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quinta-feira, outubro 28, 2021

Duna, o Filme (2021)

Como um fã da obra de Frank Herbert desde a adolescência, eu tive o cuidado de dizer a mim mesmo, antes de ir ao cinema conferir a nova versão de Duna dirigida por Denis Villeneuve, para não ser exigente demais – além de orar fervorosamente para que o diretor (que também é corroteirista) não tivesse desfigurado muito a história original só para fazer concessões à tirania politicamente correta que afeta praticamente tudo nesses anos loucos que estamos vivendo. Por outro lado, estava empolgado para ver o que as novas tecnologias a serviço do cinema poderiam ter feito para recriar o universo de Herbert com um visual ainda mais espetacular.

A primeira surpresa não tardou a surgir, e nem era relacionada a roteiro ou imagens: ocorre que nada na (intensa) publicidade que tenho visto na internet a respeito do filme dava a entender que esta era só a primeira parte. Entrei no cinema acreditando que fosse ver um filme único, e sua mui considerável duração de duas horas e 36 minutos parecia confirmar isso, já que é maior que a do filme de 1984, dirigido por David Lynch, que contava, ou tentava contar, a história de cabo a rabo. Mas não: era mesmo só a primeira parte, e acabo de ver, depois de uma rápida pesquisa, que as filmagens da segunda ainda nem começaram, e que sua estreia está prevista para o distante outubro de 2023, se o mundo não acabar antes, naturalmente. Teria sido legal deixar isso claro com antecedência, mas não me importei: se os dois filmes de Villeneuve, juntos, tiverem um resultado satisfatório, a espera terá valido a pena, e talvez, dispondo de mais tempo (tempo de filme, quero dizer), o diretor consiga contar a história de uma maneira mais redondinha, mais inteligível para quem não leu o livro, como já acontecia na minissérie de 2000 do Sci-Fi Channel, que é bem mais amigável ao espectador não iniciado que o filme de Lynch, embora eu, pessoalmente, não goste muito de sua parte visual.

E contar uma história como Duna na tela, de uma maneira que possa ser acompanhada até por quem não conhece bulhufas sobre seu universo (o que sempre será o caso da maior parte do público no cinema), é muito, mas muito difícil. A todo momento aparecem coisas que parecem impor ao diretor uma escolha entre incluir um diálogo expositivo totalmente artificial ou deixar o público boiando. Um exemplo banal, mas bem prático, é o dos campos de força individuais que os personagens usam e chamam simplesmente de "escudos": o livro explica que eles repelem objetos que se aproximem em alta velocidade, mas podem ser penetrados se a lâmina, projétil ou o que for, se aproximar lentamente, o que exigiu o desenvolvimento de técnicas de combate muito específicas. O problema é como explicar isso a quem não leu o livro sem recair no famigerado diálogo expositivo, aquele tipo de cena forçada em que dois personagens começam a falar sobre algo que, pela lógica do enredo, ambos já deveriam estar carecas de saber, mas falam mesmo assim, só para que o espectador receba essas informações. Em algumas situações, Villeneuve encontrou maneiras de evitar isso, como, por exemplo, ao incluir uma cena em que Paul está estudando e, de carona com ele, captamos o que o livro-filme que ele está vendo ensina a respeito da especiaria e de sua importância dentro do universo conhecido. É verdade que em sua idade, e sendo filho de um governante planetário, ele certamente já saberia tudo isso, mas todos sabemos que é impossível estudar, seja qual for a matéria, sem acabar revendo coisas que já se sabe.

Porém, ao ver o filme, não foi esse o primeiro comentário que me veio à cabeça, e sim (inevitavelmente) um a respeito do protagonista: dos três atores que já encarnaram Paul Atreides nas telas, Timothée Chalamet, americano de origem francesa, é sem dúvida o que tem mais a cara do personagem. Tanto ele quanto Kyle MacLachlan, que fez o papel no filme de 1984, já tinham cerca de 25 anos ao interpretarem o personagem de 15, mas Chalamet aparenta muito menos, convence mais como adolescente, e não só pela aparência: o cara é bom de atuação, conseguindo passar aquela sensação de insegurança, de incerteza a respeito da própria capacidade de fazer o que é esperado dele – enfim, a própria essência da adolescência. Não estou de forma alguma tirando o mérito de MacLachlan: o Paul que ele fazia era mais do tipo arrogante e mimado (no início), o que não seria nada inesperado no herdeiro único de uma poderosa casa nobre; o personagem seria, muito em breve, forçado a amadurecer muito depressa, amadurecimento esse que MacLachlan também conseguiu expressar com eficiência. Quanto a Alec Newman, da minissérie, não sei, não é que o cara não tenha feito um bom trabalho, mas eu simplesmente não consigo olhar para ele e pensar "eis aí Paul Atreides". É subjetivo sim, admito.

(Nota de rodapé: entre outros papéis, Timothée Chalamet interpretou Henrique V num filme da Netflix de 2019 intitulado simplesmente O Rei. Considerando suas origens francesas, é curioso ele ter sido selecionado para esse papel.)

Ainda dando rápidas pinceladas sobre o elenco, Oscar Isaac (o Poe Dameron de Star Wars)  me surpreendeu como o duque Leto Atreides, sendo tudo o que o personagem deveria ser: imponente, com uma presença marcante, um ar de nobreza transparecendo até nos gestos mais simples, e uma combinação equilibrada de severidade e gentileza. Rebecca Ferguson está OK como Lady Jessica, companheira de Leto e mãe de Paul, mas confesso que sempre imaginei Jessica como uma mulher linda, e quem chegou mais perto de preencher esse requisito foi Francesca Annis, do filme de David Lynch. Stellan Skarsgård aparece quase irreconhecível como o vilão barão Vladimir Harkonnen, mas mostra a mesma versatilidade de sempre. Dave Bautista está adequadamente bestial interpretando Rabban, o sobrinho do barão, por ele nomeado governador de Arrakis, mas, curiosamente, o outro sobrinho, Feyd-Rautha, não aparece. Será que ele aparecerá na segunda parte, ou Rabban acumulará seus atributos e ações? Só o tempo vai dizer.

O papel de Chani, a futura companheira de Paul, ficou com uma para mim desconhecida Zendaya, que tem uma aparência interessante, uma beleza não óbvia (quero dizer, você precisa se acostumar com ela antes de começar a achá-la bonita) e plausível considerando que, no filme, ela é filha da ecologista imperial Liet-Kynes, interpretada por Sharon Duncan-Brewster, que é negra, de modo que o estilo mestiço de Zendaya vem a calhar. Kynes, por sinal, foi a única grande concessão feita por Villeneuve ao "sistema de quotas" politicamente correto, já que, tanto no livro quanto nas duas produções anteriores, esse personagem era homem. Este também é o primeiro Duna a apresentar uma grande variedade étnica, com muitos personagens negros e pelo menos um oriental (o Dr. Yueh, cujo nome até combina bem com isso), e não creio que esse fato seja coincidência, mas a coisa não foi feita de maneira forçada, então não há do que reclamar.

Josh Brolin (o Thanos dos filmes dos Vingadores) captou bem o estilo de seu personagem, o guerreiro-trovador Gurney Halleck, que, em geral, faz o tipo fleumático, embora uma das primeiras cenas em que ele aparece (cena essa, aliás, indispensável em qualquer adaptação de Duna que se preze) seja justamente uma em que perde a paciência: aquela em que Paul declara que "não está com disposição" para treinar, e Halleck, indignado, lhe dá uma bronca dizendo que "disposição é coisa para gado, para tocar baliset e fazer amor", e que "você luta quando é necessário, independentemente de disposição". Além disso, me agradou muito que essa nova versão tenha resgatado uma característica de Gurney que tanto o filme de David Lynch quanto a série do Sci-Fi haviam deixado de fora: como um bom trovador, ele sempre tem uma citação de poesia na ponta da língua para qualquer situação.

E, claro, não dá para não mencionar o mestre espadachim Duncan Idaho, que, além de ser professor de Paul (junto com Gurney, Thufir Hawat e o Dr. Yueh), também é provavelmente o melhor amigo do rapaz. No novo filme, o papel foi dado a Jason Momoa, já nosso conhecido por ter interpretado Conan no sofrível filme de 2011 dirigido por Marcus Nispel, além de ter sido Aquaman nos filmes da DC e também o bárbaro Khal Drogo em Game of Thrones. Momoa está ótimo na pele desse guerreiro valente e leal.

(Chegou o momento de falar, mesmo que só brevemente, sobre a história, ou melhor, sobre o jeito como o novo filme a conta, e, ao me preparar para isso, acho necessário observar que não vou repetir aqui tudo a respeito de Arrakis, da especiaria e outras coisas que já comentei do plot de Duna e do universo no qual ele se ambienta, uma vez que já existe no blog um post referente ao livro, que contém muito disso; sugiro que sigam o link que está no início deste post e leiam também aquele.)

A história, no filme, começa de uma maneira interessante, com uma breve narração em off feita por Chani, falando sobre seu planeta natal, Arrakis (ou Duna) e sobre a opressão sofrida por seu povo, os Fremen, durante 80 anos por parte dos Harkonnen, até um decreto do imperador forçá-los a ir embora, para serem substituídos pelos Atreides, que, até onde a garota sabe, podem não ser melhores. Funciona bem como introdução, e a transição para outro ponto de vista ocorre suavemente, quando o filme passa a se ocupar da casa Atreides, que, até então, ainda governa Caladan, planeta onde existem oceanos e chuva, o que produz um contraste chocante quando eles se mudam para Arrakis. O duque Leto, líder da casa, vive há muitos anos de forma conjugal com Lady Jessica; os dois se amam e são marido e mulher em tudo, exceto no nome: Leto não se casou porque, mantendo-se solteiro, podia usar a possibilidade de um eventual casamento como trunfo político. Paul é o filho único (até então) em quem o casal deposita grandes esperanças, e, de fato, o rapaz possui muitas capacidades, inclusive algumas inesperadas: tem visões, sonhos premonitórios, percebe muitas coisas de maneira instintiva, e, se tudo isso já era verdade quando ele vivia em Caladan, aumenta ainda mais em Arrakis, onde, querendo ou não, é impossível não se entupir da especiaria, que está literalmente em toda parte, suspensa no ar, impregnada nos alimentos… E, como se sabe, ela amplia a percepção em todos, e muito mais em quem já possui poderes latentes. E aqui o filme tropeça em outro problema: embora as visões e os sonhos de Paul sejam uma peça importante na história (já era assim no livro), tive a sensação de que o roteiro abusa um pouco disso, colocando diante de nós várias e várias cenas representando essas visões, o que prejudica o ritmo da narrativa – por vezes de forma desnecessária.

Passando a falar sobre a parte visual, eu babei ao ver os veículos conhecidos como ornitópteros, embora a concepção deles no filme tenha pouco a ver com seu nome, que significa, literalmente, 'asas de pássaro': os ornitópteros que aqui vemos parecem um cruzamento de helicópteros com gigantescas libélulas dotadas de vários pares de asas que vibram tão depressa que se tornam invisíveis, como as das libélulas mesmo. As cenas deles voando sobre o deserto de Arrakis são magníficas – e o visual do deserto também é diferenciado, alguma coisa ali sugere uma ambientação alienígena, talvez o padrão das dunas ou a coloração da areia; ainda é identificável como o que chamaríamos de deserto, mas sem se parecer completamente com os desertos da Terra.

E do deserto, é claro, chegamos aos vermes. Minha versão favorita deles é a do filme de David Lynch, diretamente baseada nas ilustrações feitas para as capas dos livros de Frank Herbert nos anos 60 e 70; nessa versão, a bocarra da criatura possui mandíbulas triplas, que se abrem como uma gigantesca flor de três pétalas, tendo o interior guarnecido por centenas de dentes que lembram facas – e não por acaso, já que esses dentes são a matéria-prima para a fabricação da faca cristalina, a arma sagrada dos Fremen (na dublagem nacional do filme de Villeneuve, a palavra usada é dagacris, ou coisa parecida; suponho que seja como se lê na tradução brasileira mais recente, publicada pela editora Aleph; a edição que tenho é a antiga, da Nova Fronteira. Qualquer uma das duas formas seria uma adaptação possível a partir do original crysknife). No novo filme, eles têm a boca circular, desprovida de mandíbulas, o que lhes dá uma aparência mais semelhante à dos vermes terráqueos… E confesso que essa concepção não me agrada muito, justamente porque o verme da areia de Arrakis deveria ser algo de admirável, grandioso, e, portanto, bem distinto dos vermes que conhecemos aqui na Terra, e que normalmente achamos repulsivos. Usa-se, inclusive, como insulto: você chama alguém de "verme" para dar a entender que a pessoa é insignificante ou desprezível; os Fremen, com toda a certeza, jamais usariam essa palavra dessa forma. Ainda sobre o novo design dos vermes, os dentes também mudaram, ficaram parecidos com barbatanas de baleia, e preciso admitir que essa aparência, embora menos estética, faz mais sentido, já que a criatura filtra a maior parte de seu alimento a partir da areia tal como as baleias fazem na água. Talvez, então, a faca seja feita com uma parte do dente, possivelmente a raiz ou a parte logo acima dela.

Os Sardaukar, ou as Legiões do Terror do imperador, também merecem ser mencionados, pois, no filme de Villeneuve, foram pela primeira vez retratados da maneira tenebrosa e cruel que lhes é adequada. No livro consta a informação de que, tal como os guerreiros espartanos, eles são recrutados ainda crianças e submetidos a um treinamento brutal – mais brutal que o dos espartanos, já que a maioria nem mesmo sobrevive até a idade adulta, mas os que sobrevivem tornam-se soldados terríveis. O fato de Shaddam IV ter cedido um grande número de Sardaukar para reforçar o exército Harkonnen no ataque a Arrakeen (a capital e maior cidade de Arrakis) foi o principal motivo para que o barão Vladimir tenha apostado tudo no sucesso desse golpe traiçoeiro, confiando numa vitória contra as bem treinadas tropas Atreides.

Na verdade, o universo de Duna é tão vasto e cheio de detalhes que nenhum filme ou série jamais conseguirá explorar todas as riquezas dos livros, mas foi agradável ver que, nesse novo filme, o diretor (também corroteirista, lembrem-se) decidiu incluir algumas pequenas coisas que os realizadores anteriores deixaram de lado, e que, mesmo pequenas, são fascinantes e significativas. Exemplo: nas paredes do  Castelo Caladan (a fortaleza ancestral de onde os Atreides governaram durante séculos o planeta de mesmo nome) há um quadro retratando o velho duque, pai de Leto, paramentado como toureiro, e lá está também a cabeça empalhada do enorme touro que o matou. O livro menciona de passagem que ele morreu na arena, dando um espetáculo para seu povo, o que não é essencial para a história, mas rende um detalhe cheio de significado: como Paul conhece a história de como seu avô morreu, a cabeça do touro, que ele vê todos os dias, torna-se para ele um memento mori, como aquelas caveiras que pintores cristãos punham em seus quadros para lembrar a quem os visse que a vida humana é finita, e que é assim para ricos e pobres, para poderosos e gente comum.

Como inevitavelmente aconteceria em qualquer adaptação de Duna, seu universo futurista possui algumas características muito próprias, que impactam o roteiro e o visual. Por exemplo, graças ao Jihad Butleriano (também referido como a Grande Revolta, ou ainda como a Cruzada das Máquinas), na época retratada não existem robôs nem grandes computadores – é por isso que a especiaria é essencial para as viagens espaciais, pois, sem a ajuda de computadores, só mesmo capacidades extrassensoriais poderiam guiar um piloto com segurança em deslocamentos em velocidade superior à da luz. Armas laser existem, mas não parecem ser comuns, talvez porque seu custo seja muito alto para que seja possível equipar grandes exércitos com elas, de modo que as batalhas envolvem um amplo uso de armas brancas como punhais e espadas – quem diria: as batalhas do futuro se assemelham às medievais, pelo menos nesse aspecto. E uma das poucas ressalvas que preciso fazer ao filme é justamente a respeito das batalhas: achei a maior parte das cenas de combate confusas, aquela balbúrdia visual em que você não consegue distinguir direito o que está acontecendo, uma coisa que, pessoalmente, me incomoda. É uma pena ainda maior se considerarmos que Duna poderia ter cenas de batalha do nível das de Coração Valente ou O Último Samurai – claro que com um clima e um visual compatíveis com o universo criado para o filme. Tais cenas não ficariam deslocadas, não pareceriam gratuitas, e com certeza empolgariam o público. Quem sabe na segunda parte?

Por falar em continuações, é inevitável nos perguntarmos: será que, uma vez feita a segunda parte e concluída a história de Duna, e admitindo-se que o resultado nas bilheterias seja bom, Denis Villeneuve e os outros realizadores se darão por satisfeitos, ou prosseguirão com a saga adaptando os livros seguintes de Frank Herbert? (Sempre me perguntei se David Lynch teria continuado, caso seu filme tivesse feito sucesso, o que, infelizmente, não foi o caso.) O autor concluiu seis volumes antes de sua morte em 1986, e seu filho, Brian Herbert, tentou continuar o trabalho do pai, tendo lançado vários livros em parceria com Kevin J. Anderson, expandindo ainda mais o universo de Duna e aprofundando pontos que só eram tratados por alto nos escritos do criador original. Não li nenhum desses ainda, mas sei que existem volumes dedicados a várias das casas nobres (Atreides, Harkonnen, Corrino etc.) e também um a respeito do Jihad Butleriano, entre outros. Sei o que estão pensando e concordo: mesmo que esses livros sejam bons, é difícil dizer se eles são realmente uma parceria criativa, ou se Anderson escreveu quase tudo enquanto Brian Herbert contribuía, basicamente, com o peso de seu nome. Viajando bastante na maionese, eu diria que os seis volumes escritos por Frank Herbert poderiam ser adaptados para o cinema, enquanto as obras de Brian Herbert e Kevin J. Anderson talvez rendessem uma ou mais séries de TV… Mas estou pondo o carro na frente do verme: como disse, não li os livros dessa dupla, não sei se a adaptação valeria a pena, e, mesmo que a resposta seja positiva, quem garante que algum produtor se interessaria? Já os livros de Frank Herbert, esses não há dúvida de que valem a pena. Se pelo menos o segundo volume, O Messias de Duna, chegar às telas, prevejo que a escolha da atriz que interpretará Alia, a irmã de Paul, será uma questão sensível para mim. A história desse livro passa-se alguns anos depois da de Duna, e Alia, que no final do primeiro livro era pouco mais que uma criança de colo, está com 15 anos; eu tinha a mesma idade quando li o livro pela primeira vez, e me apaixonei pela personagem. Ou seja, não sou ninguém pra julgar as meninas que se apaixonam pelo Edward de Crepúsculo.

Tirando uma média geral, Duna 2021 é um baita filme, não perfeito, é claro, mas que corresponde com honra às expectativas. Preciso ver a segunda parte antes de formar uma opinião definitiva, mas parece ter potencial para vir a ser a melhor das adaptações audiovisuais do romance de Frank Herbert, e também para ser o piloto de uma saga cinematográfica que poderá se tornar legendária. Resta-nos torcer para que esse potencial não seja posto a perder.

terça-feira, agosto 18, 2020

A Legião do Tempo

Estudantes que estão se familiarizando com a cultura dos países anglófonos costumam achar curioso e engraçado quando descobrem como é que se diz "telenovela" em inglês: é soap opera – literalmente, 'ópera de sabão'. Vi meus colegas terem exatamente essa reação numa aula de inglês no primeiro ano do ensino médio, muitos anos atrás, e, quando uma menina perguntou o porquê desse nome, a mestra (professora Sandra, lembro bem) confessou que não sabia. Se fosse nos dias de hoje, uma rápida busca na internet teria satisfeito a curiosidade, mas na época as coisas não eram tão fáceis. De qualquer forma, embora a timidez dos 15 anos tenha mantido meus lábios grudados naquela ocasião, a verdade é que eu sabia a resposta: acontece que nos Estados Unidos, da mesma forma que aqui no Brasil, as novelas nasceram no rádio, só mais tarde migrando para a TV, e, durante a "era de ouro do rádio", que, lá, foi nas décadas de 1920-30, elas, além de extremamente populares, eram notórias por serem patrocinadas por fabricantes de sabão em pó, cujos jingles sempre antecediam o início do capítulo do dia. Isso explica o porquê do soap; quanto ao opera, ainda é um mistério para mim (mesmo hoje, com internet e tudo), e ficarei grato se alguém que me lê souber esclarecer.

A essa altura vocês talvez estejam se perguntando (e parabéns pela perspicácia se estiverem): peraí, moleque, como é que você, sendo brasileiro, com 15 anos de idade e numa época sem internet, sabia de tudo isso? Simples: aos 15 anos (e bem antes) eu já era nerd e apaixonado por ficção científica. Acontece que, embora a maior parte das novelas de rádio se ocupassem de tramas dramáticas e sentimentais (o mesmo tipo de coisa que move as novelas da TV até hoje), tendo como público-alvo basicamente moças e senhoras, havia uma ou outra soap opera alternativa, por assim dizer: essas visavam ouvintes adolescentes e jovens-adultos do sexo masculino e ofereciam mais ação e aventura. Como já existia o termo soap opera, essas produções ganharam nomes adaptados a partir dele e levemente brincalhões: se fossem histórias de faroeste, eram chamadas de horse operas ('óperas de cavalos'); se fossem de ficção científica, eram space operas ('óperas do espaço'). Esses dois eram os gêneros mais comuns. Li isso tudo na introdução de alguma velha antologia de ficção científica.

Por extensão, o termo space opera passou a designar um subgênero dentro da ficção científica, aplicando-se a toda história – mesmo em livro, quadrinhos ou cinema – que apresentasse as mesmas características que aquelas aventuras espaciais do rádio: narrativa vertiginosa, cheia de reviravoltas e com muita ação, personagens simples mas mesmo assim carismáticos, batalhas espaciais em profusão, vilões sinistros e superpoderosos para enfrentar, e, muitas vezes, uma bela mocinha em perigo precisando de um herói, já que a garotada que ouvia, lia e assistia a essas histórias, embora torcendo o nariz para as tramas lacrimosas que suas mães e irmãs acompanhavam pelo rádio, no fundo também tinha a sua parcela de romantismo – sem contar que, se trocarmos as pistolas laser por espadas e os planetas exóticos por reinos medievais na Europa, muitas space operas se transformam facilmente em romances de cavalaria, e o que é um romance de cavalaria sem uma donzela para ser salva?

Como é fácil supor, esse subgênero produziu muita coisa descartável, mas também deu espaço (hehehe!) à ascensão de autores que, faz agora quase um século, turbinam os sonhos de milhares de adolescentes de todas as idades, caras como Edgar Rice Burroughs, Poul Anderson, Edmond Hamilton, E. E. "Doc" Smith e C. L. Moore, entre outros. Não estou atribuindo a todos esses autores o mesmo nível de qualidade, apenas dizendo que são alguns dos nomes que emergiram na space opera para ganhar um lugar na história da ficção científica. Mesmo autores de maior peso, conhecidos por obras mais sérias e profundas, chegaram, em algum momento, a flertar com o subgênero, vide as aventuras de Lucky Starr escritas por Isaac Asimov.

(Não resisto a fazer mais um desses meus parágrafos entre parênteses, mas prometo que este será breve. Ocorre que, embora eu tenha me referido àquele punhado de autores ali em cima como "caras", o "C" de C. L. Moore é de Catherine, e a autora adotou a abreviatura porque ela, ou seu editor, e provavelmente ambos, sabiam muito bem que o adolescente-americano-leitor-de-ficção-científica típico da época ficaria seriamente cabreiro se soubesse que a história que estampava a capa da edição do mês de sua revista favorita havia sido escrita por uma mulher. Embora já houvesse uma mulher entre os pioneiros do gênero em pleno século XIX – claro que me refiro a Mary W. Shelley, autora de Frankenstein –, temos que admitir que a ficção científica foi durante muito tempo uma espécie de clube do Bolinha literário, sendo escrita e lida quase exclusivamente por "cuecas". Felizmente, isso mudaria com o tempo.)

Antes de prosseguir, preciso adverti-los de que a definição de space opera com a qual estou trabalhando é a que encontrei, como disse, em artigos ou introduções de livros de ficção científica que li ao longo dos anos, mas parece que a definição não está muito bem pacificada, pois, pesquisando na internet, encontrei até mesmo 2001: Odisseia Espacial, de Arthur C. Clarke, classificado como space opera em determinados sites – sendo que eu dificilmente conseguiria pensar num livro de ficção científica que estivesse mais distante de tudo o que esse rótulo me traz à cabeça. Se me pedissem para classificar 2001, eu diria que é hard science-fiction, assim como Duna, de Frank Herbert, ou a saga Fundação, de Isaac Asimov: são todos livros muito densos e complexos, que não são para qualquer um, e certamente não recomendáveis para leitores muito jovens e inexperientes. Portanto, tenham em mente que a expressão space opera pode ser usada com sentidos diferentes em outros lugares.

E não é possível contar a história da space opera sem citar o nome de John Stewart Williamson (1908-2006), imortalizado como Jack Williamson, autor que brilhou durante a era de ouro da ficção científica (sim, não é só o rádio que tem direito a isso), que durou, aproximadamente, do final dos anos 30 ao final dos 40. Williamson, entretanto, já era um veterano nessa época, pois estava em atividade desde fins dos anos 20. Suas primeiras histórias foram publicadas na legendária revista Amazing Stories, fundada e, na época, ainda editada por ninguém menos que o pioneiro Hugo Gernsback, o homem que deu nome a um dos mais importantes prêmios da ficção científica. Um nome frequentemente presente nessa revista era o de Miles J. Breuer, americano de origem tcheca, médico de profissão e escritor por paixão, amigo de Gernsback e que se tornou uma influência importante na fase inicial da carreira de Williamson; os dois chegaram a escrever em parceria.

Paralelamente a uma carreira acadêmica na área de língua e literatura inglesa, Williamson publicou, ao longo das décadas seguintes, mais de 30 romances, além de dezenas de contos em várias das mais prestigiosas revistas de ficção científica e fantasia: Wonder Stories, Astounding Stories, Weird Tales… Pode-se destacar The Reefs of Space ('Os Recifes do Espaço'), em parceria com Frederik Pohl, que foi publicado como uma série na revista Worlds of If durante os anos 60 antes de sair em forma de livro. Para dar uma ideia do lugar especial que Williamson ocupa na galeria de honra da ficção científica, ele teve entre seus ávidos leitores e fãs o adolescente Isaac Asimov, que registrou em sua autobiografia que, quando conseguiu vender sua primeira história para publicação, quase tão empolgante quanto o fato em si foi ter recebido uma carta de Williamson congratulando-o e dando-lhe boas-vindas ao time dos escritores. Eu sei, é estranho pensar em Asimov como um jovem escritor iniciante em vez de um monstro sagrado da ficção científica, mas é sempre bom não esquecer que todo mestre também teve seus próprios mestres.

The Reefs of Space não foi a primeira experiência de Jack Williamson em se tratando de publicar romances serializados em revistas. The Legion of Space, publicado em seis partes pela Astounding em 1934, só ganharia a primeira edição em livro 13 anos depois. Trata-se de uma das mais cultuadas space operas de todos os tempos e se tornaria o piloto de uma série de romances. Esse livro ganhou edição brasileira, dentro da tão querida e importante coleção Mundos da Ficção Científica, da editora Francisco Alves; graças a isso, pude lê-lo na minha adolescência, e há algum tempo consegui adquirir um exemplar, de modo que uma releitura está nos meus planos, e, quando isso acontecer, não há dúvida de que merecerá um post aqui no blog. Porém, embora fosse um épico de qualidades inegáveis, The Legion of Space não apresentava nada de muito inusitado em relação ao que já vinha sendo feito na ficção científica da época. Coisa bem diferente acontece com The Legion of Time (publicado como série na Astounding em 1938, e em forma de livro em 1952), que, mesmo trabalhando com dois conceitos bem conhecidos – viagem no tempo e realidades alternativas –, faz isso de uma forma inovadora e empolgante.

Jack Williamson se manteve em atividade até seus últimos dias de vida. Em 2001, aos 93 anos, ganhou o Prêmio Hugo pela história The Ultimate Earth, publicada no ano anterior, tornando-se o mais idoso escritor a receber essa distinção. Publicou seu último livro, The Stonehenge Gate, em 2005, aos 97 anos. Faleceu no Novo México, onde vivera a maior parte de sua vida, em 10 de novembro de 2006.

Pois bem… Apesar do paralelismo dos títulos, A Legião do Tempo não tem conexão alguma com A Legião do Espaço, e, enquanto este último, como dito acima, tem edição nacional, o outro, pelo menos até onde eu sei, nunca foi publicado em português, fosse no Brasil ou em Portugal. Encontrei na internet uma versão em inglês em PDF, li assim e, como um exercício pessoal, eu mesmo o traduzi; imprimi, mandei encadernar, e agora essa edição de um único exemplar está na minha estante, ao lado de A Legião do Espaço da Francisco Alves. Trabalhoso demais? Certamente que não, em se tratando de um livro que eu queria ler há tanto tempo. Além disso, gostei da experiência de traduzir.

Assim como os escritores de terror do século XIX e início do XX adoravam lançar mão do recurso da "narrativa dentro da narrativa", fazendo seus personagens encontrarem alguém que contava uma história, ou acharem um manuscrito que a continha, os autores de ficção científica que vieram depois também tinham seus expedientes favoritos, e um deles era o de fazer um personagem do presente receber, de alguma maneira, mensagens do futuro. É assim em A Legião do Tempo. Dennis "Denny" Lanning, um adolescente de 18 anos que vive no ano de 1927, está prestes a colar grau na Universidade de Harvard (parece que, na época, as pessoas se formavam bem mais cedo do que hoje) quando, numa noite aparentemente comum, sozinho no apartamento que divide com alguns colegas, ele recebe a visita de uma linda e misteriosa jovem que aparece do nada (depois Lanning percebe que ela não está realmente ali – o que ele vê é algum tipo de projeção) e se identifica como Lethonee. Ela vem apelar ao rapaz em nome de sua cidade, Jonbar, sobre a qual tudo o que se sabe nesse momento é que existe num futuro distante, talvez na Terra, talvez em algum mundo que a humanidade haja colonizado. Lethonee afirma que o destino de Jonbar está nas mãos de Lanning, mas o que isso significa na prática permanece um mistério. Ela o alerta de que deve faltar a sua aula de voo do dia seguinte, na qual ele e seu melhor amigo, Barry Halloran, voariam solo pela primeira vez. Denny faz o que Lethonee pede – e Halloran morre num trágico acidente.

Lethonee dá também outro aviso: Lanning será certamente procurado por alguém de nome Sorainya ("a mulher da guerra, a flor do mal"), de um lugar chamado Gyronchi, e, quando isso acontecer, não deve dar-lhe ouvidos em hipótese alguma, pois, caso o faça, isso será o fim de Jonbar e também dela, Lethonee. Dito e feito: Sorainya aparece, tempos depois, também por meio de uma projeção, e, assim como Lethonee, faz um apelo a Lanning em nome de sua cidade, Gyronchi, e do império do qual ela é a capital. É nesse momento que o livro revela a grande sacada de seu enredo: Jonbar e Gyronchi são dois futuros possíveis, e, se uma delas se concretizar, a outra terá sido varrida para sempre da existência. A encruzilhada é algum ato que Lanning ainda vai praticar, ou alguma decisão que ele irá tomar, e é por isso que ambas as governantes procuram ganhar a boa vontade do jovem para suas respectivas causas.

Assim como diversas mocinhas da ficção atual (alguém disse Jogos Vorazes?) ficam divididas entre o amor de dois rapazes – um mais gentil e sensível, o outro mais visceral e selvagem –, o nosso Denny Lanning, cuja experiência anterior com o sexo oposto parece ser nula, se vê atordoado pelas figuras de Lethonee e Sorainya: a primeira é meiga e serena, de uma beleza etérea; a outra é impetuosa, sensual e sedutora. As visitas de ambas poderiam parecer um sonho, se não fossem, para o rapaz, mais reais que a própria realidade cotidiana, mas ele não mais as vê durante muito tempo, e sua vida segue. Dennis Lanning torna-se um repórter arrojado, um correspondente destemido que está sempre nos lugares mais perigosos do mundo, cobrindo guerras, revoluções e convulsões sociais de todo tipo. Não raras vezes se vê envolvido na ação direta, precisa manejar armas, sofre ferimentos, prisões; passa por todos os apertos imagináveis. Os dez anos seguintes transformam o rapazinho sonhador num homem rijo, de nervos de aço, mas que não perdeu nem seu idealismo nem seu romantismo. Ele não se esquece de Lethonee nem de Sorainya, e esta última lhe aparece de novo, alguns anos depois da primeira visita, encontrando um Lanning, naturalmente, mais velho, ao passo que ela não mudou nada. Ela usa de todo o seu poder de sedução e de outras tentações, garantindo ao jovem que, se ele quiser, poderá viver com ela e governar ao seu lado o império de Gyronchi.

Intrigado, Lanning chega a tentar contato com um de seus antigos colegas de quarto na faculdade, Wil McLan, um físico e matemático que se dedicava a estudos sobre a natureza do tempo, desejando ouvir sua opinião – mas descobre que McLan deixou o cargo que tinha numa prestigiosa universidade para dedicar-se a pesquisas particulares, e que seu paradeiro é desconhecido. Mais anos se passam, Lanning se envolve em mais aventuras, até que chega 1937 e ele recebe uma mensagem de outro antigo colega, Lao Meng Shan, perguntando-lhe se está disposto a ajudar a defender a China contra a invasão japonesa. Por sinal, Williamson parece ter pesquisado bastante: o livro apresenta um rigor histórico surpreendente ao mencionar batalhas e guerras. Essa invasão fez parte da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), conflito cujos desdobramentos se entrelaçaram com os da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Lanning atende ao chamado, e ele e Shan voam juntos na Batalha de Xangai, na qual o avião dos dois está para ser abatido pelos japoneses quando eles são salvos por uma estranha nave que se desloca tanto no tempo quanto no espaço. Seu comandante é ninguém menos que Wil McLan, mas uma versão idosa dele – uma versão que veio do futuro, já que seus estudos o conduziram à descoberta dos segredos da viagem no tempo. McLan e sua tripulação estão percorrendo as datas e locais de várias batalhas e desastres aéreos históricos, "recolhendo" pilotos hábeis e corajosos de diferentes nacionalidades, no exato momento de suas mortes, ou melhor, no momento em que teriam morrido, para alistá-los numa força que vai lutar por Jonbar – a Legião do Tempo. Jonbar e Gyronchi, apesar de não existirem na mesma realidade, estão em guerra uma com a outra, uma guerra que será lutada em diferentes lugares e épocas, e cujo resultado trará somente uma das duas cidades à existência. Espiando ainda mais longe no futuro de cada uma das duas linhas temporais (o que as engenhocas de McLan conseguem fazer), verifica-se que, na linha que inclui Jonbar, a humanidade terá um destino glorioso, enquanto a outra linha, a de Gyronchi, termina em guerras catastróficas e na extinção de nossa espécie.

Histórias sobre guerras futuristas já não eram nenhuma novidade na era de ouro da ficção científica, e menos ainda em 1952, mas sem dúvida que estamos diante de algo diferente quando nos deparamos com um plot no qual a maneira de um lado derrotar o outro não é destruindo-o, e sim impedindo que ele surja. Claro que isso deve ter feito vocês lembrarem do filme O Exterminador do Futuro, mas não esqueçam que ele é de 1984, e certamente que o diretor e roteirista James Cameron tem uma dívida para com os mestres da ficção científica de décadas anteriores, entre eles Jack Williamson (um chega a ser nomeado: no final do filme, logo antes dos créditos, aparece a informação de que o roteiro foi livremente inspirado em contos de Harlan Ellison, mas as contribuições deste referem-se mais à parte da rebelião das máquinas, e não às possibilidades da viagem no tempo). O mais interessante é que, pelo fato de Jonbar e Gyronchi serem realidades alternativas (de modo que a existência de uma delas é a negação da outra), é impossível qualquer contato físico, e por consequência, também é impossível um confronto entre as forças militares de ambas. Wil McLan explica a Denny Lanning a respeito do que ele chama de geodesias (palavra usada aqui com um sentido diferente do que encontramos nos dicionários), que seriam algo como nós ou encruzilhadas, pontos da História onde as diferentes realidades possíveis se ramificam; não há geodesias diretas ligando Jonbar e Gyronchi, e por isso as duas não podem interagir diretamente. Já McLan, Lanning e seus companheiros são do século XX, um período que faz parte do passado de ambas as linhas temporais, e assim, ao viajarem no tempo, podem chegar a qualquer uma delas, dependendo das geodesias que seguirem.

A Legião do Tempo representa perfeitamente a atmosfera da era de ouro da ficção científica, ou, ao menos, de um estilo que deixou sua marca nela: é uma história cheia de ação, que até procura se ancorar na ciência, mas não hesita em sacrificar a precisão científica, se com isso puder injetar doses extras de aventura e drama. Não sei se um crítico especializado seria da opinião de que a história "envelheceu bem", como eles dizem, mas, falando como um leitor que passou a adolescência lendo tanto Jack Williamson quanto outros gigantes da ficção científica, digo que, mais de 80 anos depois de sua primeira publicação, ela continua a oferecer um entretenimento formidável. Um de meus sonhos enquanto leitor é que apareça uma editora disposta a fazer pela ficção científica o que a Clock Tower tem feito pelo terror e pela fantasia, lançando novas edições de autores antigos que há muito não eram publicados no Brasil, ou que nunca o foram, mas que são importantes para a história do gênero em nível mundial, além de terem muito a oferecer às novas gerações de leitores.

Fiel à minha velha mania de montar trilhas sonoras para as histórias que leio, recomendo aos que forem fãs tanto de metal quanto de ficção científica que experimentem ler A Legião do Tempo ao som da banda sueca Sabaton, cujas músicas inspiradas em grandes batalhas históricas (históricas mesmo: eles deixam a fantasia para outras bandas) encaixam bem em vários trechos do livro.

quinta-feira, julho 30, 2020

Black Mirror

O uso imprudente (ou simplesmente tolo) da tecnologia é mais um dentre os muitos aspectos de uma questão muito maior: o Homo sapiens está, no mínimo há alguns séculos, vivendo num mundo para o qual ele não foi feito. Ao longo da nossa evolução, sempre precisamos lutar dia a dia por comida, e, na natureza, essa luta é constante e quase sempre feroz. Antes de aprenderem a estocar e conservar alimentos, nossos ancestrais se condicionaram durante centenas de milhares de anos a comer o quanto conseguissem quando havia comida disponível, já que ninguém sabia quando isso aconteceria de novo. De modo semelhante, nosso paladar evoluiu para achar agradáveis os sabores doces, porque coisas como mel ou certas frutas forneciam muitas calorias – que, naqueles tempos, eram preciosas. Hoje, graças à agropecuária moderna, aos transportes e ao comércio, a maioria de nós tem comida disponível na hora que precisar e na quantidade que quiser, mas o instinto de se empanturrar e o de gostar de doces continuam vivos no ser humano. Em consequência, as outrora escassas e valiosas calorias viraram um problema, e agora vamos à academia para gastá-las, fazendo movimentos que não têm qualquer finalidade prática – coisa que nossos ancestrais considerariam loucura. Coisa parecida acontece com o sexo: em uma hora navegando no XVideos, você provavelmente se expõe a mais estímulo sexual do que um ser humano médio era exposto durante toda a vida, um mero século atrás – e, como o nosso cérebro não sabe a diferença entre sexo virtual e real, não há dúvida de que isso, de algum modo, nos afeta. A tecnologia (e por esse nome não me refiro apenas a coisas como computadores e smartphones: a clava do homem primitivo já era tecnologia) surgiu para nos ajudar com problemas que tínhamos dificuldade em resolver sozinhos, e contribuiu de forma decisiva para a sobrevivência de nossa espécie mais vezes do que conseguimos contar – era o caminho mais recorrente que encontrávamos para usar nossa inteligência de maneiras que compensassem nossa debilidade física. Hoje, porém, ela mudou seu foco e, eu ousaria dizer, sua própria razão de ser: com nossa sobrevivência já garantida (pelo menos em relação às coisas que nos ameaçavam no passado), a tecnologia se propõe agora a ser uma extensão do próprio ser humano, mudando radical e talvez irreversivelmente a nossa maneira de interagir com o mundo e uns com os outros. Neste post tentarei comentar uma obra que trata de tudo isso.

Se me pedissem para descrever Black Mirror usando um único adjetivo, isso seria bem fácil, e esse adjetivo seria necessária. A série criada por Charlie Brooker apresenta uma história independente em cada episódio (apesar de vários deles parecerem frouxamente interligados entre si, muitas vezes por meio de detalhes que, para serem notados, exigem do espectador um certo grau de atenção), mas todos têm algo em comum: tratam da relação dos seres humanos com a tecnologia, e, na maioria das vezes, não de uma forma que nos deixe otimistas. E, ainda que isso seja penoso e exija de nós um bocado de coragem, essa questão precisa ser enfrentada – temos que respirar fundo e olhar nesse "espelho" (em inglês, mirror), pois dificilmente poderia haver um tema mais atual e que fosse mais relevante para um número tão grande de pessoas – praticamente a humanidade toda, a bem dizer.

A série nasceu na rede de TV britânica Channel 4, e sua primeira temporada foi ao ar em 2011. Eram apenas três episódios, já que se tratava de uma aposta um tanto arriscada: implicava em custos de produção consideráveis e não se sabia como seria a receptividade do público, entretanto parece que o saldo foi positivo, pois uma segunda temporada surgiu dois anos depois, com mais três episódios (como se vê, não é uma série recomendável para pessoas ansiosas). Em 2014 veio um único episódio, um especial de Natal com duração mais longa que o normal da série e seguindo aquela estrutura de filme-antologia que era popular no gênero terror durante os anos 80: havia uma história-moldura e, dentro dela, por meio de narrações, eram apresentadas três histórias curtas e (relativamente) independentes. No ano seguinte, a Netflix comprou a série, e, na sequência, anunciou novas temporadas, que chegaram em 2016 e 2017, cada uma com seis episódios. Outro especial foi lançado em 2018, Bandersnatch, um "filme interativo", no qual o espectador, via controle remoto, escolhe as ações do protagonista dentre duas ou três opções, e a soma de todas as suas decisões levará a um dos vários finais possíveis – é como naqueles livros tipo Enrola & Desenrola. A quinta e, até este momento, última temporada estreou em 2019 e tem três episódios.

O único gênero no qual consigo encaixar Black Mirror é a ficção científica, embora fazer isso pareça um pouco estranho, por razões fáceis de entender para quem vê a série, mas difíceis de explicar. Alguns episódios poderiam facilmente acontecer no mundo de hoje, com a tecnologia que já existe – na verdade, coisas parecidas já acontecem –, e outros parecem estar a um estalar de dedos de distância, quando pensamos em como a sociedade em que vivemos lida com coisas como redes sociais ou realidade virtual. O episódio da terceira temporada Queda Livre, por exemplo, retrata uma realidade na qual a dinâmica de like/dislike das redes sociais foi estendida para as interações presenciais do dia a dia: cada vez que interage com alguém no trabalho, na rua ou até em casa, você avalia essa pessoa numa escala de cinco estrelas; graças a certos implantes biocibernéticos que, nessa época, todo mundo tem, qualquer pessoa sabe instantaneamente a média de avaliações de qualquer outra, tão logo põe os olhos nela. Essa média é o que determina o que você é: um indivíduo popular, de quem todos querem ser amigos (para elevar suas próprias médias, é claro) ou um pária que as pessoas fingem não enxergar, tendo a entrada barrada em muitos lugares e sendo preterido no atendimento em estabelecimentos comerciais, aeroportos e até mesmo hospitais. Conclusão: hoje, em 2020, nós já vivemos num mundo onde o que você aparenta nas redes sociais é mais importante que o que você realmente é; tudo o que o mundo de Queda Livre tem de diferente é um tiquinho de tecnologia a mais – e as consequências assustadoras disso tudo. Talvez só a falta desse tiquinho de tecnologia esteja nos poupando, por enquanto, de arcar com essas consequências.

Em certa ocasião, numa entrevista, Charlie Brooker declarou que a tecnologia também é um tipo de droga, e, sendo assim, é uma preocupação válida se nos perguntarmos quais podem ser os seus efeitos colaterais – e esse é o motor que move Black Mirror. Não é mera força de expressão. Li tempos atrás na Superinteressante (salvo engano) a respeito de um estudo que indicava que é mais fácil uma pessoa se livrar do vício em crack que em redes sociais. O paralelo é completo: pode-se ter crise de abstinência de Facebook, Twitter e sei lá o que mais – nunca me interessei por essas coisas, e parece que foi melhor assim. É claro que a série não poderia ignorar esse assunto, que é pincelado em vários episódios, mas tem papel central em Smithereens, da quinta temporada, que conta a história de um homem em crise, que se culpa pela morte da noiva, há alguns anos: ele estava dirigindo o carro em que ambos viajavam, quando seu celular deu o alerta de alguma atualização em sua rede social favorita, e ele olhou. Esses segundos de distração causaram o acidente que custou a vida dela. Ele decide então sequestrar um alto executivo da empresa proprietária da rede social e ameaçar matá-lo, a menos que o todo-poderoso CEO da tal empresa converse com ele. Eis um episódio que pode levantar polêmica – polêmica de verdade, não do jeito como a tchurma da internet usa, chamando de "polêmica" qualquer coisa que cause hype e deixando claro que quem produz o conteúdo não tem a menor ideia do que essa palavra significa. Aqui cabe polêmica mesmo. À primeira vista, pôr a culpa nas redes sociais pelo uso obsessivo que muita gente faz delas (e que pode prejudicar seriamente suas vidas, de várias maneiras) parece tão sem sentido quanto querer processar o McDonald's exigindo indenização pela sua obesidade ou problemas cardiovasculares – afinal, ninguém obriga ninguém a se entupir de junk food cinco vezes por semana, nem a ficar 12 horas por dia numa rede social até isso ferrar seu cérebro e acabar com qualquer vida normal que porventura tivesse… Porém, a coisa muda de figura quando ficamos sabendo que as empresas de redes sociais têm departamentos inteiros que trabalham em tempo integral para encontrar maneiras de tornar o uso delas cada vez mais compulsivo, recorrendo para isso a todo o conhecimento que as ciências do comportamento podem oferecer.

Se alguns episódios de Black Mirror parecem se ambientar no presente (em geral, numa versão alternativa do presente), ou num futuro que pode ser real dentro de cinco, dez anos, outros chutam mais longe no campo da ficção científica, descrevendo futuros um pouco mais distantes, mas sempre com foco na questão da tecnologia e/ou mídias sociais. É o caso de Quinze Milhões de Méritos (primeira temporada), que retrata o cotidiano de pessoas que passam seus dias pedalando em bicicletas fixas para gerar energia, dentro de complexos aparentemente construídos para isso, sem contato com o mundo exterior. De acordo com a quantidade de energia que produzem, eles ganham méritos, que são uma espécie de moeda virtual com a qual podem adquirir desde comida até pequenas bobagens tecnológicas, acesso a jogos, TV etc. E, como a política do pão e circo nunca perde a atualidade, há um programa de talentos estilo The Voice que é extremamente popular; por meio dele um punhado de ex-pedaladores tornaram-se artistas de sucesso e alcançaram uma vida de glamour e conforto, o que, naturalmente, é o sonho de milhares, quiçá milhões. A inscrição para participar custa os 15 milhões de méritos do título, o que equivale a vários meses de trabalho frenético nas bicicletas. A história do episódio gira em torno de um jovem (o excelente Daniel Kaluuya, de Corra!), que se apaixona por uma garota com talento de cantora, mas que não tem como pagar a inscrição no programa. Ele a patrocina e ela realmente consegue participar, mas o resultado acaba sendo desastroso – muito pior do que ela levar "buzina", ou o equivalente a isso. O episódio termina dando-nos um doloroso tapa na cara para mostrar como até mesmo o protesto pode virar mercadoria comerciável e um instrumento a mais para fortalecer o status quo.

Pesquisando na internet em busca de informações sobre Black Mirror, vim a saber que as duas primeiras temporadas (as que foram lançadas enquanto a série ainda pertencia ao Channel 4) são as favoritas da maioria dos fãs; para mim, parece que essas pessoas estão cedendo ao instinto (tão comum) de dar mais valor ao que é alternativo só por ser alternativo, como quem pensa "ah, a Netflix é muito mainstream, não vai pegar bem se eu disser que ela fez um bom trabalho, tenho que ser da opinião de que a série só foi boa enquanto estava num canal menor e que, quando passou para a Netflix, decaiu – assim todo mundo vai me achar fodão". Minha própria opinião é que a primeira temporada é, de fato, muito intensa, mas não dá para dizer o mesmo da segunda, que tem um episódio forte, Urso Branco, um mediano, Volto Logo, e tem também Momento Waldo, a meu ver um dos episódios mais fracos de toda a série. A terceira e a quarta temporadas têm muito mais momentos marcantes, e mesmo a quinta, de modo geral execrada, tem coisas interessantes (já citei Smithereens). Suponho que a maior parte da bronca que muitos têm com essa temporada seja por causa do episódio Rachel, Jack e Ashley Too, uma história leve (para os padrões de Black Mirror, bem entendido) e com final otimista, o que deve ter decepcionado muita gente que, num episódio da série, espera ver coisas terríveis, trágicas ou chocantes. A participação da cantora Miley Cyrus, no papel de uma estrela pop (nããão, jura?!), também deve ter desagradado aos mais radicais. De minha parte, acho a variação de tons entre os episódios uma boa coisa; caso venham mais temporadas, espero ver um equilíbrio entre histórias mais tensas e outras mais divertidas. Não há motivo para que o futuro precise ser sempre retratado de modo tão negro e ameaçador. E, para falar francamente, Rachel, Jack e Ashley Too está longe de ser o melhor episódio de Black Mirror, mas está ainda mais longe de ser o pior.

Embora vários temas ligados à tecnologia sejam abordados na série, talvez o mais recorrente (e, pelo menos para mim, de longe o mais inquietante) é a possibilidade (teórica) da migração da consciência humana para algum tipo de dispositivo artificial. Em San Junípero (terceira temporada), pessoas próximas da morte podem ter a totalidade do conteúdo de suas mentes escaneada, copiada e carregada em poderosos servidores que rodam simulações virtuais perfeitas do mundo real, em qualquer época ou lugar que se deseje; na teoria, a pessoa pode passar a eternidade revivendo os momentos agradáveis de sua vida e/ou vivendo experiências novas, e, como o corpo que ela tem nas simulações é puramente virtual, pode descartar a idade e quaisquer doenças, voltar a ser jovem e forte e permanecer assim para sempre. Na teoria. À primeira vista, isso de fazer upload da sua mente para um computador pode parecer ótimo, e, em princípio, deve ser possível, pois, como dizia Joachim Kleronomas, uma mente humana é feita de memórias, memórias são dados, e dados podem ser copiados. Porém, se isso um dia se tornar factível, me parece, por simples lógica, que sua versão digitalizada não será realmente você. Para dar um exemplo: se sua mente for copiada para um substituto eletrônico de cérebro, e este for implantado num corpo robótico ou clonado (Westworld também lida com essa ideia), a criatura resultante pode parecer você, agir como você, pensar como você, pode até acreditar ser você, mas não creio que a sua consciência vá estar ali, que você realmente vá ver através daqueles olhos e experimentar as sensações daquele corpo. Será uma cópia sua, uma máquina programada para agir como se fosse você, e não mais que isso. Seu verdadeiro "eu" terá sido extinto ou terá migrado para outro plano de existência, conforme a crença que você tenha – enfim, você terá morrido, como sempre aconteceu com os seres humanos desde o princípio. Em palavras simples, acredito que seja possível copiar uma mente, mas não transplantá-la. Mas posso estar enganado, é claro.

O upload de consciência tem um papel-chave, também, no que talvez seja o episódio mais perturbador de todos (e é sem dúvida um dos melhores), Black Museum, o último da quarta temporada – mas se eu fosse descrever exatamente de que forma esse conceito é usado no episódio, teria que dar um spoiler pelo qual ninguém me perdoaria. Assim como Natal, trata-se de um filme-antologia. Na história principal, acompanhamos uma jovem que está viajando de carro pela estrada que corta o deserto no estado de Utah (Salt Lake City é mencionada) quando para num posto de combustíveis no meio do nada, só para descobrir que ele está fechado e vazio. Ela põe o carro para carregar usando a energia solar, mas isso demorará horas, e então, como se fosse uma decisão tomada de improviso, só para matar o tempo, ela vai até um estranho museu que fica exatamente ao lado – o Black Museum, cujo proprietário, administrador e cicerone é um homem chamado Rolo Haynes. Haynes explica à visitante que trabalhou durante muito tempo para a TCKR (empresa de tecnologia que aparece também em outros episódios) e esteve envolvido com certas experiências inovadoras e pouco ortodoxas, uma das quais acabou causando sua demissão. Então criou o museu, que reúne uma coleção de itens tecnológicos ligados de alguma forma ao crime ou tragédias. Ele conta as histórias de três dos objetos em exibição, mas o espectador atento reconhecerá outros, mostrados quase de relance, que tiveram papéis fundamentais em episódios anteriores. Por fim, a visitante é conduzida à atração principal do museu, sobre a qual não darei detalhes, mas, talvez mais que qualquer outro tema na série, essa revelação nos leva a refletir que a simbiose homem/máquina, que já começa a se tornar realidade em nossos dias, pode, sim, ter possibilidades (teóricas, insisto) fascinantes, mas também tem outras extremamente assustadoras e macabras. Tudo vai depender de como essas possibilidades vierem a ser exploradas, é claro, mas, se levarmos em conta o jeito como outras tecnologias têm sido aplicadas ao longo da História… Bem, acho que vocês me entendem.

Meu objetivo com este post foi apenas dar a quem ainda não assistiu uma ideia preliminar do que é Black Mirror, mencionando alguns episódios que considero relevantes; há vários outros que mereceriam destaque, e, se outra pessoa for redigir um texto com a intenção de apresentar a série, ela certamente escolherá episódios diferentes para citar. Há muitos sites e blogs por aí com análises aprofundadas, seja da série como um todo ou de episódios específicos – recomendo especialmente o Farofa Geek, que oferece uma interpretação fascinante a respeito de Black Museum, mas só leiam depois que tiverem assistido ao episódio. Minha conclusão será modesta, apenas reiterando que Black Mirror é muito necessária. Deveria ser vista por todos, já que todos vivemos nesse mundo maluco, e a maioria de nós viverá o suficiente para vê-lo tornar-se mais maluco ainda. É claro que a série dificilmente escapará da mesma sina que afeta a maior parte da ficção científica: por mais que suas previsões nos pareçam espantosas, a realidade, no devido tempo, muito provavelmente fará essas previsões parecerem tímidas e conservadoras. Ainda assim, ela vale por uma espécie de vacina mental, e talvez nos deixe um pouco mais preparados para o que deveremos ver aparecer durante os próximos anos e décadas.

quarta-feira, abril 29, 2020

Terceira Humanidade

Em pleno continente antártico, sob uma camada permanente de milhares de metros de gelo, exploradores encontram uma imensa caverna dentro da qual há um lago congelado… E no lago, dois esqueletos humanos e um terceiro espécime inteiro, perfeitamente conservado no gelo, com idade estimada em cerca de oito mil anos. Uma descoberta notável, é claro, pois, por tudo o que se sabia até aí, a Antártida nunca teve populações humanas, estando isolada e coberta de gelo desde bem antes que nossos ancestrais deixassem a África, berço de nossa espécie. A nova descoberta possivelmente exigirá que a trajetória já rastreada das migrações humanas ao longo da Pré-história seja revista. Mas isso tudo é pinto se comparado a um certo detalhe do achado: esses humanos antigos tinham em torno de 17 metros de altura.

A equipe parece ser composta de apenas três pessoas (!): o paleontólogo Charles Wells (francês apesar do sobrenome, que claramente homenageia H. G. Wells), sua assistente e uma repórter e cinegrafista, cuja presença foi exigência do canal de TV que patrocinou a expedição. Os três parecem ter montado sozinhos a perfuratriz que abriu no gelo um túnel de quilômetros de comprimento, e sozinhos desceram para explorar o que houvesse lá embaixo; se eu estiver enganado, corrijam-me, mas a ideia de três pessoas – nenhuma delas um engenheiro – fazerem tudo isso sozinhas me parece bem ingênua. Ainda na mesma linha de abordagem simplista, a assistente de Wells, com a naturalidade de quem esquenta uma lasanha Sadia no microondas, saca um maçarico e descongela ali mesmo parte do corpo do gigante a fim de recolher amostras de seus tecidos!… Se algo assim fosse mesmo descoberto, a coisa não seria feita desse jeito, no total improviso: o espécime provavelmente seria removido ainda congelado e levado para um local onde pudesse ser analisado por cientistas de ponta de diferentes áreas, tendo à disposição a última palavra em equipamentos. Mas o autor Bernard Werber não parece muito preocupado em retratar fielmente os procedimentos científicos.

Wells exulta, imaginando o furor que sua descoberta irá causar nos círculos científicos. Simultaneamente, em Paris, seu filho, o biólogo David Wells, apresenta um projeto diante de uma comissão julgadora na Sorbonne, tentando obter uma bolsa que lhe permita levar adiante sua pesquisa: ele pretende provar que o caminho da evolução leva as espécies a diminuírem progressivamente de tamanho. Para ele, os pigmeus da África central, há muito considerados pela antropologia como um dos mais primitivos grupos humanos ainda existentes em nossos dias, representam, na verdade, um passo à frente na evolução em relação ao resto da humanidade, sendo menores e apresentando uma extraordinária resistência às doenças tropicais – resistência essa que, a meu ver, não é preciso ser cientista para compreender que deve resultar do mero fato de seus ancestrais terem vivido expostos a essas doenças durante centenas de gerações, nada tendo a ver com seu tamanho. Mas a explanação de David não para por aí:

Tenho um título de doutorado pela faculdade de biologia de Paris, e sou especialista no estudo da influência do meio na fisiologia humana e animal. Meu projeto gira em torno da redução do tamanho das espécies. Acredito que tudo se miniaturiza: os dinossauros se transformaram em lagartos, e os mamutes, em elefantes. Antigamente, as libélulas tinham até um metro e meio de envergadura, e agora medem 15 centímetros. Mais recentemente, os lobos se transformaram em yorkshires, e os tigres, em gatos siameses. (…) E também poderíamos citar os vegetais (…). Em outros tempos, certas sequoias chegavam a cem metros de altura. Mas agora são arbustos de dez metros, em média. Recentemente, descobriu-se que as baratas diminuíram para circular nos encanamentos das casas modernas. E, finalmente, no mundo dos objetos: os carros tornaram-se menores para se adaptar ao aperto e aos engarrafamentos das cidades, os computadores tendem a se miniaturizar, até a superfície média dos apartamentos se restringe com a superpopulação das megalópoles.

Certo, Bernard Werber é jornalista por formação, e eu certamente não vou afirmar que só cientistas deveriam escrever ficção científica (mesmo que ter formação em ciências represente uma enorme vantagem para quem se dedica ao gênero), mas, mesmo assim, é difícil ler esse amontoado de bobagens, dito por um personagem que se diz doutor em biologia, e continuar levando o livro a sério. A redução – ou o aumento – do tamanho nas espécies vivas ao longo do tempo é, sem dúvida, uma resposta evolutiva às condições do ambiente – só que essas condições não são sempre as mesmas, e, ainda que fossem, é ingenuidade pensar que um mesmo problema só pode ser resolvido de uma maneira. Pode perfeitamente acontecer de duas espécies expostas às mesmas condições ambientais encontrarem caminhos evolutivos diferentes e até opostos: uma pode crescer, a outra diminuir, e, naquele momento da evolução, cada uma delas terá se adaptado da maneira que melhor lhe permitiu enfrentar essas condições e sobreviver. Dinossauros não se "transformaram em lagartos"; em primeiro lugar, os lagartos que conhecemos hoje pertencem a um ramo dos répteis bem distinto daquele que incluía os dinossauros – aliás, filogeneticamente falando, as aves estão mais próximas dos dinossauros que os lagartos modernos. Em segundo, como qualquer criança aficionada por dinossauros sabe, nem todos eles eram gigantescos: havia espécies que eram do tamanho de um canário, e talvez ainda menores. Tampouco "mamutes viraram elefantes": no tempo dos mamutes já existiam elefantes como os de hoje. Os dois animais são parentes, é diferente; além disso, não havia apenas uma espécie de mamute, mas várias, e, tirando uma média, seu tamanho era mais ou menos equivalente ao dos elefantes – algumas espécies eram um pouco maiores, outras até menores. O mamute-anão da Sardenha, quando adulto, tinha porte semelhante ao de um boi, e nem por isso era menos mamute que o mamute-imperador da América do Norte, que ultrapassava quatro metros de altura e dez toneladas. David também "esquece" de mencionar que um dos ancestrais comuns de mamutes e elefantes, o moeritherium, que viveu há cerca de 35 milhões de anos, era do tamanho de um porco… Libélulas gigantes existiram de fato; insetos enormes eram comuns durante o período Carbonífero, há uns 300 milhões de anos, mas elas mediam em torno de 70 centímetros, não um metro e meio. Quanto a tigres terem virado gatos siameses, isso chega a ser ofensivo: o gato doméstico derivou de uma ou mais espécies de gatos selvagens do norte da África, e só tem um parentesco distante com os grandes felinos como tigres e leões. Finalmente, a transformação de lobos em centenas de diferentes raças de cães, algumas delas minúsculas, foi resultado de cruzamentos seletivos promovidos pelo homem, não de evolução natural. Para não dizer que nada nesse discurso faz sentido, é plausível que as baratas tenham mesmo diminuído de tamanho para melhor se adaptarem a viver nas cidades humanas, mas isso não significa que, se as condições do ambiente fossem outras, elas não pudessem ter, ao invés, aumentado. Não vou nem comentar a parte que fala de automóveis, computadores e apartamentos como se fossem seres vivos…


(Isso foi a título de alerta, além de ser algo que eu não conseguiria calar, e deve dar-lhes uma ideia da reserva com que devem encarar o restante de Terceira Humanidade. Vamos em frente…)

Se o sobrenome Wells homenageia o escritor britânico a quem a ficção científica tanto deve, a escolha do primeiro nome do personagem tampouco foi gratuita: David é Davi, aludindo ao pastor adolescente que, de acordo com o Primeiro Livro de Samuel, na Bíblia, deu aos israelitas a vitória na guerra contra os filisteus, ao abater com um tiro de funda o maior guerreiro destes últimos, Golias, um gigante de quase três metros de altura. Mais tarde, Davi se tornaria rei de Israel, por sinal um dos mais importantes. O nome cai bem para o jovem cientista de baixa estatura que está tentando provar que "gigantes" não estão com nada e que o futuro pertence aos pequenos – e que, ao tomar conhecimento do que seu pai encontrou na Antártida, verá aí um forte elemento corroborador de sua teoria, já que os gigantes de 17 metros do passado distante se extinguiram, enquanto nós, que, para eles, deveríamos parecer pouco mais que camundongos, continuamos por aqui.

Outra candidata à bolsa de pesquisa é Aurore Kammerer, médica endocrinologista cujo projeto versa sobre as supostas descendentes das legendárias amazonas citadas na mitologia grega, que ainda hoje viveriam na região próxima à fronteira da Turquia com o Irã, e que, graças ao uso terapêutico que fazem do mel e outros produtos das abelhas, gozariam de saúde muito superior à média, raramente apresentando qualquer doença. Para Aurore, os hormônios femininos das abelhas, presentes em profusão na "geleia real" que alimenta a rainha da colmeia, seriam o segredo – e uma progressiva "feminização" seria o caminho para criar uma humanidade mais sadia e próspera. Dentre 69 candidatos, David, Aurore e mais um são os únicos a terem seus projetos selecionados, e partem em suas respectivas expedições – ele para as selvas do Congo, ela para as estepes da Turquia. Sozinhos. Bem, a essa altura já acho que Werber não estava mesmo tentando soar crível.

A característica mais curiosa de Terceira Humanidade foi inspirada pela "Hipótese Gaia", proposta nos anos 70 pelo médico e ambientalista britânico James E. Lovelock e muito popular desde então. A propósito, o nome foi sugestão do escritor William Golding (ele mesmo, o autor de O Senhor das Moscas), amigo de Lovelock. Gaia, na mitologia grega, é a divindade primordial que personifica a Terra; seu nome em grego, Γαία, às vezes é transliterado como Gea, que originou o radical geo, presente em muitas palavras que fazem referência à Terra: geografia, geologia, geofísica e assim por diante. Ela e outras divindades primordiais teriam sido geradas pelo Caos; Gaia, sozinha, gerou Urano (o Céu), que se tornaria seu consorte. Os dois foram os pais dos titãs, que, por sua vez, gerariam os deuses do Olimpo.

Essa hipótese, basicamente, considera que os elementos físicos da Terra (sua atmosfera, massa terrestre, oceanos etc.) e sua biosfera (quer dizer, o conjunto formado por todos os ecossistemas do nosso planeta e pela totalidade dos organismos vivos que os habitam) mantêm uma estreita e delicada interdependência, cujo equilíbrio seria essencial para manter as condições necessárias à vida. A Terra, então, seria, de certo modo, um único e vasto ecossistema com a capacidade de se autorregular. Trata-se de uma hipótese séria e digna de atenção, mas que já foi alvo de muito sensacionalismo. Por vezes se diz, numa simplificação grosseira, que a Hipótese Gaia descreve a Terra como um grande ser vivo – que, como todo ser vivo, teria seu próprio "sistema imunológico", com a função de combater possíveis ameaças. Disso decorre que se nós, humanos, viéssemos a nos tornar um perigo para a saúde do planeta, "Gaia" encontraria um jeito de nos eliminar. Werber aproveita a Hipótese Gaia da maneira mais fantasiosa, intercalando capítulos (impressos em itálico) que seriam um monólogo da suposta consciência planetária, contando (resumidamente, é claro) sua história desde seu nascimento, há mais de quatro bilhões de anos, passando pelo surgimento e evolução da vida e pelo sofrimento trazido por repetidos impactos de asteroides, três deles especialmente grandes e que causaram estragos proporcionais a seu tamanho. O primeiro foi antes do surgimento da vida, já os outros dois causaram extinções em massa, sendo a última delas a que pôs fim ao reinado dos dinossauros, há cerca de 60 milhões de anos.

Gaia teria tido a ideia de selecionar, dentre as espécies animais que a habitavam, uma que tivesse o potencial para desenvolver inteligência e habilidade suficientes para criar uma tecnologia avançada e inventar uma maneira de protegê-la contra o perigo de novos impactos. Sua primeira aposta teriam sido os troodontes, uma linhagem de dinossauros que estava em ascensão quando o último grande asteroide atingiu o planeta. Eram bípedes carnívoros de tamanho semelhante ao nosso (a única espécie descrita até o momento, denominada Troodon formosus, tinha cerca de dois metros de comprimento do focinho à cauda e peso aproximado de 50 quilos), dotados de cérebros excepcionalmente grandes, estando, com toda a probabilidade, entre os animais mais inteligentes da época. Werber dá uma "viajada" ao assegurar que eles até já começavam a utilizar ferramentas rudimentares, coisa que dificilmente poderá algum dia ser provada (ou refutada), mas quem pode garantir que, se tivessem tido a oportunidade, esses répteis não teriam se tornado mais e mais inteligentes e habilidosos, até o ponto de construírem uma civilização? Um artigo que li há muitos anos na Isaac Asimov Magazine dizia que todos aqueles répteis inteligentes dos quais a ficção científica tanto gosta eram biologicamente impossíveis, porque inteligência (no sentido de autoconsciência, raciocínio abstrato etc., quer dizer, uma inteligência de nível comparável ao nosso) exige um cérebro grande e complexo, e os organismos reptilianos, por serem pecilotérmicos (o popular "sangue frio"), não teriam um metabolismo capaz de fornecer energia suficiente para desenvolver um cérebro assim e mantê-lo funcionando – só que, de lá para cá, a ciência descobriu muito sobre os dinossauros, inclusive o fato de que muitos deles, diferentemente dos outros répteis e à semelhança de nós, mamíferos, eram homeotérmicos ("sangue quente"). Alguns paleontólogos teorizam que os troodontes talvez tivessem penas – sabe-se que várias espécies de bípedes carnívoros as tinham; são um recurso eficaz para regular a temperatura corporal, e talvez tenham até mesmo permitido a esses dinossauros colonizar regiões de clima relativamente frio, que seriam inabitáveis para répteis comuns. Em teoria, portanto, nada impediria que uma espécie descendente deles se tornasse inteligente. Não é preciso dizer que, se essa civilização "troodôntica" tivesse se tornado realidade, nós, hominídeos, não teríamos tido o espaço que tivemos para evoluir, e é muito provável que não chegássemos ao nosso estágio atual. É tudo um grande "e se", mas, mesmo assim, as possibilidades são fascinantes e assustadoras.

Concretamente falando, a esperança que Gaia depositava nos troodontes foi baldada, pois aquele inesperado terceiro asteroide caiu e os varreu da existência, junto com cerca de 90 por cento das outras espécies animais de então, muito antes que eles chegassem sequer ao que chamaríamos de Idade da Pedra Lascada. A lista de candidatos que ela cogitou ao longo das próximas dezenas de milhões de anos variou de polvos a porcos, passando por golfinhos, formigas e outros, mas todos apresentavam alguma deficiência que os desclassificava. No caso dos golfinhos, a título de exemplo, era o fato de que, por mais inteligentes que eles fossem, sua conformação física os impossibilitava de criar ou utilizar ferramentas, edificações etc., de modo que nunca chegariam a ter uma civilização no verdadeiro sentido do termo (nisso Werber está correto). Polvos e formigas, é claro, são outra "viagem", ainda que ambos tenham, sob algum aspecto, uma inteligência notável. Por fim, essa Terra autoconsciente e capaz de deliberação voltou sua atenção para os primatas, que tinham uma característica que ela muito admirava: mãos dotadas de dedos preênseis, capazes de movimentos muito precisos. Infelizmente, segundo ela, ainda que os primatas tivessem essa ferramenta fenomenal, faltava-lhes capacidade intelectual que os habilitasse a tirar dela o máximo proveito. Por outro lado, havia o porco, o "animal terrestre mais inteligente" (George Orwell deve ter dado uma risadinha lá no Além), mas que, com cascos no lugar de dedos, dificilmente chegaria muito longe no caminho civilizatório, pelo mesmo motivo que o golfinho. Eis a genial solução encontrada:

Ocorreu-me inicialmente a ideia de um projeto original: levar um primata a fazer amor com um… porco. Certo dia, em consequência de um terremoto, um primata viu-se preso num fosso com uma fêmea facóquera (ancestral do porco). Os dois se estranharam, lutaram e, não conseguindo se matar, acabaram fazendo amor. Nove meses depois, nascia um novo animal híbrido com a pele lisa e rosada como os porcos, a sensibilidade e a inteligência dos porcos, mas a postura sobre as duas patas traseiras e a capacidade de agarrar objetos e manipulá-los, como os primatas. Parecia mais ou menos um macaco sem pelos, com pele de porco. Eu conseguira juntar a boa mente com o bom físico, numa repartição de 60% de genes suínos e 40% de genes primatas. Foi como "inventei" o meu defensor: o ser humano.

Eu poderia ficar aqui dizendo o óbvio, ou seja, que, mesmo que essa bizarra relação sexual chegasse a acontecer, ela jamais produziria uma descendência, que a "pele lisa e rosada" é uma característica do porco doméstico (na verdade, nem isso: só de algumas raças), e não do facóquero, ou facócero (javali africano), nem do javali europeu que foi quem realmente deu origem aos nossos amigos fornecedores de bacon… Mas acho suficiente observar que, com essa, todas as bobagens anteriormente ditas por Werber perdem a relevância, já que agora ele escancarou o fato de que não tem nenhuma pretensão de ser levado a sério.

(Destaque para o "bem-humorado" detalhe de nos atribuir uma porcentagem maior de genes suínos que primatas, e para a "sutileza" de emendar, logo a seguir a esse capítulo, outro no qual David Wells aparece praticando um ato "semicanibal" ao devorar sanduíches de presunto.)

Se, portanto, Gaia "inventou" o homem para que ele concebesse e executasse uma maneira de proteger-se (e, por tabela, também a ela) contra o perigo do impacto de asteroides, então, apesar de alguns sucessos pontuais obtidos pelos gigantes nos tempos antigos, parece que o saldo geral do experimento até agora é contraproducente, pois a humanidade atual não só permanece basicamente tão vulnerável a esse risco quanto estavam os dinossauros, como ainda tem maltratado um bocado o planeta, extinguindo espécies às centenas, destruindo florestas e poluindo a atmosfera, o solo e as águas com resíduos tanto comuns quanto radioativos.

Absurdos científicos e fantasias new age à parte, a narrativa prossegue. David, Aurore e o terceiro selecionado retornam de suas expedições preliminares financiadas pela Sorbonne e voltam a se apresentar à mesma comissão julgadora para a fase seguinte da seleção, na qual somente um passará – e acaba não sendo nenhum dos dois. Entretanto, uma integrante da comissão procura ambos e oferece-lhes a possibilidade de tocarem seus projetos sob a chancela do Ministério da Defesa da França. Seu nome é Natália Ovitz, coronel Natália Ovitz (curiosamente, uma anã), e ela parece ter como uma de suas funções manter o presidente da república (um abobado cheirador de cocaína) a par dos avanços da ciência que possam afetar os interesses da nação. A coronel Ovitz acredita que o estudo de David sobre a redução de tamanho e o de Aurore sobre a feminização da humanidade – ambos tendo a ver também com resistência a doenças – podem ser valiosas ferramentas para impedir possíveis desastres causados pela guerra nuclear e biológica.

Apesar de todas as sandices, Terceira Humanidade é notavelmente eficiente ao aproveitar-se da experiência de David na África para retratar – e denunciar – a situação revoltante vivida pelos pigmeus, outrora um povo livre e orgulhoso. Algumas tribos, cada vez menos, ainda conseguem continuar vivendo como seus ancestrais, isoladas na selva, sustentando-se com a caça e a coleta, mas a própria selva não cessa de diminuir por causa da exploração desordenada da madeira e da demanda por terra para a agricultura e a pecuária, o que força cada vez mais pigmeus a se renderem à "vida civilizada", o que, no caso deles, em geral significa trabalhar para os bantos (etnia majoritária no Congo e outros países da África central), em condições que só podem ser descritas como escravidão. Isso tudo é muito real e muito bem descrito por Werber – pena que, estando no meio de tanta bobagem, o leitor pode ser levado a menosprezar essas informações. Já as amazonas de Aurore podem ser fictícias (se alguém souber do contrário, por favor me informe!), mas a situação delas, de minoria perseguida, reflete bem a de várias etnias e culturas que ainda tentam resistir à extinção, no Oriente Médio e em outros lugares.

Por meio de um ritual dos pigmeus, turbinado por alucinógenos, David faz uma "viagem" a uma suposta encarnação anterior, na qual ele era um cientista da raça gigante que habitava a Atlântida, e cujas pesquisas teriam tornado possível a "miniaturização" da humanidade, dando origem a versões reduzidas dos seres humanos da época – e, como vocês já adivinharam, as miniaturas somos nós. Isso fazia parte do plano de Gaia: as naves espaciais que os gigantes atlantes construíram com o objetivo de defender a Terra contra meteoros eram, naturalmente, em escala para seus tripulantes, e, por serem tão grandes, elas se desintegravam ao chegarem ao espaço (não entendi o como ou o por quê, mas tudo bem). Com uma tripulação de criaturas pequenas, seria possível fazer naves menores e mais estáveis. O que David vê nesse vislumbre de sua vida passada lhe traz insights que permitem a ele e seus companheiros repetir o processo para gerar a "terceira humanidade" que dá título ao livro: os primeiros humanos, cuja estatura média era de 17 metros, "inventaram" a segunda humanidade, que somos nós, com nossa média de um metro e setenta centímetros; o próximo passo seria um ser humano de 17 centímetros de altura, que cresceria dez vezes mais depressa, chegando à fase adulta em menos de dois anos, e que, por consequência, viveria dez vezes menos, mas que, com esse tamanho reduzido, estaria em condições de tornar-se o espião e sabotador perfeito. Esse é o objetivo: criar uma equipe de miniespiões que possam se infiltrar em lugares-chave do governo e das forças armadas do Irã, país que, naqueles dias, ameaça precipitar o planeta na Terceira Guerra Mundial. Maluco? Totalmente.

Ah, sim: já perto do final do livro, Werber decide criticar e satirizar a religião. Seu "embasamento" é do mesmo nível de quando ele fala sobre ciência:

(…) São Paulo, cujo nome era Saulo de Tarso, foi inicialmente um grande perseguidor dos amigos de Jesus. Chegou inclusive a participar do apedrejamento de Estêvão, um dos companheiros mais próximos de Cristo. O que não o impediu de inventar o cristianismo, embora nunca tivesse encontrado Jesus pessoalmente. Por sinal, o dito-cujo, na verdade chamado José, deixou claro em vida que não queria "de modo algum criar uma nova religião, mas apenas lembrar a lei dos pais aos que a haviam esquecido sob o jugo da ocupação romana".

Que São Paulo começou por perseguir os cristãos, é fato, mas notem como o autor evita chamá-los por esse nome para não entrar em conflito com o que diz depois, isto é, que o próprio Paulo teria inventado o cristianismo, bobagem repetida com certa regularidade pelos detratores deste último. De onde Werber terá tirado que o nome de Jesus era José, não me perguntem, mas a declaração que ele coloca na boca de Cristo, se não me engano, foi copiada quase palavra por palavra do romance Operação Cavalo de Troia, de J. J. Benítez. Dos Evangelhos é que não foi.

Talvez alguém que me leia esteja pensando: mas Marcos, por que é que você, um assumido apreciador de literatura de fantasia, que sempre protestou quando via algum crítico malhar uma obra sob a alegação de que ela era "inverossímil", e sempre considerou uma atitude burra achar que a ficção deve se limitar a copiar a realidade, agora resolveu criticar esse livro específico dizendo que ele é "maluco"? A resposta não é simples, e eu absolutamente não tenho certeza da minha capacidade de explicá-la de forma satisfatória, mas acho que devo tentar.

É o seguinte: se você está lendo fantasia, significa que você e o autor celebraram um acordo tácito, e a sua parte nesse acordo, como leitor, consiste em suspender a descrença enquanto estiver lendo: você sabe que elfos e dragões não existem no mundo real, mas, ao abrir as Crônicas de Dragonlance, "esquece" momentaneamente esse fato e passa a pensar conforme a lógica interna do mundo de Krynn, onde existem dragões, elfos e muito mais. Isso pode valer também, embora de forma menos explícita, para a ficção científica: nenhum ou quase nenhum físico sério acredita na existência do famigerado hiperespaço, mas, se um autor de ficção científica tem uma ideia empolgante para uma história, e, para que essa história funcione, é indispensável que haja uma maneira de viajar mais rápido que a luz (coisa, até onde se sabe, impossível pelas leis da física), apenas um leitor muito chato torceria o nariz só porque o autor se permitiu essa "licença poética". Porém, se outro autor está escrevendo uma história que ele quer que tenha uma cara de realidade, que se pareça com algo que poderia acontecer no mundo que conhecemos, a meu ver ele precisa ser bem mais sutil em sua liberdade autoral. Colocar na boca de um personagem cientista declarações que qualquer pessoa com conhecimentos básicos de ciência sabe que são absurdas, e tornar imprescindível dar a esses absurdos o status de fatos, fazendo disso elemento essencial para que a história se sustente, compromete logo de cara toda a estrutura da narrativa e torna muito difícil "mergulhar" nela. Para falar de modo mais concreto, não me importo que Werber brinque o quanto quiser com a ideia de três humanidades sucessivas, cada qual dez vezes menor que sua antecessora – mas dinossauros não viraram lagartos e tigres não viraram gatos siameses, ponto. Trechos de resenhas (elogiosas, é claro) reproduzidas na contracapa do livro colocam ênfase na crítica que o autor faz ao mundo atual e também em seu "humor ácido"; é fato que tentativas de humor (negro, muitas vezes) pululam por todo o livro, mas, pelo menos para mim, ao longo de suas 500 páginas há no máximo duas piadas que funcionam.

É possível, entretanto, que vocês não se importem com nada disso, e, nesse caso, Terceira Humanidade até vale como passatempo, pois é inegável que a narrativa é fluente e entretém… Principalmente o Ato 2: a Era da Mutação, que narra uma pandemia mundial de uma "nova antiga" forma de gripe, um vírus que o professor Charles Wells e suas companheiras inadvertidamente "acordaram" na Antártida, depois de ter ficado inativo durante milênios. O médico-legista que examina seus corpos em Paris se contamina e, viajando de férias para o Egito logo em seguida, transmite a doença para outros turistas, profissionais de saúde, funcionários de companhias aéreas… Com isso, e graças ao transporte aéreo que hoje permite a qualquer um (saudável ou infectado) chegar a qualquer lugar do mundo em questão de horas, esse patógeno rapidamente se dissemina por dezenas de países e afeta milhões de pessoas, acabando com a economia e com a ordem social. E, casualmente, li o livro entre os meses de março e abril de 2020, bem durante a crise do COVID-19, o que resultou numa coincidência um tanto sinistra… É claro que o vírus da ficção é muito mais terrível que o real – transmite-se com mais facilidade e é cem por cento letal –, pois descrever uma doença relativamente controlável não teria um efeito satisfatório numa narrativa de tom apocalíptico, como a dessa parte do livro. Mas, mesmo assim, a coincidência é perturbadora. A partir daí, a história ganha mais ação, com coisas que já vimos em muitos outros lugares antes, como cidades mergulhadas no caos e sobreviventes encerrados em bunkers, tendo que rechaçar à bala outros que vagam pela terra devastada em busca de comida e abrigo. Nada de novo, mas funciona como narrativa de ação e de "ficção científica de terror".