Mostrando postagens com marcador Bíblia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Bíblia. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, abril 29, 2020

Terceira Humanidade

Em pleno continente antártico, sob uma camada permanente de milhares de metros de gelo, exploradores encontram uma imensa caverna dentro da qual há um lago congelado… E no lago, dois esqueletos humanos e um terceiro espécime inteiro, perfeitamente conservado no gelo, com idade estimada em cerca de oito mil anos. Uma descoberta notável, é claro, pois, por tudo o que se sabia até aí, a Antártida nunca teve populações humanas, estando isolada e coberta de gelo desde bem antes que nossos ancestrais deixassem a África, berço de nossa espécie. A nova descoberta possivelmente exigirá que a trajetória já rastreada das migrações humanas ao longo da Pré-história seja revista. Mas isso tudo é pinto se comparado a um certo detalhe do achado: esses humanos antigos tinham em torno de 17 metros de altura.

A equipe parece ser composta de apenas três pessoas (!): o paleontólogo Charles Wells (francês apesar do sobrenome, que claramente homenageia H. G. Wells), sua assistente e uma repórter e cinegrafista, cuja presença foi exigência do canal de TV que patrocinou a expedição. Os três parecem ter montado sozinhos a perfuratriz que abriu no gelo um túnel de quilômetros de comprimento, e sozinhos desceram para explorar o que houvesse lá embaixo; se eu estiver enganado, corrijam-me, mas a ideia de três pessoas – nenhuma delas um engenheiro – fazerem tudo isso sozinhas me parece bem ingênua. Ainda na mesma linha de abordagem simplista, a assistente de Wells, com a naturalidade de quem esquenta uma lasanha Sadia no microondas, saca um maçarico e descongela ali mesmo parte do corpo do gigante a fim de recolher amostras de seus tecidos!… Se algo assim fosse mesmo descoberto, a coisa não seria feita desse jeito, no total improviso: o espécime provavelmente seria removido ainda congelado e levado para um local onde pudesse ser analisado por cientistas de ponta de diferentes áreas, tendo à disposição a última palavra em equipamentos. Mas o autor Bernard Werber não parece muito preocupado em retratar fielmente os procedimentos científicos.

Wells exulta, imaginando o furor que sua descoberta irá causar nos círculos científicos. Simultaneamente, em Paris, seu filho, o biólogo David Wells, apresenta um projeto diante de uma comissão julgadora na Sorbonne, tentando obter uma bolsa que lhe permita levar adiante sua pesquisa: ele pretende provar que o caminho da evolução leva as espécies a diminuírem progressivamente de tamanho. Para ele, os pigmeus da África central, há muito considerados pela antropologia como um dos mais primitivos grupos humanos ainda existentes em nossos dias, representam, na verdade, um passo à frente na evolução em relação ao resto da humanidade, sendo menores e apresentando uma extraordinária resistência às doenças tropicais – resistência essa que, a meu ver, não é preciso ser cientista para compreender que deve resultar do mero fato de seus ancestrais terem vivido expostos a essas doenças durante centenas de gerações, nada tendo a ver com seu tamanho. Mas a explanação de David não para por aí:

Tenho um título de doutorado pela faculdade de biologia de Paris, e sou especialista no estudo da influência do meio na fisiologia humana e animal. Meu projeto gira em torno da redução do tamanho das espécies. Acredito que tudo se miniaturiza: os dinossauros se transformaram em lagartos, e os mamutes, em elefantes. Antigamente, as libélulas tinham até um metro e meio de envergadura, e agora medem 15 centímetros. Mais recentemente, os lobos se transformaram em yorkshires, e os tigres, em gatos siameses. (…) E também poderíamos citar os vegetais (…). Em outros tempos, certas sequoias chegavam a cem metros de altura. Mas agora são arbustos de dez metros, em média. Recentemente, descobriu-se que as baratas diminuíram para circular nos encanamentos das casas modernas. E, finalmente, no mundo dos objetos: os carros tornaram-se menores para se adaptar ao aperto e aos engarrafamentos das cidades, os computadores tendem a se miniaturizar, até a superfície média dos apartamentos se restringe com a superpopulação das megalópoles.

Certo, Bernard Werber é jornalista por formação, e eu certamente não vou afirmar que só cientistas deveriam escrever ficção científica (mesmo que ter formação em ciências represente uma enorme vantagem para quem se dedica ao gênero), mas, mesmo assim, é difícil ler esse amontoado de bobagens, dito por um personagem que se diz doutor em biologia, e continuar levando o livro a sério. A redução – ou o aumento – do tamanho nas espécies vivas ao longo do tempo é, sem dúvida, uma resposta evolutiva às condições do ambiente – só que essas condições não são sempre as mesmas, e, ainda que fossem, é ingenuidade pensar que um mesmo problema só pode ser resolvido de uma maneira. Pode perfeitamente acontecer de duas espécies expostas às mesmas condições ambientais encontrarem caminhos evolutivos diferentes e até opostos: uma pode crescer, a outra diminuir, e, naquele momento da evolução, cada uma delas terá se adaptado da maneira que melhor lhe permitiu enfrentar essas condições e sobreviver. Dinossauros não se "transformaram em lagartos"; em primeiro lugar, os lagartos que conhecemos hoje pertencem a um ramo dos répteis bem distinto daquele que incluía os dinossauros – aliás, filogeneticamente falando, as aves estão mais próximas dos dinossauros que os lagartos modernos. Em segundo, como qualquer criança aficionada por dinossauros sabe, nem todos eles eram gigantescos: havia espécies que eram do tamanho de um canário, e talvez ainda menores. Tampouco "mamutes viraram elefantes": no tempo dos mamutes já existiam elefantes como os de hoje. Os dois animais são parentes, é diferente; além disso, não havia apenas uma espécie de mamute, mas várias, e, tirando uma média, seu tamanho era mais ou menos equivalente ao dos elefantes – algumas espécies eram um pouco maiores, outras até menores. O mamute-anão da Sardenha, quando adulto, tinha porte semelhante ao de um boi, e nem por isso era menos mamute que o mamute-imperador da América do Norte, que ultrapassava quatro metros de altura e dez toneladas. David também "esquece" de mencionar que um dos ancestrais comuns de mamutes e elefantes, o moeritherium, que viveu há cerca de 35 milhões de anos, era do tamanho de um porco… Libélulas gigantes existiram de fato; insetos enormes eram comuns durante o período Carbonífero, há uns 300 milhões de anos, mas elas mediam em torno de 70 centímetros, não um metro e meio. Quanto a tigres terem virado gatos siameses, isso chega a ser ofensivo: o gato doméstico derivou de uma ou mais espécies de gatos selvagens do norte da África, e só tem um parentesco distante com os grandes felinos como tigres e leões. Finalmente, a transformação de lobos em centenas de diferentes raças de cães, algumas delas minúsculas, foi resultado de cruzamentos seletivos promovidos pelo homem, não de evolução natural. Para não dizer que nada nesse discurso faz sentido, é plausível que as baratas tenham mesmo diminuído de tamanho para melhor se adaptarem a viver nas cidades humanas, mas isso não significa que, se as condições do ambiente fossem outras, elas não pudessem ter, ao invés, aumentado. Não vou nem comentar a parte que fala de automóveis, computadores e apartamentos como se fossem seres vivos…


(Isso foi a título de alerta, além de ser algo que eu não conseguiria calar, e deve dar-lhes uma ideia da reserva com que devem encarar o restante de Terceira Humanidade. Vamos em frente…)

Se o sobrenome Wells homenageia o escritor britânico a quem a ficção científica tanto deve, a escolha do primeiro nome do personagem tampouco foi gratuita: David é Davi, aludindo ao pastor adolescente que, de acordo com o Primeiro Livro de Samuel, na Bíblia, deu aos israelitas a vitória na guerra contra os filisteus, ao abater com um tiro de funda o maior guerreiro destes últimos, Golias, um gigante de quase três metros de altura. Mais tarde, Davi se tornaria rei de Israel, por sinal um dos mais importantes. O nome cai bem para o jovem cientista de baixa estatura que está tentando provar que "gigantes" não estão com nada e que o futuro pertence aos pequenos – e que, ao tomar conhecimento do que seu pai encontrou na Antártida, verá aí um forte elemento corroborador de sua teoria, já que os gigantes de 17 metros do passado distante se extinguiram, enquanto nós, que, para eles, deveríamos parecer pouco mais que camundongos, continuamos por aqui.

Outra candidata à bolsa de pesquisa é Aurore Kammerer, médica endocrinologista cujo projeto versa sobre as supostas descendentes das legendárias amazonas citadas na mitologia grega, que ainda hoje viveriam na região próxima à fronteira da Turquia com o Irã, e que, graças ao uso terapêutico que fazem do mel e outros produtos das abelhas, gozariam de saúde muito superior à média, raramente apresentando qualquer doença. Para Aurore, os hormônios femininos das abelhas, presentes em profusão na "geleia real" que alimenta a rainha da colmeia, seriam o segredo – e uma progressiva "feminização" seria o caminho para criar uma humanidade mais sadia e próspera. Dentre 69 candidatos, David, Aurore e mais um são os únicos a terem seus projetos selecionados, e partem em suas respectivas expedições – ele para as selvas do Congo, ela para as estepes da Turquia. Sozinhos. Bem, a essa altura já acho que Werber não estava mesmo tentando soar crível.

A característica mais curiosa de Terceira Humanidade foi inspirada pela "Hipótese Gaia", proposta nos anos 70 pelo médico e ambientalista britânico James E. Lovelock e muito popular desde então. A propósito, o nome foi sugestão do escritor William Golding (ele mesmo, o autor de O Senhor das Moscas), amigo de Lovelock. Gaia, na mitologia grega, é a divindade primordial que personifica a Terra; seu nome em grego, Γαία, às vezes é transliterado como Gea, que originou o radical geo, presente em muitas palavras que fazem referência à Terra: geografia, geologia, geofísica e assim por diante. Ela e outras divindades primordiais teriam sido geradas pelo Caos; Gaia, sozinha, gerou Urano (o Céu), que se tornaria seu consorte. Os dois foram os pais dos titãs, que, por sua vez, gerariam os deuses do Olimpo.

Essa hipótese, basicamente, considera que os elementos físicos da Terra (sua atmosfera, massa terrestre, oceanos etc.) e sua biosfera (quer dizer, o conjunto formado por todos os ecossistemas do nosso planeta e pela totalidade dos organismos vivos que os habitam) mantêm uma estreita e delicada interdependência, cujo equilíbrio seria essencial para manter as condições necessárias à vida. A Terra, então, seria, de certo modo, um único e vasto ecossistema com a capacidade de se autorregular. Trata-se de uma hipótese séria e digna de atenção, mas que já foi alvo de muito sensacionalismo. Por vezes se diz, numa simplificação grosseira, que a Hipótese Gaia descreve a Terra como um grande ser vivo – que, como todo ser vivo, teria seu próprio "sistema imunológico", com a função de combater possíveis ameaças. Disso decorre que se nós, humanos, viéssemos a nos tornar um perigo para a saúde do planeta, "Gaia" encontraria um jeito de nos eliminar. Werber aproveita a Hipótese Gaia da maneira mais fantasiosa, intercalando capítulos (impressos em itálico) que seriam um monólogo da suposta consciência planetária, contando (resumidamente, é claro) sua história desde seu nascimento, há mais de quatro bilhões de anos, passando pelo surgimento e evolução da vida e pelo sofrimento trazido por repetidos impactos de asteroides, três deles especialmente grandes e que causaram estragos proporcionais a seu tamanho. O primeiro foi antes do surgimento da vida, já os outros dois causaram extinções em massa, sendo a última delas a que pôs fim ao reinado dos dinossauros, há cerca de 60 milhões de anos.

Gaia teria tido a ideia de selecionar, dentre as espécies animais que a habitavam, uma que tivesse o potencial para desenvolver inteligência e habilidade suficientes para criar uma tecnologia avançada e inventar uma maneira de protegê-la contra o perigo de novos impactos. Sua primeira aposta teriam sido os troodontes, uma linhagem de dinossauros que estava em ascensão quando o último grande asteroide atingiu o planeta. Eram bípedes carnívoros de tamanho semelhante ao nosso (a única espécie descrita até o momento, denominada Troodon formosus, tinha cerca de dois metros de comprimento do focinho à cauda e peso aproximado de 50 quilos), dotados de cérebros excepcionalmente grandes, estando, com toda a probabilidade, entre os animais mais inteligentes da época. Werber dá uma "viajada" ao assegurar que eles até já começavam a utilizar ferramentas rudimentares, coisa que dificilmente poderá algum dia ser provada (ou refutada), mas quem pode garantir que, se tivessem tido a oportunidade, esses répteis não teriam se tornado mais e mais inteligentes e habilidosos, até o ponto de construírem uma civilização? Um artigo que li há muitos anos na Isaac Asimov Magazine dizia que todos aqueles répteis inteligentes dos quais a ficção científica tanto gosta eram biologicamente impossíveis, porque inteligência (no sentido de autoconsciência, raciocínio abstrato etc., quer dizer, uma inteligência de nível comparável ao nosso) exige um cérebro grande e complexo, e os organismos reptilianos, por serem pecilotérmicos (o popular "sangue frio"), não teriam um metabolismo capaz de fornecer energia suficiente para desenvolver um cérebro assim e mantê-lo funcionando – só que, de lá para cá, a ciência descobriu muito sobre os dinossauros, inclusive o fato de que muitos deles, diferentemente dos outros répteis e à semelhança de nós, mamíferos, eram homeotérmicos ("sangue quente"). Alguns paleontólogos teorizam que os troodontes talvez tivessem penas – sabe-se que várias espécies de bípedes carnívoros as tinham; são um recurso eficaz para regular a temperatura corporal, e talvez tenham até mesmo permitido a esses dinossauros colonizar regiões de clima relativamente frio, que seriam inabitáveis para répteis comuns. Em teoria, portanto, nada impediria que uma espécie descendente deles se tornasse inteligente. Não é preciso dizer que, se essa civilização "troodôntica" tivesse se tornado realidade, nós, hominídeos, não teríamos tido o espaço que tivemos para evoluir, e é muito provável que não chegássemos ao nosso estágio atual. É tudo um grande "e se", mas, mesmo assim, as possibilidades são fascinantes e assustadoras.

Concretamente falando, a esperança que Gaia depositava nos troodontes foi baldada, pois aquele inesperado terceiro asteroide caiu e os varreu da existência, junto com cerca de 90 por cento das outras espécies animais de então, muito antes que eles chegassem sequer ao que chamaríamos de Idade da Pedra Lascada. A lista de candidatos que ela cogitou ao longo das próximas dezenas de milhões de anos variou de polvos a porcos, passando por golfinhos, formigas e outros, mas todos apresentavam alguma deficiência que os desclassificava. No caso dos golfinhos, a título de exemplo, era o fato de que, por mais inteligentes que eles fossem, sua conformação física os impossibilitava de criar ou utilizar ferramentas, edificações etc., de modo que nunca chegariam a ter uma civilização no verdadeiro sentido do termo (nisso Werber está correto). Polvos e formigas, é claro, são outra "viagem", ainda que ambos tenham, sob algum aspecto, uma inteligência notável. Por fim, essa Terra autoconsciente e capaz de deliberação voltou sua atenção para os primatas, que tinham uma característica que ela muito admirava: mãos dotadas de dedos preênseis, capazes de movimentos muito precisos. Infelizmente, segundo ela, ainda que os primatas tivessem essa ferramenta fenomenal, faltava-lhes capacidade intelectual que os habilitasse a tirar dela o máximo proveito. Por outro lado, havia o porco, o "animal terrestre mais inteligente" (George Orwell deve ter dado uma risadinha lá no Além), mas que, com cascos no lugar de dedos, dificilmente chegaria muito longe no caminho civilizatório, pelo mesmo motivo que o golfinho. Eis a genial solução encontrada:

Ocorreu-me inicialmente a ideia de um projeto original: levar um primata a fazer amor com um… porco. Certo dia, em consequência de um terremoto, um primata viu-se preso num fosso com uma fêmea facóquera (ancestral do porco). Os dois se estranharam, lutaram e, não conseguindo se matar, acabaram fazendo amor. Nove meses depois, nascia um novo animal híbrido com a pele lisa e rosada como os porcos, a sensibilidade e a inteligência dos porcos, mas a postura sobre as duas patas traseiras e a capacidade de agarrar objetos e manipulá-los, como os primatas. Parecia mais ou menos um macaco sem pelos, com pele de porco. Eu conseguira juntar a boa mente com o bom físico, numa repartição de 60% de genes suínos e 40% de genes primatas. Foi como "inventei" o meu defensor: o ser humano.

Eu poderia ficar aqui dizendo o óbvio, ou seja, que, mesmo que essa bizarra relação sexual chegasse a acontecer, ela jamais produziria uma descendência, que a "pele lisa e rosada" é uma característica do porco doméstico (na verdade, nem isso: só de algumas raças), e não do facóquero, ou facócero (javali africano), nem do javali europeu que foi quem realmente deu origem aos nossos amigos fornecedores de bacon… Mas acho suficiente observar que, com essa, todas as bobagens anteriormente ditas por Werber perdem a relevância, já que agora ele escancarou o fato de que não tem nenhuma pretensão de ser levado a sério.

(Destaque para o "bem-humorado" detalhe de nos atribuir uma porcentagem maior de genes suínos que primatas, e para a "sutileza" de emendar, logo a seguir a esse capítulo, outro no qual David Wells aparece praticando um ato "semicanibal" ao devorar sanduíches de presunto.)

Se, portanto, Gaia "inventou" o homem para que ele concebesse e executasse uma maneira de proteger-se (e, por tabela, também a ela) contra o perigo do impacto de asteroides, então, apesar de alguns sucessos pontuais obtidos pelos gigantes nos tempos antigos, parece que o saldo geral do experimento até agora é contraproducente, pois a humanidade atual não só permanece basicamente tão vulnerável a esse risco quanto estavam os dinossauros, como ainda tem maltratado um bocado o planeta, extinguindo espécies às centenas, destruindo florestas e poluindo a atmosfera, o solo e as águas com resíduos tanto comuns quanto radioativos.

Absurdos científicos e fantasias new age à parte, a narrativa prossegue. David, Aurore e o terceiro selecionado retornam de suas expedições preliminares financiadas pela Sorbonne e voltam a se apresentar à mesma comissão julgadora para a fase seguinte da seleção, na qual somente um passará – e acaba não sendo nenhum dos dois. Entretanto, uma integrante da comissão procura ambos e oferece-lhes a possibilidade de tocarem seus projetos sob a chancela do Ministério da Defesa da França. Seu nome é Natália Ovitz, coronel Natália Ovitz (curiosamente, uma anã), e ela parece ter como uma de suas funções manter o presidente da república (um abobado cheirador de cocaína) a par dos avanços da ciência que possam afetar os interesses da nação. A coronel Ovitz acredita que o estudo de David sobre a redução de tamanho e o de Aurore sobre a feminização da humanidade – ambos tendo a ver também com resistência a doenças – podem ser valiosas ferramentas para impedir possíveis desastres causados pela guerra nuclear e biológica.

Apesar de todas as sandices, Terceira Humanidade é notavelmente eficiente ao aproveitar-se da experiência de David na África para retratar – e denunciar – a situação revoltante vivida pelos pigmeus, outrora um povo livre e orgulhoso. Algumas tribos, cada vez menos, ainda conseguem continuar vivendo como seus ancestrais, isoladas na selva, sustentando-se com a caça e a coleta, mas a própria selva não cessa de diminuir por causa da exploração desordenada da madeira e da demanda por terra para a agricultura e a pecuária, o que força cada vez mais pigmeus a se renderem à "vida civilizada", o que, no caso deles, em geral significa trabalhar para os bantos (etnia majoritária no Congo e outros países da África central), em condições que só podem ser descritas como escravidão. Isso tudo é muito real e muito bem descrito por Werber – pena que, estando no meio de tanta bobagem, o leitor pode ser levado a menosprezar essas informações. Já as amazonas de Aurore podem ser fictícias (se alguém souber do contrário, por favor me informe!), mas a situação delas, de minoria perseguida, reflete bem a de várias etnias e culturas que ainda tentam resistir à extinção, no Oriente Médio e em outros lugares.

Por meio de um ritual dos pigmeus, turbinado por alucinógenos, David faz uma "viagem" a uma suposta encarnação anterior, na qual ele era um cientista da raça gigante que habitava a Atlântida, e cujas pesquisas teriam tornado possível a "miniaturização" da humanidade, dando origem a versões reduzidas dos seres humanos da época – e, como vocês já adivinharam, as miniaturas somos nós. Isso fazia parte do plano de Gaia: as naves espaciais que os gigantes atlantes construíram com o objetivo de defender a Terra contra meteoros eram, naturalmente, em escala para seus tripulantes, e, por serem tão grandes, elas se desintegravam ao chegarem ao espaço (não entendi o como ou o por quê, mas tudo bem). Com uma tripulação de criaturas pequenas, seria possível fazer naves menores e mais estáveis. O que David vê nesse vislumbre de sua vida passada lhe traz insights que permitem a ele e seus companheiros repetir o processo para gerar a "terceira humanidade" que dá título ao livro: os primeiros humanos, cuja estatura média era de 17 metros, "inventaram" a segunda humanidade, que somos nós, com nossa média de um metro e setenta centímetros; o próximo passo seria um ser humano de 17 centímetros de altura, que cresceria dez vezes mais depressa, chegando à fase adulta em menos de dois anos, e que, por consequência, viveria dez vezes menos, mas que, com esse tamanho reduzido, estaria em condições de tornar-se o espião e sabotador perfeito. Esse é o objetivo: criar uma equipe de miniespiões que possam se infiltrar em lugares-chave do governo e das forças armadas do Irã, país que, naqueles dias, ameaça precipitar o planeta na Terceira Guerra Mundial. Maluco? Totalmente.

Ah, sim: já perto do final do livro, Werber decide criticar e satirizar a religião. Seu "embasamento" é do mesmo nível de quando ele fala sobre ciência:

(…) São Paulo, cujo nome era Saulo de Tarso, foi inicialmente um grande perseguidor dos amigos de Jesus. Chegou inclusive a participar do apedrejamento de Estêvão, um dos companheiros mais próximos de Cristo. O que não o impediu de inventar o cristianismo, embora nunca tivesse encontrado Jesus pessoalmente. Por sinal, o dito-cujo, na verdade chamado José, deixou claro em vida que não queria "de modo algum criar uma nova religião, mas apenas lembrar a lei dos pais aos que a haviam esquecido sob o jugo da ocupação romana".

Que São Paulo começou por perseguir os cristãos, é fato, mas notem como o autor evita chamá-los por esse nome para não entrar em conflito com o que diz depois, isto é, que o próprio Paulo teria inventado o cristianismo, bobagem repetida com certa regularidade pelos detratores deste último. De onde Werber terá tirado que o nome de Jesus era José, não me perguntem, mas a declaração que ele coloca na boca de Cristo, se não me engano, foi copiada quase palavra por palavra do romance Operação Cavalo de Troia, de J. J. Benítez. Dos Evangelhos é que não foi.

Talvez alguém que me leia esteja pensando: mas Marcos, por que é que você, um assumido apreciador de literatura de fantasia, que sempre protestou quando via algum crítico malhar uma obra sob a alegação de que ela era "inverossímil", e sempre considerou uma atitude burra achar que a ficção deve se limitar a copiar a realidade, agora resolveu criticar esse livro específico dizendo que ele é "maluco"? A resposta não é simples, e eu absolutamente não tenho certeza da minha capacidade de explicá-la de forma satisfatória, mas acho que devo tentar.

É o seguinte: se você está lendo fantasia, significa que você e o autor celebraram um acordo tácito, e a sua parte nesse acordo, como leitor, consiste em suspender a descrença enquanto estiver lendo: você sabe que elfos e dragões não existem no mundo real, mas, ao abrir as Crônicas de Dragonlance, "esquece" momentaneamente esse fato e passa a pensar conforme a lógica interna do mundo de Krynn, onde existem dragões, elfos e muito mais. Isso pode valer também, embora de forma menos explícita, para a ficção científica: nenhum ou quase nenhum físico sério acredita na existência do famigerado hiperespaço, mas, se um autor de ficção científica tem uma ideia empolgante para uma história, e, para que essa história funcione, é indispensável que haja uma maneira de viajar mais rápido que a luz (coisa, até onde se sabe, impossível pelas leis da física), apenas um leitor muito chato torceria o nariz só porque o autor se permitiu essa "licença poética". Porém, se outro autor está escrevendo uma história que ele quer que tenha uma cara de realidade, que se pareça com algo que poderia acontecer no mundo que conhecemos, a meu ver ele precisa ser bem mais sutil em sua liberdade autoral. Colocar na boca de um personagem cientista declarações que qualquer pessoa com conhecimentos básicos de ciência sabe que são absurdas, e tornar imprescindível dar a esses absurdos o status de fatos, fazendo disso elemento essencial para que a história se sustente, compromete logo de cara toda a estrutura da narrativa e torna muito difícil "mergulhar" nela. Para falar de modo mais concreto, não me importo que Werber brinque o quanto quiser com a ideia de três humanidades sucessivas, cada qual dez vezes menor que sua antecessora – mas dinossauros não viraram lagartos e tigres não viraram gatos siameses, ponto. Trechos de resenhas (elogiosas, é claro) reproduzidas na contracapa do livro colocam ênfase na crítica que o autor faz ao mundo atual e também em seu "humor ácido"; é fato que tentativas de humor (negro, muitas vezes) pululam por todo o livro, mas, pelo menos para mim, ao longo de suas 500 páginas há no máximo duas piadas que funcionam.

É possível, entretanto, que vocês não se importem com nada disso, e, nesse caso, Terceira Humanidade até vale como passatempo, pois é inegável que a narrativa é fluente e entretém… Principalmente o Ato 2: a Era da Mutação, que narra uma pandemia mundial de uma "nova antiga" forma de gripe, um vírus que o professor Charles Wells e suas companheiras inadvertidamente "acordaram" na Antártida, depois de ter ficado inativo durante milênios. O médico-legista que examina seus corpos em Paris se contamina e, viajando de férias para o Egito logo em seguida, transmite a doença para outros turistas, profissionais de saúde, funcionários de companhias aéreas… Com isso, e graças ao transporte aéreo que hoje permite a qualquer um (saudável ou infectado) chegar a qualquer lugar do mundo em questão de horas, esse patógeno rapidamente se dissemina por dezenas de países e afeta milhões de pessoas, acabando com a economia e com a ordem social. E, casualmente, li o livro entre os meses de março e abril de 2020, bem durante a crise do COVID-19, o que resultou numa coincidência um tanto sinistra… É claro que o vírus da ficção é muito mais terrível que o real – transmite-se com mais facilidade e é cem por cento letal –, pois descrever uma doença relativamente controlável não teria um efeito satisfatório numa narrativa de tom apocalíptico, como a dessa parte do livro. Mas, mesmo assim, a coincidência é perturbadora. A partir daí, a história ganha mais ação, com coisas que já vimos em muitos outros lugares antes, como cidades mergulhadas no caos e sobreviventes encerrados em bunkers, tendo que rechaçar à bala outros que vagam pela terra devastada em busca de comida e abrigo. Nada de novo, mas funciona como narrativa de ação e de "ficção científica de terror".

quinta-feira, dezembro 19, 2019

O Manto Sagrado

Depois de os soldados crucificarem Jesus, tomaram as suas vestes e fizeram delas quatro partes, uma para cada soldado. O manto, porém, todo tecido de alto a baixo, não tinha costura. Disseram, pois, uns aos outros: Não o rasguemos, mas lancemos sorte sobre ele, para ver de quem será. Assim se cumpria a Escritura: Repartiram entre si as minhas vestes e lançaram sorte sobre o meu manto. Isso fizeram os soldados.

Jo 19, 23-24

*          *          *

Todos os quatro Evangelhos mencionam o momento em que, tendo crucificado Jesus, os soldados romanos dividiram entre si as roupas que ele usava, mas apenas o de São João narra esse incidente com detalhes, talvez porque João, um adolescente na época, tenha sido o único dos evangelistas a ser testemunha ocular da crucificação do Filho de Deus. Lucas limita-se a um quase telegráfico "Eles dividiram as suas vestes e as sortearam", e Mateus e Marcos dizem o mesmo com pequenas variações. Só João se refere ao fato de que, depois de terem repartido entre si as peças menores usadas por Cristo, os soldados notaram que o item principal, o manto, era de boa qualidade, ainda que simples, e decidiram não fazer o óbvio, isto é, parti-lo em pedaços que também seriam distribuídos igualmente entre todos, para serem usados como pano para remendos, ou coisa parecida. Em vez disso, disputaram-no num jogo de dados.

Lloyd C. Douglas (1877-1951) contou certa vez que a ideia para escrever O Manto Sagrado surgiu quando, em 1940, já um escritor famoso (com obras, muitas vezes, de viés cristão), ele recebeu uma carta de uma leitora que perguntava se alguém sabia quem ganhou o manto naquele jogo ou o que foi feito dele. A questão é evidentemente complexa; consta que o manto que se supõe ter sido usado por Jesus esteve guardado em Constantinopla até o século IX, quando a imperatriz Irene o ofereceu de presente a Carlos Magno. A peça está hoje na basílica francesa de Saint-Denys de Argenteuil – quer dizer, temos a certeza de que se trata do mesmo manto que o rei dos francos recebeu; se é ou não o mesmo que teria um dia vestido Cristo, há controvérsia. Até o fiel mais devoto deve permitir-se uma dose de ceticismo quando se trata de relíquias: como dizia João Calvino, se se juntassem todos os supostos fragmentos da cruz de Jesus que eram venerados em igrejas Europa afora, o resultado seria madeira suficiente para construir um navio. E ainda que se trate mesmo do manto de Jesus, como saber por quais peripécias ele teria passado até chegar ao seu paradeiro atual? O Manto Sagrado trata-se, na maior parte, de ficção (sendo que o autor toma, inclusive, diversas liberdades históricas), mas, para sermos justos, existem poucos livros tão eficientes em capturar a atenção e a imaginação do leitor, em apresentar personagens cativantes e em fazer-nos mergulhar de cabeça em outra realidade a ponto de perder a noção do tempo. Enfim, um estupendo "virador de página", que, além disso, cumpre com louvor seu objetivo evangelizador (Douglas era pastor luterano) sem cair num didatismo tedioso que acabe afastando o leitor – pecado (ops…) que muitos romances inspirados na Bíblia cometem.

A história começa em Roma, seguindo o tribuno militar Marcelo Lucan Gallio. Como já mencionei em outros posts, os tribunos militares eram oficiais que se reportavam diretamente ao legado, ou seja, o comandante de uma legião, estando, por sua vez, acima dos centuriões. Em geral eram jovens de famílias abastadas e influentes, formados numa academia militar, mas sem experiência real de combate. Passando daí, havia tribunos e tribunos: enquanto alguns davam o seu melhor e arriscavam a vida participando ativamente de ações militares, outros apenas se aproveitavam das prerrogativas do posto. Marcelo, sinto dizer, tende mais para o segundo tipo; é filho de Marco Lucan Gallio, senador e homem de grande fortuna, e ainda mora na vasta e confortável villa da família, com os pais, a irmã adolescente, Lúcia, e um punhado de escravos. Está com 23 anos e, ao que tudo indica, articulando o início de sua carreira política, quando comete um infeliz deslize: num banquete, já com vinho demais na cabeça, ele cai no riso na hora errada e acaba ofendendo os brios do príncipe Gaio (ou Caio), enteado do imperador Tibério e responsável pela maior parte das decisões do governo desde que o imperador, já idoso, mudou-se de vez para seu palácio na ilha de Capri (já aí o autor tomou uma grande liberdade, mas voltarei a isso depois). Gaio já tinha queixas anteriores contra os Gallio, já que o pai de Marcelo, homem íntegro, por vezes o criticou em seus discursos no senado, por conta de suas extravagâncias e má administração. Ainda assim, a família possui muitas conexões e influência, de modo que o príncipe não pode permitir-se o tipo de vingança que teria preferido, mas faz o que está ao seu alcance: trança os pauzinhos para que o jovem tribuno perca a boa vida (e, mais importante, as possibilidades de ascensão política) que tem em Roma, destacando-o para comandar a guarnição de Minoa, uma cidade de pouca importância na Palestina. Marcelo, então, ruma para lá, acompanhado por Demétrio, seu escravo grego, que cumpre as funções de ajudante pessoal, guarda-costas, camareiro, leva-e-traz, e tudo o mais que for necessário.

Não dá para apontar um único protagonista em O Manto Sagrado; tanto Marcelo quanto Demétrio parecem se enquadrar nessa função. O tribuno já é um personagem interessante, mas o escravo é ainda mais. Filho de uma família próspera da cidade portuária grega de Corinto, é um rapaz instruído, criado para o orgulho, e agora reduzido à escravidão, depois que sua família caiu em desgraça devido ao envolvimento do pai com a resistência à ocupação romana. Ainda assim, ele teve mais sorte que muitos: o senador Gallio é um homem justo, e em sua casa os escravos são tratados de forma digna – sem prejuízo de uma disciplina rigorosa. Demétrio foi o presente que o senador deu ao filho quando este atingiu a maioridade (aos 17 anos, conforme a lei romana), e, nos seis anos que se passaram desde então, tem servido a seu jovem senhor com dedicação e lealdade. Marcelo, por outro lado, às vezes se esquece dos papéis de senhor e escravo: é nítido que Demétrio é seu melhor amigo.

Tenho escrito repetidamente, em diferentes posts, que o segredo do extraordinário sucesso do exército romano na grande maioria dos conflitos em que se envolveu em sua longa história era a sua disciplina férrea, e isso é fato, mas não significa que essa disciplina fosse igual sempre e em todo lugar, como Marcelo descobre. A guarnição de Minoa é uma espécie de depósito de inconvenientes, um bando desmazelado e indolente cujos oficiais tampouco têm moral ou sequer energia para tentar colocar as coisas nos devidos lugares – uma caricatura deprimente da eficiência e da ordem exemplares que caracterizam as outras guarnições romanas… Até a chegada do novo comandante. Mesmo sem experiência, Marcelo possui fibra, e não perde tempo para colocar a guarnição na linha.

O jovem Gallio, portanto, está desempenhando com excelência a missão que era para ser um castigo, quando chega a época da Páscoa judaica (lembrando que, naquele tempo, a Palestina era um país predominantemente judeu). Marcelo, sem dúvida, estudou História com seus tutores e depois na academia, mas os judeus eram um povo tão periférico na geopolítica da época, que aparentemente só foram vistos de passagem nas aulas. É seu segundo em comando, o centurião Paulo, que já está na região há muito mais tempo, quem lhe explica o que aquela festa significa no contexto da religião e dos costumes judaicos. Além de recordar sua libertação do cativeiro no Egito mais de mil anos antes, a Páscoa (palavra que vem de Pessach, 'passagem') é para os judeus um lembrete de que todo homem e mulher são peregrinos neste mundo, de que a vida material é algo passageiro, apenas um caminho que trilhamos rumo à eternidade – mas Marcelo foi educado conforme as correntes filosóficas mais em voga entre gregos e romanos cultos, e não acredita no sobrenatural ou em vida depois da morte. Para ele e seus pares, a fé nos deuses não passa de uma fantasia inofensiva que ajuda pessoas pobres e desfavorecidas a encarar as durezas da vida, algo que os "superiores" olham com indulgência e um certo divertimento. (O senador Gallio ensina ao filho que "há sempre alguma coisa de basicamente errado com um homem rico ou um rei que finge ser religioso"; ele está se referindo especificamente a Tibério, que, como já vimos em outro lugar, era adepto de todo tipo de crença e superstição esdrúxula – e, para homens como Gallio, religião é só uma superstição institucionalizada. Não há no livro menção à religião romana original, a do culto familiar – muito mais antiga, enraizada e importante para os romanos que a crença nos Olimpianos –, e é possível que Douglas, como quase todo mundo, nada soubesse a respeito; para sanar essa lacuna, recomendo o livro A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges.) A crença dos judeus, que adoram um Deus único, parece a Marcelo igualmente ingênua, com a desvantagem de não oferecer o mesmo campo fértil para a para a poesia, a literatura e as artes, como a religião greco-romana.

O importante no momento, porém, é que, durante a Páscoa (que, entre os judeus, dura toda uma semana), a cidade de Jerusalém recebe multidões de peregrinos, ficando apinhada, e, é claro, qualquer lugar onde se reúna muita gente torna-se propício a agitações, de modo que, enquanto dura a festa, todas as guarnições romanas da Palestina têm que deslocar parte de seus efetivos para a Cidade Santa, a fim de ajudar a manter a ordem e desencorajar tumultos. Ao aproximar-se a primeira Páscoa desde que assumiu seu posto, Marcelo quer incumbir Paulo de comandar o destacamento que irá a Jerusalém, mas o centurião sugere irem os dois, dizendo que é o único acontecimento interessante do ano naquelas paragens, e o jovem comandante concorda em acompanhá-lo, levando Demétrio consigo, naturalmente. Acontece então que, na chegada a Jerusalém, já durante a semana da Páscoa e poucos dias antes do sábado (o dia que os judeus consagram à oração e ao repouso), Demétrio vê uma movimentação estranha, uma multidão agitando ramos de palmeira e gritando aclamações enquanto um certo pregador da Galileia, um tal Jesus de Nazaré, entra na cidade cavalgando um humilde burrinho (conforme Mt 21, 8-11). Seu olhar cruza com o do estranho por apenas um instante, e isso basta para causar ao jovem grego uma impressão profunda, que não lhe sai da cabeça durante os dias seguintes. O que acontece a seguir, todos os que conhecem o Novo Testamento sabem: Jesus é preso, julgado e condenado à crucificação – uma das piores maneiras de morrer conhecidas na época. E quem, senão o destacamento de Minoa, sob o comando do legado Marcelo Lucan Gallio, recebe ordem de cumprir a sentença?

A crucificação, ou crucifixão (as duas formas existem) foi um método de execução que os romanos aprenderam com os macedônios, que o aprenderam com os persas, a quem possivelmente cabe o "mérito" da sua invenção. É pouco provável que a cruz de Jesus tivesse a forma que estamos acostumados a ver: normalmente os madeiros utilizados tinham forma de T, às vezes de Y, não sendo raro, ainda, que o "crucificado" fosse pregado a um simples poste, com os dois braços para cima. E, por falar em pregar, uma observação é necessária. Embora a prática de fixar o sujeito à cruz usando enormes pregos seja, sem dúvida, o detalhe mais horripilante de todo o processo, eles, na verdade, eram um mero acessório, destinado a aumentar o sofrimento do condenado e a tornar a cena mais assustadora para quem a visse, a fim de desencorajar outros de incorrer no mesmo crime que havia levado o homem a terminar assim. Tanto os pregos não eram essenciais que, por vezes, eram dispensados: ao final da revolta de Espártaco, em 71 a.C., quando seis mil de seus seguidores foram crucificados ao longo da Via Ápia, a certa altura os pregos acabaram, mas os executores continuaram a crucificar, simplesmente amarrando os condenados às cruzes. Os pregos não eram o verdadeiro tormento. Acontece que, quando uma pessoa fica durante horas dependurada, com a maior parte do peso do corpo sendo sustentada pelos braços, a musculatura do tórax entra em fadiga, tornando o processo de expandir e contrair os pulmões cada vez mais difícil e doloroso, até o condenado morrer de exaustão lutando para respirar. No caso de Jesus, ele havia sido açoitado, o que causou uma severa perda de sangue, e depois obrigado a carregar a cruz num longo percurso, o que certamente o cansou muito, e foram esses fatores que levaram à sua morte em apenas três horas a partir da crucificação propriamente dita; há registros que dão conta de que, quando um homem vigoroso era crucificado descansado e sem ferimentos prévios, podia demorar até vários dias para morrer. A exposição aos rigores do clima e aos ataques de insetos e de aves carniceiras eram acréscimos terríveis a uma pena já tão cruel.

O jogo de dados mencionado por São João é vencido por Marcelo, que leva o manto. A partir daí, porém, o episódio todo passa a assombrar o jovem oficial e o lança numa depressão profunda. Sendo um homem essencialmente decente, Marcelo ficaria inevitavelmente chocado ao testemunhar os horrendos detalhes de uma crucificação, mesmo que fosse a de um criminoso de verdade – e, para piorar, ele sente no fundo da alma que Jesus não só era inocente, como era um homem extraordinário e único. A angústia e o desespero são tamanhos que nem mesmo a chegada, logo depois, de uma carta de Roma, encerrando seu desterro e autorizando-o a voltar, consegue animá-lo.

A ordem para que Marcelo deixe Minoa e volte para casa vem do próprio imperador, e isso acontece graças à intervenção de uma personagem importante, mas que ainda não tive a oportunidade de mencionar, a adolescente Diana, filha de um certo legado Asínio Galo – Diana é provavelmente fictícia, já seu pai, se não for histórico, ao menos tem um nome que o é: pesquisando a respeito, encontrei diversos Asínios Galos com variados graus de destaque na História romana; nenhum deles se encaixa perfeitamente no que é dito no livro sobre esse personagem, mas isso pode ser apenas resultado de outra liberdade do autor. Diana é amiga inseparável de Lúcia, a irmã de Marcelo, e tem uma paixão juvenil por ele, que, ao que parece, estava apenas começando a enxergá-la como mulher quando foi mandado para a Palestina. Ela é praticamente a única pessoa de quem o senil e rabugento Tibério parece gostar; trata-o de "vovô", embora na verdade seja neta de sua ex-esposa, de quem ele foi obrigado a divorciar-se, por motivos políticos, antes de ser imperador. Diana, então, habilmente tira proveito dessa proximidade com o velho monarca para conseguir que ele anule a ordem de Gaio, e Marcelo retorna a Roma – abatido e apático, uma sombra do homem que era. O senador Gallio, sempre sagaz, toma a correta iniciativa de chamar Demétrio para uma entrevista a portas fechadas. Dessa forma fica sabendo de todo o acontecido, e imediatamente conclui que, se alguém pode ajudar seu filho e talvez fazer com que ele volte a ser o que era, é seu fiel e esperto escravo, que talvez o conheça melhor que ninguém. E decide mandar os dois numa viagem para que Marcelo mude de ares…

A partir daí, enquanto Marcelo e Demétrio visitam a Grécia e depois novamente a Palestina, seus destinos se entrelaçam definitivamente com os dos homens e mulheres cujas vidas foram tocadas, e mudadas para sempre, pelo misterioso pregador galileu. Vários personagens já conhecidos por quem leu os Evangelhos vão aparecendo, criando uma teia fascinante de encontros, histórias e atos admiráveis que leva à conclusão inevitável de que tudo sempre foi parte de um grande plano divino. O Manto (que Douglas grafa com maiúscula, afinal não é um manto qualquer) funciona como um catalisador de tudo isso. Num de seus piores momentos, Marcelo, na ânsia de livrar-se de qualquer coisa que o relembre do homem a quem crucificou, ordena a Demétrio que o queime – e, por essa única vez, o fiel coríntio desobedece a seu amo. A verdade é que o contato com o Manto o conforta de uma forma inexplicável, enchendo-o de serenidade e coragem, e em nenhum momento Demétrio duvida de que esse poder vem daquele que uma vez o vestiu. E, embora não saiba ao certo como, ele tem uma intuição de que, apesar do horror que a veste do galileu crucificado inspira em seu senhor, ela poderá acabar tendo um papel-chave em sua recuperação. Tanto Demétrio quanto Marcelo são homens instruídos e esclarecidos, o que, na mentalidade da época (pelo menos entre as elites), não era considerado conciliável com qualquer tipo de crença em divindades ou no sobrenatural – mas ambos sentem e concordam que havia no tal Jesus alguma coisa de extraordinário, algo que é muito difícil não chamar de sobre-humano. Essa convicção só aumenta à medida que eles vão descobrindo mais coisas a respeito de Jesus.

Conversando com aqueles que conviveram com Jesus, Marcelo rapidamente se convence de que o carpinteiro de Nazaré possuía uma sabedoria muitíssimo além de sua jovem idade, o que, à primeira vista, parece-lhe contraditório com o fato de que ele evidentemente acreditava, de verdade, que sua mensagem – um apelo à honestidade, generosidade e gentileza de todos para com todos – poderia encontrar eco no mundo real, tão cheio de ganância e injustiças; mas ele começa a compreender quando passa a notar a marca que o Nazareno deixou nas pessoas em toda parte por onde passou. Na aldeia de Caná, por exemplo (o local do primeiro milagre de Jesus), Marcelo conversa com Míriam, uma moça inválida em consequência de uma paralisia, que canta com a voz de um anjo as tradicionais canções judaicas (creio que os trechos reproduzidos são dos Salmos); ela teve um encontro com Jesus e, mesmo não tendo sido curada de sua enfermidade como aconteceu com muitos, recebeu uma cura ainda mais importante, a do espírito, transformando-se de uma pessoa rabugenta, amargurada com sua sorte, em uma alma meiga e serena, que transmite paz a todos os que a conhecem. Cito apenas esse exemplo para não estender demais o texto, mas há outros.

Empenhado em seu objetivo de evangelizar por meio de histórias, Lloyd C. Douglas utiliza-se dos pensamentos e sentimentos de seus personagens, bem como de certas conversas entre eles, para dar ao leitor um panorama do terreno intelectual onde a semente dos ensinamentos de Cristo foi primeiramente lançada. Como já comentamos, as pessoas instruídas da época, em geral, tinham suas ideias influenciadas por filósofos que eram, em sua maioria, céticos, ou, na melhor das hipóteses, agnósticos – só que algumas dessas pessoas instruídas questionavam as concepções desses filósofos, sentindo que não respondiam a todas as suas indagações. Demétrio sente que tem que existir algo mais, mas não consegue conciliar a crença na existência de um Deus todo-poderoso e bom (como aquele de que falam os judeus em geral e os discípulos de Jesus em particular) com o fato de tantas coisas tristes acontecerem no mundo – coisas como a destruição de sua família e sua própria escravização. Marcelo acredita, como seu pai, num mundo lógico e previsível, no qual cada causa tem seu efeito e cada efeito, sua causa, e onde as leis naturais não abrem exceções; o próprio conceito de "milagre" ofende sua inteligência… e, mesmo assim, quando sua depressão é repentinamente curada, ele sente um desejo instintivo de render graças a alguma entidade superior, só que não acredita em nenhuma. Essas inquietações são como que o primeiro passo num longo caminho que os dois jovens vão trilhar ao longo do livro, e que os levará a passar por transformações que nunca teriam imaginado.

Essas transformações, porém, não afetam a todos por igual. Em Jerusalém, cerca de um ano depois da morte e ressurreição de Jesus, Demétrio faz amizade com um conterrâneo grego, Estêvão, um cristão que faz parte da primeira comunidade dos que creem na doutrina do Nazareno, comunidade essa à qual o próprio Estêvão deu o nome de Eclésia, palavra grega que significa 'assembleia' e daria origem ao nome "Igreja". E Estêvão confessa que, a despeito do ardor que as palavras e o exemplo de Jesus lhe inspiram, muitas vezes ele se sente decepcionado e desanimado ao ver as rivalidades mesquinhas e as brigas tolas que surgem a toda hora entre muitos daqueles que, para serem fiéis aos ensinamentos do Mestre, deveriam viver como irmãos. Além disso, essa primeira comunidade cristã tentou uma experiência que poderíamos chamar de "protossocialista": "Não havia uma só pessoa necessitada entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos, que, por sua vez, o repartiam conforme a necessidade de cada um." (At 4, 34-35) Assim como o socialismo, isso parecia uma boa ideia à primeira vista – mas, tal como o socialismo, só poderia funcionar (talvez) se todo mundo fosse trabalhador, honesto e comprometido com o bem comum, o que nunca será o caso, nem mesmo entre uma comunidade de seguidores de Jesus, quanto mais em todo um país. O resultado prático dessa experiência foi que aqueles que haviam doado mais dinheiro para a Eclésia ficavam achando que podiam mandar nela, e também que muita gente que não era chegada a trabalhar passou a se dizer cristã só porque assim teria um teto sobre a cabeça e comida na mesa sem precisar se esforçar (isso foi antes de começarem as perseguições). Esse sistema seria mais tarde abandonado, quando ficou evidente que era mais prejudicial que benéfico à causa de Cristo. Em tempo: Estêvão, ou melhor, Santo Estêvão, seria preso e condenado pelas autoridades judaicas à morte por apedrejamento (cena que Douglas descreve de forma resumida, mas nem por isso com menos impacto), e é considerado o primeiro cristão a ter dado a vida pela fé – o primeiro mártir. Sua história está contada nos capítulos seis e sete dos Atos dos Apóstolos.

O Manto Sagrado foi levado às telas em 1953, numa superprodução dirigida por Henry Koster, com Richard Burton no papel de Marcelo, Victor Mature como Demétrio e Michael Rennie como o apóstolo Pedro, entre outros nomes de peso do cinema da época… Mas, para ser franco, e apesar da minha simpatia a priori por esses velhos filmes épicos e/ou bíblicos, não posso dizer que o recomende, pois o roteiro desvirtuou completamente o caráter dos dois personagens principais, bem como a relação entre eles, além de, a meu ver, simplificar a trama de uma maneira descabida. Se quiserem conferir, fiquem espertos para esses problemas – e, é claro, se puderem, não deixem de ler o livro, que, por sinal, bem que podia ganhar uma nova edição. A que eu li, emprestada por minha mãe, é do início dos anos 80, e, mesmo na época, representou um esforço quase arqueológico por parte do pessoal da editora Record, pois antes disso o livro havia ficado fora de catálogo no Brasil durante décadas. Ainda a respeito do filme e "adjacências", curiosamente houve um spin-off, como diríamos hoje: Demétrio e os Gladiadores, dirigido por Delmer Daves, lançado apenas um ano depois do filme de Koster, e claramente feito para surfar no sucesso deste. Também estrelado por Victor Mature, o filme mostra Demétrio sendo preso devido a uma falsa acusação e sentenciado à arena, onde acaba alcançando sucesso como gladiador, apesar de atormentado por dilemas de consciência causados pela incompatibilidade entre seu novo modo de vida e sua fé cristã. O roteiro também inclui a sedução do coríntio por Messalina, a esposa de Cláudio, tio e mais tarde sucessor do imperador Calígula (que havia sucedido Tibério). Nada disso foi escrito por Lloyd C. Douglas.

Como eu disse no começo, Douglas permitiu-se diversas liberdades históricas. O Tibério que ele pinta é supersticioso tal como informavam os historiadores antigos, mas aparenta ser meramente um velhinho caduco, um tanto desagradável por vezes, mas, de modo geral, inofensivo, que se transferiu de Roma para Capri a fim de aproveitar seus últimos anos num lugar de clima mais salubre, dedicando-se ao que realmente gosta, a arquitetura. Se formos ler a Vida dos Doze Césares, de Suetônio, ou algum romance que siga a História mais à risca, como Eu, Claudius, Imperador, o Tibério que ali encontramos retratado é sanguinário, frequentemente mandando prender e executar pessoas por conta de sua paranoia – para não falar em suas supostas preferências sexuais sádicas. Já o príncipe Gaio, enteado de Tibério, corresponde ao personagem histórico de nome Caio Vipsânio Agripa, filho do primeiro casamento de Júlia, esposa de Tibério e única filha do imperador Augusto. Adotado pelo avô materno, Gaio/Caio teve o nome mudado para Caio Júlio César Vipsaniano, e teria sucedido a Augusto como imperador, caso não tivesse morrido no ano 4 d.C., aos 23 anos de idade – portanto, já estava morto há cerca de 30 anos na época dos eventos de O Manto Sagrado. É possível que sua morte tenha sido encomendada por Lívia, mulher de Augusto e mãe de Tibério, para possibilitar a ascensão do filho ao trono, mas nada jamais foi provado. Há também o caso de Calígula, sobrinho-neto e sucessor de Tibério, cuja ascensão acontece já perto do final do romance. Em O Manto Sagrado, é dito que ele tinha apenas 16 anos nessa ocasião, mas na verdade Calígula, ou Caio Júlio César Augusto Germânico, nasceu no ano 12, e Tibério morreu em 37; portanto, Calígula já tinha 25 anos ao tornar-se imperador, e 29 quando foi assassinado, no ano 41.

Essas liberdades históricas, entretanto, são facilmente perdoáveis. Se vejo algum defeito em O Manto Sagrado, é a evidente má vontade que o autor demonstra para com a civilização romana, retratando-a sempre como tirânica, opressora, corrupta, e pouca coisa além disso – no máximo, admitindo que um ou outro romano pode ser uma pessoa decente. Claro que é ingenuidade canonizar qualquer povo ou cultura, mas é igualmente ingênuo demonizá-los: a meu ver, pintar Roma como "O Mal" é um erro tão grande quanto acreditar que as Américas eram um paraíso antes da chegada dos europeus. O Império Romano inúmeras vezes fez prevalecer sua vontade pela força das armas, escravizou populações inteiras, e, como todos os impérios, deu oportunidade a todo tipo de autoritarismo e abuso de poder, mas também alavancou a economia e a cultura em suas províncias (melhorando as condições de vida para milhões de pessoas), levou a civilização a lugares que nunca a tinham visto, e mostrou aos povos bárbaros que outro tipo de vida era possível, um em que havia leis, direito, e no qual um homem podia prosperar por meio do próprio trabalho e inteligência; além de tudo isso, os romanos aprenderam, por necessidade, a tolerar diferenças, o que era algo mais ou menos inédito até então. Nas preleções que faz a Marcelo, o senador Gallio declara, com ares proféticos, que Roma um dia sucumbirá à revolta dos povos conquistados e dos próprios escravos que importou, dando a impressão de pensar que isso pode acontecer a qualquer momento… quando sabemos que, na verdade, o Império ainda existiria por mais quatro séculos e meio e deixaria no mundo uma marca que, para o melhor e para o pior, jamais seria apagada. Roma fez grandes coisas – coisas maravilhosas e também coisas terríveis, pois, afinal, era feita de seres humanos – mas, em todo caso, grandes coisas.

O Manto Sagrado faz parte daquela categoria muito especial de livros que têm o dom de capturar o leitor logo nas primeiras páginas, mantê-lo hipnotizado até as últimas, e deixá-lo triste quando terminam. Na edição que li, o texto das orelhas reproduz trechos de uma entrevista com Lloyd C. Douglas, na qual ele contava que seu pai também era pastor e um grande contador de histórias, que "pensava em todas as pessoas da Bíblia como se estivessem vivas, e fazia com que parecessem vivas". Sendo assim, podemos atestar que o filho do Reverendo Douglas aprendeu bem as lições do pai, e que também fazia algo mais: misturava personagens bíblicos e/ou históricos com personagens de sua própria criação com tal habilidade que tudo parecia uma coisa só. Qualquer leitor cristão, não importa de qual denominação, fatalmente se emocionará com os exemplos de fé e heroísmo destas páginas, e qualquer leitor, seja cristão ou não, será inevitavelmente envolvido pela prosa fluente do autor.

quinta-feira, novembro 16, 2017

O Silmarillion

Meu início na literatura de J. R. R. Tolkien foi exatamente o mesmo que eu hoje aconselho a quem me perguntar por onde começar: O Hobbit, que é, sem dúvida, a mais simples e leve das obras a respeito da Terra-média. Fácil de ler, divertido, empolgante, não requer qualquer conhecimento prévio, e já traz em si aquela combinação tocante de grandiosidade, atmosfera épica, humor e nostalgia – uma nostalgia inexplicável de algo que jamais conhecemos. Porém, depois que você já adquiriu uma certa intimidade com o universo criado pelo autor, passa a querer saber sua história desde o começo – o verdadeiro começo, mesmo que outras partes dessa história tenham sido contadas primeiro.

O Silmarillion satisfaz, ao menos em parte, esse desejo. Diz a lenda (para os apaixonados por Tolkien, não é exagero falar assim) que, depois do inesperado sucesso de O Hobbit, publicado em 1937, o editor Stanley Unwin disse a Tolkien que o público estava sedento por novas aventuras ambientadas na Terra-média, e que, se houvesse tais histórias, ele as publicaria sem dúvida. O Professor, entretanto, metódico como sempre, em vez de simplesmente escrever novas histórias seguindo a receita já aprovada, quis "começar pelo começo", e apresentou a Unwin um punhado de manuscritos soltos, embora interligados entre si, que tratavam da origem e dos primeiros tempos daquele mundo. O editor foi da opinião de que aquele tipo de coisa era demasiado séria e complexa para agradar aos leitores que tinham adorado O Hobbit, e recomendou ao autor que focasse nos hobbits, já que era principalmente nas pequenas criaturas de pés peludos e apetite voraz que o interesse do público parecia se concentrar. O resultado foi O Senhor dos Anéis, livro que, se tivesse podido fazer as coisas como queria, Tolkien talvez jamais tivesse escrito – e sobre o qual poderíamos dizer que, se a ideia era mesmo fazer algo "não tão complexo", então parece que nem tudo saiu conforme os planos. Seja como for, hoje em dia a esmagadora maioria dos fãs do Professor (maioria na qual, com toda a certeza, eu me incluo) considera o SdA como sua obra-prima.

Acontece que, mesmo sem terem sido publicados, os textos de O Silmarillion sempre foram importantes para Tolkien, que os considerava, "oficialmente" e para todos os fins, parte da história da Terra-média, como mostram suas cartas e outros escritos. Não era possível que seus leitores ficassem para sempre privados desses conhecimentos, mas foi preciso esperar até 1977 (quatro anos depois da morte de Tolkien) para que esses textos fossem reunidos num livro, editado por Christopher Tolkien, filho do autor, o que deu início a uma longa e árdua, embora frutífera, missão, que continua até hoje, apesar do fato de Christopher, veterano da Segunda Guerra e aposentado da cátedra de Língua Inglesa na Universidade de Oxford, completar 93 anos agora em novembro.

O livro publicado sob o título de O Silmarillion reúne, na verdade, vários textos menores – menores, bem entendido, no sentido de mais curtos, não no de menos importantes. O primeiro deles é Ainulindalë, 'a Música dos Ainur', que, para definir da maneira mais sucinta, trata da criação do mundo. Em muitos lugares nos escritos de Tolkien há sugestões (e, por vezes, mais que sugestões) de que o mundo sobre o qual suas obras versam é o nosso próprio mundo num passado distante. Como se fosse para reforçar esse entendimento, esse mundo é chamado de Arda, nome que possui ligação evidente com Earth em inglês, Erde em alemão, Jord (pronunciado Iord) em nórdico antigo, e assim por diante, todos significando 'Terra'; Tolkien, como hábil linguista que era, naturalmente não perderia a oportunidade de utilizar nomes e palavras como uma forma de fornecer informações que um leitor atento e com certo conhecimento poderia captar. Não que os nomes tenham sido criados como um recurso para apoiar as narrativas: de certa forma, foi o inverso. O Professor criou primeiro as línguas de seu mundo fantástico, e só depois, levado pela vontade de dar a elas um substrato histórico e lendário, criou as histórias. Certa vez, falando sobre o esperanto, ele disse que essa língua artificial de criação moderna está muito mais "morta" que o latim ou o grego antigo, porque não possui história e tampouco um corpus mitológico ligado a ela – coisas que o grego antigo e o latim possuem. O desejo de evitar que seus tão queridos idiomas élficos tivessem essa mesma sina de "línguas natimortas" foi o que o motivou a criar as lendas que tanto amamos e que, hoje, fascinam milhões de leitores no mundo todo, independentemente do interesse que eles tenham ou não tenham em filologia.

Eu e minhas digressões… Estava dizendo que Ainulindalë, a primeira parte de O Silmarillion, trata da criação do mundo. Sendo um católico devoto, Tolkien, conscientemente ou não, desenvolveu essa narrativa de uma forma essencialmente compatível com a visão cristã sobre o assunto, encontrada em parte na Bíblia, em parte na tradição da Igreja. Por falar nisso, e apesar do que muita gente pensa, a Igreja não é avessa à ciência e não considera que aceitar o que ela descobriu sobre as origens da vida e do universo seja incompatível com a crença num Deus criador – essa é a posição oficial, mas há os católicos fundamentalistas, que insistem na interpretação literal do Gênesis, isso para não mencionar os membros de outras denominações cristãs. Não sei qual era a opinião pessoal de Tolkien sobre essa questão, mas isso não faz tanta diferença para o nosso assunto do momento: seja como for, Ainulindalë é a criação do mundo narrada de uma forma poética, não científica.

Ele nos conta que, no início, "havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar" – ou seja, Deus. Ilúvatar significa 'Pai de Todos' em Quenya, uma das duas línguas élficas inventadas por Tolkien (que também criou línguas para os anões, orcs, entre outros, embora, a essas, tenha-se dedicado menos), e, como no caso de Arda, é fácil estabelecer a correlação entre vátar ('pai') e seus equivalentes em várias línguas de raiz germânica: father em inglês, Vater em alemão, fađir em islandês… Eru Ilúvatar, então, deu existência aos Ainur (no singular, Ainu), seres espirituais dotados de grande sabedoria e poder. Novamente em consonância com a visão católica, os Ainur não são deuses, mas poderíamos dizer que são anjos, criados por Deus antes que o mundo que conhecemos existisse. E, na narrativa de Tolkien, o trabalho de criação realizado por Ilúvatar se dá através da música. Primeiro Ele canta para os Ainur, depois pede-lhes que cantem também, sob Sua regência, e as maravilhosas melodias que produzem vão dando forma ao mundo que viria a ser Arda, mas que os Ainur chamaram primeiro Eä – numa tradução livre, 'o Mundo que É', quer dizer, o mundo que deixou de ser apenas uma ideia na mente de Eru para ganhar existência real. Mas, mesmo no reino de Eru, nada é perfeito. Um dos Ainur, de nome Melkor, quis criar sua própria melodia, e, com isso, trouxe desarmonia à música que seus irmãos faziam seguindo fielmente a orientação de seu Senhor.

Não é nada difícil ver que Melkor é a versão de Tolkien para Lúcifer – um dos anjos mais poderosos e mais próximos de Deus, que um belo dia decidiu que servir não era suficiente para ele – mas seria um redondo engano achar que o Ainulindalë limita-se a parafrasear de forma óbvia a narrativa cristã sobre a queda dos anjos. Ele traz um acréscimo muito interessante, enunciado nesta fala de Ilúvatar:

(…) Tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.

Isso também faz parte da visão cristã, mas nem todo mundo sabe ou se dá conta: é a ideia de Santo Agostinho, de que "Deus não permitiria o mal, se dele não pudesse tirar um bem maior". Por mais que Suas criaturas se rebelem, no final ficará provado que tudo tinha um lugar no plano de Deus. Não que Ele deseje que elas se rebelem; simplesmente sabe de antemão quando isso acontecerá, já que é onisciente, e toma as providências necessárias.

Uma vez criado o mundo, e antes que surgissem os Filhos de Eru (elfos e homens), alguns dos Ainur optaram por viver nele, cabendo a cada um deles administrar um aspecto da criação; esses Ainur que viviam na Terra passaram a ser chamados de Valar (singular Vala, que no feminino fica Valië). No começo da segunda parte d'O Silmarillion, intitulada Valaquenta ('História dos Valar'), é dito que os Valar foram, com frequência, chamados de deuses pelos humanos, o que explica a semelhança das características de muitos deles com as de divindades de diferentes panteões, bem como as dessas divindades entre si. Impossível, por exemplo, olhar para uma ilustração de Ulmo, o Vala responsável pelas águas, e não lembrar imediatamente de Poseidon, o deus grego do mar. Do mesmo modo, Aulë, o Vala associado ao fogo e ao trabalho do metal, assemelha-se a Hefestos, o mesmo que os romanos chamavam de Vulcano. Já em Varda, a Valië da luz, que teria feito as estrelas, Tolkien permitiu-se revelar um vislumbre de sua própria fé, retratando não alguma deusa, mas a Virgem Maria, por meio de várias características que nós, católicos, atribuímos a ela e que ele deu também a Varda – o que não significa que as figuras das duas sejam sempre equivalentes, pois isso seria uma alegoria, coisa da qual o Professor notoriamente não gostava. Como sempre em sua obra, o que há é campo aberto para a famosa "aplicabilidade": num momento e situação específicos, Varda pode representar Maria; em outra situação, Varda pode representar outra coisa, e, em outro lugar da obra do autor, outra personagem pode assumir as atribuições de Nossa Senhora, como o faz Galadriel em O Senhor dos Anéis, quando dá a Frodo um cristal contendo a luz da estrela Eärendil. Mais tarde, quando o hobbit está perdido na escuridão da caverna de Laracna, esse presente não apenas ilumina seu caminho, mas renova sua coragem; não há como não ver aí exatamente o que a proteção da Mãe de Jesus significa para nós e, sem a menor dúvida, significava para Tolkien.

Os Valar, pois, estavam na Terra, cada um cuidando da parte dela que lhe fora confiada por Ilúvatar, mas Melkor, o Vala renegado, não se manteve ocioso; fazia tudo o que podia para arruinar o trabalho dos outros, e não estava sozinho nessa tarefa, contando com a ajuda de outros Ainur que o seguiam, bem como de inúmeros espíritos de menor poder – tal como Lúcifer, que, de acordo com a tradição cristã, foi seguido em sua rebelião por um terço dos anjos. Isso gerou muitos conflitos para os quais o jovem mundo serviu de palco. Os Valar fiéis sabiam do plano de Ilúvatar de trazer à vida os elfos e os homens, mas não sabiam quando isso aconteceria, e tanto tempo se passou que Aulë, impaciente, desejando ter criaturas inteligentes às quais pudesse ensinar suas artes, acabou criando os anões. Quando Eru viu o que o Vala havia feito sem Seu consentimento, repreendeu-o com severidade. Aulë, ao contrário do soberbo Melkor, acatou humildemente a reprimenda de seu Senhor, e, embora entristecido, ergueu seu martelo, pronto para destruir sua criação, lembrando um Abraão prestes a sacrificar o filho Isaac – mas, tal como o fez com Abraão, Deus não permitiu que concretizasse o ato; deteve a mão de Aulë e, magnanimamente, deixou que os anões vivessem, com a condição de que ficassem adormecidos até que Ele julgasse chegado o momento de despertar seus primogênitos, os elfos. Essa bela história fornece uma adequada explicação mítica para as características essenciais dos anões: Aulë os fez resistentes e teimosos para que pudessem sobreviver num mundo ainda castigado pelas artes malignas de Melkor; quanto ao amor pela mineração e pelo trabalho do metal, herdaram-no de seu "pai".

Conforme prosseguimos a leitura de O Silmarillion, vamos nos deparando com as origens de povos, personagens e lugares que já conhecemos, e, pelo menos nessa primeira vez, fiquei satisfeito por estar lendo-o agora, que já conheço O Hobbit e O Senhor dos Anéis: O Silmarillion amarra muitas pontas que pareciam soltas e coloca as coisas dentro de uma perspectiva mais ampla. Alguém que fosse lê-lo sem antes conhecer essas outras obras talvez achasse a leitura cansativa; do jeito como eu fiz, de forma alguma… Bem, não durante a maior parte do tempo. Há, sim, trechos que exigem paciência por parte do leitor, como o capítulo XIV, De Beleriand e Seus Reinos, que consta de nove páginas de anotações geográficas e topográficas. Tenham em mente que o livro é um apanhado de escritos soltos de diferentes tipos: é provável que Tolkien tenha escrito esse texto para sua própria referência, sem imaginar que algum dia seria publicado. E como material de referência e consulta, ele é útil para os que desejam conhecer a fundo o universo do autor, mas não esperem que seja divertido. Pretendo, um dia, reler as obras do Professor em ordem cronológica, à luz do conhecimento adquirido nas primeiras leituras.

Entre as revelações mais importantes para a história da Terra-média presentes em O Silmarillion estão as que tratam de Melkor, o primeiro Senhor das Trevas (gosto mais dessa forma, corrente em Portugal, que de "Senhor do Escuro", usada no Brasil desde a tradução d'O Senhor dos Anéis feita nos anos 90 por Lenita Rímoli Esteves), título que, mais tarde, passaria dele para seu servo, Sauron, que vem a ser o Senhor das Trevas mais conhecido pelos leitores de Tolkien – ou, melhor dizendo, aquele com cujo nome estamos mais familiarizados, já que, no SdA, embora seja a sua vontade que move as forças do mal, Sauron não chega a aparecer como um personagem propriamente dito, uma vez que, na ocasião, encontrava-se privado de um corpo. Não deixei de notar, também, que o paralelo entre Melkor e Lúcifer não fica apenas na semelhança das trajetórias de ambos, estendendo-se a sua índole e modus operandi: na tradição judaico-cristã, o diabo empenha-se em imitar Deus, embora sempre de forma imperfeita ou invertida; Melkor não tem o poder de criar novos seres como o faz Ilúvatar, então dedica-se a perverter a obra do Criador. Fez isso, por exemplo, quando tomou alguns elfos que havia capturado e, por meio de "lentas artes de crueldade" (nas palavras do autor) que é melhor nem tentarmos imaginar, desenvolveu, a partir deles, a raça dos orcs, destinados a serem seus soldados e escravos. Num processo semelhante, também inventou os trolls a partir dos ents, os "pastores de árvores".

Um personagem importante em O Silmarillion – e na história da Terra-média de modo geral – é Feänor, filho de Finwë, rei dos elfos Noldor e, sem dúvida, um dos mais poderosos e brilhantes representantes da raça élfica em todas as eras do mundo. Feänor criou as Silmarils, três joias inigualáveis que guardavam a luz de Telperion e Laurelin, as Duas Árvores que iluminavam Valinor (a terra dos Valar, no extremo oeste, separada da Terra-média por um mar) antes que o sol e a lua existissem. Também é atribuída a ele a invenção das Palantíri, artefatos que permitiam ver o passado, o futuro e o que acontecia em lugares distantes, e do alfabeto Tengwar, às vezes chamado de "runas élficas" ou "caracteres feänorianos". Porém, apesar de toda a sua sabedoria, Feänor também deixou um legado de violência, quando Melkor roubou as Silmarils e fugiu com elas em direção à Terra-média. Feänor conclamou todos os Noldor a segui-lo numa cruzada contra Melkor (a quem ele deu o nome de Morgoth, o 'Inimigo Negro'), para recuperar as gemas e vingar seu pai, Finwë, que o Vala renegado havia assassinado, fazendo dele o primeiro elfo a morrer de forma violenta… Só que, por mais justas que fossem as motivações, essa iniciativa causaria muitas desgraças. Para alcançar seu duplo objetivo, Feänor não se deteria diante de nada, mesmo que precisasse lutar contra outros elfos. Isso conduziu ao histórico e sangrento Fratricídio de Alqualondë, quando Feänor e seus Noldor travaram batalha contra os Teleri, um ramo dos elfos que vivia à beira-mar e que, até então, os considerava um povo amigo. Esse e outros episódios fazem da busca de Feänor, a meu ver, uma das partes mais emocionantes e mais trágicas de O Silmarillion, embora haja as que rivalizam. Omiti de propósito detalhes da história que tornarão a experiência mais interessante se vocês os descobrirem somente quando lerem.

Quem conhece um pouco da biografia de Tolkien também conhece algo de sua índole e opiniões, e sabe do sério problema que ele tinha com a tecnologia e o mundo moderno de forma geral (é engraçado tentar imaginar o que ele diria se pudesse ter previsto a internet e sabido que, no futuro, ela serviria para integrar seus fãs dos quatro cantos do mundo). Isso transparece em suas histórias, como quando ele descreve a cidade de Melkor/Morgoth, protegida pelas Ered Engrin, "Montanhas de Ferro", e conta que a fortaleza do inimigo tinha altas torres que exalavam fumaça e vapores que obscureciam o céu e envenenavam o ar… Isso pode até fazer pensar em vulcões, mas, para mim, parece bem mais com uma imagem de grandes fábricas com suas chaminés poluidoras. Mais tarde, Sauron seguiria o exemplo de seu mestre nesse ponto, assim como em outros; também Saruman, o mago-mestre que traiu sua ordem e se aliou ao Senhor das Trevas, adaptou sua fortaleza, Isengard, a esse padrão tenebroso, mandando derrubar suas florestas para transformá-las em lenha e alimentar as forjas que trabalhavam dia e noite produzindo armas para seu exército de orcs. Para Tolkien, o mundo moderno e industrial era o inimigo da natureza, e, por consequência, de tudo o que existia de belo e bom.

Embora as histórias interessantes em O Silmarillion sejam várias, a mais notável (na opinião do próprio Tolkien) é a de Beren e Lúthien. Beren, um jovem guerreiro humano, de origem nobre, mas caído em desgraça (não vou me alongar com os detalhes; basta dizer que sua família teve uma história trágica), vagando por uma floresta, vê Lúthien, filha do rei elfo Elu Thingol, dançando sobre uma colina, e apaixona-se por ela. O sentimento é mútuo, mas Thingol, que nutre um desprezo a priori pelos humanos, declara que só consentirá na união dos dois caso Beren lhe traga uma das Silmarils – as joias feitas tanto tempo antes por seu parente Feänor, roubadas por Morgoth, e que, naquele momento, são mantidas na fortaleza deste último, protegidas por todo o seu exército e por seus poderes tenebrosos. Nenhum rei elfo, mesmo com exércitos às suas ordens, jamais ousou atacar Morgoth no intuito de recuperar as Silmarils, e Thingol sabe disso muito bem; para um jovem sozinho e sem quaisquer recursos, tentar essa empreitada seria morte certa, e é justamente isso o que o pai de Lúthien pretende. Beren, entretanto, simplesmente ri e replica que "por preço baixo os reis élficos vendem suas filhas: por pedras preciosas e objetos criados por artífices", e parte para encarar o desafio. Sem spoilers, direi apenas que, na aventura cheia de peripécias que se segue a isso, Lúthien não fica com o papel da frágil donzela que apenas espera pela volta de seu herói e teme pela sorte dele: mostra-se sagaz e corajosa, dona de habilidades valiosas. Mais tarde, em nome de seu amor por Beren, ela vem a abrir mão de sua imortalidade. Essa história, de certa forma, tem um eco na Terceira Era (milênios depois), com Aragorn e Arwen, embora haja algumas diferenças importantes: enquanto o pai de Lúthien odiava Beren, Elrond, o pai de Arwen, gosta de Aragorn e vê com simpatia o amor dos dois, ainda que não pareça muito otimista quanto ao tipo de futuro que eles poderão ter. O mais bonito vem agora: nas figuras de Beren e Lúthien, Tolkien retratou a si próprio e a sua esposa, Edith; os nomes foram gravados junto dos seus próprios na lápide do túmulo que os dois compartilham no cemitério de Wolvercote, em Oxford.

Uma coisa em O Silmarillion poderá decepcionar a alguns: o livro conta as origens de elfos, anões, homens, até dos orcs, mas não diz um A sobre os hobbits (há uma única e brevíssima menção a eles no apêndice denominado Dos Anéis de Poder e da Terceira Era, que, como Christopher Tolkien salienta no prefácio, é realmente um apêndice, não fazendo parte de O Silmarillion; de todo modo, essa menção não diz sobre o Povo Pequeno nada que já não soubéssemos). Talvez a explicação esteja no fato de que, segundo Tolkien (provavelmente em alguma de suas cartas; não lembro onde foi que li isso), o povo de Bilbo e Frodo não constitui uma raça à parte, mas um ramo dos humanos. Usando uma linguagem mais científica, não falaríamos em "raças": elfos, anões e homens seriam diferentes espécies, embora muito próximas uma das outras, ao ponto de ser possível o nascimento de crianças mestiças – ao menos no caso de humanos e elfos; nunca soube da existência de mestiços humano/anão ou anão/elfo, pelo menos no universo de Tolkien. Seguindo o mesmo raciocínio, os hobbits seriam uma subespécie dos humanos. Mesmo levando isso em consideração, a existência dos hobbits, o quando, o como e talvez o porquê de terem se diferenciado dos outros seres humanos, isso tudo deve ter uma história fascinante por trás – talvez uma que o Professor não tenha chegado a escrever. Uma pena! Porém, estou longe de ser um especialista em Tolkien e estou bem ciente disso; se alguma história assim existir e alguém que me lê a conhecer, ficarei agradecido por ser corrigido, e também pela indicação de onde poderei ler tal história.

Ainda há muito mais neste livro, mas acho que já "falei" demais. Assim, já entrando na reta final do post, acho necessário indicar que, fora todos os que já citei, estão aqui, pelo menos, mais três conteúdos importantes. O primeiro, ainda dentro d'O Silmarillion propriamente dito, é a história de Túrin Turambar, que, no universo de Tolkien, preenche o arquétipo do herói valoroso, porém desventurado; parece que o autor se inspirou numa história presente no Kalevala finlandês, a respeito de um personagem de nome Kullervo, mas, enquanto lia sobre as calamidades que perseguiam Túrin, lembrei por mais de uma vez do mito grego de Édipo, tão bem aproveitado por Sófocles em suas peças Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona. O segundo, no apêndice Akallabêthtrata da terra de Númenor, habitada pelo ramo mais nobre da raça dos homens, do qual descendia o herói Aragorn, bem conhecido de quem leu O Senhor dos Anéis; e o terceiro, no já citado Dos Anéis de Poder e da Terceira Eraé precisamente a origem dos Anéis do Poder, os detalhes a respeito de sua forjadura, tema que só havia sido tangenciado naquele livro.

Boa parte das críticas que O Silmarillion recebeu logo a seguir ao seu lançamento deve ter despertado a ira dos fãs de Tolkien (o punhado de excertos que li certamente despertou a minha!), mas é difícil negar os pedaços de verdade que há em algumas delas, em especial quando se referem ao fato de, não raras vezes, tornar-se praticamente impossível seguir o texto e reter tudo o que se está lendo, ou não se cansar com as dezenas e dezenas de nomes exóticos que pipocam a cada página: não dá para memorizar tudo isso. O Professor, à semelhança de uma criança extraordinariamente criativa e engenhosa, deleitava-se a brincar com os brinquedos que havia construído para si próprio – suas línguas fictícias, que ele não se contentou em criar, mas levou a um grau inacreditável de coerência e detalhamento, com etimologia própria, uma gramática com direito a tempos verbais, conjugações, declinações e tudo o mais. Tal criação não é menos que genial, e é totalmente compreensível que o autor quisesse vê-la funcionando, sem esquecer que a Terra-média e sua mitologia só existem por causa dessas línguas, mas nada disso impede que, em várias partes do livro, a avalanche de nomes de personagens e lugares (todos esses nomes, sem exceção, com significados precisos em uma ou outra língua imaginária) deixe o leitor meio desarvorado, mesmo que ele já tenha alguma experiência com a escrita de Tolkien. Como um louvável esforço para amenizar esse problema para os leitores, Christopher Tolkien incluiu um glossário dos famigerados nomes de personagens, lugares, povos, etnias etc., que podemos consultar sempre que não lembrarmos ao que um determinado nome se refere. Há também um apêndice com elementos formativos dos nomes nos idiomas quenya e sindarin, para que tenhamos a chance de, aos poucos, pegar gosto por decifrar os sentidos desses nomes, dominando seus radicais e vendo como eles se encaixam como peças de um quebra-cabeça para formar nomes e palavras. Dessa forma, talvez cheguemos até a acumular um pequeno vocabulário nessas línguas. Tão úteis quanto tudo isso, há árvores genealógicas das linhagens de homens e elfos que têm papéis de destaque nas histórias. Enfim, O Silmarillion vai, por vezes, exigir esforço e paciência do leitor, mas, vamos concordar, quase tudo o que vale a pena na vida exige esforço e paciência. É um belíssimo livro, indispensável para todos os fãs de Tolkien.