segunda-feira, setembro 03, 2012

O Cavaleiro da Morte

O mundo começou no caos e vai terminar no caos. Os deuses o trouxeram à existência e vão acabar com ele quando lutarem entre si, mas no tempo entre o caos do nascimento do mundo e o caos da morte do mundo existe ordem, e a ordem é feita de juramentos, e os juramentos nos unem como as fivelas de um arreio.

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O primeiro volume das Crônicas Saxônicas, intitulado O Último Reino, terminava com a Batalha de Cynuit, na qual Uhtred de Bebbanburg, de apenas 20 anos, liderou uma pequena força saxã contra um exército de dinamarqueses, e não só obteve uma vitória improvável, como ainda matou em combate singular o terrível Ubba Lothbrokson, o último ainda vivo dos três notáveis chefes vikings filhos do lendário Ragnar Lothbrok. Isso poderia ser seu passaporte para uma alta posição na corte do rei Alfredo, já que essa vitória pode ter salvo, ao menos por algum tempo, o reino de Wessex, o último na Inglaterra que ainda resiste aos invasores nórdicos (na época, a Inglaterra estava dividida em quatro pequenos reinos; os outros três eram Ânglia Oriental, Mércia e Nortúmbria, este último a terra natal de Uhtred). Acontece que, como o velho Uhtred que está contando a história reconhece, quando jovem ele era tolo, orgulhoso e teimoso – como quase todos os jovens, só que num grau pior que o da maioria. Este segundo volume começa quando o rapaz contraria os conselhos de seus companheiros mais velhos e, em vez de ir imediatamente até Alfredo e colocar aos pés do rei o estandarte de Ubba, vai primeiro ver sua esposa e filho. Quando, no dia seguinte, ele finalmente chega ao acampamento de Alfredo, é para descobrir que seu desafeto Odda, o Jovem, filho de Odda, o Velho, chegou primeiro e contou uma história diferente.

Uhtred tem algum respeito por Odda, o Velho, que lutou ao seu lado em Cynuit e está agora moribundo devido aos ferimentos sofridos, mas Odda, o Jovem, que ele considera um covarde, mal participou da batalha. Compreensivelmente enfurecido, Uhtred invade a igreja improvisada do acampamento, onde o devoto Alfredo está orando, para reclamar o crédito por sua façanha, e, esquentado como sempre, acaba desembainhando sua espada na presença do rei – o que, conforme uma lei recentemente promulgada em Wessex, pode ser punido com a morte. Alfredo, imbuído de espírito cristão, o perdoa, só que Uhtred, com o mesmo ato, tornou-se culpado também de outro delito, que foi o de perturbar o andamento do serviço religioso, e esse quem tem que perdoar é Deus. Assim, Uhtred acaba obrigado a vestir um manto de penitente e arrastar-se de joelhos pelo chão enlameado do acampamento até o altar – o que para ele, criado entre os dinamarqueses, é uma humilhação grave. Ele nunca gostou muito do rei, a quem considera um carola manipulado por padres (embora seja impossível negar sua sagacidade), e, depois desse incidente, a antipatia ganha contornos de ódio. Isso faz com que volte a pensar em juntar-se aos dinamarqueses, mesmo tendo passado os últimos dois anos lutando contra eles. Poderíamos falar em lealdades conflitantes, mas a verdade é que Uhtred nunca foi realmente leal a lado nenhum – somente a homens específicos, e, até esse momento de sua vida, esses homens, além de poucos, eram quase todos dinamarqueses.

Como dito, Uhtred é nortúmbrio (ou nortumbriano? Hum…), mas, antes de mais nada, é saxão; e, como sua terra natal é agora uma província dos dinamarqueses, governada por um rei-fantoche, é apenas lógico que, como um saxão livre, ele se submeta ao único rei saxônico de verdade que resta na Inglaterra – e esse é Alfredo de Wessex. Além disso, a esposa de Uhtred é de Wessex, e o casamento fez dele senhor de terras herdadas da família dela. Dessa forma, por menos que goste, ele é súdito de Alfredo, e se vê forçado a acomodar-se em suas terras, tentando, sem muita habilidade, fazê-las prosperar, e lutando contra um enorme tédio.

Durante certo tempo, Uhtred foi comandante da pequena frota de Alfredo; seu antigo navio, o Heahengel ('Arcanjo' em anglo-saxão), está se deteriorando numa praia próxima de sua casa, e olhar para a embarcação abandonada aumenta a depressão do guerreiro… Até que seu antigo imediato, Leofric, aparece em outro navio, trazendo a bordo um time de carpinteiros navais e a ordem de consertar o Heahengel e pô-lo novamente a flutuar. A operação deverá demorar cerca de um mês… E, enquanto os carpinteiros trabalham, Uhtred, Leofric e sua tripulação partem em busca de aventuras, sob o pretexto de "patrulhar a costa". Não por coincidência, a primeira parte do livro intitula-se simplesmente Viking, palavra que, hoje em dia, é muitas vezes usada como sinônimo de "nórdico", como designação de todo um povo, mas que, na origem, era aplicada aos homens que tomavam parte em expedições piratas – que é exatamente o que Uhtred e seus companheiros fazem. A bordo do Fyrdraca ('Dragão Flamejante'), como apelidaram seu navio, eles percorrem a costa de Cornwalum (região do sudoeste da Inglaterra, hoje chamada Cornwall em inglês, Cornualha em português), saqueando indistintamente navios dinamarqueses ou ingleses e procurando por outras maneiras de obter algum ouro e prata.

Uma dessas oportunidades se apresenta quando um certo "rei" Peredur lhes propõe que o sirvam como mercenários, o que ele espera que lhe garanta a vitória contra um "rei" vizinho (como Uhtred explica, naquela região qualquer chefe de vilarejo que pudesse juntar 50 homens armados se intitulava rei). Como o Fyrdraca recebeu como disfarce uma cabeça de dragão, como aquelas usadas nas proas dos navios dinamarqueses, Peredur toma Uhtred e seus homens por vikings de verdade. Quando Uhtred descobre que o rival de Peredur também contratou mercenários nórdicos, percebe que a coisa não será a moleza que ele estava esperando. O líder dos mercenários do lado inimigo é um homem conhecido como Svein do Cavalo Branco, cuja fama já chegara aos ouvidos de Uhtred. Os dois sabem que, se lutarem, independentemente do resultado, ambos perderão muitos homens; assim, acabam entrando num acordo: os dois bandos se unem, arrasam a vila de Peredur e dividem a pilhagem (a essa altura, não é surpresa para ninguém que Uhtred não tenha qualquer problema em trocar de lado sempre que acha conveniente).

O item mais valioso que ele obtém ao saquear a vila é Iseult, uma das esposas do agora falecido Peredur, uma jovem de surpreendente beleza que, dizem, nasceu durante um eclipse, o que faz dela uma "rainha das sombras", conforme uma tradição pagã que sobrevive entre aquele povo ainda em processo de cristianização. Segundo a crença geral, uma rainha das sombras possui poderes proféticos enquanto permanecer virgem, razão essa pela qual Peredur nunca a tocou. Quanto a Uhtred, não dá para dizer que ele não seja supersticioso (longe disso), mas parece que, em sua escala de prioridades, os impulsos masculinos têm precedência sobre as crendices: Iseult torna-se sua amante e ele a leva consigo ao voltar para casa, uma vez terminado aquele mês de aventuras.

Quando, no inverno seguinte, Uhtred é chamado a Cippanhamm (a atual Chippenham, que servia de capital) para falar com Alfredo, ele é acusado de dois crimes. O primeiro é o de ter levado os homens e um dos navios do rei à guerra sem ter recebido ordens para isso – e desse ele sabe que é culpado, embora, é claro, negue. A segunda acusação é a de ter-se juntado aos dinamarqueses para atacar Cynuit, onde estava sendo construída uma igreja para celebrar a vitória saxônica obtida no local – obtida por ele, Uhtred. A igreja em construção foi queimada, e dezenas de monges e aldeões, mortos. Desse ataque ele não participou, mas não há escapatória: ou ele será inocentado dos dois crimes, ou considerado culpado de ambos, e, no segundo caso, morre. Diante disso, Uhtred pede e obtém o direito a um julgamento por combate – uma tradição entre os saxões e outros povos germânicos, que acreditavam que Deus, ou os deuses, dariam a vitória a quem estivesse dizendo a verdade. Uhtred, naturalmente, será o seu próprio campeão; para enfrentá-lo, Odda, o Jovem, sempre ansioso por vê-lo morto, oferece como campeão o mais temido de seus homens, um guerreiro gigantesco, de estupenda força e levemente retardado chamado Steapa Snotor. A narração do duelo deixa-nos a todos com a respiração suspensa, mas ele é interrompido: exatamente quando Uhtred e Steapa estão lutando, os dinamarqueses atacam Cippanhamm.

Uhtred, que cresceu entre os dinamarqueses, fala a língua deles e sempre gostou de seu modo de vida, fica fortemente tentado a se aproveitar do caos para mais uma vez mudar de lado e ajudar a arrasar e pilhar a cidade, mas, talvez pensando na esposa e no filho, não o faz; em vez disso, escapa de Cippanhamm, acompanhado apenas por Leofric, Iseult e mais uma mulher, e sem ter a menor ideia se o rei Alfredo escapou também ou se foi capturado ou morto pelos pagãos. Mas a resposta é favorável: depois de penarem muito viajando a pé em pleno inverno, e de várias peripécias, Uhtred e seu grupo reencontram Alfredo nos pântanos de Sumorsӕte (Somerset), uma região vasta e traiçoeira, pouquíssimo povoada, cujos raros e espalhados habitantes, em muitos casos, nunca ouviram falar nem sequer do rei Alfredo, quanto mais dos dinamarqueses. É uma região de pântanos salobros, pântanos de maré, que durante a maior parte do tempo são rasos demais até mesmo para os navios vikings, de modo que ali o rei e seu punhado de seguidores restantes estão em relativa segurança. É a partir dessa base de operações que Alfredo planeja e começa a executar a gradual retomada de seu reino – com a ajuda de Uhtred, que o serve de má vontade, mas demonstrando capacidade, e tendo a vantagem de conhecer os dinamarqueses e seu modo de pensar: entre outras coisas, ele sabe que os invasores provavelmente conseguiriam tomar o pântano, mesmo com as dificuldades de navegação, caso agissem todos juntos, mas é difícil que isso aconteça, por causa de uma rivalidade entre Guthrum, que ficou sendo o principal chefe dinamarquês após a morte de Ubba e seus irmãos, e Svein, o mesmo que Uhtred conheceu em Cornwalum, e que reluta em submeter-se ao comando de Guthrum. É graças a essa rixa que Alfredo tem uma chance, e ele não pretende desperdiçá-la.

Como todo bom autor de ficção histórica, Bernard Cornwell demonstra habilidade na arte de entrelaçar personagens e eventos reais e fictícios, formando um todo plausível. É fato, por exemplo, que, no século IX, a Inglaterra esteve muito perto de deixar de existir devido às invasões nórdicas, e que Alfredo foi o líder que tornou possível a sua salvação: se não fosse por ele, é provável que, onde está hoje o Reino Unido, houvesse, ao invés, um ou mais países escandinavos. Entretanto, é claro que ele não fez isso sozinho, e Uhtred, mesmo tendo sido inventado, representa um dos tipos de homem com quem Alfredo precisou contar. Já que está lidando com eventos históricos (ainda que misturados com ficção), Cornwell opta por deixar de lado as idealizações: seu Uhtred, embora corajoso e bom guerreiro, dificilmente poderia ser chamado de herói, por causa de sua moralidade discutível – cujo principal exemplo é a já comentada facilidade com que ele troca de lado, não só na guerra entre saxões e dinamarqueses, mas em qualquer conflito no qual se veja envolvido. Como deve lembrar quem leu meu post sobre o primeiro volume das Crônicas Saxônicas (melhor ainda, quem leu o próprio livro), Uhtred já era um garoto crescido, com seus dez ou onze anos, quando foi capturado pelos dinamarqueses e adotado pelo chefe Ragnar (nada a ver com o legendário pai de Ubba; na verdade esse nome devia ser comum). O autor não fez a coisa dessa forma sem bons motivos: Uhtred já tinha idade suficiente para lembrar-se com clareza da vida que teve com seu próprio povo, ele já se entendia como um saxão, o que é bem diferente do que aconteceria se tivesse sido capturado ainda bebê, pois, nesse caso, na certa se consideraria simplesmente um dinamarquês – mesmo que os pais adotivos lhe contassem sobre suas origens – e agiria como tal. Com a história de vida que teve, entretanto, ele se sente ao mesmo tempo saxão e dinamarquês, o que, na prática, é a mesma coisa que não ser nenhum dos dois. Ao ler, não temos a impressão de que Uhtred seja atormentado por grandes conflitos internos, mas isso pode ser porque é ele mesmo, na velhice, quem está contando a história, e, como homem rude e prático que sempre foi, talvez ache bobagem demorar-se falando de seus próprios estados de espírito.

Duas curiosidades históricas para concluir. Primeira: durante sua expedição a Cornwalum, Uhtred conhece um monge do País de Gales, de nome Asser, que, segundo ele, viria, mais tarde, a importuná-lo muito. O protagonista, que já tem pouca simpatia por cristãos em geral, e reserva uma especial má vontade para com padres e monges, parece gostar ainda menos desse monge em particular que da maioria dos outros (parece que, no texto original, ele se aproveitava do nome do cara para fazer um trocadilho nível quinta série com ass, que significa asno). Trata-se de personagem histórico, e não qualquer um: Asser viria a ser bispo de Sherborne e foi um importante cronista, sendo que a maior parte do que sabemos sobre a vida e o reinado de Alfredo vem de seus escritos. Segunda: assim como o primeiro volume, este também termina com uma batalha, mas uma de proporções e importância muito maiores, a Batalha de Ethandun, travada no ano 878 (Ethandun era o antigo nome da atual Edington, no condado de Wiltshire). Não vou contar seu desfecho: quem conhece a história da Inglaterra já sabe, e quem ainda não conhece, na certa vai preferir ler o livro, o que, sem a menor dúvida, vale a pena fazer.