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quarta-feira, março 31, 2010

Drácula

Recentemente, no Covil do Orc - um dos blogs que leio com mais frequência, e cujo autor também costuma honrar-me com suas visitas e comentários - li um post a respeito de Drácula, que, como Dom Quixote e um pequeno número de outros, é um daqueles livros sobre os quais todo mundo sabe alguma coisa, até mesmo quem nunca os abriu - e, não raro, até mesmo quem não tem o costume de abrir qualquer livro que seja pode saber algo sobre eles. Se não me falha a memória, isso era parte de uma das definições de "clássico" propostas por Ítalo Calvino. But that's not my point here.

O Orc atribui uma nota vermelha (ops!) a Drácula na avaliação geral, considerando a história como um todo entediante, com os momentos interessantes ou importantes separados uns dos outros por mares de páginas em que meramente são debatidas as questões pessoais dos personagens - e preciso concordar que, de fato, o livro melhoraria com uma boa enxugada. Também é verdade que não é oferecida explicação alguma para a razão pela qual o Conde resolve mudar-se de seu sossegado castelo nos Cárpatos para a agitação e a poluição da Londres vitoriana. Um dos visitantes que deixaram comentários ao texto do amigo Orc diz que teria sido por ter visto uma fotografia de Mina Murray, a noiva do herói (mais ou menos) Jonathan Harker, e nela reconhecido a reencarnação de sua própria noiva, morta há séculos... Na verdade, como bem observado pelo Orc ao responder, isso só aparece no filme (referindo-se, creio, à produção de 1992 dirigida por Francis Ford Coppola), e eu acrescentaria que, mesmo no filme, o fato não constitui explicação para a mudança do Conde: Jonathan, com a foto no bolso, só vai até o castelo de Drácula porque este o chama, interessado que está em comprar uma propriedade em Londres, negócio a ser mediado pela firma onde Harker trabalha. Ou seja, o vampiro já planejava mudar-se antes de saber da existência de Mina.

Sobre o filme, aliás, devo dizer que ele tem muitas qualidades: é visualmente magnífico, tem um roteiro que prende e um punhado de atuações notáveis, destacando-se Gary Oldman como Drácula e Anthony Hopkins, excelente como sempre, no papel de Van Helsing. Já Keanu Reeves, como Jonathan Harker, mostra-se tão expressivo quanto um peixe defumado, mas nada no mundo é perfeito mesmo... Winona Ryder, que interpreta Mina, não atua mal na minha opinião, mas eu, no lugar do diretor, escolheria uma atriz com mais "presença" (leia-se sex appeal) para o papel. Certo, ela passa a maior parte do filme como uma recatada professorinha, mas lá pelas tantas, sob a influência de Drácula, deveria parecer uma vampira sedutora e terrível - e não convence muito como tal. O fato é um pouco compensado pelas aparições breves mas memoráveis de Monica Belucci, ainda não tão famosa na época, mas deslumbrante como sempre, como uma das três servas-vampiras do Conde. E já que estamos falando das figuras femininas, faço um parêntese para assinalar que aquela doida ninfomaníaca que atende pelo nome de Lucy Westenra no filme não tem nada a ver com a delicada e virtuosa personagem homônima do livro!...

Vampiras à parte, talvez a coisa mais legal do filme seja a breve introdução ambientada no século XV, que explica a transformação do príncipe Vlad, de um devotado defensor de seu país e da Igreja Ortodoxa contra os invasores muçulmanos, para um conde vampiro mancomunado com o demo... No livro, Stoker não cita o nome de Vlad, embora ele tenha sido, sem dúvida, sua principal fonte de inspiração: em vez disso, permite ao próprio vampiro dar algumas pistas sobre sua identidade. No castelo, quando Jonathan ainda não sabe que ele é um vampiro, o Conde enaltece os feitos de um suposto "ancestral" que na verdade era ele próprio; mais tarde, já sem nada a esconder, ele gaba-se de ter governado nações e combatido por elas, séculos antes do nascimento dos que agora o veem.



Curiosidade 1: Só notei isso ao rever o filme para escrever este texto, mas o bispo que diz a Vlad que a alma de Elizabeta não poderá ser salva porque ela se suicidou é o próprio Anthony Hopkins, quase irreconhecível com cabelo longo e vastas barbas!


Curiosidade 2: Todos que já ouviram falar no príncipe Vlad Basarab sabem que ele era mais conhecido por seu apelido, Vlad Tepes, que significa Vlad, o Empalador. Era assim chamado por ter uma preferência especial por executar prisioneiros de guerra e desafetos em geral espetando-os em longas estacas. Na introdução do filme, um soldado turco aparece morrendo numa comprida lança que o atravessa do peito às costas - uma versão mais "apresentável", digamos, do que seria o verdadeiro empalamento, de cujos detalhes prefiro poupar meus leitores; basta dizer que era uma forma bem mais demorada, dolorosa, humilhante e chocante de morrer do que essa, tanto que jamais poderia ser mostrada nem mesmo num filme de terror... Pelo menos, não num com um mínimo de bom gosto.


Ao lado de todas essas qualidades, o filme de Coppola tem um grande defeito: é romântico demais. Mina e Drácula vivem uma relação intensa e apaixonada, com o coitado do Jonathan tendo que resignar-se à sina de corno de um morto-vivo... Há uma sequência na qual Mina pede a Drácula que a torne igual a ele, e a dramática resposta é que ele a ama demais para condená-la a uma existência tão miserável: só depois de muita insistência por parte dela é que o vampiro cede. Na parte equivalente do livro, ele simplesmente faz um corte no próprio peito com suas garras e obriga a moça a provar de seu sangue, a fim de consolidar seu domínio sobre ela. Para o Drácula do livro, Mina nada mais é do que uma ferramenta útil. Essa romantização exagerada, a meu ver, não se justifica num filme cuja intenção declarada era a de ser o mais fiel possível à obra original, objetivo esse denunciado já no próprio título, que não é simplesmente Dracula, e sim Bram Stoker's Dracula - Drácula de Bram Stoker! Mas temos que entender o lado de Coppola: Hollywood tem suas regras. Nenhum filme com ambições de alcançar grandes bilheterias pode deixar de ter um romance no meio.


Comentei acima sobre o visual impecável do filme, e o cuidado nesse sentido começou pelo próprio personagem principal: estamos acostumados à imagem de um Drácula de casaca, capa com colarinho alto e cabelo gomalinado - uma figura digna de teatro vaudeville. Isso é culpa de Tod Browning e Bela Lugosi, respectivamente diretor e ator principal de uma versão de Drácula filmada em 1931 e ainda considerada por muitos como a mais clássica, apesar de adulterar a história muito mais que o filme de Coppola (e de eu, pessoalmente, achar Lugosi mais cômico que assustador). Nada poderia estar mais distante da "verdadeira" aparência do Conde, que é descrito por Stoker como tendo cabelos longos e farto bigode - um visual muito mais selvagem e sinistro que o do vampiro-almofadinha encarnado por Lugosi e copiado em dezenas de filmes posteriores. Já Coppola e Gary Oldman optaram por compor a imagem de Drácula seguindo à risca a descrição de seu criador. Ponto para eles. Por outro lado, o diretor e/ou o roteirista parecem ter alguma admiração, apesar de tudo, pelo filme de Browning, pois pelo menos dois detalhes que não estão no livro foram copiados diretamente de um filme para o outro: a foto de Mina e a frase morbidamente zombeteira que o Conde diz ao servir o jantar a Jonathan. Desculpando-se por não acompanhá-lo, ele explica que já jantou e que além disso nunca bebe... vinho, insinuando que o líquido vermelho que lhe agrada ao paladar é outro.


Deixando o filme um pouco de lado e voltando a falar do livro, acho necessário dizer algumas palavras sobre seu autor. Abraham Stoker ("Bram" era um apelido de infância) nasceu em Clontarf, Irlanda, em 1847. Foi um menino débil e adoentado, que passou a maior parte da infância recolhido a um quarto, onde sua mãe, uma apaixonada por narrativas fantásticas, entretinha-o contando as histórias tradicionais do folclore irlandês, desde as mais engraçadas até as mais tenebrosas, o que deixou uma marca indelével na imaginação de Bram. Apesar de seu histórico de doença na infância, ele veio a tornar-se um homem de grande energia, resistência e determinação, trabalhador incansável. Formou-se em Matemática, mas trabalhou durante a maior parte da vida como jornalista e produtor teatral. Casou-se em 1878 com Florence Balcombe, tida e havida como uma das maiores beldades da Grã-Bretanha na época - consta que Stoker teve que disputar a mão dela com o também irlandês e escritor Oscar Wilde, que, como sabemos, não era exatamente "do ramo" (leia-se: preferia a companhia de rapazes), de modo que provavelmente não foi um rival que haja se empenhado muito. Ocorre que Florence não tinha só beleza: era também muito dominadora e uma espécie de pré-feminista, de modo que Stoker não desfrutou de uma vida doméstica das mais tranquilas. Suas heroínas dóceis, quase submissas, e totalmente devotadas aos maridos, poderiam ser uma forma de crítica que o escritor fazia ao gênio difícil de sua própria esposa - o que explicaria a presença, em Drácula, de frases que soam um tanto inverossímeis saídas da boca ou da pena de personagens femininas, como este trecho de uma carta de Lucy para Mina: "Minha cara Mina, por que os homens são tão nobres e nós mulheres nos mostramos tão indignas dessa nobreza?" (!) Acreditar em vampiros é fichinha comparado a acreditar que uma mulher, mesmo no século XIX, pudesse escrever isso!

Stoker escreveu ao todo 17 romances, alguns dos quais tiveram um sucesso discreto, mas Drácula, o oitavo pela ordem, não foi um deles: passou quase despercebido na época. O autor morreu em Londres, em 1912. Ah: caso estejam achando sem graça a capa do livro no início deste post, saibam que ela é histórica: trata-se da capa da primeira edição de Drácula, de 1897, da qual resta hoje apenas um punhado de exemplares. O que foi fotografado para esta imagem está no Museu dos Escritores, em Dublin.

Um comentário do Orc que achei brilhante foi que o método de narração escolhido por Stoker - o de não ter um narrador fixo, mas contar a história por meio de trechos de cartas e diários escritos por diferentes personagens - poderia ter rendido magnificamente, se explorado com mais habilidade. De fato, concordo: Stoker não consegue "vestir a pele" dos personagens, nota-se que o tom e o ponto de vista são sempre os mesmos, quer o texto seja atribuído a um funcionário de escritório de advocacia, a um médico ou a uma adolescente. Por outro lado, não dá para negar que ele fez um trabalho admirável ao compilar e organizar num todo coerente a vasta e caótica quantidade de informações que colheu sobre o mito do vampiro, partindo do folclore rural de seu próprio país, para ir descobrindo lendas sobre seres semelhantes entre quase todos os povos do globo - sendo que os habitantes da Romênia, sem a menor dúvida, falavam de vampiros com maior riqueza de detalhes, convicção e pavor que qualquer outro povo. Embora hoje desgastada pelo uso excessivo, a fórmula criada por Stoker foi durante muito tempo um dos mais interessantes materiais de que escritores de horror e fantasia dispunham para trabalhar. E Stoker fez ainda mais: mesmo sem nunca ter visitado pessoalmente a Romênia, encheu seu livro com ricas e pormenorizadas descrições de suas paisagens, geografia e de suas diferentes etnias, descrições essas que todos os estudiosos são unânimes em considerar cem por cento corretas - tudo fruto de milhares de horas de minuciosa pesquisa na biblioteca do Museu Britânico.

Curiosidade 3: Ao ler o livro pela primeira vez, alguns anos atrás, tive uma surpresa ao ver que o Conde realmente se transforma em morcego, o que eu julgava ser mais uma invenção dos filmes. Explico: a conexão entre vampiros e morcegos é relativamente recente - para ser mais exato, é posterior à colonização das Américas, pois só nas Américas Central e do Sul é que foram descobertos os famosos morcegos hematófagos (sugadores de sangue). Os morcegos da Europa não passam de inofensivos comedores de insetos, de modo que ninguém pensou em relacioná-los ao folclore vampírico. Nas lendas mais antigas, dizia-se que os vampiros costumavam assumir a forma de lobos (o que Drácula também faz), gatos ou pássaros, mas parece que Stoker gostou da novidade e adotou o morcego.

Um ponto interessante do livro (e que o filme, por dispor do recurso da imagem, potencializa) são os sinais de modernidade espalhados por toda parte e que, se o leitor tentar pensar com a cabeça da época, constituem, misturados ao mero fato da existência dos vampiros, um contraste bizarro. Jonathan viaja para a Transilvânia a bordo de sofisticados trens a vapor, Mina escreve seu diário usando uma máquina datilográfica, enquanto o Dr. Seward registra o seu por meio de um gravador de bobina e pede a ajuda de Van Helsing via telégrafo... Que diabos, estes são tempos modernos, científicos, pleno final do século XIX! Num mundo onde existe tudo isso, como ainda pode haver lugar para "superstições" como o vampirismo? A ideia de horrores antigos e mistérios sobrenaturais se perpetuando no tempo, sem se importar com todo o progresso que a humanidade acredita ter alcançado, contribui com sua dose de implicações sinistras.

Tenho que admitir, há duas coisas em Drácula que são realmente duras de aguentar: o discurso "edificante" e repetitivo de alguns personagens sobre sua "missão sagrada de livrar o mundo de semelhante monstro" (Van Helsing é o pior nesse quesito) e, o que chega a ser ainda mais chato, a interminável "rasgação de seda" entre os protagonistas, que não perdem uma só oportunidade de dizer uns aos outros o quanto são pessoas extraordinárias e cheias de qualidades admiráveis - e nunca o fazem da forma mais sucinta possível: não raro, essa mútua puxação de saco ocupa uma página inteira, quebrando o ritmo e o clima, o que é ainda mais prejudicial numa história de terror do que numa de qualquer outro tipo. Mas há compensações: os primeiros capítulos, com Jonathan aprisionado no castelo de Drácula e aos poucos descobrindo a inacreditável verdade sobre seu anfitrião; a descrição, pelo olho clínico do Dr. Seward, dos sintomas da loucura de seu paciente Sr. Renfield e as ligações sutis entre os atos deste último e os do Conde; a narrativa arrepiante da libertação final da alma de Lucy mediante a destruição de sua forma vampírica por seu noivo Arthur e Van Helsing; a terrível cena em que Drácula transforma Mina em sua escrava ao forçá-la a beber seu sangue após ter sugado o dela; e, é claro, a tensa e implacável perseguição do Conde pelo grupo de heróis através dos ermos da Romênia, são, todas elas, cenas que dificilmente perderão o lugar de destaque que ocupam há mais de cem anos nos anais da ficção de horror.

Minha conclusão: Drácula certamente não é candidato a um lugar na lista das dez maiores obras da literatura universal, mas, com os defeitos que possa ter (e tem), segue sendo a melhor história de vampiros a que já fui apresentado. E nestes tempos de Crepúsculo, redescobrir a obra de Bram Stoker pode ter o mérito adicional de nos dar um vislumbre do que era a figura do vampiro antes de sua atual "pasteurização" - quando rostos pálidos e presas longas verdadeiramente metiam medo, e figuravam nos pesadelos de gerações inteiras.

sábado, abril 30, 2005

Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino

Alguns anos atrás, li um ensaio bastante curioso, de autoria do escritor americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), intitulado O Horror Sobrenatural na Literatura. Publicado postumamente em 1945, o livro pretendia ser um guia para os interessados em conhecer as obras e os autores mais importantes da moderna literatura fantástica ― campo do qual o autor podia falar com conhecimento de causa, pois, para quem não o conhece, Lovecraft, discípulo aplicado de Edgar Allan Poe, é hoje considerado um dos nomes mais importantes da literatura de terror e fantasia de todos os tempos nos Estados Unidos. Esse ensaio era uma leitura muito interessante, mas acabava deixando no leitor (ao menos no leitor brasileiro) um sentimento de frustração, já que a vasta maioria dos trabalhos citados por Lovecraft nunca tinham sido publicados por estas plagas, nem havia perspectiva próxima de que viessem a sê-lo, pois a literatura de imaginação nunca foi considerada, dentro do restrito mercado editorial brasileiro, um campo em que valesse a pena investir, já que não falava ao gosto da maioria do ainda mais restrito público leitor.

Ultimamente, entretanto, pode-se arriscar dizer que a situação está mudando. A tremenda popularidade que a obra de J. R. R. Tolkien começou a ganhar no país por volta de meados dos anos 90, e que estourou de uma vez por todas com o lançamento da vitoriosa trilogia cinematográfica O Senhor dos Anéis, trouxe em sua esteira uma ampliação radical do mercado potencial para a literatura de imaginação como um todo. O estilo que em alguns círculos é chamado de "fantasia medieval", do qual Tolkien é o maior expoente, era praticamente desconhecido no Brasil até há alguns anos ― já agora, a maioria das livrarias tem dezenas de títulos do gênero para oferecer, sendo alguns até de autores nacionais. E não causa estranheza que o leitor já acostumado com a literatura de fantasia através de Tolkien e seus seguidores, tenha maior facilidade em interessar-se pelo lado mais sombrio da ficção fantástica.

Assim, por meio da antologia Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino, eu, e presumo que um bom número de outros leitores do ensaio de Lovecraft, tive por fim o prazer de realmente conhecer diversas das histórias resenhadas com tanto entusiasmo pelo autor americano. O nome do organizador da antologia já há que ser considerado uma recomendação: Calvino, autor de uma obra mundialmente aclamada, tanto como ficcionista quanto como teórico da literatura, escreveu, entre muitas outras coisas, uma pequena pérola intitulada Por Que Ler os Clássicos, livro que deve fazer parte do arsenal de todos os que trabalham na área da literatura ou dos que simplesmente a amam, pois nos abastece com uma fartura de respostas para dar aos onipresentes imbecis (desculpem-me, mas a palavra é essa mesmo) que vêm perguntar "para que serve" ler Homero, Cervantes ou Shakespeare. Com o estofo proporcionado por sua vasta bagagem de conhecimentos sobre literatura universal, Calvino selecionou com rara felicidade uma série de textos que representam o que de melhor se produziu em matéria de ficção fantástica no século XIX.

A antologia contempla desde textos e autores famosos como os americanos Nathaniel Hawthorne (O Jovem Goodman Brown) e Edgar Allan Poe (O Coração Denunciador) até os praticamente desconhecidos, ao menos entre nós, como o polonês Jan Potocki (História do Demoníaco Pacheco), além de cobrir uma surpreendente diversidade de estilos dentro do que se convencionou chamar "horror gótico": temos oportunidade de percorrer desde os exageros emotivos e estilísticos (intencionais?) do romantismo alemão (E. T. A. Hoffmann com o seu O Homem de Areia), passando por climas sombrios como no já citado Goodman Brown de Hawthorne, e indo até coisas que dificilmente seríamos capazes de classificar como "horror", pois o efeito que produzem é bem outro, como no caso da hilária O Nariz, do russo Nikolai Gogol. Há ainda textos nos quais o macabro e o engraçado se entrecruzam de forma magistral, como em A Mão Encantada, de Gérard de Nerval ― aliás, dono de um estilo absolutamente delicioso, cheio de frases pitorescas e tiradas engraçadas. As histórias encadeiam-se umas nas outras sem a menor intenção de ilustrar uma "evolução" da literatura fantástica ao longo do século, mas antes uma variação natural de tons, conforme a índole de cada autor e o ambiente cultural onde seu talento se desenvolveu. Calvino faz questão de nos mostrar tanto autores cujos nomes são automaticamente associados ao conto fantástico ― Poe ou Guy de Maupassant, por exemplo ― quanto aqueles que se celebrizaram em outros ramos da literatura, mas que eventualmente se dedicaram a explorar o campo do insólito: Hans Christian Andersen, Balzac, Walter Scott...

Se tivesse que escolher as melhores histórias do livro, eu apontaria A Vênus de Ille, de Prosper Merimée, que expressa com tremenda força ― mas sempre com sutileza ― a sensação de um horror que ressurge depois de ter ficado adormecido desde a Antiguidade, tudo girando em torno do achado de uma antiga estátua romana; Amour Dure, em que um jovem estudioso de História se vê apaixonado por uma dama bela e terrível, morta há trezentos anos; O Demônio da Garrafa, de Robert Louis Stevenson, que consegue a proeza de manter o leitor acorrentado à narrativa, mesmo lidando com um tema tão batido quanto o que lhe dá título; quanto a Poe e Hawthorne, nem é preciso dizer que seus trabalhos estão entre os melhores.

Mas a melhor história de todas é a que Calvino, sabiamente, reservou para o fim: Em Terra de Cego, do grande H. G. Wells. O conto fala de um vale encravado no meio dos Andes, onde um grupo de exilados, mestiços de espanhóis e índios, se refugiou no século XVI, e onde existe todo o necessário para que uma pequena população humana viva em paz e fartura ― com o inconveniente de que, por alguma razão misteriosa, lá todas as crianças nascem cegas. Devido à erupção de um vulcão que fecha sua única saída, o vale acaba ficando isolado do mundo exterior, e durante três séculos só nascem lá pessoas cegas. Um dia, já no século XIX, Nuñez, um guia de alpinismo, perde-se de seu grupo e é arrastado por uma avalanche para dentro do vale. Por algum tempo ele acredita que, pelo fato de poder ver, será admirado e invejado por aquele bizarro povo cego ("Em terra de cego, quem tem um olho é rei"), mas logo se decepciona: depois de catorze gerações só de cegos, os habitantes do vale esqueceram tudo sobre o mundo exterior. Ao longo dos séculos surgiram entre eles alguns de espírito filosófico que começaram a questionar as lembranças transmitidas pelos ancestrais, passaram a considerá-las meras crendices ("Por que temos que crer em coisas que nenhum de nós nunca viu?"), e acabaram por negá-las completamente e por convencer os demais. Agora, todos ali ignoram completamente que existe um mundo lá fora: para eles, o universo é aquele vale. E não é tudo: palavras como luz e trevas, dia e noite, olhar, ver, simplesmente não existem em seu vocabulário, nem tampouco a palavra cego, pois esqueceram por completo tudo o que diz respeito ao sentido da visão. As histórias de Nuñez sobre o mundo exterior soam para eles como delírios de um louco, assim como tudo o que ele lhes diz sobre poder "ver". A história é uma alegoria extremamente inteligente que critica certos postulados filosóficos e a maneira como geralmente o conhecimento humano é construído.

É claro que nem tudo é perfeito: há coisas sem as quais o livro poderia passar muito bem, como Os Buracos da Máscara, de um tal Jean Lorrain, texto sem pé nem cabeça cujo único mérito é ser curto, e que simplesmente descreve as alucinações da mente de um drogado, ou Os Amigos dos Amigos, de Henry James ― não tenho a menor intenção de pôr em dúvida a importância ou os méritos de James, mas esse conto em particular, a meu ver, não tem por que ser considerado literatura fantástica, já que as brevíssimas menções que faz a aparições fantasmais não passam de um pretexto para páginas e mais páginas descrevendo as inseguranças sentimentais da heroína narradora.

Apesar desses tropeços, cada conto do livro reserva ao leitor uma ou várias surpresas, e, como guia nessa viagem pelo mundo da imaginação visionária, dificilmente poderíamos querer alguém melhor que Ítalo Calvino, que nos situa no contexto através de uma interessantíssima introdução, além de ter escrito para cada história um pequeno prefácio que fornece informações importantes sobre o autor ― embora seja muito incômodo o fato de o organizador, por alguma razão misteriosa, ter decidido várias vezes bancar o desmancha-prazeres, contando ao incauto leitor o final do conto que ele ainda nem começou a ler. Depois de três ou quatro dessas, passei a adotar o expediente de simplesmente pular o prefácio e depois voltar atrás para lê-lo ― após ter terminado o conto, é claro. Recomendo aos demais leitores fazer o mesmo, e basta tomar esse pequeno cuidado para ter garantidos alguns momentos de arrepios inesquecíveis.