. Portanto, se vocês estiverem lendo isto antes de terem lido e/ou assistido, sugiro que parem aqui mesmo, leiam, assistam, e depois voltem (voltem mesmo!) para ler o restante do <i>post </i>(deixar um comentário também não dói nada!). Ou continuem por sua conta e risco, como preferirem. Vocês foram avisados! Vamos em frente.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">A primeira versão de <i>Pet Sematary</i> para o cinema não é nenhum portento, mas tem o grande ponto positivo de ser bem mais fiel ao livro que essa nova – e tem excelentes razões para ser, já que o próprio Stephen King adaptou o romance para a tela e acompanhou de perto toda a produção, além de, como era seu costume em filmes baseados em obras suas, fazer uma ponta: aqui, ele interpreta o ministro religioso (metodista, provavelmente) que aparece oficiando um funeral. Por outro lado, não é um filme de atuações brilhantes. A melhor é provavelmente a do veterano Fred Gwynne como Jud Crandall; o restante do elenco exibe variados graus de canastrice, embora seja um tanto penoso para um fã de longa data de <i>Jornada nas Estrelas</i> dizer isso: no papel de Rachel está ninguém menos que Denise Crosby, <i>crush </i>de nove entre dez <i>trekkers </i>quando interpretava a tenente Tasha Yar, oficial de segurança da Enterprise em <i>Jornada nas Estrelas: a Nova Geração</i> (e só não o era de todos os dez porque a tripulação também incluía a conselheira Deanna Troi, interpretada por Marina Sirtis). Caramba… Isso já faz cerca de 30 anos e Denise é hoje uma senhora de 61!… Mais uma coisa para acrescentar às reflexões sombrias de Louis Creed sobre a passagem implacável do tempo e a brevidade da vida humana.</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgk25KwgaIfLhvnuJOapCUpM2j6o5pmjETpEDgXU8VAStebqjUt7uNcTB1p_Jq7k_tZl1N_kD44XZF8ecaN6_na5JBjy1Doj4ChxZrHQTv-rzZJvtYVSVHylQ-6m6KYoJ7UV-M9Jg/s1600/king+in+the+screen.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="346" data-original-width="532" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgk25KwgaIfLhvnuJOapCUpM2j6o5pmjETpEDgXU8VAStebqjUt7uNcTB1p_Jq7k_tZl1N_kD44XZF8ecaN6_na5JBjy1Doj4ChxZrHQTv-rzZJvtYVSVHylQ-6m6KYoJ7UV-M9Jg/s1600/king+in+the+screen.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Isso, por sinal, já é um exemplo do quanto literatura e cinema são <i>mesmo </i>linguagens diferentes: nenhum dos dois filmes inclui as reflexões de Louis, nem poderia, já que a única maneira de fazê-lo no cinema seria por meio de longos trechos discursivos, o que afetaria o ritmo e seria tedioso. No livro, as numerosas passagens que reproduzem os pensamentos do protagonista são essenciais para entrarmos no clima e adquirirmos a compreensão dos problemas que vão ser tratados – e, pelo menos para mim, essas passagens não se tornam entediantes em momento algum. <i>Entediantes</i>, não… Já quanto a deixarem o leitor um tanto <i>down</i>, é outra conversa. Quando Louis percebe que seu filho de um ano e pouco está finalmente começando a ter cabelo de verdade, deixando para trás aquela fase de penugem que a maioria dos bebês tem no início da vida, isso, claro, é motivo de comemoração… mas, nas profundezas de seu íntimo, uma parte sua chora, porque o cabelo de Gage é mais um dentre tantos lembretes de que a areia na ampulheta está correndo para Louis tal como para o garoto… Com a diferença de que Gage está crescendo, indo rumo ao auge de sua vida, enquanto Louis, nos seus 30 e poucos anos, já entrou na espiral de decadência que, mais dia, menos dia, terminará num túmulo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;"><br /></span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Outra coisa que os espectadores de qualquer um dos filmes jamais saberão até que leiam o livro é que, ao contrário de sua esposa, Louis tem um <i>background </i>que deveria (ou, ao menos, isso seria de se esperar) torná-lo mais apto a encarar a ideia da morte de uma maneira serena e natural: seu tio, Carl Creed, era agente funerário, e Louis passou alguns períodos trabalhando com ele, durante suas férias do colegial e início da faculdade (o famoso "emprego de verão" dos estudantes americanos). Carl era, antes de tudo, um homem prático, o que deve ser imprescindível nesse ramo de trabalho, e Louis, como seu aprendiz, assimilou um pouco do <i>feeling </i>da coisa: é preciso ter sensibilidade para lidar com uma família enlutada, mas, ao mesmo tempo, suficiente frieza para não se deixar abalar – duas capacidades tão úteis a um médico quanto a um agente funerário. Não que isso tudo deixe alguém preparado para sentir a perda na própria carne, como Carl e Louis perceberam quando Ruthie, filha do primeiro e prima favorita do segundo, morreu num acidente em plena adolescência. Tudo isso nos é revelado por meio dos pensamentos e lembranças de Louis. Mas já chega de falar do que os filmes <i>não </i>têm: vamos ver o que cada um deles tem.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><i>Spoiler </i>número um: no primeiro filme, tal como acontecia no livro, Gage, pouco tempo depois de seu segundo aniversário, morre atropelado na estrada, e Louis, transtornado pelo sofrimento, decide violar seu túmulo e enterrar o menino no cemitério Micmac, na esperança de "tê-lo de volta". Mais uma vez, o livre acesso à cabeça do protagonista, que temos no livro e não nos filmes, faz uma falta incrível. Um dos pontos-chave da história, talvez até o mais importante de todos, é a maneira como a influência daquela presença sombria no cemitério afeta a mente das pessoas, e, por consequência, a lenta, gradual e inexorável transição da sanidade para a loucura. Louis já fora severamente advertido por Jud de que não deveria nem pensar nessa possibilidade, e ouvira dele a história da única vez (pelo menos, até onde ele sabe) em que um ser humano foi enterrado no local: um jovem da cidade que morreu na França durante a <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/09/inverno-do-mundo.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Segunda Guerra Mundial</span></a>, e cujo pai, incapaz de aceitar a perda, foi em frente e realizou o ato blasfemo. O morto, que em vida fora um bom rapaz, normal sob todos os aspectos, voltou transformado numa coisa maligna e odiosa, que o próprio pai, arrependido, acabou por matar <i>de novo</i>. O filme de Mary Lambert, aliás, estraga completamente o efeito dessa história ao pintar o soldado ressuscitado como um zumbi sem inteligência, perigoso, sem dúvida, mas da mesma forma como um animal irracional é perigoso: sem dolo, sem intenção maligna, apenas agindo de acordo com sua "natureza", se é que algo nisso pode ser considerado natural. No livro, ele era <i>muito </i>racional, e demoníaco, cruel. Há também o caso de Church, agora um bicho estranho cujo simples olhar causa calafrios, e que seus donos sentem repugnância de tocar. Em resumo, ninguém pode dizer que Louis não foi avisado, mas ele encontra mil e uma desculpas e racionaliza o impulso insano que está sentindo, convence-se de que, mesmo que Gage volte "um pouco diferente", ainda será seu filho, e assim por diante. Fica no ar a mórbida sugestão de que Louis, que, por tudo o que sabemos sobre ele, é e sempre foi um homem sensato, nunca faria o que acaba fazendo se não fosse pela influência <i>daquilo </i>que habita o antigo cemitério indígena – mas, ao mesmo tempo, a entidade sombria não poderia manipulá-lo se já não houvesse uma brecha por onde conseguisse entrar. Tudo isso é perdido nos filmes, assim como as visões fugidias e apavorantes de uma coisa inominável que habita os pântanos entre o <i>simitério </i>de bichos e o cemitério Micmac. Inominável?… Não para os índios, que tinham, sim, um nome para ela: <i>wendigo</i>.</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhWd2Dv9okbxnC6OJck1eyMb8KKV8uBXVs-GzF4TdQMVTGm4AGV-_K1A0oPOiryLHuD823C-uCLXWAX-MgJrwUySjZkhdnYGa9M6JxJ_m4ZhUCiyuYnrPGGQbPraS5JWcR_8-sR2g/s1600/rachel+%2526+victor.jpg" imageanchor="1"><img border="0" data-original-height="365" data-original-width="562" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhWd2Dv9okbxnC6OJck1eyMb8KKV8uBXVs-GzF4TdQMVTGm4AGV-_K1A0oPOiryLHuD823C-uCLXWAX-MgJrwUySjZkhdnYGa9M6JxJ_m4ZhUCiyuYnrPGGQbPraS5JWcR_8-sR2g/s1600/rachel+%2526+victor.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: Georgia, "Times New Roman", serif;">Se eu for considerar apenas o apuro técnico e a qualidade geral da produção, terei que dizer que o filme de Kölsch e Widmyer é superior, pois demonstra mais senso de cena e de ritmo, a narrativa na tela flui melhor, e os atores manjam bem mais da arte de representar que os do filme anterior, além, é claro, de tudo o que se pode fazer com toda a tecnologia de que o cinema não dispunha em 1989 e da qual dispõe hoje… Também gostei muito da ideia de fazer com que o ronco do motor dos caminhões na estrada pareça o rugido de alguma enorme fera, pois cai muito bem no papel que eles terão a desempenhar. Por outro lado, confesso que me irritam esses cineastas que fazem mudanças absurdas nas histórias, não aquelas mudanças necessárias e inevitáveis quando se está adaptando um livro para a tela, mas mudanças sem qualquer justificativa possível, parecendo motivadas tão somente pela vontade de ser diferente, de "imprimir uma marca autoral" e outras estultices desse gênero. O que nos leva ao <i>spoiler </i>número dois: no filme novo, é Ellie (que, por sinal, virou uma garota bem mais velha, de nove anos) quem é atropelada, e não Gage. Agora me digam: o que essa mudança acrescenta? Trabalhar com criança em filme de terror deve ser extremamente difícil, mas, quando é bem feito, o resultado é horripilante, e, quanto menor a criança, maior o impacto. Uma menina de nove anos agindo de forma demoníaca não tem o mesmo efeito que um bebê de dois anos fazendo o mesmo, isso para não mencionar o fato irritante de terem mexido na história sem a menor necessidade. É verdade que o novo filme tem vários acertos, um deles a cena em que Louis, interpretado pelo ator Jason Clarke, deita-se ao lado da filha (ou da coisa que parece ela) para "fazer companhia até que adormeça". Nesse momento, ele já começou a perceber o tamanho do erro que cometeu, e ver um homem adulto morrendo de medo da garotinha cujas fraldas trocou é, sem dúvida, bastante perturbador. O final também não me agradou, pois o filme termina com a família novamente reunida – de uma forma grotesca e macabra, é verdade, mas, ainda assim, reunida, o que põe a perder a mensagem mais pungente que havia na obra original, a de que a separação imposta pela morte é dolorosa, mas é algo com que precisamos aprender a conviver, pois nada de bom pode vir da sua não aceitação.</span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;"><br /></span></div>
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<span style="font-family: Georgia, Times New Roman, serif;">Enfim, não tenho como dizer que nenhum dos dois filmes é excelente, mas as broncas que tenho do de Mary Lambert são de relevância muito menor: basicamente deficiências técnicas e coisas do tipo, como o fato de pelo menos duas cenas importantes, que, no livro, aconteciam à noite, se passarem em plena luz do dia – obviamente porque filmá-las à noite seria muito mais trabalhoso e caro. Já meu descontentamento com o filme de Kölsch e Widmyer é mais profundo, ligado a questões da própria estrutura da história. Por isso, se vocês só quiserem ver um filme baseado em <i>Pet Sematary</i>, minha sugestão é que escolham o primeiro, que, com todos os problemas que possa ter, ao menos tem o mérito de tentar ser fiel à história que lhe deu origem. E, independentemente do que decidam em relação aos filmes, não deixem de ler o livro, que é nada mais nada menos que Stephen King em sua melhor forma.</span></div>
Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-64610273208884602742019-04-29T11:03:00.000-04:002019-08-29T11:24:48.381-04:00A Noite dos Tempos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgs9IQyp8eUCwe3hVdX_4eHos_33sT7uxtKCIL9Lj82RG4mN4FJDOCHcUDj0i90JdKKU3PpV3cKB6Ozd-4ZSsAliDfxJkk2OAURXjrc-uuWcn1dZPgp4z4WLPjorfl_xPX3DviUWQ/s1600/630716.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgs9IQyp8eUCwe3hVdX_4eHos_33sT7uxtKCIL9Lj82RG4mN4FJDOCHcUDj0i90JdKKU3PpV3cKB6Ozd-4ZSsAliDfxJkk2OAURXjrc-uuWcn1dZPgp4z4WLPjorfl_xPX3DviUWQ/s1600/630716.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">René Barjavel (1911-1985) é um autor pouco conhecido entre nós, embora seja considerado um nome-chave da ficção científica não só em seu país de origem, a França, mas em toda a Europa continental, onde esse gênero nunca chegou a ter a mesma força que nos países de língua inglesa. Foi provavelmente o primeiro a formular o célebre "problema do avô", que ilustra bem o paradoxo envolvido na teoria das viagens no tempo: se um homem viajar para o passado e matar o próprio avô (ou outro ancestral) antes que ele gere uma descendência, esse homem nunca existirá – mas então, quem foi que matou o tal avô? A questão aparece no livro <i>Le Voyageur Imprudent</i> ('O Viajante Imprudente', de 1944). Algumas das obras de Barjavel foram publicadas no Brasil durante os anos 70 pela editora Artenova, e foi por meio de uma dessas edições que, já no início dos 90, eu travei conhecimento com <i>A Noite dos Tempos</i>, isso na biblioteca do SESI, a mesma à qual já prestei tributo aqui <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/search/label/Michel%20Grimaud" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">antes</span></a>. O exemplar que tenho hoje, e no qual acabo de reler a história, foi adquirido numa daquelas caixas de saldos, na última ou penúltima Feira do Livro de Porto Alegre a que compareci, e é da edição do Círculo do Livro (que, curiosamente, não datava suas publicações), aproveitando a mesma tradução, com algumas adaptações. A capa que aqui reproduzo é a dessa edição.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Embora parte de seus primeiros anos tenham coincidido com a <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/03/queda-de-gigantes.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Primeira Guerra Mundial</span></a>, parece que a infância de Barjavel foi relativamente tranquila, vivida em sua cidade natal, a pequena Nyons, perto de Marselha. Era filho de um padeiro, e sua admiração pela maestria do pai em seu ofício o influenciaria para sempre: em diferentes trechos de suas obras, o escritor demonstra a convicção de que mesmo as profissões mais humildes são motivo de orgulho, se exercidas com dedicação e excelência. Apesar disso, nunca quis seguir os passos do pai: leitor voraz que era, desde muito cedo almejou fazer carreira no jornalismo e na literatura, como de fato aconteceria. Durante o início da <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/09/inverno-do-mundo.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Segunda Guerra Mundial</span></a>, serviu como despenseiro do exército, sendo desmobilizado em 1942. Publicou seus primeiros trabalhos durante os anos seguintes, enquanto a França ainda estava ocupada pelos alemães; depois do fim da guerra, chegou a ser apontado como colaboracionista, por ter tido textos publicados num jornal pró-nazista que tinha o sugestivo e vagamente ameaçador nome de <i>Je Suis Partout</i> (literalmente, 'Eu Estou em Toda Parte'), mas acabou inocentado, e vamos concordar que o escritor não tinha muita opção, se é que tinha alguma: durante aquele período, era muito difícil publicar o que quer que fosse na França sem passar pelo crivo dos nazistas. Durante os 40 anos seguintes, Barjavel publicou 16 romances, além de contos, crônicas e ensaios, tudo paralelamente a sua atividade como jornalista. Também teve envolvimento com o cinema, tendo sido amigo do famoso diretor André Cayatte, cujo filme <i>Les Chemins de Katmandou</i> ('Os Caminhos de Katmandu', de 1969) teve por base o romance homônimo de Barjavel. Aliás, <i>A Noite dos Tempos</i>, publicado originalmente em 1968, é dedicado a Cayatte, e lembro que, na edição que li primeiro, o texto da orelha referia, de passagem, que, ao tempo em que saiu essa edição (1975), o escritor e o diretor estavam trabalhando juntos em sua adaptação para o cinema. Pelo visto, o projeto não foi para a frente: não há nenhum filme que pareça corresponder ao livro, seja na filmografia de Cayatte ou no extenso rol dos trabalhos de Barjavel para o cinema.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>A Noite dos Tempos</i> tem um enredo fascinante, que evoca mistérios de um passado desconhecido, perdido para a memória humana há centenas de milhares de anos, que, inopinadamente, vem à tona. Tudo começa quando a base francesa de pesquisa científica na Antártida recebe um novo tipo de sonda destinada a fazer levantamentos do relevo subglacial, ou seja, descobrir como é o solo do continente antártico, sepultado há milênios debaixo de centenas de metros de gelo e neve. O novo aparelho, bem mais sensível que seus congêneres tradicionais, detecta algo de inacreditável: sob quase mil metros de gelo, ele encontra estruturas que não podem ser naturais, pois possuem formas regulares, geométricas. São colunas, escadas, cúpulas, em sua maioria quebradas e desmoronadas, mas ainda reconhecíveis. Numa palavra, ruínas. Ruínas de construções que só podem ser obra de homens (ou de algum tipo de criatura inteligente e habilidosa), mas que, pela profundidade onde se encontram, devem datar de pelo menos 900 mil anos, época em que, por tudo o que se sabe, o hominídeo mais sofisticado existente era o <i>Homo erectus</i>, cuja tecnologia não ia além de algumas ferramentas e armas simples de pedra, osso e madeira. A sonda descobre também outra coisa: um sinal de rádio cuja origem parece estar em algum lugar em meio às tais ruínas.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A descoberta, que revoluciona tudo o que se sabia sobre o passado da espécie humana e do próprio planeta, causa o alvoroço que seria de se esperar. A França, sozinha, não dispõe dos recursos e da tecnologia que serão necessários para uma escavação desse porte e a exploração do que quer que venha a ser encontrado, então a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) convoca uma Expedição Polar Internacional (EPI) reunindo, além dos franceses, delegações dos Estados Unidos, União Soviética, Japão e demais potências, de modo que o empreendimento passa a contar com a última palavra em equipamento, maquinário e pessoal especializado, oriundos de todas as partes do mundo.</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimC5onhQ7s018GE1ZsTTUUVz6xe_8YvS-DDqiTAe8agXFpj-uYSNkYB2remsKJWtKSsj_1KtOe3vc5TMWPff_LV4e7yOqFiOZK6IVDpadIQZG5NAgtbaWlilkkpqBcAk_RIAF2Mg/s1600/Ren%25C3%25A9+Barjavel_16.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="334" data-original-width="198" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimC5onhQ7s018GE1ZsTTUUVz6xe_8YvS-DDqiTAe8agXFpj-uYSNkYB2remsKJWtKSsj_1KtOe3vc5TMWPff_LV4e7yOqFiOZK6IVDpadIQZG5NAgtbaWlilkkpqBcAk_RIAF2Mg/s1600/Ren%25C3%25A9+Barjavel_16.jpg" /></a></div>
<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">(Uma pessoa fica pensativa e um tanto melancólica ao dar-se conta de que, no tempo em que Barjavel escrevia, a UNESCO ainda devia ser de fato uma instituição que trabalhava seriamente pela ciência e pela cultura, em vez de pôr-se a serviço de estranhos projetos de engenharia social idealizados por grandes fundações internacionais, sabe-se lá com que objetivos tenebrosos.)</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Conforme as escavações progridem, o que vai sendo encontrado (construções, artefatos, máquinas) é de uma estranheza quase alienígena. A civilização que criou tais coisas era, indubitavelmente, humana, mas não parece ter vínculo algum com nada que a História ou a arqueologia conheçam. Aquele povo antigo parece ter alcançado conquistas tecnológicas com as quais a civilização contemporânea apenas sonha, ou nem isso. Seguindo o sinal de rádio, os exploradores da EPI descobrem uma gigantesca esfera feita de ouro maciço, que parece ser uma espécie de cápsula e apresenta um novo desafio, pois, embora o metal amarelo nunca tenha sido notório por sua resistência, aquele parece quase indestrutível. Quando finalmente conseguem abrir a esfera (usando uma nova e revolucionária ferramenta que utiliza laser e plasma ao mesmo tempo), o que encontram supera a imaginação mais extravagante: um homem e uma mulher, congelados em hélio sólido à temperatura do zero absoluto (273 graus centígrados negativos, a temperatura mais baixa possível segundo as leis da física, e que a tecnologia moderna nunca conseguiu atingir). E, por tudo o que se sabe, podem estar vivos e talvez seja possível reanimá-los.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Tanto na época em que <i>A Noite dos Tempos</i> foi escrito quanto hoje, o congelamento de um ser humano vivo e sua posterior reanimação eram, e são, meras possibilidades teóricas; nada do tipo jamais foi efetivamente feito. Sendo assim, os médicos responsáveis pelo ousado procedimento decidem começar pela mulher, porque ela parece estar em perfeitas condições de saúde, enquanto o homem apresenta diversas lesões semelhantes a escoriações e queimaduras; logo, a mulher, provavelmente, suportará melhor o processo. Mais tarde, com a experiência ganha na primeira reanimação, eles esperam poder acordar o homem com maior segurança.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">E a mulher desperta. A primeira e óbvia coisa a impressionar a todos é sua beleza, uma beleza na qual existe mais que a simples perfeição de formas: há nela algum tipo de viço indefinível que parece remeter ao fato de ela ser uma reminiscência de um tempo em que a própria espécie humana era jovem, o que traz aos seres humanos de hoje a compreensão do quanto a humanidade atual está velha e cansada. Quando ela fala, é numa língua que não tem qualquer semelhança, por longínqua que seja, com nenhuma outra, viva ou extinta, que se conheça. Isso, é claro, não é surpresa, dadas as circunstâncias, mas acaba por causar um grave e imprevisto problema: a mulher vinda do passado não consegue alimentar-se de nada do que lhe é oferecido, seu organismo não parece capaz de processar nutriente algum, e, por causa do abismo linguístico, é impossível perguntar a ela o que se pode fazer a respeito. Para tentar salvá-la antes que morra de inanição, a EPI pede ajuda a todas as empresas, universidades e governos que possuem grandes computadores (lembrem-se, isso foi escrito nos anos 60, quando computadores eram coisas enormes, intimidadoras e de custo proibitivo, de cuja existência as pessoas comuns tinham, no máximo, uma vaga noção) para decifrar a língua do passado. O esforço é bem-sucedido, o que, além de salvar a vida de Elea (pois é assim que a mulher se apresenta), permite, daí em diante, que ela se comunique. Depois de se recuperar, pelo menos tanto quanto possível, do choque terrível de descobrir durante quanto tempo dormiu, e de dar-se conta de que não sobrou absolutamente nada do mundo que conhecia, ela, por fim, consegue contar sua história e tentar satisfazer a enorme curiosidade que sua civilização agora desaparecida desperta entre os que a resgataram.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>A Noite dos Tempos</i> é narrado, mais ou menos, sob o ponto de vista de Simon (não é "Sáimon", é Simon mesmo: o personagem é francês como o autor), um jovem médico que fazia parte da equipe original da base francesa e estava com o grupo que fez a descoberta. Quando digo mais ou menos, é porque a maior parte do livro não é na primeira pessoa, apenas alguns trechos o são; esses trechos, impressos em itálico, são intercalados entre as partes narrativas, como se fossem comentários a elas, e parecem ter sido escritos, ou talvez apenas pensados, por Simon depois que a aventura já teve seu desfecho, como se o que lemos fosse ele recordando como tudo aconteceu. À parte o natural fascínio que aquela descoberta desperta em todos, o médico toma-se de um interesse muito pessoal e particular por Elea – um interesse que, como até mesmo o leitor menos perspicaz não teria dificuldade em prever, rapidamente se converte em paixão. Elea, mesmo sem nenhuma intenção, perturba a todos os homens, por causa da combinação intoxicante de beleza e mistério, mas a preocupação constante de Simon com seu bem-estar ultrapassa em muito o mero zelo do médico para com a paciente, e não esconde seus verdadeiros sentimentos.</span><br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQ_a-g5jEmenbO-y15UbIH5AsN8M28NzvQsILhYenfV2Wi9QNRRo5v0JyhfjqTym74HED19uQecRTQs2fT3Mqc1cO-tgDtH7OZ_KqFGdNV6-7Pt-0ZChKiJCpksCdBH3w8Ch5sCA/s1600/17552384lpw-17552438-sommaire-la-nuit-des-temps-jpg_5723896.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="350" data-original-width="472" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQ_a-g5jEmenbO-y15UbIH5AsN8M28NzvQsILhYenfV2Wi9QNRRo5v0JyhfjqTym74HED19uQecRTQs2fT3Mqc1cO-tgDtH7OZ_KqFGdNV6-7Pt-0ZChKiJCpksCdBH3w8Ch5sCA/s1600/17552384lpw-17552438-sommaire-la-nuit-des-temps-jpg_5723896.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: georgia, "times new roman", serif;">Entre muitas outras coisas, Elea revela a identidade do homem na esfera de ouro: ele é Coban, o mais renomado cientista da poderosa nação de Gondawa – nome claramente inspirado em Gondwana, o supercontinente que reunia as atuais massas de terra do hemisfério sul, inclusive a Antártida, centenas de milhões de anos atrás; em todo caso, como o tempo de Elea e Coban foi há "apenas" 900 mil anos, os continentes já tinham uma configuração semelhante, em linhas gerais, à de hoje, e, pela descrição feita por Elea, Gondawa ocupava somente a Antártida, que, na época, estava em outra latitude e tinha um clima de temperado a tropical. E Gondawa era uma das duas grandes potências de então, sendo a outra Enisorai, que ocupava as atuais Américas do Norte e do Sul.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Embora os gondas tivessem alcançado progressos notáveis nos campos científico e social, e sua população desfrutasse de uma vida confortável, seria um grande erro pensar que aquele era um mundo paradisíaco. Algum tempo antes do nascimento de Elea (não é dito ao certo quanto tempo), as duas potências travaram uma série de guerras de grandes proporções, nas quais usaram armas terríveis criadas pela mesma tecnologia que tornara possível a tal vida confortável. Como resultado, a superfície de Gondawa tinha-se tornado inabitável, e, por isso, seu povo vivia em cidades subterrâneas.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O drama pessoal da heroína vem agora: ela havia atingido sua plenitude adulta e levava uma vida feliz com seu companheiro, Paikan, quando uma nova guerra sobreveio – a pior de todas. Coban, sabendo que a destruição que estava por vir seria numa escala nunca vista, podendo acarretar até mesmo o fim de sua civilização, pensou num meio de evitar que a ruína fosse completa. Projetou e fez construir um abrigo subterrâneo – a esfera de ouro – onde ele próprio, que, como bem sabia, era o mais importante cérebro de seu tempo, ficaria em animação suspensa, protegido da radiação e dos demais efeitos danosos da guerra, pelo tempo que fosse necessário. Quando as condições no exterior o permitissem, sairia e, com seu conhecimento, trabalharia para reconstruir o mundo. Algumas das maravilhosas máquinas criadas pela ciência gonda, capazes de funcionar pela eternidade afora sem precisar de manutenção ou reparo, conservariam as condições controladas dentro do abrigo e monitorariam as coisas do lado de fora, prontas para reanimar o cientista quando concluíssem que a sobrevivência já era possível… O que, de acordo com as previsões mais cautelosas de Coban, poderia demorar desde alguns anos até um século ou dois. O que nem mesmo ele poderia prever era que os efeitos das armas seriam tão tremendos, que tirariam o próprio planeta do prumo, alterando seu eixo e deslocando os pólos, o que mergulhou Gondawa num inverno eterno. As pobres máquinas, fiéis às instruções recebidas, só podiam concluir que as condições na superfície continuavam inóspitas… E assim continuaram durante 900 mil anos.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Porém, eu ia falar sobre o drama de Elea; tudo está interligado. Para sua missão de reconstruir a civilização, Coban precisaria de uma companheira, uma mulher que sobressaísse pela inteligência, capacidade, e também por uma genética privilegiada, traduzida nos quesitos saúde e beleza, pois não se podia excluir a possibilidade de que os dois tivessem que repovoar Gondawa sozinhos. Dentre milhões de mulheres em todo o continente, a escolha recaiu em Elea, que foi chamada a abandonar Paikan, a quem amava de uma forma que as línguas modernas não possuem palavras capazes de expressar, para cumprir seu "dever patriótico". Acho que já cheguei até onde podia sem prejudicar a experiência de quem for ler o livro (na verdade, meu objetivo foi atiçar a vontade de fazê-lo!), mas saibam, por último, que Elea não atendeu pacificamente a esse chamado, e que, desse momento em diante, é impossível não ficarmos penalizados com a avalanche de desventuras que se abatem uma após outra sobre a pobre moça. No final, uma reviravolta para ninguém botar defeito espera pelo fascinado leitor.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">O que mais posso dizer sobre este livro extraordinário? Barjavel não acreditava na teoria da evolução; tal fato, apenas sinalizado em <i>A Noite dos Tempos</i>, é declarado com todas as letras no ensaio <i>A Fome do Tigre</i> (1966), que não é só sobre esse assunto: trata-se de um apanhado das reflexões do autor a respeito de diversas grandes questões que, levantadas na adolescência, ainda o inquietavam aos 55 anos, questões sobre a vida, a morte, o destino, Deus e assim por diante. Muitas dessas reflexões são intrigantes e dão o que pensar, mas, no trecho em que o autor tenta expor as razões de sua descrença em relação aos postulados de Darwin, dá para perceber, pelos argumentos usados, que, como noventa e nove por cento dos que dizem não acreditar na teoria da evolução, ele nunca chegou a entendê-la, embora provavelmente pensasse que sim. <i>A Noite dos Tempos</i>, portanto, é um exercício de imaginação no qual o autor explora uma possível versão não-darwiniana para a origem da espécie humana – ou, pensando melhor, não é assim, pois tudo o que o romance nos mostra é o mundo de 900 mil anos atrás já ocupado por civilizações avançadas e poderosas, sem se aprofundar em explicar como elas surgiram ou como foi a gênese dos homens que as criaram. O importante é notar que, na visão de Barjavel, não é plausível que o homem tenha gradualmente emergido da animalidade: ele já teria surgido (como quer que isso tenha acontecido) plenamente inteligente, autoconsciente, capaz e <i>belo</i>.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Mesmo assim, o autor não se alinha com a visão que encontramos na maioria dos mitos de criação contados pelos mais diferentes povos, nos quais, quase sempre, o mundo, ao ser criado, era perfeito, livre do mal e da morte, mas decaiu, fosse gradualmente ou de uma só vez, por culpa do homem ou de algum outro ser autoconsciente. O mundo antigo de Barjavel até corresponde a alguns sonhos do homem moderno, mas não é perfeito de forma alguma: nele já existiam ganância, violência e ambição pelo poder, o que acabou causando seu colapso. O conflito entre Gondawa e Enisorai, que, pelo que nos é contado, alternava períodos de guerra declarada com outros de paz tensa, é um paralelo da situação do nosso próprio mundo na época em que o livro foi escrito, em plena Guerra Fria, e do desastre de proporções globais no qual ela poderia facilmente desembocar. E, já que falamos sobre poder e ganância, não deixem que o estilo poético e sonhador que a escrita de Barjavel não raro assume os engane: ele era também um experiente jornalista, e não era nada ingênuo. Sendo assim, não poderia deixar de abordar no livro um aspecto da realidade que fatalmente estaria presente, caso uma descoberta do porte da que ele imaginou realmente acontecesse: a cobiça que os valiosíssimos conhecimentos guardados no cérebro de Coban despertariam no mundo moderno. Assim, <i>A Noite dos Tempos</i> tem também o seu <i>quantum satis</i> de maquinações e intrigas.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Entre várias outras coisas, <i>A Noite dos Tempos</i> é uma história sobre amor, reunindo as características de um bom romance de ficção científica com uma parábola poética e bela sobre a convicção de que o amor, quando verdadeiro, resiste ao tempo, assim como a tudo o mais. E por ser, no fim das contas, sobre o amor entre um homem e uma mulher, bem… Barjavel era francês, lembram? Tem partes eróticas, sim – nada que vá sequer ruborizar um leitor do século XXI, mas esses trechos bem que mexeram com os hormônios do adolescente que eu era no distante 1990, época em que não havia esse negócio de qualquer criança poder ver todo tipo de cena de sexo imaginável ou inimaginável, tendo apenas que digitar duas ou três palavras num mecanismo de busca. E, a meu ver, era melhor assim: o sexo era muito mais excitante quando vinha envolto num certo mistério.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Foi especial ter um novo encontro com este livro tanto tempo depois de nosso primeiro contato, e, por mais que eu tenha mudado nesse intervalo, o efeito dele sobre mim permaneceu quase o mesmo, o que é uma proeza e tanto para qualquer livro: tenho certeza de que muitos de vocês, como eu, já passaram pela experiência de reler na idade adulta alguma obra que marcou sua infância ou adolescência e achar difícil compreender o que nela pareceu tão extraordinário naquela primeira leitura. Não foi o caso aqui. <i>A Noite dos Tempos</i> me fascinou quando eu tinha 15 anos e continua a fascinar agora. Bem que mereceria uma nova edição, mas, como isso é muito pouco provável, recomendo que, se tiverem a escolha, leiam a versão da Artenova, pois esta do Círculo do Livro, como observei no início, teve o texto revisado, e algumas das "mexidas" feitas não foram felizes. Porém, em se tratando de um livro que só existe em edições tão antigas, já vai ser muita sorte conseguir um exemplar, de qualquer edição que seja. Então, leiam do jeito que puderem, e conheçam a capacidade que René Barjavel tinha de tornar impossível ao leitor largar o livro depois de ter começado a lê-lo.</span></div>
Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-25033457896983691472019-02-21T21:24:00.193-04:002021-06-06T13:35:14.582-04:00O Futuro Começou<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8MRkN39BwMxfTEkhZGQ5c96W9bvgx365OBOxz62hWDF-1uPlXt8U57gOLPBbLYIGsYNkErPwcs9oecHaIJkKc4_FVq01IL1NPRLkTXXvluj2cJraH_KpZSKvtbMQX8_lkQSWr8g/s320/eo.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8MRkN39BwMxfTEkhZGQ5c96W9bvgx365OBOxz62hWDF-1uPlXt8U57gOLPBbLYIGsYNkErPwcs9oecHaIJkKc4_FVq01IL1NPRLkTXXvluj2cJraH_KpZSKvtbMQX8_lkQSWr8g/s0/eo.jpg" /></span></a></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Existem títulos que funcionam bem numa tradução direta do original, e outros, definitivamente, não. Isso pode acontecer por diferentes motivos, e às vezes não é fácil explicar o porquê. Cada língua parece possuir uma "alquimia" que é só dela, o que faz com que um mesmo título, dizendo precisamente a mesma coisa, perca (ou ganhe) muita força, pelo simples fato de ser transposto de uma língua para outra. O melhor exemplo que me vem à cabeça agora é o conto <i>Sometimes They Come Back</i>, de Stephen King, que pode ser encontrado na coletânea <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/05/sombras-da-noite.html" target="_blank"><span style="color: red;">Sombras da Noite</span></a></i>. O título original já é OK, mas alguém aí consegue explicar por que é que <i>Às Vezes Eles Voltam</i> soa tão mais forte, mais sinistro, mais cheio de sugestões sombrias? Eu também não: é a tal alquimia da língua.</span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Porém, a sonoridade muitas vezes não é o único critério que uma editora brasileira precisa levar em consideração na hora de definir o título de um livro traduzido. É o caso deste aqui. Quando, em 1972, Isaac Asimov e seu editor da época na Doubleday decidiram que seria uma boa ideia reunir num livro os primeiros contos do escritor (cujas publicações originais ocorreram durante a chamada era de ouro da ficção científica, entre o fim dos anos 30 e o fim dos 40), eles não precisaram pensar muito a respeito do título. O livro destinava-se a uma base já formada de leitores fiéis, e eles, que há tanto tempo pediam por uma edição assim, saberiam reconhecê-la só de bater o olho nela nas livrarias. Assim, o óbvio título <i>The Early Asimov</i> (algo como 'o Asimov do início') já servia. Aqui no Brasil, onde o livro foi publicado seis anos depois, a situação era bem diferente. Esta edição da Hemus precisava vender-se num país onde o mercado editorial em geral, e principalmente o de ficção científica, era muito mais tímido que nos Estados Unidos. Muitos leitores estariam tendo seu primeiro contato com Asimov, outros poderiam já ter lido um ou alguns de seus livros, mas poucos teriam tanta intimidade com a carreira e a obra do autor a ponto de compreenderem a importância de conhecer seus trabalhos iniciais. Por isso, a versão nacional acabou chamando-se <i>O Futuro Começou</i>. Levando em conta toda essa situação, não culpo a Hemus por esse título absolutamente genérico e que não informa realmente nada sobre o conteúdo do volume. Era apenas para chamar a atenção de leitores que já tivessem algum interesse em ficção científica, e deve ter funcionado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O livro é, portanto, uma coletânea de contos dos primeiros anos da carreira de Asimov como escritor, mas não é só isso. Os contos estão inseridos entre trechos mais ou menos autobiográficos, tão interessantes quanto eles – e ocasionalmente, até mais. Vocês devem estar se perguntando como é que algo pode ser "mais ou menos autobiográfico", e a resposta é que o livro oferece vislumbres do dia a dia do adolescente e depois jovem adulto Isaac, mas sempre através do prisma da atividade de escritor. Talvez o fato de já estar acostumado a raramente obter alguma coisa com facilidade tenha enrijecido o couro do rapaz, levando-o a persistir a despeito de ter colecionado várias recusas de diferentes revistas até finalmente conseguir de fato vender sua primeira história para publicação. Seus pais, imigrantes judeus russos, tinham uma loja de doces de onde vinha todo o sustento da família, um sustento pelo qual eles e os filhos precisavam trabalhar constantemente. Isaac, o mais velho, revelou cedo tanto o interesse pela ciência quanto a paixão por ler e escrever. A combinação das duas coisas levou-o naturalmente à ficção científica, e ele gostava de contar que seu primeiro contato com o gênero foi aos nove anos de idade, na loja de doces mesmo, pois ela também incluía uma banca de jornais e revistas, e foi ali que ele travou conhecimento com algumas das várias revistas dedicadas à ficção científica que circulavam naquelas primeiras décadas do século XX. Aquela que viria a ser sua favorita e também a mais influente delas (em grande parte, graças a sua participação) intitulava-se <i>Astounding Stories</i>, mais tarde <i>Astounding Science-fiction</i>, e foi fundada em 1930, pouco depois de Isaac ter sido apresentado à ficção científica, então é provável que ele a tenha lido desde o primeiro número, mas seria somente uns oito anos depois, aos 18 anos de idade, que ele pela primeira vez apresentaria um de seus trabalhos ao editor da revista, John W. Campbell Jr. O trecho em que ele conta como se sentia logo antes dessa ousada empreitada é hilário:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Eu estava convencido de que, por ousar pedir para ver o editor de Astounding Science-fiction, eu seria atirado fora do edifício, e meu manuscrito seria picotado e jogado atrás de mim como confete. Meu pai, porém (que tinha ideais nobres) estava convencido de que um escritor – com o que ele significava qualquer um com um manuscrito – seria tratado com o respeito devido a um intelectual. Não tinha receios nenhuns – mas era eu quem ia entrar naquele edifício.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMdHik545xHQmDZMWeazdhVZ2OM-wF4Ylu39Eo5tuqAWH3HQKwyYQc5uWbVMEPTCjf6gsZAtqgEHRmJyimyoKGSF8dMu_czOJ-LxVU4miS2loHoUqN1in1GIYuQh2_EOsGJPuGxg/s379/Isaac.Asimov01.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="379" data-original-width="216" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMdHik545xHQmDZMWeazdhVZ2OM-wF4Ylu39Eo5tuqAWH3HQKwyYQc5uWbVMEPTCjf6gsZAtqgEHRmJyimyoKGSF8dMu_czOJ-LxVU4miS2loHoUqN1in1GIYuQh2_EOsGJPuGxg/s16000/Isaac.Asimov01.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Mas esse temor não se concretizou: Campbell o recebeu muito bem. Asimov descobriu nessa ocasião que era costume do legendário editor (certo, ele ainda não era legendário na época) tratar todo escritor com o mesmo grau de deferência, fosse ele um veterano com o nome já firmado, aclamado pelos leitores, ou um jovem iniciante tímido. Pode ter ajudado o fato de que Asimov mandava cartas à revista com tanta regularidade, que Campbell lembrava dele, e talvez tenha achado curioso ter a oportunidade de conhecer pessoalmente aquele leitor tão entusiasta. Campbell era um excelente editor ainda por outros motivos, segundo Asimov: quando rejeitava uma história, ele tomava o tempo de escrever ao autor uma carta de considerável extensão, na qual discutia o texto em pormenores, apontando seus defeitos e qualidades e oferecendo dicas para que o escritor, ou aspirante a tal, pudesse aprimorar seu trabalho. Como diz Asimov: "A agradável carta de rejeição – duas páginas inteiras – em que discutia minha história seriamente e sem traços de paternalismo ou desprezo, reforçou minha alegria. (…) Realmente, a melhor coisa depois de [a história] ser aceita."</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Atuando dessa forma, Campbell (que também era escritor) foi uma espécie de mentor para um punhado de jovens escritores que estavam em ascensão durante aqueles anos, e hoje é apontado por muitos como o principal responsável por tornar possível a era de ouro. A grande tríade de jovens autores da época, que, com o tempo, viriam a ser considerados titãs da ficção científica, era composta por A. E. Van Vogt, Robert A. Heinlein e pelo próprio Asimov, o mais jovem dos três e, segundo ele mesmo, o que mais demorou a construir reputação. Heinlein, autor de <i>Estranho Numa Terra Estranha</i> e <i>Tropas Estelares</i>, é razoavelmente conhecido entre nós; já quanto a Van Vogt, parece que chegou a ser publicado no Brasil, mas deve fazer muito tempo, pois os únicos livros dele em que consegui pôr as mãos até hoje eram edições portuguesas, das coleções Argonauta e FC Europa-América.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Para quem, como eu (e acredito que a vasta maioria dos fãs), conheceu Asimov já com seu status de monstro sagrado e por meio de uma de suas obras mais aclamadas, como <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2008/01/eu-rob.html" target="_blank"><i><span style="color: red;">Eu, Robô</span></i></a> ou <i>Fundação</i>, será uma experiência bem estranha ler as histórias aqui apresentadas e constatar que: 01) sim, elas são, em tudo e por tudo, histórias "asimovianas"; 02) não, várias delas não são grande coisa. Mas a estranheza diminui ao lembrarmos que foram escritas por um jovem de seus 18 a 20 e poucos anos, talentoso, sem dúvida, mas ainda com muita coisa por lapidar. É preciso também não esquecer que as histórias que estão aqui são somente as que foram <i>publicadas</i>; houve várias, inclusive a primeira de todas, que, depois de terem sido rejeitadas mais de uma vez, o jovem Asimov deixou de lado e acabou, como ele diz, "perdendo de vista" ao longo dos anos, o que significa que os originais foram perdidos e essas histórias não existem mais. Asimov relata que certos leitores parecem contrariados com o fato, e acham que, por piores que fossem, essas histórias deveriam ter sido preservadas por seu valor histórico – afinal, foram as primeiras tentativas de <i>Isaac Asimov</i>, não menos que isso! Sobre esse ponto, o autor comenta com seu sutil e infalível senso de humor: "Tudo o que posso dizer, amigos, é que sinto muito, mas não havia modo de saber, em 1938, que minha primeira tentativa pudesse ter interesse histórico algum dia. Posso ser um monstro de vaidade e arrogância, mas não sou <i>tão </i>monstruosamente vaidoso e arrogante." Sim, ele <i>tinha </i>um ego e tanto (e sabia disso), mas o fato era frequentemente suavizado por um saudável humor autogozador.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Quanto às histórias em si, parece que nos primeiros tempos Asimov cobria um espectro bastante amplo dentro da ficção científica – talvez uma questão de necessidade prática: quanto mais versátil ele fosse ao escrever, melhores suas chances de conseguir vender histórias para diferentes revistas, já que cada uma tinha um perfil próprio. A <i>Astounding </i>queria histórias mais sérias e com alguma base científica factual, já a <i>Planet Stories</i> privilegiava ação e aventura, enquanto a <i>Amazing </i>era, digamos, mais eclética, e ainda havia outras menores, que tiveram vida mais curta. Como sempre acontece em qualquer assunto, quem não entende nada de ficção científica tende a pensar que é tudo a mesma coisa – um grande erro, o que não quer dizer que não houvesse gente que lia todas essas revistas, assim como não há nada de errado em gostar de <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2008/02/henrique-v.html" target="_blank"><span style="color: red;">Shakespeare</span></a> e também de <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2017/01/harry-potter-e-crianca-amaldicoada.html" target="_blank"><span style="color: red;">Harry Potter</span></a>. De qualquer modo, quando se firmou o suficiente como escritor para poder, ao menos na maioria das vezes, escrever da forma que melhor lhe parecesse, Asimov passou a dedicar-se quase exclusivamente ao que hoje chamamos de <i>hard science-fiction</i>, histórias solidamente ancoradas na ciência, que lidam com ideias complexas e são voltadas para um público maduro.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibqU1mlXWiHZNVUyAgKuIk4y-ZbB7Y3NA1kN2kaWRbtwYWBU_rx5v_DmrrG9LwLM5RHtK9U9Cl8bY03ATYOm8e2UkiyDuE3i8b8t7LUZeAK6hBNeJvAZf2pw4dLjl-m-yaHtrzdQ/s508/ash.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="508" data-original-width="277" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibqU1mlXWiHZNVUyAgKuIk4y-ZbB7Y3NA1kN2kaWRbtwYWBU_rx5v_DmrrG9LwLM5RHtK9U9Cl8bY03ATYOm8e2UkiyDuE3i8b8t7LUZeAK6hBNeJvAZf2pw4dLjl-m-yaHtrzdQ/s16000/ash.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">A primeira história que encontramos em <i>O Futuro Começou</i> é uma que Asimov havia batizado de <i>Clandestino</i>, mas teve o título trocado para <i>A Ameaça de Calisto</i> por seu editor, <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/01/nave-escrava.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Frederik Pohl</span></a>, que também viria a tornar-se um grande nome da ficção científica, embora menos famoso. Pohl era amigo de Asimov e tinha praticamente a mesma idade, mas já tinha obtido mais sucesso como escritor, e acabava de fundar sua própria revista, a <i>Astonishing Stories</i>. Lendo essa história, dá para entender porque ela havia sido recusada tanto pela <i>Astounding </i>quanto pela <i>Amazing</i>, e só pôde ser publicada graças ao nível de exigência mais modesto da <i>Astonishing</i>, o que não quer dizer que seja de todo má. Como outras histórias presentes neste livro, é uma aventura espacial, feita para entreter e que, durante a maior parte do tempo, consegue, mas nota-se que já aí Asimov gostava de dar ao que escrevia um fundamento científico rigoroso, ou, ao menos, tão rigoroso quanto possível; aqui, a ciência que mais se destaca é a física, para ser mais exato o magnetismo. Uma nave de exploração, com uma tripulação de veteranos, está rumando para Calisto, uma lua de Júpiter onde várias outras naves já desapareceram, sem que ninguém saiba o que lhes aconteceu. Durante a viagem, descobre-se que Stanley, um garoto de cerca de 13 anos, embarcou clandestinamente, ansioso por aventuras – ele declara que "fugiu para o espaço, como fazem nos livros", o que é um claro paralelo com todos aqueles maravilhosos livros de aventuras nos quais os garotos "fugiam para o mar". Como voltar é impossível, a missão prossegue com o pequeno intruso a bordo, e ninguém imagina como sua presença acabará sendo providencial.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(De fato, ser um jovem escritor de ficção científica naqueles tempos exigia muita garra. Pagava-se pouco, o que não afetava as exigências de qualidade para que uma história fosse aceita; por vezes o editor até se interessava por determinada história, mas pedia ao autor que a remodelasse – o que, fora o volume extra de trabalho, envolvia a frustração de ter que mexer num texto do qual o autor provavelmente gostava e se orgulhava; e, quando tudo isso era superado e chegava-se à publicação, não raras vezes o título era trocado e o escritor só ficava sabendo ao ver a revista na banca. A respeito do pagamento escasso, uma curiosidade: o valor de uma história era calculado não com base no número de páginas, mas de palavras. A <i>Astounding</i>, sendo a revista de maior gabarito, era também a que pagava melhor: um centavo [de dólar, naturalmente] por palavra, enquanto o valor praticado pelas outras era, em geral, de meio centavo. Hoje em dia, em tempos de Microsoft Word e assemelhados, é fácil saber quantas palavras tem um texto, mas me pergunto como isso era feito naquela época de máquinas de escrever manuais.)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A segunda história, <i>Anel em Torno do Sol</i>, também é uma aventura no espaço e também tem a física como pano de fundo, com duas curiosidades: apresenta uma forte veia humorística e tem como protagonistas Jimmy Turner e Roy Snead, dois pilotos da United Space Mail, que é exatamente o que o nome sugere: uma companhia de serviços postais espaciais. Asimov nos conta que pretendia usar a dupla em outras histórias, criando sua própria série, como alguns escritores da época faziam, mas, por motivos diversos, nunca o fez; conseguiria isso mais tarde com Gregory Powell e Michael Donovan, cujas aventuras podem ser lidas em <i>Eu, Robô</i>. Ainda não foi aqui que Asimov conseguiu criar sua primeira história realmente notável, mas a verdade é que a trama de aventura funciona e o humor também, o que é mais do que dá para dizer da terceira história, <i>A Posse Magnífica</i>, que é calcada na química e não consegue nem empolgar, nem causar um sorriso amarelo que seja. Para compensar, segue-se <i>Tendências</i>, que foi a primeira que Asimov conseguiu vender para a <i>Astounding </i>(as três primeiras foram publicadas em revistas menores), realizando seu sonho de anos e arrecadando alguns dólares a mais do que conseguira até então. A história trata da primeira tentativa humana de voo espacial e, mais especificamente, da resistência social que o pioneiro da cosmonáutica John Harman precisa enfrentar. A história se passa em 1973-74, durante um período de revivescência religiosa que teria se seguido aos horrores da <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/09/inverno-do-mundo.html" target="_blank"><span style="color: red;">Segunda Guerra Mundial</span></a> – é bom lembrar que a história foi escrita entre o fim de 1938 e o início de 1939. Como toda pessoa bem informada da época, o jovem Asimov via que as crescentes tensões políticas na Europa levariam inevitavelmente a uma guerra que acabaria envolvendo também os Estados Unidos e outros países, mas ele arriscou o palpite de que ela começaria em 1940; começou em '39 mesmo, meses depois de a história ter sido publicada. Um dos resultados da guerra (na ficção de Asimov) foi que a população em geral pegou um trauma da ciência e da tecnologia, considerando-as responsáveis pelas catástrofes da guerra, e, por consequência, voltou-se para a fé e o misticismo, enquanto a pesquisa científica era de todas as formas desencorajada. A maneira como pessoas religiosas são retratadas na história sugere que, apesar de vir de uma família judia ortodoxa, Asimov nunca teve grande simpatia pela religião de modo geral (na maturidade, ele parece ter sido um agnóstico), talvez porque, como muita gente, enxergasse fé e ciência como adversárias irreconciliáveis – uma noção, no mínimo, altamente discutível, como comento num <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/12/manual-politicamente-incorreto-do.html"><span style="color: red;">outro post</span></a>. Seja como for, <i>Tendências </i>é, sem dúvida, superior às histórias anteriores. Nos comentários temos a confirmação de algo que eu já imaginava enquanto lia a história: o fato de o personagem-narrador, um ajudante direto de Harman, chamar-se Clifford, não é coincidência, e sim uma homenagem ao escritor Clifford D. Simak, um dos ídolos de Asimov desde seus tempos de simples leitor.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>A Arma Terrível Demais Para Ser Usada</i> (título comprido, deselegante e inexato, já que a tal arma <i>é</i> usada) é provavelmente inferior a <i>Tendências</i>, mas, pessoalmente, me agradou mais. Nela, a mesma história que aconteceu tantas vezes na Terra repete-se durante a exploração do sistema solar: os terráqueos invadem e colonizam Vênus, transformando os nativos em cidadãos de segunda categoria em seu próprio mundo. Os venusianos já foram uma raça poderosa, mas, na época retratada, estão reduzidos em número, e muito da herança cultural e científica de seus antepassados se perdeu, de modo que não possuem a mínima condição de oferecer qualquer resistência à tirania da Terra. Naturalmente, muitos terráqueos são contra o modo como os venusianos têm sido tratados, mas, até aquele momento, foram voto vencido. Até que dois amigos – um venusiano e um terráqueo –, explorando as ruínas de uma cidade sagrada em Vênus, descobrem um artefato dos antigos venusianos que pode mudar tudo. Concordo que a resolução da trama é extremamente ingênua, como observa Asimov depois que a história termina, mas não faz mal: ainda assim é boa ficção científica, e muito agradável de ler.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Mais curiosidades vão pipocando: <i>O Futuro Começou</i> inclui <i>O Frei Negro da Chama</i>, que Asimov havia intitulado originalmente <i>Cruzada Galática</i>, mas também esse título foi trocado à sua revelia. É uma história ambiciosa (talvez um tanto ambiciosa demais para o escritor naquela altura da carreira) sobre uma rebelião da espécie humana contra os lhasinu, uma raça reptiliana originária de Vega, que a havia dominado. Essa rebelião é guiada pelos "loaras", sacerdotes de uma religião influente naqueles dias. Além da inspiração óbvia, e que estava explícita no título original, outras passagens da História antiga e medieval parecem ter servido como referências. Embora a ideia seja boa, a história é bastante confusa e tem problemas de ritmo; na parte autobiográfica Asimov conta que foi a campeã de revisões em toda a sua carreira, tendo sido reescrita cinco ou seis vezes, e o leitor fica inclinado a concordar com sua conclusão de que submeter uma história a muitas revisões tem maiores probabilidades de piorá-la que de melhorá-la. Vale mais pela curiosidade de que é nela que são citados pela primeira vez os planetas Trantor e Santanni, que teriam papéis importantes na saga <i>Fundação</i>.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhN3wesxZdAAUjGGm2SZtwChnqDKmJHtKYuycsfrHpF9WRslWAjncPQX3hgNjF9xEK63N_uxrith5-S5ZN1emCxCjnHIt2UobuHT0ofta0h3DozFqIrShfi9onFhWW-fC1DptsiVg/s485/WT+9-50.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="485" data-original-width="277" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhN3wesxZdAAUjGGm2SZtwChnqDKmJHtKYuycsfrHpF9WRslWAjncPQX3hgNjF9xEK63N_uxrith5-S5ZN1emCxCjnHIt2UobuHT0ofta0h3DozFqIrShfi9onFhWW-fC1DptsiVg/s16000/WT+9-50.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Conforme vamos lendo, percebemos que Campbell, por mais acessível e colaborativo que se mostrasse para com jovens escritores, tinha um nível de exigência que ele não afrouxava: em 1940, com dois anos de atividade e quase 20 histórias produzidas, Asimov só podia gabar-se de ter publicado uma única em <i>Astounding</i>. Em geral ele apresentava seus trabalhos primeiro a Campbell, e, quando eram rejeitados, tentava outras revistas, eventualmente com sucesso, mas também houve contos que ele já previa que Campbell rejeitaria e por isso nem submeteu a ele. Há histórias que dá para entender por que o editor recusou publicar – histórias agradáveis e interessantes, mas um tanto ingênuas para o padrão da <i>Astounding</i>, como <i>Mestiço</i>, que fala sobre os <i>tweenies</i>, nome dado aos mestiços de terráqueo e marciano, marginalizados e perseguidos (Asimov estava bem ciente da sorte que ele, sendo judeu, tinha de viver nos Estados Unidos, e não na Europa, naqueles dias), mas foi um choque para mim descobrir que Campbell também recusou <i>Robbie</i>, a primeira história daquilo que viria a ser conhecido como o ciclo dos robôs positrônicos, e a primeira que encontramos em <i>Eu, Robô</i>, talvez o livro mais famoso de Asimov. Uma coisa, aliás, não dá para deixar passar em branco: na mesma visita em que comunicou a Asimov a rejeição de <i>Robbie</i>, Campbell também lhe apresentou L. Sprague de Camp, então com pouco mais de 30 anos e já com uma carreira consolidada como escritor – o tipo de sujeito que, naqueles dias, o jovem Isaac encarava com um misto de admiração e inveja. Eventualmente, os dois se tornariam grandes amigos. Asimov relata o encontro de forma um pouco mais detalhada em sua introdução ao livro <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2008/11/construtores-de-continentes.html" target="_blank"><span style="color: red;">Construtores de Continentes</span></a></i>, de De Camp, embora, nessa introdução, não explicite que a história que Campbell rejeitou na ocasião era <i>Robbie</i>. Essa história, por sinal, seria publicada por Frederik Pohl em sua <i>Astonishing</i>, sendo que, para manter-se fiel ao seu hábito, ele trocou o título, chamando-a de <i>Strange Playfellow</i> (algo como 'Estranho Companheiro de Brincadeiras'), título que Asimov, compreensivelmente, detestou. Em <i>Eu, Robô</i>, e em todas as demais coletâneas em que apareceu ao longo dos anos, o conto saiu sob o título original.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Espero que haja alguns fãs <i>hardcore </i>de ficção científica me lendo, pois creio que seja o único tipo de leitor capaz de se divertir com essa espécie de curiosidade! – risos. Todos os outros já devem ter desistido deste post.)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como um jovem autor que ainda estava afiando seus instrumentos, Asimov por vezes errava a mão ao superestimar o conhecimento científico médio de seus leitores em potencial, como nas histórias <i>Homo Sol</i> e <i>Imaginário</i>, que, juntas, são como que um esboço de série, já que o ambiente e alguns personagens são os mesmos em ambas. Campbell aceitou a primeira e rejeitou a outra (que seria, mais tarde, publicada em outra revista), a despeito da justificável crença de Asimov de que um conto com "antecedentes" seria olhado com mais interesse pelo editor. Nessas histórias se delineia, de forma ainda nebulosa (e, para falar sem rodeios, tosca) um universo que lembra o de <i>Fundação</i>: há muitas civilizações, mas são todas humanoides, e já desponta a ideia de que seria possível prever as reações de grupos humanos a determinadas situações por meio de cálculos matemáticos. Curiosamente, nesse universo os humanos da Terra são exceção num ponto-chave: são a única raça humanoide conhecida que, quando em grandes grupos, fica mais suscetível a emoções como raiva ou pânico; todas as outras raças tendem a ter um comportamento tanto mais estável quanto mais numerosa for a multidão. Essa e outras características peculiares fazem dos terráqueos um povo imprevisível, com o qual é preciso tomar cuidado. O mesmo universo descrito em <i>Homo Sol</i> e <i>Imaginário </i>aparece, ainda, na divertida <i>O Trote</i>, que se passa numa universidade frequentada por estudantes de vários planetas e raças. Nessa, entretanto, só a ambientação é a mesma, pois os personagens das outras duas não aparecem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Mais uma curiosidade se junta a tantas outras que descobrimos neste livro: em seus primeiros tempos como escritor, Asimov teve a constante ambição de colocar histórias suas na revista <i>Unknown</i>, uma espécie de irmã da <i>Astounding</i>, publicada pela mesma editora e também coordenada por Campbell, só que voltada para a fantasia. Fez várias tentativas ao longo de anos, sendo sempre rejeitado; parece que Campbell mantinha a mesma linha dura ao selecionar o material que iria publicar, fosse qual fosse a revista ou o gênero. Quando, já em 1943, Asimov finalmente conseguiu ter uma história aceita para a <i>Unknown</i>, a revista acabou sendo cancelada antes que ela fosse publicada: estava-se em plena Segunda Guerra Mundial e os recursos andavam escassos, até mesmo o papel, o que forçou Campbell a escolher entre extinguir a <i>Unknown </i>ou reduzir a periodicidade da <i>Astounding </i>para bimestral. E a decisão que ele tomou, ainda que dolorosa, foi correta: <i>Astounding </i>ganharia mais e mais relevância durante os anos seguintes, e existe até hoje, embora seu nome tenha mudado para <i>Analog Science-fiction and Fact</i>, geralmente chamada apenas de <i>Analog</i>. A história vendida e não publicada apareceu, anos depois, como bônus numa coletânea dedicada às melhores histórias da <i>Unknown</i>, e também está incluída em <i>O Futuro Começou</i>; trata-se de <i>Autor! Autor!</i>, na qual, sinceramente, não vi nada de mais. Se Campbell a considerou uma evolução em relação às tentativas anteriores de Asimov no campo da fantasia, respeito sua expertise de editor, mas a história realmente não me empolgou.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Um dos raros exemplos que sobreviveram dentre as histórias de Asimov rejeitadas pela <i>Unknown </i>é <i>O Homenzinho no Metrô</i>, também presente em <i>O Futuro Começou</i>, e que não depõe muito a favor da qualidade geral desses trabalhos; é uma história com pouquíssimo pé ou cabeça, cujo principal objetivo parece ser o de satirizar a religião, e séria candidata a pior conto do livro. Para deixar tudo ainda mais curioso, é produto de uma parceria entre Asimov e Frederik Pohl, e só foi preservada porque, depois que Campbell a recusou, Asimov devolveu o original a Pohl, que, vários anos mais tarde, conseguiu vendê-la para uma revista obscura, provavelmente graças ao renome que tanto ele quanto Asimov haviam ganho durante esse intervalo. Pohl e Asimov ainda voltariam a escrever em dupla, e <i>O Futuro Começou</i> nos oferece outro exemplo, <i>Ritos Legais</i>, uma história de fantasma (as surpresas parecem não ter fim: <i>Isaac Asimov escrevendo sobre fantasmas??</i>), também destinada à <i>Unknown </i>e também rejeitada e mais tarde vendida para outra revista – e não uma revista qualquer: simplesmente a <i>Weird Tales!</i> (ver <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2011/10/conan-o-barbaro.html" target="_blank"><span style="color: red;">aqui </span></a>e <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/03/conan-o-barbaro-livro-1.html" target="_blank"><span style="color: red;">aqui</span></a>) Foi a única vez que um trabalho de Asimov foi impresso na WT – e ganhou a capa. Pohl assinou com um de seus vários pseudônimos, "James McCreigh", que acabou sendo grafado errado. Essa história é melhorzinha que a outra, mas não criem muita expectativa.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Muito mais tarde, já nos anos 80, Asimov viria a dedicar-se à fantasia com regularidade e certo sucesso, com as histórias de Azazel, um minúsculo demônio [ou talvez extraterrestre, não se sabe ao certo] que faz amizade com um sujeito chamado George, e, a partir daí, os dois, utilizando os poderes de Azazel, tentam ajudar diversas pessoas a resolver variados tipos de problemas – o que sempre dá errado da maneira mais engraçada possível. Nessa altura, já maduro e experiente, Asimov havia aumentado muito sua versatilidade enquanto escritor, mas também é bom levar em consideração que não mais precisava preocupar-se se suas histórias seriam aceitas ou rejeitadas, primeiro porque já era um autor consagrado, cujo nome na capa de uma revista era garantia de boas vendas, e, segundo, porque a maior parte das histórias de Azazel foi publicada na revista que levava seu nome e que ele próprio editava [e que teve <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/07/a-flor-de-vidro.html" target="_blank"><span style="color: red;">versão brasileira</span></a>, embora com vida curta]. Na minha opinião de leitor, essas histórias são divertidas, mas não estão nem de longe entre as melhores do autor. O grande combustível das aventuras de George e Azazel é o humor, e, falando francamente, as habilidades de Asimov para a comédia não eram tão notáveis quanto ele parecia acreditar que fossem. Suas piadas às vezes funcionam, às vezes nem tanto.)</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgS4xWdQTlrLuHR-ckwB1Nr0QwnCxr75dJFZWaIugxB9wVCF9_QKwz0OHJrZ9gR8UZsNILF2x2ohhzfoRy2s8_EK6Roly7Xcut9hpHqAb8Ip5m4rU5FTyrbFvnEAUfJZ2N9zi4NKw/s473/astounding+9-41.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="473" data-original-width="277" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgS4xWdQTlrLuHR-ckwB1Nr0QwnCxr75dJFZWaIugxB9wVCF9_QKwz0OHJrZ9gR8UZsNILF2x2ohhzfoRy2s8_EK6Roly7Xcut9hpHqAb8Ip5m4rU5FTyrbFvnEAUfJZ2N9zi4NKw/s16000/astounding+9-41.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;"><i>O Futuro Começou</i> não inclui a história <i>Nightfall </i>(<i>'O Cair da Noite'</i>), porque isso fugiria ao seu objetivo, que era disponibilizar aos leitores os contos menos conhecidos do começo da carreira de Asimov, que não estivessem presentes em coletâneas anteriores. Ainda assim, o autor não pôde furtar-se a um breve comentário sobre essa história, que foi um marco em sua carreira – afinal, como ele diz com palavras ligeiramente diferentes, qual era a probabilidade de que um rapazote de 21 anos, escrevendo profissionalmente há menos de três e tendo produzido apenas umas 30 histórias (várias delas rejeitadas pelos editores), de repente, não mais que de repente, escrevesse o que viria a ser um dos contos mais aclamados da história da ficção científica? <i>Nightfall </i>colocou Asimov, pela primeira vez, na capa da <i>Astounding</i>, e é sem dúvida uma história extraordinária de diversas maneiras. Eu a li pela primeira vez na adolescência e, desde então, creio que reli mais uma vez. Como estou passando por uma fase de reencontro com as obras de Asimov, é provável que acabe lendo de novo, e, nesse caso, vai figurar aqui no blog de forma mais detalhada.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Há ainda várias outras histórias, boas e nem tanto, e não acho necessário falar sobre uma por uma; algumas eu já havia lido em outros livros, como <i>Não é Definitivo!</i>, que aparece na antologia <i>A Sonda do Tempo</i>, editada por Arthur C. Clarke, só que com o título <i>Não é a Última Palavra!</i>, ou <i>Natal em Ganimedes</i> (outra das tentativas de Asimov de fazer humor; esta, em minha opinião, com sucesso mediano), que sei que também já havia lido antes, mas não consigo lembrar onde. Só há mais um conto que quero destacar, e esse por razões absolutamente pessoais. Refiro-me a <i>Nenhuma Ligação!</i> (<i>No Connection!</i>), publicada originalmente na <i>Astounding </i>em junho de 1948. No começo temos a impressão de que os personagens que aparecem em ação são humanos, mas depois nos damos conta de que isso é mera suposição e, por um indício encontrado aqui e outro ali, começamos a desconfiar que não é bem assim, até a coisa ser explicitada: a civilização que ali vemos retratada pertence a seres que se autodenominam <i>gurrows </i>(o nome científico é <i>Gurrow sapiens</i>), fisicamente semelhantes a ursos, e provavelmente descendentes deles – ou seja, tudo leva a crer que estejamos vendo a Terra num futuro extremamente distante, quando o homem já não existe há muito tempo, o que abriu espaço para a ascensão de outra espécie inteligente, e os ursos, ao que podemos supor, evoluíram nessa direção. A sociedade deles é muito pacífica e verdadeiramente igualitária, sem as mazelas que sempre apareceram ao longo da História humana quando se tentou estabelecer uma "igualdade". Cada gurrow ocupa-se do tipo de trabalho que mais lhe agrade, desde que este seja útil à sociedade, e, se há uma tarefa da qual ninguém gosta, mas que é necessária, equipes são formadas para realizá-la por turnos, em sistema de revezamento. Por exemplo, um deles pode gostar de cultivar jardins e ter isso como profissão, mas, uma ou duas vezes por mês, tem que juntar-se a um grupo que vai fazer a limpeza das fossas sépticas, e dedicar-se a essa tarefa durante algumas horas. E, se aparecer alguém que goste de limpar as fossas sépticas, bem, esse gurrow irá trabalhar com isso, liberando outros de uma ocupação que, para eles, não é agradável. E o mais interessante: para os gurrows, a noção de profissões prestigiosas ou desprezadas é completamente desconhecida. Um limpador de fossas sépticas e um reitor de universidade, por exemplo, ganham a mesma coisa e estão em completa igualdade social, tendo, aos olhos de todos os outros, o mesmo <i>status</i>. A história dá a entender que esse estado de coisas não é resultado de nenhum tipo de política: são apenas os "gurrows sendo gurrows". O conceito é fascinante, não só a descrição de uma sociedade assim, mas a própria ideia de outra espécie inteligente evoluindo na Terra; porém, se eu fosse escrever essa história, acho que escolheria como base algum outro tipo de animal (não sei ao certo qual), já que os ursos são seres essencialmente solitários, que praticamente só convivem com outros de sua espécie para fins reprodutivos e durante curtos períodos, de modo que dificilmente desenvolveriam inteligência (a vida em grupo parece ser requisito para isso), e, ainda que a desenvolvessem, não acho provável que criassem uma sociedade complexa. Mas isso ainda não é tudo: parece que o impulso exploratório não é uma característica dos gurrows, pois faz poucos anos que eles descobriram que existem outros continentes além daquele em que habitam – e, surpresa, num deles existe outra espécie inteligente, essa derivada dos chimpanzés. Um grupo desses estranhos acaba de chegar à terra dos <i>gurrows </i>numa aeronave, e eles se dizem "refugiados políticos" – outra noção que a mente dos "ursos" não é capaz de conceber, mas que parece familiar aos recém-chegados, que chamam a si mesmos de <i>ikas</i>. Pelo visto, mesmo com a humanidade extinta, primatas serão sempre primatas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Creio que é chegada a hora do apanhado geral, então vamos a ele. No que se refere às histórias, <i>O Futuro Começou</i> é irregular como noventa e nove por cento das coletâneas, com momentos excelentes e outros que testam nossa paciência, e, como já observei antes, isso não causa surpresa, já que, até aproximadamente a metade do volume, o que estamos lendo são os trabalhos de um autor inexperiente, ainda em busca de sua verdadeira "cara" como escritor; já os trechos autobiográficos ampliaram bastante o meu conhecimento a respeito da trajetória desse que foi um dos mais importantes autores de ficção científica, esclarecendo, inclusive, os motivos de algumas características conhecidas de certas obras suas. Portanto, em resumo, é um livro que deve ser recomendado a todos os que gostam de Asimov. Quanto à qualidade desta edição em particular, bem… Todo leitor brasileiro de ficção científica tem uma relação de carinho e gratidão com a editora Hemus, que durante muitos anos colocou ao nosso alcance muito do melhor que existe no gênero mundo afora; esse design inconfundível de seus volumes de capa branca, com o nome do autor em vermelho e preto no alto, sempre nos trará recordações agradáveis. Porém, nem mesmo tudo isso foi suficiente para me fazer fechar os olhos a todas as falhas que encontrei aqui. São creditados os nomes de três tradutores diferentes, sem que haja indicação de quais histórias cada um traduziu, e, em muitas delas, qualquer leitor que conheça a língua inglesa detectará erros ingênuos, que, a meu ver, seriam admissíveis se cometidos por um estudante de nível básico a intermediário, nunca por um tradutor habilitado. E, igualmente incrível, o revisor também os deixou passar… Talvez a editora Aleph, que anda relançando muitos livros de Asimov que há muito tempo estavam fora de ca-tálogo no Brasil, se anime a fazer uma nova edição de <i>The Early Asimov</i>, mais bem cuidada desta vez.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-67198586131131742162019-01-17T17:44:00.002-04:002020-10-31T19:27:42.700-04:00O Mundo Perdido<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiozAn0TeIPKb35gThsK5_cPek7NMS8znNlcckF6JK-5y0mM6M2W44hGeDKXQwJlecRFTIn4K7H3r6ZgERk4_lvQl3vRxDLZm36obnPiKLr_tMcJE4YR0LRydZrNmOqw5nE3IOqng/s320/cover+book.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiozAn0TeIPKb35gThsK5_cPek7NMS8znNlcckF6JK-5y0mM6M2W44hGeDKXQwJlecRFTIn4K7H3r6ZgERk4_lvQl3vRxDLZm36obnPiKLr_tMcJE4YR0LRydZrNmOqw5nE3IOqng/s16000/cover+book.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">O mundo da literatura tem seus paradoxos. Um deles é o que acontece quando um autor consegue o raríssimo feito de criar um personagem que se torna tão famoso que, de certa forma, acaba por ganhar vida própria: nesses casos, a fama da criação costuma ofuscar a do criador. Foi assim com Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e seu personagem mais conhecido, o detetive Sherlock Holmes. Todo mundo sabe quem é Holmes, mesmo que a vasta maioria das pessoas nunca tenha lido uma linha da obra de Conan Doyle, mas apenas os poucos que têm alguma intimidade com literatura conseguirão, se perguntados, dizer o nome do escritor que o criou, e receio que ainda menos serão capazes de citar algum trabalho seu que não sejam as aventuras do grande detetive. O que é bem injusto, já que, mesmo que ele nunca houvesse criado Sherlock Holmes, ainda restariam no currículo de Doyle obras em quantidade e qualidade mais que suficientes para fazer dele um escritor de respeito. Para completar, alguns elementos que estão ou já estiveram largamente presentes na ficção moderna devem a Doyle o pontapé inicial: foi dele a ideia de usar uma múmia reanimada como personagem num conto de terror (<i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2012/11/goticos.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Lote 249</span></a></i>, de 1892), fonte na qual o cinema viria a beber dezenas de vezes; e também foi ele o responsável por trazer os dinossauros para a ficção, com <i>O Mundo Perdido</i> (1912), que acaba de ganhar esta nova e caprichada edição nacional pela editora Todavia (eita… A portuguesa Saída de Emergência tem uma competidora no ranking das editoras com nomes estranhos).</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Garimpando, tempos atrás, num dos diversos sebos da rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre, adquiri um exemplar da velha edição de <i>O Mundo Perdido</i> da Francisco Alves, editora que durante décadas fez por merecer a gratidão de todos os fãs brasileiros da literatura de imaginação; porém, o livro ainda aguardava na minha estante a sua vez de ser lido quando encontrei numa livraria esta nova edição, e, ao ver que incluía uma ampla seção de notas explicativas do tradutor Samir Machado, concluí que valia a pena: Conan Doyle tinha uma tendência a salpicar seu texto com referências a personalidades, instituições e costumes da Inglaterra vitoriana que podem soar bastante misteriosas para quem vive em outra época e outro país (e digo da Inglaterra porque, embora fosse escocês de nascimento e descendente de irlandeses, ele parecia ter em Londres seu <i>habitat</i> literário por excelência). E, de fato, as notas não apenas esclarecem sobre esses detalhes da realidade britânica da época, como corrigem e atualizam vários pontos nos quais as observações do autor sobre características e comportamento dos animais pré-históricos estão hoje ultrapassadas graças aos vastos progressos da paleontologia ao longo do último século. Contando com esse reforço, mergulhei na minha primeira leitura desse clássico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">N</span><span style="font-family: georgia;">ão foi pouca a minha surpresa ao perceber na estrutura de <i>O Mundo Perdido</i> uma série de semelhanças com <i>Viagem ao Centro da Terra</i> (1864), de Júlio Verne! É claro que o formato de ambas as histórias é comum a um sem-número de obras que tratam da descoberta de "mundos perdidos", o que alguns teóricos chegam a classificar como um subgênero específico dentro da literatura de aventura – a saber, uma expedição de intrépidos exploradores penetrando em alguma região isolada, desconhecida pelo resto da humanidade, e lá descobrindo todo tipo de maravilhas e surpresas – mas, mesmo assim, chamou-me a atenção que ambos os livros sejam narrados na primeira pessoa por jovens corajosos que deixam para trás suas respectivas amadas, cada um deles na esperança de retornar de sua aventura coberto de glória e assim merecer casar-se com sua musa. Ambos, também, seguem a liderança de um brilhante e excêntrico cientista. No livro de Verne, o jovem Áxel é sobrinho e discípulo do Prof. Otto Lidenbrock, e espera ganhar a mão de Grauben, afilhada do cientista; no de Conan Doyle, o protagonista Edward Malone é um jornalista jovem, mas que já granjeou certa reputação, e está irremediavelmente apaixonado por Gladys, uma moça que parece satisfeita de manter com ele uma relação de cordial amizade, situação sobre a qual o jovem repórter tem opiniões categóricas:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>Éramos amigos, bons amigos, mas nunca consegui ir além do mesmo tipo de camaradagem que eu poderia ter com algum colega jornalista da </i>Gazette <i>– perfeitamente sincera, perfeitamente gentil e perfeitamente assexuada. Meus instintos iam contra a ideia de que uma mulher pudesse ser sincera e ficar à vontade comigo; para um homem, isso não é elogioso. Onde a verdadeira atração sexual começa, a timidez e a desconfiança são suas companheiras. (…) A cabeça baixa, o olhar arisco, a voz vacilante, os estremecimentos – esses são os verdadeiros sinais da paixão, não o olhar direto e a resposta franca. Mesmo em minha curta vida, esse tanto eu havia aprendido – ou herdado daquela memória que nossa raça chama de instinto. (…) Houvesse o que houvesse, essa noite eu precisava acabar com o suspense e levar o assunto adiante. Ela poderia até me rejeitar, mas era melhor ser repelido como amante que aceito como irmão.</i></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Tudo pura verdade! Malone demonstra ser sábio para seus parcos 23 anos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi3CSFdAzpBJi5M5sxsydOK7CnNGDDqtqPvP7UAz9JI_hu-Z8HTzgSzeMqu-JmTeX2Y2CyGClWY0D9SSHTw7dmgb5zJaFLVCYqiaC9mp5jkHSXGgTlQNyYiayrKgTJYfMhVLUaHLQ/s390/sir+arthur+conan+doyle.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="390" data-original-width="290" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi3CSFdAzpBJi5M5sxsydOK7CnNGDDqtqPvP7UAz9JI_hu-Z8HTzgSzeMqu-JmTeX2Y2CyGClWY0D9SSHTw7dmgb5zJaFLVCYqiaC9mp5jkHSXGgTlQNyYiayrKgTJYfMhVLUaHLQ/w238-h320/sir+arthur+conan+doyle.jpg" width="238" /></span></a></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Ocorre que Gladys é uma jovem sonhadora, que tem absoluta certeza de que somente poderá amar um homem que tenha se destacado por algum feito grandioso. Diante disso, Malone pede a seu editor que lhe dê a pauta mais difícil e arriscada que tiver – e é assim que vem a conhecer seu próprio "Lidenbrock" na pessoa do Prof. George Challenger (sobrenome que significa literalmente 'desafiante'), cientista de renome, mas dotado de um gênio terrível. Dois anos antes, Challenger retornou de uma expedição à América do Sul com ideias estranhas, aparentemente convencido de que, em algum lugar isolado na selva amazônica, dinossauros e outras criaturas que deveriam estar extintas há eras continuam vivas e ativas. Suas afirmações são recebidas com compreensível ceticismo, e Challenger fica possesso sempre que é posto em dúvida, já tendo chegado a agredir fisicamente mais de uma pessoa por tal motivo – o que não é um risco a se desprezar, já que trata-se de um homem de força considerável. Malone encara o "desafio" e, depois de passar maus pedaços, acaba ganhando a confiança e até um pouco da simpatia do cientista, apesar da completa ojeriza que este dedica à imprensa e a todos os seus representantes diretos e indiretos. E assim o rapaz obtém o passe para a aventura heroica que procurava: torna-se membro da expedição que acompanhará Challenger à bacia do Amazonas em busca de provas concretas de tudo o que ele afirma. Também fazem parte do grupo Lorde John Roxton, experiente caçador e aventureiro, e o Prof. Summerlee, rival de Challenger no meio acadêmico britânico, que não esconde de ninguém que seu único objetivo naquela empreitada é desmascarar o que considera uma grande farsa.</span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O lugar onde o tempo parece ter parado (depois se descobrirá que não é bem assim) é um platô isolado, cercado em todas as direções por milhares de quilômetros quadrados de selva fechada e pouquíssimo explorada. A teoria de Challenger é a de que, durante alguma era antiga do planeta, atividade vulcânica violenta tenha erguido esse platô, rodeando-o de rochedos intransponíveis que cortaram completamente seu acesso ao resto do mundo. A não ser pelas criaturas aladas, nada entra e nada sai. Esse isolamento teria feito com que a fauna desse pedaço da selva não acompanhasse o processo de extinções e evolução pelo qual a vida na Terra passou desde então. Uma "terra que o tempo esqueceu" – por sinal, título de um livro de <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/search/label/Edgar%20Rice%20Burroughs" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Edgar Rice Burroughs</span></a>, publicado em 1924 e sobre o qual suspeito fortemente de que as semelhanças não sejam mera coincidência.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O platô onde se localiza a Terra de Maple White – assim nomeada em homenagem ao desafortunado explorador norte-americano que foi seu descobridor original – não tem uma extensão muito grande: é descrito como uma área em forma de elipse, com aproximadamente 50 quilômetros de comprimento por 30 de largura máxima. A população animal que uma região desse tamanho poderia sustentar seria pouco numerosa, ainda mais em se tratando de animais de grande porte como era o caso de muitas espécies de dinossauros, mas o leitor com algum conhecimento de paleontologia (mesmo que seja apenas um conhecimento nascido da curiosidade, como no meu caso) perceberá logo que não se deve esperar muito apuro científico nas descrições que Doyle faz da fauna do lugar. A ideia em si do motivo para que os dinossauros tenham sobrevivido ali é até plausível, ainda que improvável, mas é difícil explicar que, além deles, também sejam encontrados exemplos do que hoje chamamos de <i>megafauna</i>, mamíferos de grande porte que dominaram a Terra durante o período Pleistoceno, entre 1,8 milhão e cerca de 12 mil anos atrás – dezenas de milhões de anos depois da extinção dos dinossauros e preenchendo os nichos ecológicos outrora ocupados por eles (é importante lembrar que foi durante o Pleistoceno que se deu o surgimento do homem, cuja atividade como caçador pode ter contribuído para a extinção de certas espécies da megafauna). O autor chega a mencionar o toxodonte, o gliptodonte (este sem citar o nome, falando apenas em “seres semelhantes a tatus”), e, com destaque, o alce-gigante, também conhecido como alce-irlandês, cervo-gigante ou megalocero, talvez o maior cervídeo de que se tem notícia. Não se tratava realmente de um alce, estando geneticamente muito mais próximo do <i>wapiti</i>, ou cervo-canadense (que às vezes é equivocadamente chamado de alce, o que causa confusão) e do veado-vermelho do hemisfério norte, embora seus formidáveis chifres espalmados lembrassem, de fato, os do alce que conhecemos. Era um bicho enorme, que chegava a pesar 700 quilos. O registro fóssil indica que viveu na Europa e na Ásia; sua presença na Amazônia é mera licença poética. A espécie extinguiu-se há uns sete mil anos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfGQAUPOlkHbzPdH8pPUbf4AxSU2LM45QPRExNhUTGKffPaaYtim-PbOoTxq6Gey1KTARfbkYaU4o1yhkvMTsbz4KXkCGvzzHAn8f5Q8lUT_5dxp-DB5OdaZVE1WV75_ilLzIMeA/s401/megaloceros.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="401" data-original-width="295" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfGQAUPOlkHbzPdH8pPUbf4AxSU2LM45QPRExNhUTGKffPaaYtim-PbOoTxq6Gey1KTARfbkYaU4o1yhkvMTsbz4KXkCGvzzHAn8f5Q8lUT_5dxp-DB5OdaZVE1WV75_ilLzIMeA/s16000/megaloceros.jpg" /></span></a></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Na verdade, o uso do nome <i>alce </i>é problemático. Em português, essa palavra refere-se à espécie cujo nome científico é <i>Alces alces</i>, o maior cervídeo vivo nos dias de hoje, encontrado na América, Europa e Ásia, mas somente em latitudes bem ao norte. Quando os romanos, que nunca tinham visto semelhante animal, travaram conhecimento com ele na Germânia, adotaram [numa forma latinizada] o nome que as tribos locais lhe davam, o que veio dar na palavra latina <i>alces</i>, origem tanto do nome científico quanto do nome em português. Na Europa, essa espécie é chamada em inglês de <i>elk</i>, em alemão de <i>Elch</i>, em norueguês e dinamarquês de <i>elg </i>– todas com origem na antiga palavra <i>elgr</i>, que era igual em protogermânico e em nórdico antigo. Na América do Norte, os colonizadores ingleses encontraram alces iguais aos que já conheciam, mas também outra espécie de cervo de grande porte, que os índios chamavam de <i>wapiti </i>e era ligeiramente menor; começaram por chamar ambas, indistintamente, de <i>elk</i>, mas acabaram adotando <i>moose </i>[também de origem indígena] para a espécie maior, deixando <i>elk </i>para a outra, uso que se manteve nos Estados Unidos e Canadá. Na Europa, onde o <i>wapiti </i>não é encontrado, <i>elk </i>continua designando o <i>Alces alces</i>.)</span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A pergunta inevitável é: se a Terra de Maple White foi isolada do resto do mundo devido à atividade sísmica ou vulcânica na época em que os dinossauros reinavam, como foi que esses grandes mamíferos, que só surgiram em estágios <i>muito</i> posteriores da história da vida na Terra, foram parar lá? O Prof. Challenger tem uma teoria:</span></p><p style="text-align: justify;"><i><span style="font-family: georgia;">Minha própria leitura da situação (…) é que a evolução tem avançado sob as condições peculiares desta terra até o estágio vertebrado, e os tipos antigos sobrevivem e vivem em companhia dos mais novos. Por isso encontramos criaturas modernas como a anta, um animal com uma linhagem e tanto, o grande veado e o tamanduá, em companhia de formas reptilianas do tipo jurássico.</span></i></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Sim, eu sei: isso não é apenas superficial – é vago demais para podermos dizer que explica alguma coisa. É claro que, num simples livro de aventuras que fala de um lugar totalmente fictício, explicar cientificamente as características de tal lugar não seria uma prioridade nos planos do autor, nem há motivo para que o fosse, mas, como estou escrevendo por prazer, eu também vou me "aventurar" e alongar um pouco mais o assunto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Quando <i>O Mundo Perdido</i> foi publicado, fazia pouco mais de 50 anos que Charles Darwin havia apresentado a teoria da evolução, e, embora ela já fosse aceita pela maior parte do meio científico e acadêmico, não sei o suficiente sobre história da ciência para poder dizer até onde haviam progredido os estudos sobre o assunto, ou qual a compreensão que se tinha do funcionamento da evolução na prática, então não sei se o esboço de teoria do Prof. Challenger está de acordo com o que se pensava ou o que se sabia na época, mas, à luz da biologia atual, pode-se apontar pelo menos um grande problema: sabe-se hoje que é muito improvável (para dizer o mínimo) que populações de uma mesma espécie, isoladas umas das outras, evoluam exatamente da mesma maneira – ainda que expostas a idênticas condições ambientais. Em outras palavras, vamos admitir que, quando a Terra de Maple White se formou, tenham ficado presos lá, junto com os dinossauros, alguns dos pequenos mamíferos primitivos que já existiam nos períodos Jurássico e/ou Cretáceo: a probabilidade de que esses animais dessem origem, milhões de anos depois, a antas ou alces-gigantes iguais aos do mundo exterior seria, a bem dizer, inexistente. Teriam, certamente, evoluído para novas espécies, mas estas seriam únicas, endêmicas do platô e diferentes das encontradas em qualquer outro lugar – e é provável que fossem todas pequenas, já que os nichos ecológicos disponíveis para espécies de grande porte estariam ocupados pelos dinossauros. E tem mais: por que os mamíferos teriam evoluído, enquanto os dinossauros permaneciam tal como eram? Mas não vamos julgar Doyle: premissas mais esdrúxulas que a de <i>O Mundo Perdido</i> já renderam boas histórias. O livro foi escrito para divertir, e não há dúvida de que o faz muito bem.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgicIBGcSaIsUEkaZn6r_EAqMx6RnMIOwBVCHmlXA0xjqLougd0fzx4YBwOmYNjSHFKwGVCZk_PETEY5gqk7SVTr2thFGpLfk2QMXTRY9zttlyzuxQPXYz4DLufz_aRSzqtgvU_Hg/s503/triceratos.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="339" data-original-width="503" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgicIBGcSaIsUEkaZn6r_EAqMx6RnMIOwBVCHmlXA0xjqLougd0fzx4YBwOmYNjSHFKwGVCZk_PETEY5gqk7SVTr2thFGpLfk2QMXTRY9zttlyzuxQPXYz4DLufz_aRSzqtgvU_Hg/s16000/triceratos.jpg" /></span></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Esta edição termina com <i>Grandes, Assustadores e Extintos</i>, artigo de autoria de Samir Machado, tradutor e responsável pelas notas, como dito no início. Mesmo com um perceptível ranço politicamente correto, é um texto interessante, cheio de curiosidades sobre a longa e profícua carreira dos dinossauros no imaginário e na cultura popular, com ênfase em suas aparições no cinema, desde a primeira filmagem do próprio <i>O Mundo Perdido</i>, em 1925 (ainda nos tempos do cinema mudo), até a franquia <i>Jurassic Park</i>, criada por Steven Spielberg com base em um livro de <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2017/05/westworld.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Michael Crichton</span></a> e cujo mais recente episódio foi lançado em 2018. Entretanto, a influência dos dinossauros sobre a imaginação humana não começou no cinema e nem mesmo na literatura escrita (lembrem-se de que narrativas orais também são uma forma de literatura): é fascinante pensar que fósseis de dinossauros, encontrados por acaso séculos antes que esses animais fossem conhecidos pela ciência, foram a provável origem dos mitos não só sobre dragões, mas também sobre outros seres fantásticos. Esqueletos de protocerátops – um ancestral da linhagem dos famosos tricerátops e estiracossauro –, que eram achados em quantidade na Ásia central, podem ter dado origem à lenda do grifo, um animal com quatro patas e bico de ave!… Voltando por um instante à primeira adaptação cinematográfica de <i>O Mundo Perdido</i>, descobri no artigo de Machado que os dinossauros desse filme foram criados por um cidadão chamado Willis O'Brien, um dos pioneiros da animação <i>stop motion</i> e, mais tarde, mentor do jovem Ray Harryhausen, por sua vez responsável por dar vida a tantas criaturas extintas ou fantásticas, em filmes inesquecíveis inspirados na mitologia grega e em <i>As 1001 Noites</i>, tais como <i><a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2010/06/furia-de-titas.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Fúria de Titãs</span></a></i>, <i>Jasão e os Argonautas</i>, <i>Sinbad e o Olho do Tigre</i> e tantos outros… Para mim e outros da minha geração, a menção desses títulos é suficiente para fazer bater <i>aquela</i> nostalgia. Harryhausen teve o privilégio de ser amigo de infância de outro Ray – Ray Bradbury, e os fãs de ficção científica conhecem bem o peso desse nome. Os dois Rays uniram forças num filme lançado em 1953, com o título <i>The Beast from 20000 Fathoms</i>; uma tentativa de tradução direta resultaria em algo tão horroroso quanto <i>A Fera que Veio de 20000 Braças de Profundidade</i> (arre!), motivo pelo qual, ao chegar ao Brasil, o filme foi rebatizado como <i>O Monstro do Mar</i>. Há mais curiosidades desse tipo esperando pelos leitores nesse artigo.</p><p style="text-align: justify;">Para concluir, quero prestar o devido reconhecimento à editora Todavia, já que <i>O Mundo Perdido</i> há muito andava ausente das livrarias nacionais, e o retorno deu-se de maneira digna, com esta edição agradável e bem cuidada. O único senão é o mesmo do qual já me queixei <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2015/04/o-rei-de-amarelo.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">uma vez</span></a> aqui no blog, a coisa de terem decidido colocar as notas no final em vez de no rodapé das páginas, o que compromete o dinamismo da leitura. Sugiro rever isso nas próximas edições.</p></span><p></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-46252413864677921202018-12-19T22:25:00.014-04:002020-09-16T01:12:25.361-04:00Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgPph3ZtBn-gU2BpS33BkP8WLxWYnQ7UWu3sQPYQ6UIPlotPEsWz9f7wLsr7g7mSg_V5mXRwiimpB63STO0Vsxysrt71HTWXD7XKwfuw4na2TSVIi6EiACEpMxsTYaZ7xtrdwIV1w/s320/MPI+do+Catolicismo.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgPph3ZtBn-gU2BpS33BkP8WLxWYnQ7UWu3sQPYQ6UIPlotPEsWz9f7wLsr7g7mSg_V5mXRwiimpB63STO0Vsxysrt71HTWXD7XKwfuw4na2TSVIi6EiACEpMxsTYaZ7xtrdwIV1w/s16000/MPI+do+Catolicismo.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;">Quer dizer então que você está numa situação na qual precisa demonstrar inteligência e "espírito independente", mas não sabe muito bem como fazer isso? Precisa fazer uma média com aquele seu professor marxista de História ou de sociologia? Quer causar uma boa impressão naquela rodinha de colegas "intelectuais" que se reúnem no bar da faculdade e com quem você está tentando se enturmar? Quer "lacrar" numa discussão na internet? Nada mais fácil: ataque a Igreja Católica. Nem precisa entrar em controvérsias teológicas (aliás, isso nem é aconselhável, pois o seu "público-alvo", incluído aí o professor marxista, não entenderia nada): basta falar de como ela incitou o ataque (gratuito e sem provocação, é claro) aos coitadinhos dos muçulmanos nas Cruzadas, matou milhões de pessoas inocentes (<i>todas</i> inocentes, naturalmente) na Inquisição, tramou esquemas manipulando reis e Estados, só para ficar mais rica e poderosa, empatou o progresso da ciência durante séculos, legitimou a escravidão declarando que os negros "não tinham alma"… Isso são apenas alguns exemplos. A lista de distorções, meias-verdades, exageros e simples mentiras deslavadas é longa e você pode escolher à vontade sem perigo de errar. Basta enfileirar duas ou três observações (pouco importa o quão tolas e sem fundamento: sendo contra a Igreja, qualquer coisa serve, e não é preciso provas) sobre qualquer um desses pontos, e pronto: você deu a impressão de que é inteligente e estão garantidos os aplausos.</span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Muito bem, mas e a verdade? A Igreja Católica, praticamente sozinha, foi a responsável por manter a civilização ocidental viva quando o Império Romano desmoronou e povos bárbaros tomaram conta da Europa; mais tarde, também foi ela, e ainda praticamente sozinha, quem conseguiu domar esses mesmos povos bárbaros e criar condições para que a civilização voltasse a florescer – e não torçam o nariz quando falo em civilização: barbárie só é bacana em história do <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/03/conan-o-barbaro-livro-1.html" target="_blank"><span style="color: red;">Conan</span></a>. Dentro dos muros de mosteiros e abadias (católicos, não é demais lembrar), bibliotecas bem organizadas preservaram o conhecimento do mundo greco-romano, em livros que os bárbaros teriam queimado sem pensar duas vezes… Que digo eu? Sem pensar sequer uma vez. Foi dentro desses mesmos muros que a ciência moderna deu seus primeiros passos, sim senhor. Foi em torno da fé católica que tribos e grupos étnicos que não tinham mais nada em comum se uniram para formar os primeiros Estados nacionais da forma como os entendemos. Hospitais e universidades? Devemos à Igreja Católica. Devo continuar? Poderia ir longe, mas creio que basta por enquanto.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Este livro, escrito por um sujeito chamado John Zmirak (uma das principais cabeças por trás do site e jornal <a href="https://stream.org/"><span style="color: red;"><i>The Stream</i></span></a>), mostra mais uma vez que sempre há coisas a aprender, mesmo sobre assuntos que acreditamos já dominar. Não que eu alguma vez tenha alimentado a ilusão de saber tudo sobre a Igreja Católica, apesar de haver congregado nela durante toda a minha vida, o que, agora, já significa um tempinho bem considerável. Porém, a Igreja é uma realidade imensa e complexa, que não se pode ver ou abarcar com a inteligência de uma vez só, e há de fato um ou dois temas específicos ligados a ela que eu acreditava conhecer bem – até agora. A oportunidade de aprender mais sempre me deixa contente, e ainda mais se for num livro como este, escrito do jeito que me agrada: com uma levada dinâmica, um assunto conduzindo ao outro com fluência, mas sem nunca perder o foco, numa linguagem rica e elaborada, sem pedantismo desnecessário, e valorizada, nesta edição, por uma tradução de qualidade, coisa que, infelizmente, vem se tornando cada vez mais rara em edições brasileiras – parabéns e obrigado ao tradutor Raul Martins (OK, há alguns problemas de português aqui e ali, mas nada que comprometa). Por outro lado, recomendo que desconsiderem a capa de péssimo gosto, feita por um tal Fernando Mena. O que dá pena é saber que o livro será lido mais por católicos mesmo, e dificilmente chegará às mãos daqueles que mais precisariam lê-lo. Mas vamos ver o lado bom: há tantos assuntos importantes aqui, e esmiuçados de forma tão eficiente, que quase nenhum católico do planeta poderá percorrer estas 367 páginas e, ao final, dizer que não leu nada que já não soubesse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4gPaXD1DK_DJTUacIKwLkzRkTyzmu-iR8Gngs0F7RXyYy9tUG58C3cWwkBeya_V52b93uu-ltv_m50JEz6Zs5u6u8I6XaeodzJH5aA05-sGB4Ki2MRsdl7HCJ5MlT5l__pO2K6g/s248/ZmirakJohn.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="248" data-original-width="203" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4gPaXD1DK_DJTUacIKwLkzRkTyzmu-iR8Gngs0F7RXyYy9tUG58C3cWwkBeya_V52b93uu-ltv_m50JEz6Zs5u6u8I6XaeodzJH5aA05-sGB4Ki2MRsdl7HCJ5MlT5l__pO2K6g/s0/ZmirakJohn.jpg" /></span></a></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Nota-se que Zmirak se esforçou, entre outras coisas, para dar ao leitor um panorama o mais atual possível da situação vivida pela Igreja (talvez um cacoete trazido do jornalismo), o que terá a desvantagem de deixar parte do livro datada depois de alguns anos. Por outro lado, a maior parte dele trata de temas que serão sempre atuais – e mesmo aquilo que ficar datado terá o valor de registro histórico deste turbulento início de milênio. Como boa parte dos católicos mundo afora, Zmirak não parece lá muito contente com certas atitudes do atual papa, Francisco. Partindo disso, o autor aborda seu primeiro ponto: a noção equivocada que muita gente (inclusive muitos católicos) tem, de que o fiel católico tem por obrigação aceitar tudo o que o papa disser sobre qualquer assunto – e, mais equivocado ainda, de endossar tudo o que ele <i>fizer</i><span>. Os pseudointeligentes aos quais eu me referia no início do texto ouvem falar no dogma da infalibilidade papal e, sem se darem ao trabalho de procurar saber o que isso realmente significa, abrem logo a boca: "Mas cooomo? Como assim, o papa é infalível? E todos os papas corruptos e assassinos que existiram? Eles também eram infalíveis?" Que fique claro: a infalibilidade é, de fato, um dogma da Igreja, mas só se aplica ao que o papa declarar </span><i>ex cathedra</i><span>, quer dizer, às suas declarações oficiais sobre a fé e a moral – e somente sobre esses assuntos. Ao fazer esse tipo de declaração, o papa está amparado pelo Espírito Santo, que, no interesse de toda a Igreja, o preserva do erro… Desnecessário dizer que isso é um artigo de fé, o que significa que é algo em que a pessoa simplesmente acredita ou não acredita – e, se você não é católico, é muito provável que não acredite. Em todo caso, as declarações papais a respeito de fé e moral têm-se mostrado de uma notável constância e consistência ao longo desses vinte séculos repletos de chuvas e trovoadas de todos os tipos.</span></span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Passando para outros temas, entretanto, a coisa toda é diferente. Se o papa quiser emitir opiniões sobre política ou ecologia, é claro que ele pode, mas essas serão meramente suas opiniões, com as quais nenhum de nós tem a obrigação de concordar, e, no que se refere a sua conduta pessoal, ele é tão falível e propenso ao erro quanto qualquer outro homem. Os papas indignos registrados pela História tomaram o cargo, ou foram colocados nele, por meio de manobras escusas, e unicamente por causa do poder político que ele trazia junto; não estavam minimamente interessados em espiritualidade e não me consta que tenham feito declarações oficiais sobre fé e moral – o que, com a licença dos incrédulos, nós acreditamos ser mais um indício da ação do Espírito Santo. Mais ainda: bulas, encíclicas e demais documentos redigidos pelo papa, ou por ele determinados, destinam-se a esclarecer pontos da fé e nortear a conduta da Igreja e dos fiéis diante de novas circunstâncias trazidas pelas constantes mudanças que o mundo atravessa. Consistem em orientação, não são declarações <i>ex cathedra</i>, e <i>não</i> são infalíveis. O fiel católico deve prestar-lhes atenção e levá-los em grande consideração, como o faria com o conselho de qualquer pessoa sábia e instruída, mas não é obrigado a aceitar tudo o que contenham. Por fim, há que se observar que declarações papais apoiadas no dogma da infalibilidade são muito raras: o dogma (que já existia de forma implícita desde os primeiros tempos da Igreja) foi oficialmente proclamado durante o concílio Vaticano I, que ocorreu em 1869-70, e, desde então, foi aplicado apenas duas vezes.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEguCc4QxK9njvZXykfpObK4_OdmlrmzbZe_4Miv7nhyphenhyphenubhwJodXCu5MzzUahXBJSC_qu8eMU9_SVXoasfoMarKalUtYmdOm6EbzQx2GHrNfc1A0kFcBKNg6V0vr5Wy2moSicSPOag/s391/perugino+afresco.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="391" data-original-width="237" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEguCc4QxK9njvZXykfpObK4_OdmlrmzbZe_4Miv7nhyphenhyphenubhwJodXCu5MzzUahXBJSC_qu8eMU9_SVXoasfoMarKalUtYmdOm6EbzQx2GHrNfc1A0kFcBKNg6V0vr5Wy2moSicSPOag/s16000/perugino+afresco.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">O livro prossegue tocando em pontos que, por vezes, se mostram espinhosos para os católicos de hoje; é claro que não tem como oferecer soluções para a maioria deles, mas consegue esclarecê-los bastante e, de modo geral, fornecer um lembrete de como deveríamos agir em relação a cada uma dessas questões, caso queiramos ser católicos de verdade, e não meros "católicos de IBGE". Não que isso seja fácil, é claro. A questão da contracepção, por exemplo: historicamente, a Igreja sempre a considerou reprovável, e até hoje não aprova o uso de coisas como pílula e camisinha – mas não venham querer culpar a Igreja por haver tanta gente por aí transando sem proteção: se o povo ligasse para o que a Igreja diz sobre vida sexual, manteria abstinência até o casamento e fidelidade a partir daí, de modo que o risco das doenças venéreas praticamente não existiria e a tal proteção seria desnecessária. Não vou ser hipócrita e dizer que sempre segui esses preceitos à risca (sou solteiro e já mantive relacionamentos íntimos, sim; como Zmirak, assumo minha condição de mau católico), mas o fato é que, embora ele possa parecer nada mais que um moralismo ultrapassado, na verdade é a única orientação que a Igreja pode efetivamente oferecer sobre esse assunto sem trair alguns de seus princípios mais fundamentais – o primeiro deles sendo o de que não estamos neste mundo a passeio: há um Deus que colocou uma ordem nas coisas e espera de nós que ajamos em conformidade com ela. O problema com os contraceptivos, na visão da Igreja, é que eles desvinculam o sexo da função que o Criador lhe atribuiu, que é a da reprodução. Conhecendo a natureza humana (e, creiam, a natureza humana é algo que a Igreja, ao longo desses dois mil anos, teve oportunidade de conhecer muito bem), fica evidente para qualquer um que, uma vez rompido esse vínculo, o sexo vira um reles parque de diversões – e alguém aí vai negar que é exatamente assim que a sociedade moderna e secularizada o compreende? A Igreja não pode compactuar com isso e continuar sendo a Igreja. Ponto. Ninguém jamais disse que ser católico era fácil.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Por outro lado, mesmo o sexo dentro do casamento tem as suas complexidades. A Igreja não pretende que todo ato sexual entre marido e mulher resulte num filho, mas ensina que, se e quando isso acontecer, a criança gerada deve ser recebida com amor e educada com responsabilidade. Isso vale hoje como valia há quinhentos, mil ou dois mil anos. O que mudou foram outras coisas. Em séculos anteriores, controlar a quantidade de nascimentos não era uma preocupação, nem para a sociedade, nem para as famílias. Um casal dificilmente poderia ter filhos demais: tê-los em grande número era uma necessidade. Era preciso ter uns dez para que houvesse ao menos uma boa chance de que dois ou três chegassem à idade adulta. Além disso, nas sociedades eminentemente rurais desses tempos, o custo de se criar um filho era baixo, já que só era necessária uma educação rudimentar, e ele podia, desde tenra idade, começar a ajudar os pais no trabalho. Ocorre que, de lá para cá, o progresso da medicina e a melhoria das condições de vida da população em geral fizeram as taxas de mortalidade infantil despencarem, ao mesmo tempo em que a urbanização da sociedade, com a consequente demanda por profissionais cada vez mais especializados, passava a exigir um outro tipo de educação – mais demorada e mais cara. Em resumo: se, como no exemplo acima, o casal tivesse dez filhos, agora era provável que todos os dez sobrevivessem, e todos precisavam ir para a escola. Nessa nova realidade, não seria razoável da parte da Igreja censurar os casais que quisessem limitar os nascimentos na família ao número de filhos que pudessem efetivamente alimentar e educar. Mas, nesse caso, como fica? Se você só pode criar três filhos e já tem os três, deve simplesmente parar de fazer sexo com sua esposa ou marido? A resposta, que poderá surpreender a muitos, é um redondo <i>não</i>, pois, ainda que a função natural do sexo seja a reprodução, ele não pode ser reduzido <i>apenas</i> a isso: é também parte importante da vida e da intimidade de um casal. Para resolver o problema, a Igreja recomenda o que chama de métodos naturais, que consistem basicamente em calcular os períodos férteis da mulher e evitar fazer sexo durante os mesmos; se isso funciona na prática, é controverso. Além disso, uma mudança de entendimento não parece impossível, ao menos não desde que o papa Bento XVI admitiu que o uso da camisinha é aceitável <i>em certas situações</i>, o que sinaliza que o problema não é a camisinha em si, mas o modo como ela vem sendo usada e propagandeada: como um instrumento para desvincular o sexo de qualquer tipo de compromisso ou responsabilidade.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Sobre não ser fácil ser católico, como dito acima, Zmirak escreve: "É claro, há muitos pontos nos quais a fé cristã tradicional, e sobretudo em sua forma católica, é frustrante e exigente. Não precisaríamos do sacramento da Confissão se viver uma vida cristã nos fosse algo natural, como respirar, comer ou fazer valer nossa vontade às custas dos outros." O livro está coalhado de espetadas certeiras e cruamente realistas como essa. Ao longo das últimas décadas, e particularmente no ocidente, a mídia e uma educação tendenciosamente torta têm tentado criar nas mentes a ideia de que a natureza é sempre o modelo de perfeição e de que o melhor que fazemos é obedecer <i>sempre</i> a ela, o que significa sempre seguir nossos instintos – mas uma análise um pouco mais profunda da questão leva-nos a perceber que isso equivaleria a assinar embaixo de atos como roubo, assassinato e estupro, que são, sim, tendências naturais em primatas como nós, como o estudo do comportamento dos nossos primos quase irmãos, os chimpanzés, não deixa dúvida. O que nos faz seres racionais, capazes de respeitar os direitos uns dos outros e de viver em sociedade, é a nossa capacidade de contrariar os nossos instintos, quando eles nos querem levar a ter comportamentos antissociais. Em outras palavras, nossa capacidade de decidir quando obedecer à natureza e quando lutar contra ela – o que sempre foi uma das bases do ensinamento da Igreja.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhE8PODHOAPn0ZKms0Nii6hpSJJsTCiQJoYdO2cqEfjkfKa2NddvxKZeZVf1EXZxHrUovmcVMWUThzZc5RYgbhVimWBD9FnnyMClhvrZFoSGn0tXaBeLUTlWpYiOufBNJMl7bYANw/s416/Cristo+Portando+a+Cruz.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="416" data-original-width="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhE8PODHOAPn0ZKms0Nii6hpSJJsTCiQJoYdO2cqEfjkfKa2NddvxKZeZVf1EXZxHrUovmcVMWUThzZc5RYgbhVimWBD9FnnyMClhvrZFoSGn0tXaBeLUTlWpYiOufBNJMl7bYANw/s16000/Cristo+Portando+a+Cruz.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Afora as questões que dizem respeito a todo católico em qualquer lugar do mundo, Zmirak (talvez de forma não premeditada, o que torna tudo mais revelador) acaba por nos oferecer um vislumbre de como é ser católico nos Estados Unidos, país predominantemente protestante, onde, não raras vezes ao longo da História, professar a fé romana foi fator de discriminação: dependendo da época e da região do país, ser católico não era mais fácil, nem mais seguro, que ser negro ou judeu. Além disso, o autor expõe seu parecer, na qualidade de católico, sobre diversas questões da realidade do país, também aplicáveis, em maior ou menor grau, a outros países. A ideia do presidente Trump de construir um muro na fronteira dos EUA com o México, por exemplo, pode ser uma maluquice pra ninguém botar defeito – mas a imigração descontrolada é um problema real, não mera paranoia. E, no entanto, o papa Francisco costuma falar como se fosse um dever moral de toda nação próspera receber de braços abertos qualquer imigrante que a procure, isso apesar de o próprio Catecismo da Igreja Católica prever que esse acolhimento deve ocorrer "até onde for possível", e não parece descabido interpretar esse "até onde for possível" como significando que uma nação não deve descuidar de seus próprios cidadãos porque precisa se virar com um número absurdo de imigrantes. Zmirak se alonga, nessa parte, discorrendo sobre os efeitos da política de imigração sobre a sociedade dos EUA, o que pode parecer sem relação com a realidade dos não-estadunidenses, mas não é bem assim – primeiro, porque muito do que acontece lá também acontece em outros países, e segundo, porque, queiramos ou não, o que afeta os EUA também nos afeta indiretamente.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E, se a torrente de imigração preocupa os norte-americanos, o que dizer, então, da Europa? Os europeus estão tendo cada vez menos filhos, pelos motivos discutidos acima, e isso parece ser uma questão de mentalidade, fora do alcance da influência quer da Igreja, quer do Estado, pelo menos a curto prazo. Enquanto isso, levas intermináveis de imigrantes chegam todos os anos – a maioria deles oriundos de países muçulmanos. É claro que, em sua vasta maioria, são pessoas de bem, que querem apenas encontrar trabalho e construir prosperidade para si e suas famílias… Mas nem todos, como mostra o fato de muitos dos atentados "em nome do Islã" praticados nos últimos anos na Europa terem sido obra de pessoas que entraram nela legalmente; em alguns casos, até mesmo de filhos de imigrantes, que já nasceram no novo país, têm cidadania nele – e, mesmo assim, o atacaram. Mesmo que não houvesse o perigo do terrorismo para ser levado em conta, é inevitável nos perguntarmos que efeitos terá, a longo prazo, essa entrada maciça de muçulmanos na Europa, principalmente no aspecto cultural. Em palavras simples: o que isso fará com a identidade do ocidente? Na Idade Média, a Igreja convocou as Cruzadas, que, embora execradas pela corja politicamente correta, salvaram nossa civilização… Acontece que, como costumo dizer, os cruzados contavam, ao menos, com a vantagem de saber quem era o inimigo e onde ele estava. Hoje, o inimigo pode ser qualquer um, em qualquer lugar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Não estou de acordo com todos os pontos de vista de Zmirak, é claro. A defesa veemente que ele faz do direito à posse e ao porte de armas, por exemplo, parece ter muito mais a ver com sua formação de americano-de-classe-média-que-sempre-vota-nos-republicanos que com a fé católica – e, antes que alguém me interprete mal, esclareço que não sou radicalmente contra esses direitos, nem irrestritamente a favor deles: como em tudo na vida, o meio-termo é a melhor coisa. O modelo norte-americano, que permite que praticamente qualquer um compre uma arma como quem compra um guarda-chuva, é insensato, mas tampouco parece certo negar às pessoas qualquer meio prático de defender sua integridade física e a de sua família, bem como seu patrimônio. Por isso, acho válido que se tenha armas, desde que o controle seja rígido, constante, e inclua todos os testes psicológicos possíveis, que deveriam ser repetidos com frequência. Se você quer ter uma arma, prove que é equilibrado e responsável o suficiente para fazer bom uso dela – que não é apenas mais um babaca que se acha um "cidadão correto" e sairá dando tiros na primeira discussão de trânsito em que se envolver. Por outro lado, um dos capítulos mais interessantes do livro é aquele no qual Zmirak se dedica a desfazer uma ideia muito comum – tão comum, de fato, que um número enorme de católicos acredita nela: o de que o católico, e o cristão em geral, deve ser um pacifista, incapaz de matar um mosquito, não importa a situação. O papa Paulo VI liquidou o assunto (ou assim deveria ter sido) ao declarar que o cristão ama a paz, mas não é pacifista. "Paz a qualquer preço" é uma ideia ingênua (na qual, confesso, eu mesmo já acreditei); a posição da Igreja, e, a meu ver, a de qualquer pessoa realista, é a de que, embora a guerra seja sempre um mal, há momentos na História em que ela é o mal menor. Junto com as questões das armas e da guerra, Zmirak debate também a da pena de morte – assunto esse no qual faço grandes ressalvas aos pontos de vista que ele expressa, embora precise admitir que o faz de forma coerente e bem argumentada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">O capítulo X trata da relação entre a fé católica e a ciência – e não deixa sobrar nada da noção, tão difundida, de que a Igreja fez e faz tudo ao seu alcance para impedir o progresso científico e manter a humanidade eternamente aprisionada numa bolha de obscurantismo. Esse é um dos porretes favoritos dos que querem bater na Igreja, e podemos retraçar sua origem até os filósofos iluministas da segunda metade do século XVIII – eles mesmos, os mentores intelectuais da Revolução Francesa, cujos virulentos ataques ao cristianismo e particularmente ao catolicismo tinham clara intenção política, pois o apoio da Igreja era um dos pilares do poder dos reis, o que levava tais filósofos a se sentirem na obrigação de tentar demoli-la. Destacam-se nomes como Diderot, Montesquieu e, principalmente, Voltaire (1694-1778), consumado hipócrita que escrevia manifestos contra a escravidão que levavam seus leitores às lágrimas e, enquanto isso, investia suas economias pessoais em ações de navios negreiros. Não por acaso, foi Voltaire quem inventou e alardeou o quanto pôde que a Igreja afirmava que os negros não tinham alma e que, por isso, não havia problema em escravizá-los – estupidez essa até hoje repetida à exaustão quando alguém que acha que sabe algo sobre alguma coisa quer parecer "crítico" e inteligente. Um pouco de pesquisa séria e imparcial (o que, claro, é pedir demais a esse tipo de gente) revela a realidade: a escravidão era simplesmente algo que sempre tinha existido e que a Igreja não tinha poder para mudar, ao menos não sozinha; sendo assim, fazia o que estava ao seu alcance, exortando a quem tivesse escravos para que os tratasse de forma justa, sob pena de pecar gravemente – o que pode parecer ridículo para a mentalidade atual, mas constituía preocupação séria para a maioria das pessoas naquela época. E tem mais: será que ninguém se pergunta por que é que a Igreja sempre insistiu para que todos os escravos fossem batizados? Se fizesse parte da crença católica que os negros não tinham alma, batizá-los seria como batizar bezerros – inútil além de sacrílego.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Mais uma vez, divaguei: a maior parte do que vai no parágrafo anterior não está no livro de Zmirak, que só toca muito de passagem nos filósofos iluministas; mesmo assim, trata-se de informação que considero relevante, de modo que fica como está. Voltemos agora ao capítulo X, do qual eu estava começando a falar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt_ES9IenKg9e0W6vl6Xs2ZzoLcJ2PDS77iCJ_ZXlnc3YGRKL92mvK1jnoNO1WeuZ3bV1BhLeWiCr0shWPD11xD4WdldZjrenT1_gIgIFU_X2FOM4VZB5JXH9IwL9sLpFWEL1QvA/s391/Galileo.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="391" data-original-width="291" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt_ES9IenKg9e0W6vl6Xs2ZzoLcJ2PDS77iCJ_ZXlnc3YGRKL92mvK1jnoNO1WeuZ3bV1BhLeWiCr0shWPD11xD4WdldZjrenT1_gIgIFU_X2FOM4VZB5JXH9IwL9sLpFWEL1QvA/w238-h320/Galileo.jpg" width="238" /></a><span style="font-family: georgia;"></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">O fato nu e cru, meus amigos, é que a Igreja não empatou o progresso científico – ela o promoveu, e Zmirak se sai muito bem em mostrar que, apesar das notáveis realizações intelectuais de todas as civilizações antigas, foi necessária a cosmovisão cristã da Europa medieval para que a ciência experimental pudesse nascer. Enquanto os antigos enxergavam o universo como uma realidade essencialmente caótica, na qual seria impossível ao intelecto humano se aprofundar muito, a filosofia de base cristã via esse mesmo universo como a criação de um Ser racional e que, portanto, possuía uma ordem que refletia a mente de Deus; como a nossa mente, por sua vez, foi feita à imagem e semelhança da do Criador, não nos seria impossível chegar a compreender (mesmo que de forma limitada) a natureza de Sua obra. Daí porque cientistas cristãos – muitos deles padres ou monges – construíram, no decurso de alguns séculos, mais conhecimento científico prático do que havia sido alcançado em milênios antes. Mesmo casos como o de Galileu Galilei (que, por falar nisso, foi sentenciado à prisão domicilar, e não queimado na fogueira, como já ouvi vários "gênios" afirmarem) muitas vezes não foram bem do jeito que nos contaram: Galileu, em que pese seu brilhantismo científico, tinha um temperamento difícil e sérios problemas de ego, o que o levou a comprar brigas com autoridades eclesiásticas por motivos que pouco tinham a ver com sua teoria heliocêntrica.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E, é claro, um capítulo sobre Igreja e ciência não estaria completo sem dedicar alguma atenção à questão "Deus x Darwin"… Para começar, colocar a coisa nesses termos, como se Darwin alguma vez tivesse tentado se igualar a Deus, ou como se crer num deles fosse necessariamente sinônimo de descrer do outro, é uma visão simplista e tola, propícia ao sensacionalismo de certos setores da mídia – ou ao fundamentalismo burro. Zmirak dá o recado, embora de forma muito resumida, dedicando à questão da evolução muito menos espaço do que já houvera dedicado a assuntos, a meu ver, bem menos relevantes; a impressão que tive foi de que ele próprio não simpatiza muito com Darwin, embora esteja de acordo com o fato de que não é preciso jogar fora <i>A Origem das Espécies</i> para ser fiel à <i>Bíblia</i>, ou vice-versa. O que precisamos notar é que, apesar de alguns cristãos fundamentalistas (em geral de igrejinhas protestantes picaretas, mas há um ou outro católico no meio) ainda hoje insistirem em ler o <i>Gênesis</i> ao pé da letra, a posição oficial da Igreja é a de que o livro é, em grande parte, alegórico. O autor bíblico (e, cremos nós, o próprio Deus ao inspirá-lo) não estava querendo nos ensinar ciência, mas apenas transmitir a verdade básica de que tudo o que existe tem em Deus sua origem primeira; como, exatamente, essa criação se deu, está aberto à investigação. E, como diz o ditado, quem procura acha: sinais da evolução estão por toda parte. Baleias possuem certos ossos sem função alguma, vestígios das patas traseiras que seus ancestrais, animais terrestres, um dia tiveram. Da mesma forma nós próprios, humanos, ainda temos algumas vértebras caudais. A ordem de mamíferos conhecida como os monotremos se distingue pelo fato de pôr ovos e amamentar os filhotes que saem deles – um claro indicativo de que os mamíferos evoluíram a partir dos répteis. Até mesmo nossos dentes não passam de escamas modificadas!… Quem rejeita a teoria de Darwin, geralmente não a entendeu, e os poucos que entenderam e ainda assim a rejeitam, o fazem por pura ideologia, não por uma convicção baseada em evidências. Há inúmeras pessoas religiosas instruídas que aceitam tranquilamente a ideia da evolução, e, do outro lado, há também muitos cientistas evolucionistas que acreditam em Deus – vide o "evolucionismo teísta" defendido por <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2009/07/o-delirio-de-dawkins.html"><span style="color: red;">Alister McGrath</span></a>. A meu ver, aceitar a teoria da evolução (que, como disse o papa São João Paulo II, na verdade "é mais que uma teoria") não conflita de forma alguma com a crença em Deus; pelo contrário, um sistema tão perfeito aponta para a existência de um Intelecto que deve tê-lo coordenado.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E creio que já escrevi o suficiente: isso tudo já dá um bom vislumbre dos assuntos tratados neste <i>Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo</i>, cuja leitura recomendo sem dúvida para católicos interessados em conhecer melhor sua Igreja e a fé que ela professa, e para não-católicos dotados desse dom, hoje em dia tão raro, que chamamos de honestidade intelectual, em grau suficiente para desejar conhecer a verdadeira história, missão e propostas dessa instituição tão falada e tão pouco compreendida, antes de começar a apedrejá-la. Há uma pá de outros assuntos abordados no livro e sobre os quais fiquei tentado a discorrer, mas isso deixaria o texto longo demais (desconfio que ele já esteja, de qualquer forma). Terei oportunidade de tocar nesses assuntos quando estiver comentando outros livros, tanto de ficção quanto de não-ficção, que já estão na minha lista. Então, vamos para a conclusão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Uma análise histórica isenta, independente da crença, ou falta dela, de cada um, mostra que, desde os filósofos iluministas, como visto acima, um grande esforço vem sendo feito para difamar e desacreditar a Igreja, e que a quase totalidade dos órgãos da mídia em nossos dias está firmemente comprometida com esse objetivo, seja por estar nas mãos dos inimigos da Igreja ou porque os profissionais que dirigem esses órgãos, e produzem o conteúdo que veiculam, foram adequadamente doutrinados e agora acreditam sinceramente estar divulgando a "verdade". O que se quer, em resumo, é que aqueles ainda suficientemente teimosos para continuarem a ser católicos tenham vergonha de fazer parte da Igreja e cultivem uma atitude do tipo "desculpem-me por ser católico", quando, na verdade, deveriam ter orgulho disso. Coisas como as Cruzadas e mesmo a Inquisição (nomes que soam praticamente como palavrões aos ouvidos de muita gente) na realidade foram muito diferentes daquilo que a mídia quer que o público acredite que foram: houve abusos e arbitrariedades como sempre há em qualquer empreendimento humano (abusos e arbitrariedades quase sempre cometidos por indivíduos ou grupos, e que a Igreja teria impedido se pudesse), mas elas tiveram sua razão de existir e, cada uma a seu modo, evitaram grandes desastres em suas respectivas épocas.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Em nossos dias, a tirania do politicamente correto tornou-se o principal instrumento usado para tentar impedir a Igreja de levar a cabo sua missão, ou deveria dizer suas missões; a primeira é aquela que Cristo tinha em mente ao fundá-la, e que consiste em ajudar homens e mulheres a salvarem suas almas, mas há outra que ela tomou sobre si ao longo dos últimos dois milênios, que é a de manter a civilização ocidental de pé, por mais atacada que ela seja e por mais que também tente se autodestruir. O pior é ver que muitos católicos (até mesmo sacerdotes) se deixam levar por esse discurso castrador e hipócrita. Tornou-se "feio" dizer a verdade sem eufemismos e chamar as coisas pelos nomes que elas têm. Em tal cenário, o aparecimento de livros como este é providencial – e para nós, católicos, literalmente, pois pode ser visto como um sinal da providência divina. Como disse antes, só tenho pena de que o livro de Zmirak dificilmente será lido por aqueles a quem mais poderia fazer bem. Ninguém é obrigado a partilhar da nossa fé, mas, para os que partilham, a promessa de Cristo ("Pois eu te digo, tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela." Mt 16:18) é uma injeção diária de coragem e uma garantia da vitória final, pouco importa o quão numerosos e poderosos sejam os inimigos, ou de quanta perfídia façam uso.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-57190745896099720342018-07-13T12:26:00.004-04:002024-02-13T12:50:30.372-04:00HEX<p><span style="font-family: georgia; text-align: justify;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiygEuiCOI5S83Uw0hcUG1uZLQMm25ZrrTOscTTwarAjTSQHmdybVWblMC6ewxuCdU23u_M6qZE3UvDPjcecYBC3mGISjqPLeqP765NHb27qFb7nBidPSbz1barbqDZGoSqekVXP_OXTXKx6iMmCEi5y5_rnd-2WfS9C7K45rb1WAg6YPnDoCkoXA/s320/HEX%20Cover.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiygEuiCOI5S83Uw0hcUG1uZLQMm25ZrrTOscTTwarAjTSQHmdybVWblMC6ewxuCdU23u_M6qZE3UvDPjcecYBC3mGISjqPLeqP765NHb27qFb7nBidPSbz1barbqDZGoSqekVXP_OXTXKx6iMmCEi5y5_rnd-2WfS9C7K45rb1WAg6YPnDoCkoXA/s1600/HEX%20Cover.jpg" width="207" /></a></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Depois de <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/search/label/John%20Ajvide%20Lindqvist" target="_blank"><span style="color: red;">Deixa Ela Entrar</span></a></i>, de autoria do sueco John Ajvide Lindqvist, aqui temos outro exemplo de ventos frescos na literatura de terror vindo de países inesperados: Thomas Olde Heuvelt é holandês, embora a história de HEX esteja ambientada nos Estados Unidos – por boas razões, como veremos depois. É um pensamento comum acreditar que, à medida que a ciência e a tecnologia progridem, a tendência é que a crença no sobrenatural, ou o papel que ele desempenha na vida das pessoas, diminua… E já faz tempo que desmontar essa ideia em suas histórias é um caminho que diversos escritores de terror adotam. É o que Heuvelt faz aqui, mas de uma maneira inovadora e surpreendente.</span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Black Spring (nome dúbio, que pode significar "fonte negra" ou "primavera negra") é uma cidadezinha aparentemente pacata e normal do estado de Nova York, a pouca distância da famosa academia militar de West Point. O que um eventual forasteiro não imagina ao andar por suas ruas sossegadas é que a cidade sofre com uma maldição que já dura três séculos e meio e pesa sobre todos os seus habitantes, tanto os nativos quanto os que, seduzidos por sua aparência de tranquilidade ordeira, fizeram a bobagem de mudar-se para lá. Os bosques que a rodeiam são assombrados pelo espírito de Katherine Van Wyler, uma mulher que foi condenada à forca por bruxaria em 1664, quando aquela região era habitada principalmente por imigrantes holandeses, em sua maioria calvinistas, e por índios algonquinos. Isso, por si só, já seria bem ruim, mas acontece, ainda, que Katherine nem sempre se contenta em vagar pelos bosques, e volta e meia invade a pequena cidade, podendo aparecer em qualquer lugar – ruas, praças, lojas, ou dentro da casa de alguém (credo-em-cruz!). Outra peculiaridade de Katherine é que, ao contrário de outros fantasmas, ela não parece ser incorpórea, tendo uma presença física capaz de interagir com objetos, pessoas e animais (os cães costumam latir e uivar em desespero quando ela está por perto). O efeito da maldição que é sentido com mais frequência é o fato de que os habitantes de Black Spring não podem sair de lá. Não que haja algum tipo de barreira física (há quem pense que seria melhor se houvesse), mas porque bastam alguns dias longe do local para que até mesmo a pessoa mais centrada, ajuizada e satisfeita com a vida comece a ter ideias de suicídio – e, a menos que volte logo para casa, acaba concretizando essas ideias, em cem por cento dos casos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A história acompanha uma família típica: Steve Grant, médico e professor universitário, sua esposa Jocelyn, ambos nos seus 40 e poucos ou 50 anos, e seus filhos Tyler, de 18 anos, e Matt, de 13. Ah, e tem o <i>border collie</i> Fletcher. Pode parecer inacreditável que essa seja uma família funcional e feliz, pois nosso primeiro e muito compreensível impulso é não achar possível que tal coisa exista numa cidade amaldiçoada, mas a História com H maiúsculo já nos forneceu muitas provas de que a capacidade de adaptação do ser humano beira o infinito – em grande parte, foi por isso que sobrevivemos. Como acontece em cidades pequenas, em Black Spring todo mundo conhece todo mundo, e, sendo assim, Steve e Jocelyn conhecem também um sujeito de nome Robert Grim, que trabalha num órgão chamado HEX. Para um desavisado, isso pode parecer uma sigla, mas na verdade é o som da palavra equivalente a <i>bruxa </i>em várias línguas de raiz germânica: a grafia varia um pouco, mas a pronúncia é quase a mesma, seja em alemão (<i>Hexe</i>), sueco (<i>häxa</i>), holandês, norueguês e dinamarquês (<i>heks </i>nas três). Em inglês também existe um cognato de todas essas palavras, <i>hag</i>, que, na origem, também significava bruxa, embora hoje em dia quase sempre se use <i>witch </i>para designar uma bruxa propriamente dita, enquanto <i>hag </i>comumente se refere de forma pejorativa a mulheres idosas, em especial quando feias e/ou de comportamento desagradável ("bruxa" também é por vezes usado dessa forma em português). A HEX foi criada por iniciativa dos militares de West Point, para lidar da forma mais discreta possível com a maldição de Black Spring. Sua função é monitorar as andanças de Katherine, resolver qualquer problema que surja, e evitar que a história vaze para o mundo exterior. Para facilitar sua tarefa, o órgão desenvolveu o aplicativo de celular também chamado HEX, que os moradores da cidade podem usar para saber onde Katherine está no momento; quem a vir deve informar sua localização, também por meio do aplicativo. O mais sensato a se fazer é evitar ao máximo qualquer proximidade com a bruxa; se ela resolver aparecer na sua casa, o aconselhável é não entrar no cômodo onde ela estiver. Se isso for impossível, pode-se, por exemplo, jogar um lençol ou toalha de mesa sobre ela (sem tocá-la!) e tentar ignorá-la; ela geralmente fica imóvel feito um poste, e desaparece em um dia ou dois. <i>Desaparece </i>literalmente, indo aparecer em outro lugar, como se fosse algum tipo de teleporte sobrenatural. A situação já está assim há muito tempo e, salvo por algum incidente medonho eventual, a convivência entre a população e a bruxa é relativamente tranquila. Quando pega antipatia por alguém, porém, ou acha que foi tratada sem o devido respeito, Katherine sussurra algo, e as consequências para a pessoa visada nunca são agradáveis.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjB8rtXrmPE_eZ7DLCJOjNGJd1HMPlDaOela4GVYI-yAT0qnxSE1vOPtXWU2MoJ_IXUEb5cb28L60cxp2scIpu-8YIKdtPUCbiUJAfD9xtcsCYuB7qzhS6ixICM4ZDlKTxFbA4c4mXvsbqnDTWZr1Of0oy9E45dCgFaxUkhKZqYWDcv-l3F3nJ-Iw/s422/holandeses%20e%20%C3%ADndios.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="344" data-original-width="422" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjB8rtXrmPE_eZ7DLCJOjNGJd1HMPlDaOela4GVYI-yAT0qnxSE1vOPtXWU2MoJ_IXUEb5cb28L60cxp2scIpu-8YIKdtPUCbiUJAfD9xtcsCYuB7qzhS6ixICM4ZDlKTxFbA4c4mXvsbqnDTWZr1Of0oy9E45dCgFaxUkhKZqYWDcv-l3F3nJ-Iw/s16000/holandeses%20e%20%C3%ADndios.jpg" /></span></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">Entretanto, nem mesmo Black Spring pode esperar ficar imune às transformações trazidas pelo avanço da tecnologia – e não estou falando apenas do aplicativo HEX. Enquanto os moradores adultos da cidadezinha parecem conformados com a situação, os mais jovens, não raro, têm dificuldade em aceitar esse estado de coisas. Cidades pequenas são sabidamente um ambiente claustrofóbico para adolescentes, e não é diferente para os que tiveram a pouca sorte de nascer em Black Spring. Como todos os jovens, eles têm vontade de sair, ver o mundo, perseguir ambições, mas são ensinados desde cedo que jamais poderão fazê-lo. Tyler, o filho mais velho de Steve e Jocelyn, é um rapaz especialmente inconformista, que, como quase toda a sua geração, utiliza a tecnologia com desenvoltura, e, além do mais, tem vocação jornalística. Além de todos os motivos acima para estar descontente, ele tem outro: sua namorada, Laurie, que é de fora da comunidade, de modo que só resta a Tyler a escolha entre desistir dela ou condená-la a também viver naquela prisão de muros invisíveis. Na opinião do rapaz, a melhor coisa a fazer seria acabar com o segredo, deixar o mundo saber o que acontece em Black Spring, para que alguma solução – fosse tecnológica, religiosa, mágica ou de outro tipo – pudesse ser tentada. Ele e um grupo de outros garotos começam a procurar deliberadamente por Katherine, filmando e fazendo <i>experiências</i>… Algo muito perigoso em qualquer caso, mas, para piorar, um desses rapazes é Jaydon Holst, filho da proprietária do açougue e empório local. O pai de Jaydon abandonou a família e foi embora de Black Spring, e, sem que isso surpreendesse a ninguém, pouco tempo depois chegou a notícia de seu suicídio. Por menos motivos que parecesse ter para gostar do pai (que, antes de abandoná-lo, o maltratou um bocado), Jaydon odeia Katherine por causa do acontecido. Trata-se de um rapaz mal-humorado, agressivo e pouco esperto. Enquanto Tyler e os outros se utilizam de câmeras digitais e outros aparatos para reunir o máximo possível de dados sobre a bruxa, que depois serão colocados na internet, Jaydon só está interessado em praticar violências contra ela. (Katherine, sendo, como dissemos, uma entidade corpórea, pode ser ferida, mas, na vez seguinte em que se teleporta, ela aparece no local de destino intacta de novo. É como se o processo a "resetasse"… o que não significa que ela se esqueça da agressão sofrida.)</p><p style="text-align: justify;">Para tornar a situação ainda mais bizarra, a mãe de Jaydon, Griselda Holst (para quem o sumiço do marido abusivo foi um alívio), desenvolveu uma forma própria e distorcida de religião, com Katherine fazendo as vezes de divindade. Há basicamente duas maneiras de cultuar um ser divino no qual se acredite: se você crer que esse ser é bom, irá querer louvar, agradecer, talvez fazer pedidos; se crer que ele é algo a ser temido, então é provável que os seus ritos tenham como principal objetivo aplacá-lo para que ele o poupe de sua ira. O "culto" inventado por Griselda, como seria de se imaginar, tende muito mais para a segunda possibilidade, embora, uma vez ou outra, ela arrisque pedir algo. Ela procura por Katherine nas florestas, leva oferendas e conversa com ela durante horas – ou melhor, monologa, já que a bruxa nunca diz nada (a não ser pelo sussurro mortífero quando decide eliminar alguém) e raramente se move. Não é preciso dizer que nem a abordagem de Jaydon nem a de Griselda irão resultar em nada de bom.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3hSL8GoEXjEkNi0AYvckjHaAfSw3SE8j0IoR-j-ttmXXjHXMsWLHQVk9fH_dSwLIcoDsU557LkZwQHZ0eFqn8c2kGsGYqiygbsn690AVQj4mVvwcj_DbdhpmFf_R6XNckAvnZvC4BEX4bhwW6XDv77OsioRadzrThafos1pxNnRA_ir_AuFly5A/s291/heuvelt-785x1000.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="291" data-original-width="194" height="291" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3hSL8GoEXjEkNi0AYvckjHaAfSw3SE8j0IoR-j-ttmXXjHXMsWLHQVk9fH_dSwLIcoDsU557LkZwQHZ0eFqn8c2kGsGYqiygbsn690AVQj4mVvwcj_DbdhpmFf_R6XNckAvnZvC4BEX4bhwW6XDv77OsioRadzrThafos1pxNnRA_ir_AuFly5A/s1600/heuvelt-785x1000.jpg" width="194" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;"><i>HEX </i>tem uma ideia excelente e bastante original, explorando o confronto sobrenatural <i>versus </i>modernidade, que tem um potencial fora do comum para amedrontar, porque nos leva a questionar a noção de "progresso", que é um dos pilares da escassa sensação de segurança que o homem moderno consegue desfrutar. Ainda assim, a essência da história talvez não seja a fragilidade dessa noção em si, e sim uma decorrência dela: a facilidade com que pessoas que se consideram civilizadas e esclarecidas podem recair num obscurantismo semelhante ao de séculos passados quando confrontadas com terrores que, no "modo século XXI" de ver as coisas, não deveriam existir, e para os quais essa visão de mundo não oferece soluções. Os moradores de Black Spring são cidadãos americanos modernos, normais em quase tudo, que acessam a internet, consultam tabelas de calorias, assistem a séries na Netflix e distribuem-se entre os eleitorados republicano e democrata, mas há cenas (principalmente as de assembleias populares) em que é difícil não imaginá-los em trajes de colonos calvinistas do século XVII, agitando tochas e forcados. A conclusão é que, por mais sofisticados que pensemos que somos, o medo nos reverte ao primitivismo, muitas vezes com uma facilidade absurda. A História nos oferece (infelizmente) muitos exemplos de casos em que isso foi habilmente explorado com finalidades políticas, resultando em guerras, genocídios e outros desastres.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Heuvelt tem a habilidade para criar personagens convincentes e cativantes, mas, a meu ver, existem algumas incoerências, como quando é dito que Steve Grant "não acredita no pós-vida". Em qualquer outro lugar que não Black Spring, seria perfeitamente crível que um homem do tipo dele fosse basicamente materialista, não crendo no divino nem em qualquer outra manifestação do sobrenatural – mas, se o homem em questão tiver vivido quase metade de sua vida numa cidade por onde uma mulher morta há 350 anos desfila pelas ruas, sendo corriqueiramente vista por todo mundo, qual o sentido lógico de que até mesmo um homem assim continue "não acreditando no pós-vida"? Também acho necessário criticar o final, pois eu realmente esperava que uma história que inova em tantas coisas tivesse um final surpreendente, nunca imaginado… Quando, na verdade, o final de <i>HEX </i>é idêntico (vá lá, <i>quase </i>idêntico) ao do conto <i>A Pata do Macaco</i>, de W. W. Jacobs. Entendedores entenderão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Uma consideração final… Na parte de trás da capa, junto com a breve sinopse, constam palavras elogiosas a <i>HEX</i>, atribuídas a <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/07/a-flor-de-vidro.html" target="_blank"><span style="color: red;">George R. R. Martin</span></a> e <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/03/danca-macabra.html" target="_blank"><span style="color: red;">Stephen King</span></a>. A opinião de King, principalmente, terá sempre muito peso quando estivermos falando de um novo autor de terror, e eu ouso dizer que a ideia central de <i>HEX </i>é "nível Stephen King" – mas ter uma boa ideia não é tudo. Thomas Olde Heuvelt ainda terá bastante trabalho pela frente se pretender um dia ter uma escrita tão ágil, fluida e viciante quanto a de King, e talvez nunca chegue a isso, o que não o impedirá de ser um excelente escritor mesmo assim; o fato é que <i>HEX </i>é um tanto irregular, com muitos trechos arrastados e pouco empolgantes, embora, no saldo final, recompense bem o leitor. E, já que mencionamos Martin, não custa observar, como nota de rodapé, que em <i>HEX</i>, assim como em <i><a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2015/08/cronicas-de-gelo-e-fogo-guerra-dos.html" target="_blank"><span style="color: red;">Game of Thrones</span></a></i>, <i>qualquer </i>personagem pode morrer. Por último, é preciso ressaltar a edição, como sempre muito bem feita, da DarkSide, selo que está fazendo um grande trabalho em prol da literatura fantástica, especialmente a de terror, no Brasil.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-51859525015005999562018-06-20T19:57:00.024-04:002023-01-20T21:32:29.439-04:00O Satanista<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjgHK1iK-Ei_DDI1jw0WRSZ-TrrLtQYIrvRqgGuwbTS3jQ03uMreeZHY8-L9r_u2MXzTlgUAyVAdthE_mnPLXPJoxLjAUxmzgLOaP1Uuvz4y-pbz9J223rNu3MZ1vyNJdiXtla1uJqU6xRLD3NVJtu4eUVWks_rJ_EqenOVS5xAmvVEiL5Fqas/s320/O_SATANISTA_1264957221B.jpg" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="320" data-original-width="207" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjgHK1iK-Ei_DDI1jw0WRSZ-TrrLtQYIrvRqgGuwbTS3jQ03uMreeZHY8-L9r_u2MXzTlgUAyVAdthE_mnPLXPJoxLjAUxmzgLOaP1Uuvz4y-pbz9J223rNu3MZ1vyNJdiXtla1uJqU6xRLD3NVJtu4eUVWks_rJ_EqenOVS5xAmvVEiL5Fqas/s1600/O_SATANISTA_1264957221B.jpg" width="207" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Mandar logo de cara uma longa digressão não é a maneira mais aconselhável de se começar um texto, e sei que já fiz isso diversas vezes aqui no blog; ultimamente tenho procurado evitar, mas desta vez vai ser impossível. Sendo assim, prometo tentar não alongá-la demais!</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Bem… Como a maioria dos fãs de heavy metal e de rock em geral, tive, na juventude, a minha fase de querer saber o máximo que fosse possível sobre as bandas de que gostava; na época, antes da popularização da internet, fazíamos isso basicamente por meio de revistas. Fase essa que, no meu caso, passou – não a de gostar de metal, pois ainda gosto e não me parece que isso vá mudar, seja lá com que idade eu estiver; apenas não consigo mais me importar tanto com histórias, curiosidades e detalhes de todo tipo sobre as bandas. Hoje me contento em curtir a música e não ligo muito para o resto. Para dar uma ideia, há bandas que já conheço há anos e adoro, mas só sei o nome de um ou dois membros; nos velhos tempos isso seria impensável, eu teria o nome de cada integrante e seu respectivo instrumento na ponta da língua, feito escalação de time de futebol.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Como sabe quem entende um pouco do assunto, houve três bandas, todas elas surgidas no Reino Unido no final dos anos 60, que são consideradas o tripé sobre o qual toda a história do heavy metal foi construída: Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Tecnicamente falando, o Sabbath ficava bem atrás dos outros dois grupos (que contavam com músicos experientes, alguns deles com formação clássica); não obstante, há muita gente que o considera o mais influente dos três, além de ter sido a primeira banda de heavy metal propriamente dita da História – o Led e o Purple estavam mais próximos do que chamamos hoje de hard rock, com fortes traços do blues no caso do primeiro, e da música clássica no segundo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">(Quero esclarecer que, ao dizer que o Black Sabbath era, do ponto de vista técnico, a menos notável daquelas três grandes bandas, não estou de forma alguma tirando seus méritos: gosto pra caramba do Sabbath e inclusive considero Tony Iommi um dos guitarristas mais criativos da história do som pesado. Porém, basta ouvir e comparar os dois ou três primeiros discos de cada uma para perceber que, das três bandas, o Sabbath era a que fazia o som mais simples, já que seus músicos não tinham, pelo menos no início, tanto conhecimento técnico – leia-se anos de conservatório – quanto os do Led e do Purple. Foram-se aprimorando com o tempo, o que pode ser sentido nos álbuns seguintes.)</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjwQ9RFrKSJeCeBa463KB6LIB29qGMfbn3R9KV2tkeVWihqzM6qTAFrPulhUs0f9uEInrzT1l7FCQINIHzCH9SpCvpJVwOxRVSjGA6I4UxxsfrQFKnntxM3dcCuKCc_Km3TJZtzkau7m4B3TJfH5la7eSH_w-h0whnp-_ggWz7PUxLSmHRXE3g/s537/Black%20Sabbath.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="313" data-original-width="537" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjwQ9RFrKSJeCeBa463KB6LIB29qGMfbn3R9KV2tkeVWihqzM6qTAFrPulhUs0f9uEInrzT1l7FCQINIHzCH9SpCvpJVwOxRVSjGA6I4UxxsfrQFKnntxM3dcCuKCc_Km3TJZtzkau7m4B3TJfH5la7eSH_w-h0whnp-_ggWz7PUxLSmHRXE3g/s16000/Black%20Sabbath.jpg" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Já havia gente fazendo som pesado na época, mas o Sabbath, e especialmente seu vocalista, John "Ozzy" Osbourne, foi o grande responsável por definir a estética, os códigos, a </span><i style="font-family: georgia;">vibe </i><span style="font-family: georgia;">daquilo que seria mais tarde chamado de heavy metal. O fascínio do cantor por ocultismo logo se refletiu nas letras das músicas – o maior exemplo disso é sem dúvida a primeira faixa do primeiro álbum, de 1970; tanto a faixa quanto o álbum tinham o mesmo nome da banda. Como Ozzy contaria em entrevistas muitos anos depois, sua identificação com essa temática chegou a colocá-lo em situações estranhas, como quando era procurado por pessoas querendo convidá-lo a tomar parte em todo tipo de ritual macabro, sendo que, na verdade, ele próprio nunca teve qualquer envolvimento com o ocultismo: era só um curioso, um fã declarado de filmes de terror.</span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">E, de acordo com uma matéria que li certa vez numa revista sobre rock, houve outro grande responsável, além da produtora cinematográfica Hammer, por formar o imaginário de Ozzy no tocante aos temas soturnos e sobrenaturais: o escritor inglês Dennis Yeats Wheatley (1897-1977), autor tão prolífico quanto popular, que, dos anos 30 aos 60, publicou dezenas de romances, embora relativamente poucos fossem de terror – a maior parte eram narrativas de aventura e suspense, muitas delas com ambientação histórica, destacando-se a série sobre Roger Brook, uma espécie de James Bond dos séculos XVIII e XIX (ou talvez fosse melhor dizer que Bond é um Roger Brook do século XX, já que seu criador, Ian Fleming, era fã de Wheatley e confessava-se influenciado por ele). Até onde pude apurar, de toda a extensa bibliografia de Wheatley, só dois livros ganharam edições brasileiras: <i>A Máscara do Mal</i>, que é uma das aventuras de Brook, e este <i>O Satanista</i>, publicado originalmente em 1960.</span></p><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">A narrativa orbita em torno do coronel William Verney, que tem o apelido de C. B., iniciais de "Conky Bill" ('Bill Narigudo') devido a seu traço fisionômico mais marcante. Eu não iria ao ponto de chamá-lo de protagonista, mas ele funciona como uma espécie de eixo, conectando as diferentes subtramas. Verney trabalha na Inteligência britânica, e, no início da história, acaba de receber a informação de que um de seus agentes, o jovem Ted Morden, foi encontrado morto. Morden estava investigando os sindicatos trabalhistas da região de Londres, a fim de tentar descobrir até que ponto eles estavam infiltrados, talvez até controlados, por agentes do comunismo internacional (lembrem-se, era a virada dos anos 50 para os 60, com a Guerra Fria entrando em seu período mais tenso), e seria lógico supor que foi assassinado por esses agentes após ter sido descoberto, mas as condições em que o corpo foi encontrado levam C. B., que já viu coisas parecidas antes, a crer que haja mais: as marcas no corpo do rapaz sugerem que ele tenha sido sacrificado em algum ritual diabólico. A linha de investigação de Morden é assumida por outro agente, Barney Sullivan, um irlandês de origens aristocráticas, a quem seu chefe praticamente implora que tome precauções redobradas. Ao mesmo tempo, Mary Morden, a viúva de Ted, decide tentar por conta própria descobrir o assassino ou assassinos de seu marido e levá-los à justiça. O coronel Verney, embora não possa aceitar a participação de Mary nas investigações, nem prestar-lhe qualquer ajuda oficial em nome de seu departamento, oferece-lhe alguns conselhos e dicas, em especial confidenciando-lhe suas suspeitas de que a morte de Ted pode ter sido ritualística. Mary, uma jovem estonteante de apenas 23 anos, mas já com um passado complicado, está disposta a valer-se de tudo ao seu alcance, inclusive de seus encantos físicos, para vingar o marido. Verney decide não contar a Sullivan sobre os esforços de Mary e vice-versa: deixa-os agir independentemente um do outro, para melhorar as chances de que, no caso de um dos dois ser apanhado, o outro escape. O coronel não sabe, nem pode saber, que os dois jovens se conhecem há anos, embora não se vejam há muito tempo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: georgia;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEha8bbDGzW9bqanVL0QSH11mUNer2IsSv7qcGPnZezqdoeHCq6qV3coLBtjFpuGe_WbV-4H2bb2z-VbUUPfNtZUA5lie0hArh8muoZZLbsT1CPR9XOWNJcYQ8v0C-EnujShboT-fveet8VOIo-vR82JNXwXCZE5abKNLP2w8vBni2Kxyx68bvA/s268/wheatley-after-war.jpg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="268" data-original-width="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEha8bbDGzW9bqanVL0QSH11mUNer2IsSv7qcGPnZezqdoeHCq6qV3coLBtjFpuGe_WbV-4H2bb2z-VbUUPfNtZUA5lie0hArh8muoZZLbsT1CPR9XOWNJcYQ8v0C-EnujShboT-fveet8VOIo-vR82JNXwXCZE5abKNLP2w8vBni2Kxyx68bvA/s16000/wheatley-after-war.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: georgia;"><div style="text-align: justify;">Não sei qual a profundidade dos conhecimentos de Dennis Wheatley sobre o satanismo – tanto seus credos e fórmulas quanto seu <i>modus operandi</i> –, nem de que forma ele teria obtido tais conhecimentos, mas a descrição que ele nos oferece de como funciona o recrutamento é bastante plausível: membros de irmandades satânicas frequentam encontros genéricos onde se reúne gente de todos os tipos, tendo em comum apenas algum grau de interesse por temas místicos e esotéricos. A grande maioria, claro, é de meros curiosos, que sentem falta de alguma coisa que vá além da vulgar realidade material, mas não possuem a necessária firmeza de propósitos para adotar uma religião; querem um sabor de "transcendência" em suas vidas, contanto que isso não exija mudança de hábitos ou atitudes. Enfim, basicamente indivíduos comuns e inócuos, do tipo que se acha altamente místico porque leu dois livros comprados na lojinha esotérica do shopping e acendeu uns incensos – mas, em meio ao grupo, pode sempre haver um ou outro com ambições mais sérias e, possivelmente, sinistras. Nesses encontros, o satanista infiltrado vai conhecendo e sondando os outros frequentadores para ter uma ideia de quais deles estariam abertos a um convite para ingressar em seus círculos – e, mais importante que isso, quais deles seriam aquisições interessantes para esses círculos. É num desses encontros esotéricos <i>light</i>, promovido por uma senhora de Londres, que Barney e Mary se reencontram. Ela o reconhece imediatamente, mas ele não a reconhece porque, a conselho do coronel Verney, ela usa um disfarce: sendo naturalmente loira, adotou um visual moreno, além de alterar mais alguns detalhes de sua aparência e usar um nome falso. Ambos estão ali por causa de suas investigações, e não de algum interesse no oculto, mas, é claro, nenhum deles revela ao outro suas motivações. Mary, por causa de sua bela aparência, torna-se logo alvo das atenções do Sr. Ratnadatta, um indiano filiado a um culto satânico (é uma noção amplamente aceita que grupos satanistas sempre procuram recrutar mulheres atraentes, já que o sexo desempenha papel importante em seus ritos), que a leva a reuniões secretas nas quais a jovem descobre que aquilo tudo não é puro delírio nem fantasia: o sobrenatural é real, e os poderes do mal também.</div></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;"><i>O Satanista</i> apresenta-se como "uma história de magia negra" (isso está escrito na capa, pelo menos nesta edição da Record), mas também é outras coisas, e, na verdade, o ocultismo e temas relacionados a ele não ocupam tanto espaço assim. Há um forte componente de espionagem, e essa parte gira em torno de dois personagens, os gêmeos Otto e Lothar Khune, nascidos nos Estados Unidos, mas filhos de pais alemães. Quando o Partido Nacional-Socialista chegou ao poder na Alemanha na década de 1930, Lothar emigrou para o país de seus pais e pôs-se a serviço do Terceiro Reich; mais tarde, com a derrota dos nazistas na <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2014/09/inverno-do-mundo.html" target="_blank"><span style="color: red;">guerra</span></a>, bandeou-se para o lado dos comunistas soviéticos. Otto, enquanto isso, foi viver na Inglaterra, tornando-se um leal súdito britânico naturalizado. Ambos são cientistas, ligados a pesquisas no campo dos foguetes e mísseis, e, como gêmeos, possuem uma espécie de vínculo mental e emocional – só que, neles, isso é muito mais forte que o usual entre outros gêmeos, chegando ao ponto de um conseguir, às vezes, influenciar os pensamentos do outro ou ver por meio de seus olhos; se um sofre um ferimento, o outro também sente a dor. Enfim, é o mesmo tipo de ligação que existia entre os gêmeos Lucien e Louis de Franchi no livro <i>Os Irmãos Corsos</i>, de Alexandre Dumas, o que faz todo o sentido, já que Wheatley começa o livro com uma efusiva homenagem ao escritor francês, dando a entender ser ele um de seus autores favoritos e uma de suas principais influências. Não é preciso dizer que, como ambos lidam com informações altamente secretas e trabalham para lados opostos, isso gera situações complicadas. Otto, Lothar e todos os eventos que os envolvem parecem, de início, não ter relação alguma com o núcleo satânico londrino ou com o que se passa com Mary e Barney, mas o vínculo aparece quando o coronel Verney descobre que Lothar está na Inglaterra e que sua base de operações é a mesmíssima casa onde se realizam os encontros semanais dos satanistas.</span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_ctE62q-5rdeBLqJp7DnCJjQPoIyInB7cCDT8oqIw41gYLXJShNf39_O_0t6yUB3QD98vs3FQni68T0tkXcuUDyZmeLtlEa9NPiDhSMnXQVKR4FxhcX6fTYJ-DZCm4slslsnlll8ugdCJQ04mrJ26I4LnC7dNP4al_IJ8ImvFbu9wtOcNunI/s401/man-red-ritual-hooded-cloak-260nw-1937154697.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="233" data-original-width="401" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_ctE62q-5rdeBLqJp7DnCJjQPoIyInB7cCDT8oqIw41gYLXJShNf39_O_0t6yUB3QD98vs3FQni68T0tkXcuUDyZmeLtlEa9NPiDhSMnXQVKR4FxhcX6fTYJ-DZCm4slslsnlll8ugdCJQ04mrJ26I4LnC7dNP4al_IJ8ImvFbu9wtOcNunI/s16000/man-red-ritual-hooded-cloak-260nw-1937154697.jpg" /></a></div><span style="font-family: georgia;"><p style="text-align: justify;">O enredo geral de <i>O Satanista</i> é inegavelmente interessante, mas é difícil não fazer um leve "tsc, tsc" ao constatarmos que o autor não se furtou a um certo contorcionismo para enfiar em seu livro os temas que estavam mais em evidência na época – todo mundo andava preocupado com mísseis, com espionagem internacional e com a possibilidade de um confronto nuclear de proporções globais, de modo que Wheatley aparentemente achou uma boa ideia misturar esses assuntos com a magia negra que deveria ser o carro-chefe da história. A meu ver, essa alquimia ficou bastante forçada. Os personagens são bem estereotipados, provavelmente um reflexo do fato de que o autor estava acostumado a escrever segundo um método, de forma quase industrial, para conseguir produzir um ou dois <i>bestsellers </i>por ano, e, na minha opinião, o excesso de detalhamento sobre como funcionam por dentro a polícia, o serviço secreto e a diplomacia na Grã-Bretanha só contribui para deixar a narrativa mais árida e cansativa. Perto do final, Verney, Sullivan e seus companheiros descobrem que um figurão satanista megalômano roubou um artefato nuclear e o levou para um esconderijo nos Alpes suíços, de onde pretende lançá-lo a fim de precipitar a Terceira Guerra Mundial; essa parte do livro foi claramente planejada para ser uma tensa corrida contra o tempo a fim de impedir a catástrofe, mas só consegue ser burocrática e tediosa ao narrar os encontros de C. B. e Barney com diversos homens importantes de cuja ajuda eles necessitam para deter o doido, seus deslocamentos de um lugar para outro… De quebra, as descrições de diversas belas paisagens suíças deixam em evidência que Wheatley conhecia e adorava o país (e quem não adoraria?), mas as dissertações turísticas, ainda que interessantes, soam deslocadas ao virem misturadas com essa situação que era para ser desesperadora. O autor também não negligenciou uma outra arma para atrair público que já funcionava no começo dos anos 60 tal como hoje, o sexo, mas valeu-se desse recurso da maneira que os usos da época permitiam (a "revolução sexual" só viria alguns anos depois): o ato é bastante mencionado, mas nunca descrito em qualquer detalhe.</p></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Quanto à qualidade editorial, essa me surpreendeu negativamente por oferecer um português sofrível, o que eu não esperava em se tratando de uma edição da Record, editora que sempre tive em bom conceito. Os problemas no uso do idioma são diversos, mas o mais recorrente é a crase, que é muito mais usada do que deveria, e poucas vezes da maneira correta. Estou acostumado a reclamar do fato de haver gente por aí trabalhando com tradução e/ou revisão de livros que, pelo nível de conhecimento que demonstra, não deveria nem passar perto de uma editora, e, pelo visto, esse problema não é de hoje (não há informação da data da edição, mas, em todo caso, é antiga).</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia;">Vocês já devem ter percebido, considerando o jeito como este post começou, mas lá vai: cheguei a este livro e a este autor devido a suas conexões com o Black Sabbath, que me deixaram curioso, e confesso que minhas expectativas eram bem exageradas. <i>O Satanista</i> nem chega perto de entregar tudo o que eu esperava em termos de suspense ou terror. Até achei que podia ser culpa da minha cabeça de leitor cujos gostos se formaram entre o final do século XX e o início do XXI, acostumado, por exemplo, com um <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2015/05/escuridao-total-sem-estrelas.html" target="_blank"><span style="color: red;">Stephen King</span></a>, que costuma pegar muito mais pesado nos componentes tenebrosos e/ou sobrenaturais, mas aí lembrei de sujeitos como <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2018/04/os-melhores-contos-de-h-p-lovecraft.html" target="_blank"><span style="color: red;">H. P. Lovecraft</span></a>, contemporâneo de Wheatley, e <a href="https://notasdeliteratura.blogspot.com/2016/06/o-grande-deus-pa.html" target="_blank"><span style="color: red;">Arthur Machen</span></a>, que é um pouco anterior, e concluí que não é questão de época; eu apenas não me identifiquei com o estilo de Wheatley, nem com seu jeito de desenvolver os temas – pelo menos neste livro. A leitura aconteceu por curiosidade, e é como uma curiosidade que ficará registrada; nada aqui me empolgou pra valer.</span></p>Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9784067.post-34625409500065102352018-05-24T19:50:00.000-04:002018-11-27T00:17:22.502-04:00Contos da Cripta<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZuZe7wNX9ld19dTi-D34AHHRS9AYW3fFtUfrxkTBxCIZQCx1aPzhdhMmsYcjv510yFWlogjo2lrh8w7cC0pG56Eg9VkwytZW4VQZRpj8Z9tJMVbr7Pky-Yz3_4U1NCLE6I81xDQ/s1600/tales+from+the+crypt.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="290" data-original-width="207" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZuZe7wNX9ld19dTi-D34AHHRS9AYW3fFtUfrxkTBxCIZQCx1aPzhdhMmsYcjv510yFWlogjo2lrh8w7cC0pG56Eg9VkwytZW4VQZRpj8Z9tJMVbr7Pky-Yz3_4U1NCLE6I81xDQ/s1600/tales+from+the+crypt.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">A revista em quadrinhos <i>Tales from the Crypt</i> foi publicada (com esse título) de 1950 a 1955 nos Estados Unidos, pela legendária editora EC Comics. O motivo da observação entre parênteses é que <i>Tales…</i> teve uma gênese tão estranha quanto muitas das histórias que publicou. Ocorre que a EC tinha uma revista intitulada <i>Crime Patrol</i>, que, como o nome sugere, era dedicada principalmente a histórias de ação policial, até que seu editor, Bill M. Gaines, pelo <i>feedback </i>que recebia dos leitores por meio de cartas, constatou que as histórias que mais agradavam ao público eram as de terror, publicadas até então de forma esporádica. Como Gaines também gostava de histórias do gênero, e conhecia um punhado de artistas dispostos a produzi-las, <i>Crime Patrol</i> mudou de foco, passando a ter o terror como carro-chefe. Já que era assim, a revista acabou tendo o título trocado para <i>The Crypt of Terror</i> a partir de sua edição de número 17, de junho/julho de 1950 (a periodicidade era bimestral), e novamente para <i>Tales from the Crypt</i>, a partir da edição 20, de dezembro/janeiro. Para todos os efeitos, a revista era sempre a mesma, apesar das mudanças de título, tanto que a numeração não se alterou – parece que, fazendo dessa forma, a EC economizou nas despesas de <i>copyright </i>e com outras providências burocráticas que seriam necessárias para finalizar uma revista e criar outra nova.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>Tales…</i> marcou a infância de gente como <a href="http://notasdeliteratura.blogspot.com/2015/05/escuridao-total-sem-estrelas.html" target="_blank"><span style="color: #cc0000;">Stephen King</span></a> e Clive Barker, para não falar de milhares de outros que não se tornaram escritores de terror famosos. Como King nasceu em 1947, e Barker em 1952, devem ter lido edições antigas, encontradas em sebos ou emprestadas por parentes mais velhos, depois que a revista já havia sido cancelada. Por sinal, o cancelamento não se deu pela <i>causa mortis</i> mais comum entre revistas, a baixa vendagem: em 1955, <i>Tales…</i> estava vendendo muito bem, obrigado. O golpe fatal foi a publicação do famigerado livro <i>Seduction of the Innocent</i> ('A Sedução dos Inocentes'), em 1954, pelo não menos famigerado Fredric Wertham, e toda a repercussão que ele teve. Se você é fã de quadrinhos e conhece um pouco da história dessa forma de entretenimento, é provável que já tenha ouvido falar desse livro e de seu autor – e aposto que não foi de forma afetuosa. Wertham, um psiquiatra, acreditava firmemente que a leitura de histórias em quadrinhos era uma das principais causas de delinquência entre os jovens; chegou a discursar diante do senado americano, conseguindo que uma série de "medidas regulatórias" fossem tomadas em relação ao conteúdo publicado nos <i>comic books</i> da época. Essa censura com outro nome não perdoava nem os quadrinhos de super-heróis (cuja tônica, ao menos até então, era sempre a luta do bem contra o mal, com o inevitável triunfo do primeiro, algo que a maioria das pessoas acharia educativo), que dirá os de terror. O próprio título de <i>Tales from the Crypt</i> já a tornava um alvo preferencial, e, se fosse para adequar-se às novas diretrizes, a revista perderia totalmente as características que faziam dela o que era, de modo que Gaines e sua equipe optaram por finalizá-la em sua edição número 46, em fevereiro/março de 1955. Outros dois títulos da editora, <i>The Vault of Terror</i> e <i>The Haunt of Fear</i> (revistas-irmãs de <i>Tales…</i>, por assim dizer) tampouco sobreviveram. A EC ainda tentou trabalhar em outras direções; não havia uma temática que a "patrulha de Wertham" realmente aprovasse, pois, para o ilustre doutor e seus seguidores, quadrinhos eram inerentemente nocivos, pouco importando sobre o que versassem, mas, em todo caso, um ou outro tema ainda era tolerado, e, visando essa brecha, a editora passou a publicar histórias de guerra enaltecendo o patriotismo e a abnegação do soldado americano, ou aventuras urbanas protagonizadas por heroicos policiais e bombeiros – esse tipo de coisa. Fosse por que motivo fosse, todas essas revistas tiveram vida curta. Já outro título da EC, a humorística <i>Mad</i>, alcançou popularidade, assegurando a continuidade da editora até a década de 60, quando foi vendida e absorvida pela DC Comics, a grande rival da Marvel no filão dos super-heróis e dona de personagens como Batman e Super-Homem, entre muitos outros.</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhnh6BxhFxkz-AJE70JvRHTZznohaaYL3qYEm8xoQn8KSVUYytWWZpq4gDX0pDYny3oW4Ho1LmgCVQFYhMV3wIwe7QMkaD_mbLM1B1V9huc3dEBypXHYQl06Bc7cYCPm6LvGy84OQ/s1600/36757.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="303" data-original-width="208" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhnh6BxhFxkz-AJE70JvRHTZznohaaYL3qYEm8xoQn8KSVUYytWWZpq4gDX0pDYny3oW4Ho1LmgCVQFYhMV3wIwe7QMkaD_mbLM1B1V9huc3dEBypXHYQl06Bc7cYCPm6LvGy84OQ/s1600/36757.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Passada a onda de histeria, as edições de <i>Tales from the Crypt</i> foram reimpressas várias vezes nos Estados Unidos, pois havia demanda por elas; hoje está disponível uma versão que traz todas as revistas reunidas sob a forma de cinco volumes de capa dura. Coisa fina! Quanto aos exemplares das tiragens originais, esses são relíquias que podem alcançar altos preços. Já nos anos 2000, foi tentada uma "ressurreição" da revista, com histórias inéditas, sobre a qual não sei muito; entretanto, meu tema de hoje é outro: <i>Tales from the Crypt</i> na TV.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Na verdade, a primeira adaptação de <i>Tales…</i> para mídias audiovisuais foi um longa-metragem feito em 1972, dirigido por Freddie Francis e contando no elenco com ninguém menos que o astro do terror Peter Cushing; o filme traz cinco narrativas independentes, todas elas dramatizações de histórias publicadas em <i>Tales from the Crypt</i>, <i>The Vault of Terror</i> ou <i>The Haunt of Fear</i>, e é muito querido pelos fãs da franquia. Porém, foi a série de TV produzida pelo HBO que realmente trouxe <i>Tales…</i> de volta a seu devido lugar em milhares de mentes doentias (hehehe!) mundo afora. A série teve sete temporadas, indo de 1989 a 1996, e totalizando 93 episódios, a grande maioria adaptações das velhas histórias em quadrinhos publicadas nas três revistas (e também em outro título da EC, <i>Shock SuspenStories</i>)</span><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">, mas com alguns roteiros originais também. Entre os produtores executivos estão Richard Donner, diretor tanto do clássico de terror <i>A Profecia</i> (1976) quanto do primeiro <i>Super-Homem</i> com Christopher Reeve (1978) e Robert Zemeckis, da trilogia <i>De Volta Para o Futuro</i> (1985, 1989 e 1990). O elenco inclui uma verdadeira constelação de nomes famosos de Hollywood: Tom Hanks, Kirk Douglas, Amanda Plummer, Dan Aykroyd, Timothy Dalton, Demi Moore, Brooke Shields, Joe Pesci, Lea Thompson, Malcolm McDowell e até mesmo a brazuca Sônia Braga, e isso é só pra dar alguns exemplos. No time dos diretores figuram Tobe Hooper (<i>O Massacre da Serra Elétrica</i>), William Friedkin (<i>O Exorcista</i>), Russell Mulcahy (<i>Highlander</i>) e os próprios Donner, Zemeckis e Freddie Francis, entre outros. Curiosamente, até alguns atores experimentaram a cadeira do diretor. O fortão Arnold Schwarzenegger dirigiu o episódio <i>A Troca</i>, da segunda temporada, além de fazer uma rápida aparição na introdução do mesmo, contracenando com o Guardião da Cripta (ver adiante). Já Michael J. Fox, o astro de <i>De Volta Para o Futuro</i>, dirigiu <i>A Armadilha</i>, da terceira temporada, no qual também fez um pequeno papel como um promotor público. Os episódios são curtos, com em média 25 minutos, alguns um pouco mais ou um pouco menos. No Brasil, a série foi veiculada nos anos 90 pela rede Bandeirantes, e agora está disponível em DVD pela Screen Vision.</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNcIpkTijEiiOUNiBvmJ9xzyqR176Ir70XVypF-T9u_EkQKP2Wx1Sfe5WKPYarWYzIdSqD9AEhNEspFp3a85PeiElFaR5SsHvnwcvxrqc4gL2jn0lc-oOY2qVN8J7Fw-rmg3E-Kg/s1600/tom+hanks+%2526+crypt+keeper.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="319" data-original-width="462" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNcIpkTijEiiOUNiBvmJ9xzyqR176Ir70XVypF-T9u_EkQKP2Wx1Sfe5WKPYarWYzIdSqD9AEhNEspFp3a85PeiElFaR5SsHvnwcvxrqc4gL2jn0lc-oOY2qVN8J7Fw-rmg3E-Kg/s1600/tom+hanks+%2526+crypt+keeper.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Mesmo com todos esses nomes estrelados participando dos episódios, o verdadeiro astro da série é o Guardião da Cripta (<i>The Crypt Keeper</i> no original), um simpático morto-vivo que lembra uma múmia despida de suas bandagens (a semelhança é de família, como descobrimos no episódio <i>Lower Berth</i>, que, na tradução, ganhou o pífio título <i>Apaixonados</i>) e atua como mestre de cerimônias, aparecendo sempre no início de cada episódio para dar algumas dicas sobre a história, e novamente ao final, para comentá-la com um infalível humor negro – por sinal, uma das coisas mais legais a respeito de <i>Contos da Cripta</i> é o fato de ela em momento algum levar-se a sério. As falas do Guardião são repletas de trocadilhos engraçadíssimos, que, naturalmente, perdem-se na tradução ("boils and ghouls" em vez de "boys and girls" *gargalhadas*), o que é o principal motivo para que eu recomende que vocês tentem assistir sem as legendas… Principal, mas não único: mesmo sem levar em conta a perda dos trocadilhos, as legendas das duas primeiras temporadas, nesta edição, são um <i>horror</i>, e não no bom sentido. Na maioria, parecem ter saído do Google Translator, não o de hoje, que até oferece traduções razoáveis às vezes, mas a versão de fins dos anos 90 ou por aí, aquela que traduzia <i>World Cup</i> por 'Xícara Mundial’, entre outras coisas quase inacreditáveis. No episódio <i>Three's a Crowd</i> ('Três São Demais'), da primeira temporada, um marido desconsolado diz à esposa: </span><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;"><i>I haven't been able to give you any kids</i> ('Eu nem consegui lhe dar filhos'), mas o que a legenda diz é "eu nem sequer pude te beijar". Obviamente, o tradutor confundiu <i>kids </i>('crianças') com <i>kiss </i>('beijo'), e não teve a brilhante ideia de perguntar-se se isso fazia algum sentido no contexto da história. </span><span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Pérolas desse nível são comuns nas legendas dessas duas temporadas. Na terceira, as coisas melhoram um pouco… Mas não muito.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Fiel a suas origens (afinal, nasceu de uma revista chamada <i>Crime Patrol</i>), <i>Contos da Cripta</i> traz em seus episódios um bocado de crimes, geralmente assassinatos. O lado positivo, se dá para dizer assim, é que o criminoso quase sempre acaba pagando, seja com a ajuda do sobrenatural (que está presente em muitos episódios, mas de forma alguma em todos) ou de alguma arte do destino. Por falar em destino, a futilidade de lutar contra ele também é um tema recorrente, como no episódio <i>Dead Right</i> ('Morte Certa'), estrelado por uma Demi Moore no auge, se é que me entendem. Nele, Cathy, uma secretária ambiciosa, ouve de uma vidente a seguinte profecia: ela se casará com um homem que herdará uma fortuna e morrerá logo depois. Acreditando ser essa sua chance de ficar rica, a atraente garota aceita o pedido de casamento de Charlie Marno, sujeito gordo, feioso e de mau hálito, por quem a única coisa que ela sente é repulsa, e que nem sequer é rico, <i>ainda</i>. A previsão da vidente se realiza ponto por ponto, mas, apesar disso, as coisas nem de longe funcionam como Cathy esperava… É o velho tema do fado inalterável, que já rendia assunto na mitologia grega, reciclado de forma criativa e com uma farta dose do já mencionado humor negro.</span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjnFYQJW86SruQp4yb0rt0CGRIQ0M4zqdTSmIM0ziqNqgthf7Gq2masZM3Zc4rWzsE5SYQHQAMXdYY1MLj-UoP5m6gT6E4YRPk6ut_WvHfz1qQWoyqi4s0Cqm8GQkVrQNZL38MObg/s1600/tales-from-the-crypt.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="388" data-original-width="491" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjnFYQJW86SruQp4yb0rt0CGRIQ0M4zqdTSmIM0ziqNqgthf7Gq2masZM3Zc4rWzsE5SYQHQAMXdYY1MLj-UoP5m6gT6E4YRPk6ut_WvHfz1qQWoyqi4s0Cqm8GQkVrQNZL38MObg/s1600/tales-from-the-crypt.jpg" /></a></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">É claro que, ao mesmo tempo em que mantém um direcionamento geral para a série em termos de estilo, <i>Contos da Cripta</i> também deixa um certo espaço para que cada diretor imprima sua marca pessoal. Como resultado, há episódios que tendem para o suspense, outros para o terror sobrenatural… E há os que apelam despudoradamente para o <i>gore</i>. Exemplo desse último caso é <i>Dead Wait</i> ('Espera Mortal'), da terceira temporada, ambientado em alguma ilha do Caribe, provavelmente perto do Haiti, a julgar pelas referências ao vodu. No que seria o clímax (?) da história, o inescrupuloso aventureiro Red Buckley saca seu canivete e abre a buchada de um cadáver à procura de uma inestimável pérola negra que o sujeito, um milionário de origem francesa, havia engolido pouco antes de morrer, ao preparar-se para fugir da ilha assolada por uma revolução. Como se isso não fosse nojento o suficiente, o ricaço sofria de uma verminose grave, e o diretor achou por bem não nos poupar da visão dos parasitas se mexendo quando o trato intestinal do cara é aberto. OK, os efeitos práticos usados estão longe de realistas, mas o que vocês esperavam?! Tudo se explica quando ficamos sabendo que o diretor desse episódio é o Sr. Tobe Hooper, famoso principalmente por ter dirigido também o "clássico" (aumentem essas aspas aí) <i>O Massacre da Serra Elétrica</i>. O episódio tem um roteiro interessante e poderia passar muito bem sem essa cena. Quase como uma nota de rodapé, é bom registrar que a atriz Whoopi Goldberg, na época vivendo o auge da fama, participa dele, e, depois que termina, é brevemente entrevistada pelo Guardião da Cripta num impagável arremedo de <i>talk show</i>, recheado de trocadilhos com os títulos de alguns filmes de sucesso em que Whoopi atuou.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Mesmo tendo assistido, até agora, apenas às três primeiras temporadas (ainda não encontrei as outras para comprar – espero que a Screen Vision não tenha desistido antes do meio do caminho!), eu poderia ficar aqui enumerando uma longa lista de episódios legais, mas isso seria maçante, então contento-me em registrar que meu favorito até o momento foi o primeiríssimo episódio – o primeiro da primeira temporada –, intitulado <i>The Man Who Was Death</i> ('O Homem que Era a Morte'), a história de Niles Talbot, um homem feliz e realizado com seu trabalho, que consiste em fazer a manutenção da cadeira elétrica numa penitenciária estadual, bem como acionar a alavanca nas execuções. Sua rotina tranquila é sacudida quando a pena de morte é abolida em seu estado (nos Estados Unidos, cada estado tem autonomia para legislar a respeito da pena capital) e ele perde o emprego. Convencido de que sua função é nobre e necessária, Niles decide continuar a exercê-la por conta própria. O episódio é diversão do começo ao fim, com um roteiro que combina com perfeição o macabro e o engraçado (na verdade, o <i>muito </i>macabro com o <i>muito </i>engraçado), um soberbo desempenho do ator Bill Sadler no papel de Niles, e, de longe, a melhor trilha sonora que um episódio de <i>Tales from the Crypt</i> já teve (nem preciso ver a série toda pra saber!), composta por Ry Cooder e executada (ops…) no que parece ser um daqueles teclados eletromecânicos muito utilizados por bandas de rock das décadas de 60 e 70. Show!</span><br />
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Na verdade, não é fácil apontar um único episódio como o preferido, mesmo nesse universo relativamente restrito de apenas três temporadas. Parece que os responsáveis pela série quiseram marcar o final da terceira temporada com algo especial, e dessa ideia surgiu <i>Yellow </i>('Covarde'), sem a menor dúvida a produção mais ambiciosa e mais cara exibida por <i>Contos da Cripta</i>, pelo menos até então. O episódio tem 36 minutos de duração sem contar as partes do Guardião, ou quase 40 se as incluirmos – muito mais que o normal da série – e traz no elenco não um ou dois, mas um punhado de atores famosos, além de ter envolvido logística e preparação que devem ter-se aproximado das de um filme de cinema. A história se passa na França durante os últimos dias da Primeira Guerra Mundial, e trata de um drama envolvendo o general Kalthrob (Kirk Douglas) e seu filho, o tenente Martin Kalthrob (Eric Douglas, filho de Kirk na vida real). Os dois pertencem a uma família de orgulhosas tradições militares, mas, para a decepção do general, Martin mostra-se um covarde no campo de batalha. Há tempos que sua conduta vem gerando descontentamento e desprezo em meio às tropas, mas, quando ele deserta durante um combate, abandonando os companheiros e causando a morte de vários deles, o pai (que, antes de ser pai, é comandante) não tem alternativa a não ser convocar uma corte marcial para julgar o próprio filho… E não posso ir mais adiante sem dar <i>spoiler</i>. Quando assistirem, notem que a ambição do episódio não se limita aos aspectos da produção e do elenco: o conflito proposto no roteiro é bem mais profundo e complexo que o usual da série, e a densidade dramática é algo nunca visto em nenhum episódio anterior. Em <i>Yellow</i>, <i>Contos da Cripta</i> se permite desencanar um pouco da obrigação de pertencer a um determinado gênero, pois não se trata de uma história de terror e nem mesmo de suspense: é um drama de guerra, um <i>excelente </i>drama de guerra, e ponto. Além dos Douglas pai e filho, marcam presença Lance Henriksen (de <i>Alien: o Oitavo Passageiro</i>, e que já havia aparecido no episódio <i>Cutting Cards</i>, da segunda temporada) e Dan Aykroyd (de <i>Caça-Fantasmas</i>). Robert Zemeckis assina a direção.</span></div>
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<span style="font-family: "georgia" , "times new roman" , serif;">Muita gente tem um pé atrás com a ideia de unir terror e humor, e confesso que já fui do mesmo ponto de vista, mas hoje penso diferente: como em quase tudo na vida, também nesse caso poderíamos dizer que o "advérbio" é mais importante que o "verbo". Para quem matou as aulas de gramática, traduzo: não importa tanto <i>o que</i> está sendo feito, e sim <i>como </i>isso está sendo feito. <i>Tales from the Crypt</i> é uma série que esbanja criatividade, talento, e que, mesmo com tudo isso, conseguiu manter-se livre do veneno da pretensão, que já arruinou tantas séries e filmes que poderiam ter sido legais. Não tenta "revolucionar" nada, mas contenta-se em contar boas histórias e, volta e meia, tira um sarro de si própria. Impossível não gostar!</span></div>
Marcos*http://www.blogger.com/profile/06694555843029192408noreply@blogger.com0