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quarta-feira, maio 14, 2014

O Hobbit: a Desolação de Smaug


Como seria natural que acontecesse, foi com grande expectativa que compareci ao cinema por ocasião do lançamento de O Hobbit: a Desolação de Smaug, ansioso que estava para conferir a continuidade da aventura de Bilbo Bolseiro e seus companheiros, cuja primeira parte, apesar de alguns pequenos senões, me havia deixado uma impressão tão favorável. Enquanto assistia ao filme, de vez em quando me vinham à memória trechos do meu post sobre Uma Jornada Inesperada, e, na maioria, eram trechos que expressavam aprovação – ora com mais entusiasmo, ora com menos, mas todos culminando num veredito final que foi muito favorável. Então, já perto do final do filme, lembrei do trecho no qual dizia que "sempre que a adaptação de uma obra de J. R. R. Tolkien estiver entregue às mãos de Peter Jackson, podemos ficar absolutamente tranquilos". E aí, não pude evitar uma imprecação, ainda que mental: "Neozelandês de uma figa, me fez queimar a língua!"

Ah, vá: A Desolação de Smaug começa muito bem, e muito bem prossegue até certa altura. Bilbo, Gandalf e os anões sendo perseguidos pelos orcs, encontrando refúgio e ajuda na casa do homem-urso Beorn, depois o mago separando-se do grupo, que prossegue sua jornada pela Floresta das Trevas – tudo perfeito, seguindo de perto a história original (com as adaptações que já eram esperadas) e dando a ela um visual soberbo. A transformação operada em Bilbo, que já havia começado no final de Uma Jornada Inesperada, prossegue a passos largos: o respeitável e acomodado proprietário de Bolsão revela-se um aventureiro ousado e sagaz, que mais de uma vez salva a pele de Thorin e companhia, calando em definitivo aqueles do grupo que ainda não tinham fé nele. Os problemas começam a aparecer a partir da captura de todos, menos Bilbo, pelos elfos... Até compreendo o desejo de Jackson e seus colaboradores de ver Orlando Bloom de volta ao papel de Legolas, e, dentro do espírito de criar conexões entre as duas trilogias de filmes, isso poderia, sim, ser feito. Afinal, é sabido que Legolas é filho de Thranduil, e, embora o nome deste último não seja mencionado em O Hobbit, dá para sacar que o rei elfo que aparece deve ser ele, então não seria nenhum absurdo que o filho também entrasse no filme, apesar de não existir no livro. Mas, vamos e venhamos, não era preciso dar tanto destaque ao personagem, nem inventar a bela e heroica elfa Tauriel (Evangeline Lilly) para que houvesse alguma aura de romance. O que dizer, então, da "paixão platônica" que surge entre Tauriel e o anão-modelo Kili (Aidan Turner)? Desnecessária, no mínimo, além de improvável na visão de quem conhece a índole que anões e elfos possuem na obra de Tolkien.


A fuga das masmorras de Thranduil a bordo dos barris foi totalmente "traduzida" para a linguagem cinematográfica. No livro, os anões entravam nos barris, Bilbo os tampava e despachava pelo rio, por onde o grupo escapava na surdina, sem ser notado. No filme, a fuga virou uma movimentada batalha envolvendo anões, elfos, orcs, e cheia de cenas provocativas daquele clássico comentário: "Só em filme, mesmo!" É preciso um pouco de compreensão, tudo bem: um livro, mesmo sendo de aventuras, normalmente precisa de uma injeção extra de ação para funcionar na tela, e cena de ação nunca teve a obrigação de ser crível. Bem mais difícil é engolir o tedioso "exageramento" da importância do papel da cidade de Esgaroth e de seus habitantes. As agitações sociais, o ridículo mestre da cidade com seu ajudante desprezível, o desejo do povo por uma eleição (coisa bastante estapafúrdia num mundo de sociedades e instituições basicamente medievais) e o papel do arqueiro/barqueiro Bard como "líder sindical" e chefe de família dedicado poderiam perfeitamente ter sido deixados de fora – nada disso existe no livro nem faria a menor falta. De minha parte, sou da opinião de que o filme poderia ter ficado de 30 a 40 minutos mais curto, muito mais ágil e agradável com a exclusão de toda essa parte. Minha impaciência durou até Bilbo e nove anões finalmente deixarem Esgaroth e se dirigirem à Montanha Solitária – nove dos treze, pois o bonitão Kili, ferido por uma flecha morgul (como a faca que atinge Frodo em A Sociedade do Anel, só que isso não acontecia n'O Hobbit original) é deixado para trás, na companhia de outros dois anões que decidem ficar para cuidar dele, e de mais um que se atrasa para a partida. Tudo isso é uma deixa para Legolas e Tauriel aparecerem mais um pouco, salvando os três e mais a família de Bard de um ataque dos orcs. De quebra, a elfa ainda salva a vida de Kili com seus conhecimentos de medicina natural. Sem querer ser chato demais (mas já sendo), quase tudo desde o encontro de Bilbo e os anões com Bard até este momento me parece pura encheção de linguiça. É um grande alívio quando as câmeras deixam de lado os "momentos ternos" entre Kili e Tauriel para se ocuparem de Bilbo, Thorin e os outros chegando à montanha. Que tal voltarmos à aventura agora? Obrigado.

A partir desse ponto, o espírito da história é retomado, e o leitor de Tolkien já se sente um tanto mais tranquilo, pois tudo indica que o filme esteja se encaminhando de maneira segura para o final, que provavelmente seria no momento em que Smaug, o dragão, ataca Esgaroth. E é o que de fato acontece. O que ninguém esperava era que, antes de chegar até aí, fôssemos obrigados a assistir Thorin e os outros "combatendo o dragão"... A escolha parece ser entre enfrentar o monstro num confronto direto – o que, é claro, significaria a morte instantânea de todo o grupo –, procurar um jeito de derrotá-lo pela esperteza, ou então desistir de tudo e ir embora. Só que, em vez de seguir um desses três cursos de ação, o que os sujeitos fazem?? Fundem uma gigantesca estátua de ouro de um guerreiro anão. O que esperavam conseguir com isso, nem Gandalf seria capaz de dizer; será que era para o dragão ficar tão impressionado com as capacidades industriais e artísticas dos anões, a ponto de decidir ir embora e deixá-los ficar com a cidade e o tesouro? Por outro lado, há outra coisa que qualquer um pode dizer: quem parece mesmo estar tentando impressionar (impressionar a nós, espectadores) são Peter Jackson e os outros realizadores do filme. Toda essa sequência parece um grande comercial, um coro de gritos de "Lalo-lalo, olha só o que nossa equipe de efeitos especiais consegue fazeeeer! Lalo-lalo!" É a única explicação que encontro, pois nem o maluco mais desvairado seria capaz de achar que essa coisa da estátua fosse acrescentar algo ao filme em termos de narrativa. Sério, é constrangedor.

A propósito, acho útil registrar que só estou escrevendo o comentário agora, depois de todos esses meses, porque julguei necessário rever o filme, para evitar ser injusto, e só agora tive acesso ao DVD: que ninguém diga que não dei a Jackson o máximo possível de chances. Na verdade, eu estava relutante em baixar a ripa no cara, mas, no fim, não houve jeito: esse filme foi mesmo uma surpresa, no mau sentido.

Considerando o que fez em O Senhor dos Anéis, Peter Jackson tem crédito, então talvez não devamos julgá-lo por uma única besteira feita. Proponho uma "melhor de três": Uma Jornada Inesperada foi muito bom, enquanto A Desolação de Smaug, a despeito de alguns bons momentos, foi uma decepção. Vamos ver como ficam as coisas em dezembro, quando deve estrear A Batalha dos Cinco Exércitos (anteriormente conhecido como Lá e de Volta Outra Vez), parte final da trilogia. Namarië a todos.

terça-feira, janeiro 15, 2013

O Hobbit: Uma Jornada Inesperada


Eu quis reler O Hobbit, de propósito, durante os últimos dias antes da estreia do primeiro filme da nova trilogia cinematográfica de Peter Jackson, porque desejava ter a chance de, por uma última vez, reviver a história com as minhas próprias imagens, aquelas que um leitor vai construindo na imaginação à medida em que percorre as páginas de um livro de que gosta. Não tinha qualquer dúvida de que Jackson, mais uma vez, não iria frustrar as expectativas (inevitavelmente, altas) que todos nós, fãs de Tolkien espalhados pelo mundo, estávamos depositando nele; mas, ao mesmo tempo, as minhas visões pessoais de O Hobbit eram-me, e ainda me são, muito caras. Afinal, foram as primeiras visões que tive da Terra-média, nos meus já distantes 17 anos, quando só havia a tosca e hoje quase esquecida edição da Artenova (confiram a capa logo abaixo) e, no Brasil, apenas os raros iniciados em literatura de fantasia sabiam o que diabos vinha a ser um hobbit ou quem foi John Ronald Reuel Tolkien.

Não me considero um grande conhecedor da obra do Professor, li apenas O Hobbit e O Senhor dos Anéis – o suficiente para me apaixonar, mas não para ficar à vontade em qualquer desses fóruns em que até o mais neófito participante sabe tudo sobre as diferentes eras da história de Arda, sobre os Valar, os Noldor e assim por diante. Tentei os Contos Inacabados e, depois de um bocado de esforço, tive que admitir que mesmo os fragmentos propriamente ditos deixados pelo mestre pressupunham um nível de conhecimento bem superior ao que eu possuía. Já as introduções e notas redigidas por Christopher Tolkien na qualidade de compilador da obra do pai, revelaram-se um inextricável emaranhado de referências misteriosas e nomes exóticos (por vezes, até mesmo determinar se tais nomes referiam-se a pessoas ou a lugares era difícil). Concluí que esse é o livro que o fã deve deixar para ler por último, como uma espécie de doutorado em Tolkien. Talvez um dia eu esteja à altura do desafio. Para não dizer que não consegui aproveitar nada, há um fragmento muito interessante que quem leu O Hobbit e O Senhor dos Anéis não terá dificuldade em acompanhar: chama-se À Procura de Erebor e seu lugar na cronologia seria dentro de O Retorno do Rei, embora trate basicamente de fatos anteriores ou simultâneos aos narrados em O Hobbit. Enquanto todos descansam em Valfenda ('Rivendell') após os lances finais da Guerra do Anel, Gandalf finalmente abre o jogo com Frodo, Merry, Pippin e Gimli sobre os acontecimentos que cercaram o início daquela jornada mais de 60 anos antes, em especial sobre o porquê de ele próprio haver considerado tão indispensável, na época, fazer com que Bilbo estivesse junto de Thorin e seus companheiros em sua busca pelo antigo tesouro dos anões.

Se Contos Inacabados é o livro que deve ficar por último, O Hobbit é a iniciação ideal ao universo de Tolkien, e, depois de ver a primeira parte de sua adaptação para a tela, ficou evidente que o voto de confiança dado a Peter Jackson não foi baldado... Embora eu não possa negar que fiquei seriamente receoso (e duvido que eu tenha sido o único) ao ouvir a notícia de que não seria um, mas dois filmes – e, mais tarde, a da mudança de planos: não seriam dois, não... Seriam três! Por Júpiter! Depois de suar para comprimir as cerca de 1200 páginas (variando conforme a edição) e a espantosa complexidade de O Senhor dos Anéis em três filmes com pouco menos de três horas cada – e tê-lo feito com tanta competência, a ponto de merecer o aplauso da maioria dos apaixonados e sabidamente exigentes fãs de Tolkien –, iria Jackson rebaixar-se a fazer o inverso, espichando artificialmente a modesta extensão e o enredo simples de O Hobbit, até conseguir fazer com que preenchesse uma quantidade equivalente de película?

Agora já temos a resposta, e a resposta, para infinito alívio de toda a nação tolkienmaníaca, é: não, Jackson não fez isso. Pelo contrário, continuou tratando a obra do Professor com o devido e merecido respeito, como já o fizera em seus filmes anteriores. Mais ainda, ele e seus roteiristas demonstram uma compreensão profunda do lugar que O Hobbit ocupa e do papel que desempenha dentro desse intrincado e apaixonante universo, de modo que as adições feitas tratam-se, quase todas (ou, ao menos, na grande maioria) de coisas tomadas de empréstimo a outras obras do autor, ou de desdobramentos lógicos de situações por ele delineadas.

Aos não iniciados em Tolkien que porventura me estejam lendo, é importante esclarecer que, por mais bizarro que isso pareça, o próprio Tolkien, a exemplo de seu herói Bilbo ao encontrar o Um Anel, ainda não sabia o que tinha em mãos enquanto escrevia O Hobbit ou logo após a sua publicação; ele nem imaginava as dimensões, o nível de complexidade, e menos ainda a importância e influência que sua criação chegaria a ter: como diz o prefácio de O Senhor dos Anéis, a história "cresceu conforme foi sendo contada". Tudo indica que, ao começar O Hobbit, o Professor nada mais pretendia que divertir-se contando uma boa história para (pensava ele) crianças e adolescentes, e, com sorte, colher alguma merecida recompensa material, caso conseguisse interessar algum editor no projeto. Mesmo assim, já se nota sua preocupação em dar um background para a história, em inseri-la num contexto convincente, num mundo com história e geografia próprias, ainda que de forma rudimentar em comparação ao que faria mais tarde. O essencial, aqui, é notar que, quando O Hobbit foi escrito, o SdA ainda não existia e seu mundo estava apenas tomando forma (se bem que a Terra-média continuaria a tomar forma até o fim da vida de Tolkien...); já ao transformar o livro em filme, Peter Jackson precisava ter em mente que o público dessa nova produção já teria visto, e, parte dele, também lido o SdA, e esperaria ver conexões entre ambos. Também não devemos esquecer que a Terra-média e toda a sua história surgiram da vontade de Tolkien de criar um background, ainda que fictício, para as línguas élficas, que ele, um linguista de mão cheia, havia inventado por puro prazer. Isso mesmo: nas horas vagas, o cara se divertia inventando línguas.

A primeira conexão entre este novo filme e a trilogia do SdA é criada com a adoção de uma narrativa em flashback: o filme inicia exatamente no mesmo ponto que A Sociedade do Anel, isto é, em plenos preparativos da festa de arromba que celebrará o aniversário de "onzenta e um" anos de Bilbo Bolseiro, o que permitiu que os atores Elijah Wood e Ian Holm retornassem a seus velhos papéis como Frodo e Bilbo. Holm quase não mudou nada, mas até para o melhor maquiador do mundo é tarefa complicada fazer com que Wood, aos 31 anos, volte a ter a cara que tinha aos 19!... Bilbo, então, começa a escrever as memórias de sua aventura, para que Frodo as leia depois que ele tiver partido para Valfenda, e é nessas memórias que a história propriamente dita do filme se desenvolve, começando com a substituição de Holm por Martin Freeman, que encarna Bilbo quando mais jovem.

E, por mais que já saibamos o que são os hobbits e qual o tipo de vida que lhes agrada, é sempre um prazer reler uma vez mais a singela e, ao mesmo tempo, certeira descrição do início do livro. É fácil perceber que essa pequena e pacata raça teve como modelo direto os camponeses do interior da Inglaterra – uma gente simples, que pouco sabe ou se interessa pelo mundo lá fora, gosta do trabalho rotineiro, das coisas que já conhece, de boa comida e de festas, mas que, quando necessário, pode também demonstrar um grau insuspeitado de resistência e coragem, como Tolkien teve ocasião de verificar pessoalmente, ao ver muitos desses camponeses virarem soldados na Primeira Guerra. Bilbo, o hobbit do título, é um tanto diferente de seus vizinhos da Vila dos Hobbits, principalmente devido a seus pendores intelectuais, e, sendo rico, pode dispor de seu tempo como melhor lhe aprouver, em geral lidando com livros e mapas, o que aponta para uma grande e bem pouco hobbitesca curiosidade sobre o mundo... Só que Bilbo nunca havia cogitado a sério a possibilidade de um dia sair para ver com os próprios olhos as coisas sobre as quais tanto já leu, até que Gandalf entra em cena, Gandalf, o mago (no filme, Sir Ian McKellen, também de volta a seu antigo papel, continua dando o mesmo show de mais de uma década atrás), que era amigo do avô de Bilbo quando este era criança, e parece não ter mudado nada desde então. Por intermédio dele, e de um jeito engraçadíssimo, o hobbit vem a conhecer uma companhia de 13 anões liderados por Thorin Escudo-de-Carvalho, neto do rei Thror, que outrora governou o rico e poderoso reino anão situado dentro e embaixo de Erebor, a Montanha Solitária, de onde ele e seu povo foram expulsos há muitos anos pelo ataque de Smaug, o dragão. E agora Thorin e seu bando planejam justamente retornar a Erebor, tomar de volta o lar ancestral de seu povo e o fabuloso tesouro acumulado pelos antigos anões ao longo de séculos de mineração. Para o bom êxito desse plano, na opinião de Gandalf, os anões não podem prescindir da participação de Bilbo, que ele recomenda como um gatuno de vasta habilidade e audácia – e, tendo em vista a índole e a vida pregressa do hobbit, é difícil dizer quem é que encara essa afirmação com maior ceticismo, se os anões ou o próprio Bilbo. De qualquer forma, Thorin não discute com um conselho direto de Gandalf, e, além disso, uma expedição com 13 membros não atrairia boa sorte, de modo que Bilbo é efetivamente incorporado à comitiva, que parte no dia seguinte.



(Mais um dos meus parênteses: fiquei encantado ao ver que Peter Jackson e/ou um de seus roteiristas fez questão de incluir as duas canções entoadas pelos anões na toca de Bilbo – a alegre e despretensiosa "canção de lavar pratos", e a canção solene e nostálgica sobre seu lar perdido, embora esta última apareça de forma bem compacta, enquanto, no livro, tratava-se de um poema de extensão considerável. Aliás, embora a tradução antiga, da Artenova, feita por Luiz Alberto Monjardim, seja realmente tosca, com erros de português que não seriam admissíveis numa redação da sexta série, é preciso conceder-lhe isso: a tradução desse poema ficou, em minha opinião, bem mais bonita e tocante que aquela que aparece na edição da Martins Fontes atualmente encontrada nas livrarias. Aliás, fiquei com a curiosidade de saber se a canção, tal como está no filme, traz os versos originais de Tolkien ou se eles foram adaptados. Se alguém tiver O Hobbit em inglês e puder me tirar essa dúvida, agradeço.)

Como, a essas alturas do campeonato, quem estiver me lendo terá, na certa, visto ao menos o filme, creio que não é necessário me alongar falando das peripécias que o grupo enfrenta e das criaturas fantásticas que encontra; prefiro aproveitar o espaço que me resta para comentar o modo como a história começou a ser contada nas telas.

O Hobbit, em sua versão para o cinema, teve uma história bastante atribulada. As primeiras notícias já eram de que Peter Jackson seria o diretor, o que foi recebido com satisfação pela maioria dos fãs. Mais tarde, soube-se que Jackson deixara o projeto e que a direção seria assumida por Guillermo del Toro; não ouvi grandes coisas sobre a repercussão disso, mas, de minha parte, embora lamentando a saída de Jackson, considerei o diretor mexicano uma das melhores substituições possíveis, devido à sólida carreira que já construiu no cinema de fantasia. Mas, por fim, como o mundo dá voltas!... Jackson retornou e a direção do filme acabou mesmo levando sua assinatura, sendo preservadas as contribuições de Del Toro para o roteiro, e resultando disso que O Hobbit teve quatro roteiristas: Jackson, Fran Walsh, Philippa Boyens (ou seja, o mesmo trio de O Senhor dos Anéis) e Del Toro. Um quarteto cujo trabalho não decepciona: souberam cumprir as exigências inerentes a qualquer história que esteja sendo transcrita das páginas para a tela, deixando intacta a essência do livro.

Não custa lembrar, como sei que já fiz em outros posts, que literatura e cinema são linguagens diferentes, e que, por isso, é impossível transformar um livro em filme sem mudar nada. E as grandes "mexidas" que Jackson e sua gangue deram em O Hobbit, pelo que foi possível ver nessa primeira parte, foram duas. Em primeiro lugar, como já referi, eles introduziram um monte de coisas que o próprio Tolkien ainda não sabia quando escreveu o livro, mas que hoje todos os seus leitores sabem (mesmo os que ainda não fizeram o doutorado) e estariam esperando ver. Isso explica as aparições de Saruman e Galadriel, personagens que, nos livros, o leitor só viria a conhecer em O Senhor dos Anéis. Também explica a notável atenção dispensada à descoberta das atividades do "Necromante" pelo mago Radagast – o Necromante, que obviamente é Sauron, só era mencionado muito de passagem no livro O Hobbit; seu futuro papel como grande vilão ainda estava numa fase embrionária na cabeça do autor. Por falar em Radagast, sua aparição e a parte relativamente importante que desempenha na ação do filme são uma surpresa: também ele só figurava no livro como uma menção fugidia durante uma conversa entre Gandalf e Beorn, o homem-urso. Pareceu-me o inverso do que ocorreu com Tom Bombadil, excluído do filme A Sociedade do Anel por não ser absolutamente essencial num enredo onde já havia tanta coisa que não podia ser deixada de fora. Já em O Hobbit, há tempo para o não-essencial.

A outra grande mexida de que falei está no fato de a história, no cinema, ter ficado muito mais "épica" – ou, no mínimo, muito mais violenta. Há muitas cenas de batalha, incomparavelmente mais que no livro, mas são batalhas totalmente antissépticas: por mais que machados e espadas trabalhem, não se vê uma gota de sangue (li em algum lugar que, com isso, consegue-se baixar a classificação indicativa do filme em dois anos, o que significa o acréscimo de uma expressiva fatia de público em potencial). Tirando isso, as batalhas são visualmente perfeitas, empolgantes, e o personagem Thorin (belíssima atuação de Richard Armitage) ganha uma dimensão nova, de heroísmo, que estava pouco presente no livro. O episódio que explica a origem de seu apelido Escudo-de-Carvalho é, numa palavra, emocionante, embora envolva uma infidelidade à história da Terra-média tal como delineada por Tolkien: o chefe orc Azog, que matou em batalha o avô de Thorin, foi, por sua vez, morto por um outro parente, Dain, muito antes da época retratada em O Hobbit, mas, no filme, os roteiristas optaram por ignorar esse fato e colocar Azog em cena, para ser o arqui-inimigo que Thorin, como herói guerreiro, precisava ter. E já que falamos de guerras envolvendo anões, aqui vai uma observação digna do mais nerd dos tolkienmaníacos: gostei muito do design das espadas dos anões, que se parecem deveras com armas que anões forjariam – angulosas, robustas, feitas muito mais para usar do que para exibir.

No filme, além do mais, é dada uma individualidade a cada anão, com variados níveis de profundidade, é claro, mas muito mais do que no livro, no qual apenas três ou quatro dos companheiros de Thorin tinham alguma característica marcante ou faziam algo que os destacasse do grupo. Nesse quesito, depois do próprio Thorin, o anão mais carismático é sem dúvida o velho Balin, o primeiro a reconhecer o valor de Bilbo e fazer-se amigo do hobbit, e que mais tarde se tornaria lorde de Moria, onde... Opa, melhor parar. Talvez haja alguém que ainda não leu O Senhor dos Anéis me lendo. Alguns dos anões estão muito bem caracterizados – troncudos, pesados, de aparência resistente, ombros muito largos e vastas barbas –, enquanto outros parecem apenas humanos baixinhos, sendo que, como durante a maior parte do tempo contracenam apenas com outros anões e com o hobbit, sua altura passa despercebida. Agora, alguém entendeu qual é a do anão Kili? Até mesmo um iniciante em Tolkien sabe que qualquer anão que já tenha deixado a infância tem invariavelmente uma vistosa barba (na verdade, algumas fontes informam que eles já nascem barbudos), então por que esse indivíduo mal tem uma ligeira penugem no queixo? Talvez para melhor exibir os traços apolíneos do ator irlandês Aidan Turner, que o interpreta, e assim chamar um pouco a atenção do público feminino. Um anão galã, pois sim.

Num balanço final, O Hobbit: uma Jornada Inesperada é mais uma demonstração de que, sempre que a adaptação de uma obra de J. R. R. Tolkien estiver entregue às mãos de Peter Jackson, podemos ficar absolutamente tranquilos, pois trata-se de alguém que a ama tanto quanto nós; é mais um mergulho feito com extrema competência por Jackson no universo criado pelo Professor, e tão bem-sucedido em capturar a magia única desse universo quanto o foram as três partes de sua já clássica filmagem de O Senhor dos Anéis, embora, naturalmente, com características diferentes. Tem defeitos, é claro, mas isso não impede que tudo o que amamos na obra de Tolkien esteja lá: a aventura, o humor, o drama, a fantasia, os momentos evocativos e melancólicos, a celebração da amizade e dos valores humanos, tudo embalado por um visual que é positivamente de encher os olhos – um coquetel que não falha em nos fazer sair do cinema com o coração mais leve e um início de nostalgia por nossa pátria espiritual, a Terra-média. Nostalgia essa que sempre podemos satisfazer com uma releitura dos livros de Tolkien ou uma reprise em casa dos filmes de O Senhor dos Anéis, enquanto encaramos a longa espera de um ano pela segunda parte, que deverá chamar-se O Hobbit: a Desolação de Smaug. Vejo vocês em Erebor!