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segunda-feira, abril 29, 2013

O Terror

Imagino que todo leitor que já acumulou certa experiência tenha passado por isso ao menos uma vez: você vai, pela primeira vez, realmente ler um autor que foi muitíssimo bem recomendado. Leu muitos comentários tentadores sobre sua obra, e, ainda mais instigante que isso, sabe que um, ou até vários escritores dos quais você gosta, são, ou eram, fãs de carteirinha desse sujeito (no caso de Arthur Machen, ele coleciona "fãs" do naipe de H. P. Lovecraft, Stephen King e T. E. D. Klein). Naturalmente cheio de expectativas, e sentindo que está para viver um momento memorável, você se acomoda confortavelmente na cama ou em sua poltrona favorita, respira fundo, abre o livro... Meia hora mais tarde, começa a sentir-se ligeiramente impaciente. Ao fim de uma hora de leitura, você acha melhor fazer uma pausa e, enquanto vai até a cozinha preparar uma xícara de café, pensa com os seus botões: "Das três uma: ou esse livro ainda me reserva grandes surpresas, ou eu sou bem burrinho de não estar entendendo o que foi que levou tanta gente boa a considerar esse autor tão especial, ou então, vai ver, esse simplesmente não é um dos melhores trabalhos do cara". No que diz respeito a O Terror, ainda estou em dúvida entre as duas últimas possibilidades.

A editora Iluminuras, que também publica Lovecraft no Brasil, inteligentemente aproveitou as entusiásticas palavras de elogio que este último dedica a Machen em seu famoso ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, reproduzindo na contracapa e nas orelhas de O Terror boa parte do trecho que trata dele. Aqui vão dois pequenos excertos:

Dos criadores vivos do terror cósmico elevado ao seu mais alto expoente artístico, dificilmente poderá citar-se alguém que se iguale ao versátil Arthur Machen, autor de cerca de uma dúzia de composições longas e curtas em que os elementos de horror oculto e medo avassalador atingem uma substância e um realismo incomparáveis. (...) O encanto de seus textos está na narração. É impossível descrever o crescente suspense e o supremo horror que estão em cada parágrafo, sem seguir a sequência exata em que Machen vai, aos poucos, desvendando seus indícios e revelações. Com suas palavras e ambientações, ele constrói atmosferas de eletrizante tensão.

Não há dúvida de que uma tal avaliação, não feita por qualquer um, e sim por um mestre do terror como Lovecraft, constitui uma das melhores recomendações que um autor do gênero pode ter, e essa foi uma razão a mais para que eu estranhasse o fato de encontrar tão pouco dessa propalada "tensão eletrizante" nas páginas de O Terror. Nesse pequeno volume, a Iluminuras parece ter tentado apresentar ao leitor uma amostra de cada uma das duas principais "faces" de Machen: a do escritor de terror, através do longo conto que dá título ao livro, e a do autor naturalmente inclinado ao misticismo e à fantasia, por meio de Ornamentos em Jade, pequena coleção de textos curtos, difíceis de definir; poderíamos dizer que são minúsculos contos, embora não pareçam ter a menor pretensão de configurar narrativas com início, meio e fim – e alguns deles, nem sequer a pretensão de fazer sentido, segundo um ponto de vista lógico. Talvez o melhor seja aceitar a sugestão de José Antonio Arantes, tradutor e autor do ensaio A Demanda do Mistério, que encerra o livro, e dizer que são "poemas em prosa", pois a impressão que fica no leitor é a de que, ao escrevê-los, Machen estava muito mais preocupado com o clima que estava evocando e com os sentimentos que estimularia em quem os lesse, do que com aquilo que estava objetivamente dizendo. Sua biografia, da qual pude ter uma ideia graças às informações fornecidas por Arantes, por Lovecraft, e a mais algumas coisas que encontrei na internet, é realmente fascinante, sendo talvez o principal motivo para que eu ainda queira dar-lhe um voto de confiança, mesmo que meu primeiro contato com sua obra não tenha sido tudo o que eu esperava: um homem que viveu essa vida e ainda foi escritor não pode ter deixado de produzir coisas que valem a pena ler!

Arthur Llewellyn Jones nasceu em Caerleon-on-Usk, no antigo distrito de Gwent, sul do País de Gales, em 1863, numa família de longa tradição eclesiástica. Seu pai, o reverendo John Edward Jones, era pároco em Llanddewi, pequeno vilarejo onde a chegada dos tempos modernos parecia ter tido pouco efeito até então. A vigorosa herança celta que impregnava a história da região podia ser sentida na língua, nos costumes, no modo de ser de seu povo, assim como em seu folclore e no misticismo que lhe era inerente; misticismo esse com o qual Arthur sempre se sentiu inteiramente conectado. Foi um menino de hábitos solitários, que gostava de passar dias inteiros percorrendo as trilhas de sua região natal, sentindo-se à vontade em meio àquela paisagem de bosques seculares, colinas enevoadas e misteriosas ruínas romanas (Caerleon-on-Usk fora em tempos a próspera cidade romano-céltica de Isca Silurum, base da Legio II Augusta, a Segunda Legião Augusta, que chegou a ser comandada pelo então general e mais tarde imperador Vespasiano). Ainda durante a infância de Arthur, o reverendo John, para poder receber uma herança proveniente de parentes de sua esposa, adotou o sobrenome dela, passando a assinar Jones-Machen; mais tarde, o escritor optou por usar apenas seu primeiro e último nomes ao assinar suas obras. Viveu a maior parte de sua vida produtiva em Londres, onde veio a conhecer diversas figuras de destaque daquele período que esteve entre os mais importantes para a história da literatura de língua inglesa até hoje – Oscar Wilde, por exemplo. Machen atuou em diversos segmentos do ramo das Letras: deu aulas particulares de inglês, literatura e línguas clássicas para crianças e jovens de famílias abastadas, trabalhou como catalogador de obras raras para tradicionais livreiros londrinos (o que lhe rendeu sólidos conhecimentos sobre magia, esoterismo e ocultismo) e foi colaborador e editor de vários periódicos, tanto dirigidos à comunidade literária quanto publicações comuns de notícias e variedades; enfim, teve a felicidade de conseguir viver do que escrevia e de atividades relacionadas a isso – inclusive o jornalismo, embora não se sentisse muito contente nessa função.

Em setembro de 1914, com a Primeira Guerra Mundial começando, publicou, numa das revistas de que participava, o conto-crônica The Bowmen ('Os Arqueiros'), versão fantástica da Batalha de Mons, que acontecera cerca de um mês antes, nos arredores da cidade belga de mesmo nome, e foi o primeiro enfrentamento entre os exércitos britânico e alemão naquele conflito. No texto de Machen, os arqueiros galeses que lutaram por Henrique V na Batalha de Azincourt ressurgem em Mons, como misteriosas figuras sobrenaturais, para auxiliar seus compatriotas, o que explicaria a vitória britânica, apesar de os alemães terem começado com a vantagem. Por ocasião da publicação original, o autor deixou muito claro tratar-se de uma obra de ficção, sua modesta contribuição patriótica para elevar o moral do exército e do povo em geral; porém, durante os anos seguintes – que, convém não esquecermos, foram duros anos de guerra –, The Bowmen voltou a ser impresso muitas vezes Grã-Bretanha afora, em diferentes revistas, jornais e folhetos, nem sempre tendo o nome do autor creditado, e por vezes sendo apresentado como relato verídico!... Talvez porque agradasse em cheio à mentalidade dos britânicos (que gostavam de acreditar que glórias, vitórias e o domínio do mundo lhes cabiam por direito de "vontade divina"), o fato é que a história "pegou" de uma maneira que Machen jamais poderia ter imaginado: sem querer, ele havia dado início à lenda dos "Anjos de Mons", que daria muito o que falar e escrever a muita gente durante as décadas seguintes, e ainda hoje exerce sua parcela de poder sobre a imaginação de ingleses e galeses.

Machen casou cedo, com uma mulher mais velha, e, tendo enviuvado ainda jovem, casou-se novamente. Teve dois filhos. Curiosamente, fez parte, durante algum tempo, da famosa ordem mística Golden Dawn ('Aurora Dourada'), onde teve confrades de todos os tipos, desde os mais ilustres, como o poeta W. B. Yeats, até os menos recomendáveis, como o notório satanista e praticante de magia negra Aleister Crowley. Morreu em 1947.

Tendo terminado de ler O Terror (refiro-me ao livro como um todo), fiquei em dúvida sobre o motivo que teria levado o pessoal da Iluminuras a escolher para publicação o conto que lhe dá título, principalmente sabendo que esse seria o primeiro contato de muitos leitores com o autor e, quiçá, sua primeira publicação no Brasil (alguns trabalhos de Machen foram lançados em Portugal, mas são edições dificílimas de conseguir – eu sei porque tentei). Tanto Lovecraft em O Horror Sobrenatural... quanto Arantes em A Demanda do Mistério, falam-nos de várias histórias que, pela descrição, parecem muito mais interessantes, como O Grande Deus Pã, O Povo Branco, as narrativas que integram o livro Os Três Impostores, e por aí vai. O Terror até que tem uma ideia que poderia render bem, mas, pessoalmente, desgostei do modo como foi desenvolvida. Deixem-me detalhar um pouco mais.

A história passa-se durante os anos de 1915-16, portanto no auge da paranoia de guerra. No interior do País de Gales, e aparentemente por toda a Grã-Bretanha, pessoas começam a aparecer mortas de maneiras altamente improváveis ou completamente inexplicáveis: um aviador tem sua aeronave abatida por um bando de pombos, um homem é encontrado afogado num pântano apesar de haver uma trilha segura a poucos passos do local, uma família inteira aparece morta, com as cabeças destroçadas, bem em frente a sua casa, um barco levando estudantes vira em mar calmo e apesar de ser conduzido por um marinheiro experiente, outra família é achada morta, entrincheirada dentro de sua casa de fazenda, como se tivesse sofrido um cerco, e a causa da morte parece ter sido a sede, embora exista um poço a poucos metros de distância. Uma boa situação inicial para uma história de terror? Sem dúvida. O problema, ou o que eu considero ser o problema, é que Machen estende seu "suspense" muito além do que seria aconselhável: vai empilhando mais e mais "casos inexplicáveis" e "acontecimentos terríveis e misteriosos" – e mais, e mais, e mais, e mais… –, ao longo de um número excessivo de páginas, até chegar a um ponto em que o leitor, já impaciente, começa a pensar: "Tudo bem, Mr. Machen, o senhor já me convenceu de que algo de anormal está acontecendo; agora, que tal começar a tratar da resposta para o enigma?" Mas, em vez disso, o que o autor nos dá são longas e cansativas palestras entre os personagens, alguns deles propondo explicações teóricas para o mistério – explicações, em sua maioria, bastante extravagantes e ingênuas –, enquanto outros preferem pôr tudo na conta dos alemães, como era moda na época por causa da guerra. O clima de paranoia, aliás, é totalmente plausível e convincente, embora não se mostre suficiente para dissipar o tédio que se instala na narrativa a partir de certo ponto. Há partes em que a forçação de barra chega a ser constrangedora, como já perto do final, quando o Dr. Lewis, um médico do interior e o mais próximo que a história tem de um protagonista, acompanha um grupo de busca até a fazenda isolada onde, depois de serem obrigados a arrombar a porta, se deparam com a desnorteante cena da família morta dentro da própria casa, sem sinais de violência – com exceção do velho fazendeiro, o único encontrado fora da casa e com um buraco no peito. Em meio aos outros, Lewis descobre o corpo de um jovem que ele conhecia, um pintor que era hóspede da família, e uma carta, endereçada a ele próprio, que o rapaz aparentemente escreveu durante suas últimas horas de vida e nunca teve chance de enviar. A carta, entre outras coisas, diz:

"(…) Não quero deixar uma carta escrita por um louco, por isso não vou lhe relatar a história integral do que vi (…)".

A essa altura, minha vontade já era jogar o livro na parede. Mas fica ainda melhor:

"(…) O velho chamou, acho, o filho. Depois houve um barulho tremendo (…). Ouvi a filha gritando: 'É inútil, mãe, ele tá morto; na verdade o mataram' (…)."

Quem o matou, por favor?…

"Fui à janela e olhei para o terreiro. Não vou lhe contar tudo o que vi."

É, eu não esperava mesmo que fosse…

"Quis sair e trazê-lo para dentro. Porém elas me disseram que ele estava definitivamente morto, e também que era bastante claro que quem quer que saísse da casa não viveria mais do que um instante. Não podíamos acreditar no que víamos, mesmo enquanto olhávamos para o corpo do morto. (…) Mesmo então não acreditávamos que fosse durar. (…) Não podia durar, porque era impossível."

O que é que não podia durar, homem?!?

"(…) Ao meio-dia, o pequeno Griffith disse que iria até o poço pelo caminho de trás para buscar mais um balde de água. Fui até a porta e fiquei a postos. Ele mal tinha andado uns doze metros quando o atacaram."

QUEM O ATACOU, PORRA???

Acho que isso já basta como amostra.

Palavra de honra, não sou um desses chatos sem noção que ficam querendo cobrar "verossimilhança" em obras de fantasia, mas há uma enorme diferença entre o que é liberdade imaginativa e o que é simples incoerência. Acho muito difícil de "engolir" que um homem à beira da morte, sofrendo alucinações por causa da sede, ainda fosse impor a si mesmo toda essa rígida e minuciosa autocensura, abstendo-se de revelar a exata natureza do horror que estava enfrentando, meramente para resguardar uma imagem de "lucidez" perante um hipotético leitor. Isso se parece muito mais com uma enjambração capenga da qual o autor lança mão para preservar o suspense – numa altura da história em que ele não mais se justifica. Saber criar suspense é sem dúvida uma das mais valiosas habilidades para um escritor de qualquer gênero, mas talvez ainda mais importante seja saber até onde ele pode ser um recurso narrativo útil e a partir de que momento se transforma numa coisa forçada, artificial e irritante. Suspense tem prazo de validade – um fato do qual, ao menos em O Terror, Arthur Machen não demonstra ter ciência. Leitura muito mais agradável é Ornamentos em Jade, que, de forma despretensiosa, com lirismo e leveza, coloca-nos em contato com a atmosfera das remotas regiões rurais do País de Gales, com seu misticismo antigo, com a beleza de suas paisagens, e com o mesmo sentimento que devia encher o coração do menino Arthur quando ele vagava solitário por tais lugares: uma nostalgia melancólica por um mundo desaparecido há 1500 anos. Portanto, posso dizer que, se dependesse apenas de O Terror, eu não teria planos de voltar a ler Arthur Machen – mas, por causa de Ornamentos em Jade e das excelentes recomendações, sinto que ainda posso dar a ele uma segunda chance.


sexta-feira, janeiro 13, 2012

Queda de Gigantes

Vou confessar: eu tinha um certo preconceito com Ken Follett. Não sei por que, mas ele sempre me pareceu ser um outro Sidney Sheldon - que, por sua vez, embora não seja o melhor escritor do mundo, está longe de ser o pior: como já escrevi antes, é incomparavelmente melhor ler Sidney Sheldon do que não ler coisa nenhuma. Em todo caso, neste momento estou dando a mão à palmatória: como sempre acontece com os preconceitos, esse ruiu assim que travei verdadeiro conhecimento com a coisa sobre a qual pensava saber algo. Queda de Gigantes é um livraço, e não só por ter mais de 900 páginas. Aliás, se não fosse um livraço também no outro sentido, chegar ao fim de um livro dessa extensão seria praticamente impossível.

Este é o primeiro volume de uma trilogia intitulada O Século, que, conforme informações presentes nas orelhas do livro, prosseguirá com outro a respeito da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, e um terceiro sobre a Guerra Fria. Queda de Gigantes está ambientado durante a segunda década do século XX, e seu título, muito bem dado, refere-se ao colapso dos impérios coloniais europeus que haviam ditado as regras ao resto do planeta durante os dois séculos anteriores. Embora esses impérios já mantivessem seu equilíbrio com dificuldade há décadas, um evento específico precipitou o fim quase simultâneo de todos eles e redesenhou de forma radical o mapa geopolítico da Europa. Esse evento foi a Primeira Guerra Mundial, que serve de eixo à narrativa de Follett.

O livro não tem propriamente um protagonista, pois não há um personagem único que capitalize as ações mais importantes da narrativa. Ao invés disso, a história foca os acontecimentos da vida de cinco diferentes famílias: os Williams, galeses; os Peshkov, russos; os Fitzherbert, ingleses; os Von Ulrich, alemães; e os Dewar, norte-americanos. Enquanto as duas primeiras famílias são das classes trabalhadoras, as três últimas são privilegiadas: tanto os Fitzherbert quanto os Von Ulrich, além de ricos, fazem parte das aristocracias seculares de seus respectivos países; já os Dewar, embora sem origens ilustres, são igualmente abastados. Como romance histórico extremamente bem escrito, Queda de Gigantes leva a um alto grau de maestria aquilo que define esse gênero: uma história dentro da História, personagens ficcionais movendo-se sobre um pano de fundo real, reconstituído com base numa pesquisa extensa e minuciosa, que englobou desde táticas e armamentos de guerra até o que era servido tanto nas mesas humildes quanto nas mais luxuosas, e o que estava na moda em matéria de música e vestuário na época - além, é claro, da intrincada situação política que o mundo vivia.

A princípio, o leitor pode até achar cansativo o grande número de personagens cujas características, backgrounds e atos é preciso lembrar e concatenar a fim de compreender o desenvolvimento do romance, mas, aos poucos, o próprio entrelaçamento de todas essas vidas vai tornando essa tarefa mais fácil: um personagem está ligado a outro, que está ligado a outro, e assim sucessivamente, numa cadeia que abrange vários países. O galês Billy Williams, um jovem mineiro e mais tarde soldado, é o que de mais próximo do ideal heroico encontramos no livro: corajoso, gentil, dono de um caráter irrepreensível, Billy é filho de David Williams, líder sindical na pequena cidade mineradora de Aberowen, no país de Gales, e irmão de Ethel, uma jovem bonita, inteligente e ambiciosa que trabalha como criada na mansão dos Fitzherbert, donos das minas onde trabalha quase toda a população da cidade. O atual chefe da rica família é o jovem conde Edward Fitzherbert, chamado pelos amigos de "Fitz", um homem vaidoso e arrogante, como seria de se esperar de alguém de sua posição social; apesar de não ser desprovido de bons sentimentos, Fitz parece ter um caráter demasiado fraco para agir de acordo com sua consciência, quando isso significar desafiar convenções e talvez perder o apreço de seus pares. Em compensação, sua irmã, lady Maud, é uma feminista convicta, que, ao invés de gastar seus dias no absoluto ócio que era considerado a "atividade" normal para as mulheres da aristocracia inglesa de então, dedica-se com ardor à causa do voto feminino, que era uma das grandes lutas sociais e políticas em andamento na época. Maud acaba apaixonando-se pelo jovem diplomata Walter Von Ulrich, antigo colega de colégio de Fitz e filho de Otto Von Ulrich, também da carreira diplomática, amigo e conselheiro direto do Kaiser alemão Wilhelm (ou Guilherme) II. Ainda falando em Fitz, o conde é casado com Elizaveta, apelidada de "Bea", uma princesa russa, que, juntamente com seu irmão, o príncipe Andrei, tem um histórico de anos de abusos e arbitrariedades para com camponeses e operários em seu país natal. Entre esses, estão os irmãos Grigori e Lev Peshkov, atualmente trabalhando numa metalúrgica em São Petersburgo, que perderam o pai na infância, enforcado por ordem de Andrei, e a mãe na adolescência, morta pelos guardas do czar ao participar de uma manifestação da classe operária. Com cinco anos de diferença, e tão parecidos fisicamente que as pessoas chegam a confundi-los, os dois irmãos são personalidades opostas: Grigori é um sujeito tranquilo, sério e responsável, acostumado a fazer as vezes de pai e mãe para o irmão mais novo - que, por sua vez, é um boêmio e mulherengo incorrigível, chegado ao jogo e à vodka. Grigori sonha em emigrar para os Estados Unidos, que ele e muitos outros russos da época veem como uma espécie de terra prometida, pelo simples fato de que lá não existe czar nem nobreza, e de que os donos de terras ou de indústrias não podem mandar açoitar ou enforcar seus trabalhadores a seu bel-prazer (!). Só que, quando ele finalmente consegue juntar dinheiro suficiente para sua passagem de navio, devido a um imprevisto quem acaba viajando é Lev, deixando o pobre Grigori sem nada e, de quebra, responsável pela namorada grávida que o irmão deixou para trás.


E, como Grigori acaba descobrindo, se fosse só isso ele ainda não teria do que se queixar... É 1914 e o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-húngaro, é assassinado na cidade bósnia de Sarajevo, pelo estudante e nacionalista sérvio Gavrilo Princip. Em represália, os austríacos e seus aliados alemães invadem a Sérvia, que está sob a proteção da Rússia... Inicia-se uma reação em cadeia que mexe com antigos rancores e interesses políticos e econômicos de todas essas e de outras nações, como a França e a Grã-Bretanha, ambas aliadas à Rússia. A Europa entra em guerra, desta vez uma guerra de proporções jamais imaginadas antes, devido aos avanços tecnológicos e ao encurtamento das distâncias pelos novos meios de transporte e de comunicação. Das consequências dessa guerra, ninguém é poupado: Grigori Peshkov, Billy Williams, Walter Von Ulrich e o conde Fitzherbert, todos se veem às voltas com o perigo e o terror dos campos de batalha, sem ao menos a chance de escolherem ao lado de quem preferem estar: Billy serve sob as ordens de Fitz, a quem detesta por ter seduzido e engravidado sua irmã, levando ao rompimento dela com a família, enquanto Walter se vê diante da possibilidade muito concreta de precisar atirar no conde, seu amigo desde a adolescência e, ainda por cima, cunhado.

Enquanto o exército russo invade a região alemã da Prússia, do outro lado do continente os alemães enfrentam britânicos e franceses. A Primeira Guerra Mundial forçou uma transição brusca entre as formas de guerrear antigas e modernas: nas primeiras batalhas ainda se tentou utilizar a cavalaria, que desde a Antiguidade era considerada uma arma decisiva na maioria das guerras, mas que logo se mostrou impotente diante de tanques e metralhadoras. Pela primeira vez foram usados aviões e bombas de alta potência, elevando a guerra a um novo patamar de horror. As metralhadoras fixas (ainda não existiam as leves, que poderiam ser usadas por soldados de infantaria) eram um poderoso instrumento para a defesa de posições, praticamente à prova das formas tradicionais de ataque, o que teve como consequência uma taxa terrível de baixas: a infantaria precisava atravessar correndo as várias centenas de metros da "terra de ninguém" que separava as trincheiras de cada lado - e tinha que fazer isso indo ao encontro das rajadas das metralhadoras inimigas.

Os Estados Unidos entraram tardiamente na guerra, em 1917, oficialmente em resposta ao torpedeamento de navios americanos por submarinos alemães no Atlântico norte com o objetivo de cortar o fornecimento de suprimentos a ingleses e franceses, mas fica claro com uma análise mais cuidadosa que isso foi apenas parte do motivo: os americanos sabiam bem o que perderiam no campo econômico se alemães e austríacos vencessem a guerra e ficassem senhores da Europa. Para a Inglaterra e a França, a adesão dos ianques foi, literalmente, a salva
ção, principalmente depois que a Rússia se retirou da guerra por causa da Revolução Comunista ocorrida em outubro desse mesmo ano. Para relatar o que acontece na Casa Branca, Follett usa o jovem Gus Dewar, então um dos assessores diretos do presidente Woodrow Wilson.

Queda de Gigantes é um daqueles livros cuja leitura torna-se rapidamente compulsiva - você começa a ler e, quando se dá conta, percorreu 50 páginas sem sentir, e ainda fica contrariado por ter outros afazeres que o obriguem a deixar a leitura de lado por algum tempo. Por tratarem basicamente de guerra, estas páginas mostram um pouco (na verdade, muito) do melhor e do pior que existe nos seres humanos, pois talvez nenhuma outra situação seja tão propícia à revelação desses extremos. É fascinante ler um autor com a capacidade de nos fazer entender como a História é construída, pedra por pedra, pelas ações de seres humanos iguais a nós, tanto os milhares de anônimos que lutaram na guerra e os milhões que sofreram seus efeitos, quanto os grandes líderes que precisaram arcar com o peso de decisões que definiriam o futuro de países inteiros - e, infelizmente, nem sempre se mostraram à altura de tal responsabilidade. E a guerra não é mostrada de uma maneira simplista, como se tivesse sido um confronto do "bem" contra o "mal": o leitor conhece personagens de ambos os lados, estima-os igualmente e torce para que sobrevivam e voltem para suas famílias, o que dá à coisa toda, antes de mais nada, um sentido profundamente humano.