quinta-feira, novembro 26, 2015

Morte Súbita

Morte Súbita é o primeiro livro publicado por Joanne Kathleen Rowling após a conclusão da saga de Harry Potter, o megassucesso que a catapultou de uma ilustre desconhecida a escritora mais famosa do mundo e mulher mais rica do Reino Unido, superando, e por uma boa margem, a própria rainha Elizabeth II. E parece que, tendo feito nome e fortuna com a fantasia, ela sentiu a necessidade de enfrentar novos desafios, e decidiu então enfrascarse en la realidad, como diria a Mafalda: os personagens e situações dos quais Morte Súbita é feito não serão estranhos a ninguém, em quase nenhum lugar do mundo. Nas personalidades descritas com agudeza e, não raro, com crueldade (não uma crueldade deliberada; acontece que não existe uma maneira gentil de mostrar certas coisas), o leitor fatalmente reconhecerá traços de pessoas reais que conhece ou conheceu – e, se tiver a coragem da autocrítica, é provável que também reconheça, envergonhado, algum traço de si próprio.

O cenário da história (e, eu me atreveria a dizer, seu verdadeiro protagonista, mais que qualquer personagem específico) é o fictício vilarejo de Pagford, distrito do também fictício município inglês de Yarvil. Trata-se de uma comunidade do tipo que seus membros gostam de definir como "pacata e ordeira", com aquele ar interiorano que turistas e moradores mais velhos acham encantador – e os mais jovens, deprimente – e a típica beleza bucólica do interior da Inglaterra. Seu único marco notável são as majestosas ruínas de uma abadia do século XII, no topo de uma das colinas que cercam o vilarejo… E a total indiferença dos moradores em relação a essas ruínas, embora seja provavelmente o retrato da realidade, não deixou de me fazer sentir levemente ultrajado. De minha parte, estou certo de que jamais me acostumaria com o fato de morar perto de algo assim: poderia estar com mais de cem anos de idade e ter visto essas ruínas todos os dias da minha vida, ainda assim seria capaz de me sentar diante delas e contemplá-las durante horas, com aquela sensação indescritível de estar olhando para a própria História. Mas talvez isso seja apenas a visão de alguém que, além de ter essa esquisitice de ser apaixonado por História, vive num país que nem sequer teve Idade Média. Bem, chega de digressões.

A morte súbita que dá título ao livro é a de um homem com o curioso nome de Barry Fairbrother, uma figura destacada na sociedade de Pagford – um de seus "pilares", diriam alguns. Jovem ainda, a meio da casa dos 40, Fairbrother repentinamente cai morto, vítima de um aneurisma, na frente do restaurante do clube de golfe local, onde ia jantar com a esposa, celebrando seu aniversário de casamento. Essa talvez seja a principal peculiaridade do livro: o homem morre no primeiro capítulo, mas influencia os eventos da história até o final. Fairbrother, entre outras coisas, era um dos membros mais ativos do conselho distrital de Pagford, e não demora nada para que comecem a surgir candidatos para a vaga aberta com sua morte (note-se que o título original do livro não é Sudden Death, e sim The Casual Vacancy – quer dizer, 'Vacância Casual').

Mesmo num lugar tão pequeno, há sempre disputas políticas, e o principal pomo da discórdia em Pagford é o bairro conhecido como Fields. Décadas atrás, a prefeitura de Yarvil comprou parte da vasta propriedade de uma família rica e tradicional de Pagford, e criou ali o loteamento que daria origem ao tal bairro, que teve desde o início uma fama ruim entre os pagfordianos, fama essa que o tempo só piorou. Na opinião dos moradores mais tradicionais e respeitados de Pagford, Fields não passa de um antro de drogados e de gente que vive às custas do auxílio do governo, de ruas sujas, casas pichadas, quintais cheios de lixo e outros sinais de miséria que não combinam com a placidez burguesa do resto do vilarejo. Muitos gostariam que Fields desaparecesse, mas, ante a impossibilidade de solução tão radical, procuram, por todos os meios, conseguir que o bairro fique sob a tutela de Yarvil e não seja mais problema de Pagford. Porém, Fields também tem seus defensores, dos quais um dos mais dedicados e influentes era justamente o recém-falecido Barry Fairbrother, que nasceu lá. Agora, o destino de Fields, ou, pelo menos, a política que Pagford adotará em relação a ele durante os anos seguintes, poderá depender de quem venha a ocupar a cadeira de Fairbrother no conselho. E ambas as facções tratam logo de escolher seus candidatos. Do lado pró-Fields, surge Colin "Pombinho" Wall, vice-diretor de Winterdown, a escola local, e um dos amigos mais próximos do falecido; do lado anti-Fields, é indicado o advogado Miles Mollison, filho de Howard Mollison, também membro do conselho e, durante anos, adversário encarniçado de Fairbrother nesse assunto.

A eleição do novo conselheiro distrital é o eixo em torno do qual orbita a narrativa, mas uma série de outras tramas se entrelaçam, direta ou indiretamente, nessa. Há muitos personagens, o que faz o leitor se perder algumas vezes, mas logo nos familiarizamos com eles e fica mais fácil acompanhar, principalmente depois que aprendemos quem está relacionado a quem e de que forma; há várias famílias em cena, e cada membro delas tem seus próprios problemas, motivações e pensamentos. À primeira vista, parece que a autora está sendo implacável com seus personagens, e, por tabela, com as pessoas que os inspiraram (pois é óbvio que foi assim que o processo criativo funcionou), mas, conforme vamos lendo, percebemos que não é bem assim: é o que eu dizia sobre a crueldade não deliberada, lá no início do texto. Rowling simplesmente mostra as coisas tal como elas são e as chama pelo nome que têm, sem racionalizar (embora muitos personagens façam isso o tempo todo) ou lançar mão de eufemismos. Se isso faz seus personagens parecerem, em sua maioria, patéticos e mesquinhos, bem… Talvez seja porque a maioria das pessoas de carne e osso é assim, mas não sejamos tão azedos: muitas delas também têm um lado bom. Não todas. Há personagens com os quais somos levados a simpatizar (ou, ao menos, a nos compadecer deles), como Colin Wall, um homem cujo passado esconde um segredo terrível, e que parece estar procurando fazer a coisa certa como uma forma de se redimir, mas é prejudicado por uma insegurança de dar pena (como alguém assim pode ter chegado a vice-diretor de escola, é coisa que não consigo imaginar); outros são absolutamente repulsivos, como Samantha, a desmiolada e fútil mulher de Miles Mollison, que parece pensar que pode retardar a chegada da meia-idade comportando-se como uma adolescente birrenta, e adora fazer pequenas maldades, geralmente colocando de propósito outras pessoas em situações embaraçosas. A autora entra na mente de todos os personagens e expõe ao leitor, de forma crua, todos os seus orgulhos tolos, mágoas ridículas e motivações tacanhas. Acho particularmente doloroso, em especial por ser (também) um retrato da realidade, ver que a grande maioria dos jovens não guarda sequer o mais longínquo traço de respeito por seus pais ou professores – ainda que alguns pais que aparecem no livro não façam mesmo por merecer. Isso não me deixa nada otimista quanto ao futuro da sociedade em geral.

Barry Fairbrother, aparentemente, era a melhor pessoa de Pagford, caracterizado pelo bom humor, pelo altruísmo e por uma reserva inesgotável de autoconfiança (é verdade que, quando uma pessoa acaba de morrer, todo mundo parece sentir um impulso de falar bem dela). Além de lutar para que Fields continuasse pertencendo ao distrito, ele tinha especial interesse em manter funcionando a clínica Bellchapel, que trata dependentes químicos – dos quais Fields, inegavelmente, está cheio – e cujo fechamento também está na pauta de Howard Mollison e seus aliados. Entre suas muitas atividades destinadas a beneficiar o próximo, Fairbrother também era técnico de uma equipe feminina de remo, formada por alunas de Winterdown, garotas que ficaram meio órfãs com sua morte. Uma delas em particular, Krystal Weedon, sente-se mais que meio órfã, já que Fairbrother parecia ser o que ela conhecia de mais parecido com uma figura paterna. Krystal mora em Fields com um irmão pequeno e a mãe, Terri, uma viciada barra-pesada que já passou diversas vezes pela clínica e sempre recaiu – e enfrenta todas as agruras dessa situação. No decorrer da história, Krystal se envolve (leia-se "começa a transar de forma inconsequente") com um garoto conhecido como "Bola" Wall – um apelido irônico, já que ele é bem magro –, considerado por muitos como o cara mais "descolado" da escola. Bola é filho do vice-diretor Colin Wall e da orientadora educacional Tessa, e um dos piores elementos a frequentarem Winterdown atualmente. Não que se rebaixe a ser um arruaceiro comum: suas maldades são engenhosas e sempre terminam com ele saindo incólume. Especial prazer Bola sente em atormentar Sukhvinder Jawanda, outra das remadoras da equipe de Fairbrother e filha de um casal de médicos paquistaneses que residem em Pagford, sendo que a mãe também integra o conselho distrital. Sukhvinder talvez seja a personagem mais digna de compaixão no livro: embora sua família seja próspera e benquista no vilarejo, a garota sofre tanto com as cobranças implacáveis da mãe no tocante aos estudos (ela tem dislexia, mas a mãe a considera simplesmente preguiçosa) quanto com a perseguição de certos colegas por causa de sua aparência pouco atraente. Bola, o pior de todos, mostra-se incansável e surpreendentemente criativo quando se trata de humilhar Sukhvinder, e, é claro, isso faz com que seu fã-clube o admire cada vez mais.

Desse fã-clube faz parte Andrew Price, que, além disso, é o melhor amigo de Bola. Andrew não parece achar tanta graça no que Bola faz com Sukhvinder, mas não move um dedo para defendê-la, já que isso significaria ser "do contra" e arriscar-se a perder a aceitação do grupo – o pior pesadelo de um adolescente. De alguma forma, ele entende o que a garota passa, pois não é tão diferente do que ele próprio, sua mãe e o irmão mais novo vivem em casa: o pai de Andrew, Simon Price, gerente de uma gráfica, é um completo idiota, que mantém a mulher e os filhos sob um estado de terror perene, com constantes humilhações e ameaças. Quando Simon mete na cabeça que também vai lançar uma candidatura à vaga no conselho, Andrew considera isso a gota d'água e decide sabotar os planos do pai. Como fará isso? Só adianto que tem a ver com as maravilhas da internet, um universo ainda misterioso para os mais velhos, mas pelo qual os adolescentes transitam tão à vontade quanto peixes na água. E que a sabotagem de Andrew vai iniciar uma reação em cadeia, que dará muito mais pano para as mangas do que ele alguma vez imaginou.

Em outro departamento de sua vida, Andrew está completamente fascinado (até aquele ponto em que um rapaz fica um tanto abobado) por uma nova e linda colega, Gaia Bawden, que acaba de se mudar de Londres com a mãe e, vejam só, por mais improvável que isso pareça, faz amizade não com as garotas bonitas e populares, mas justamente com a tímida e feiosa Sukhvinder Jawanda. A mãe de Gaia, Kay Bawden, calha de ser a assistente social encarregada do acompanhamento da família Weedon… Coisas de cidade pequena. O que levou Kay a mudar-se de Londres para Pagford foi seu affair com Gavin Hughes, um jovem advogado que trabalha com Miles Mollison, era amigo de Barry Fairbrother, e, desde a morte dele, parece estar desenvolvendo um novo tipo de interesse por sua viúva, Mary, a quem ajuda com as providências legais para o recebimento do seguro de vida do marido…

Eu poderia ir muito mais longe pulando de personagem em personagem, mas não acho necessário; isso já é uma amostra suficiente do tremendo emaranhado de relações e interações que faz parte de Morte Súbita. Um emaranhado capaz de desnortear completamente um narrador menos hábil, o que transformaria a trama numa bagunça, mas J. K. Rowling não deixa em momento algum que as rédeas lhe escapem das mãos. Sua técnica narrativa, que era apenas mediana nos primeiros volumes de Harry Potter, e já havia evoluído muito nos últimos, parece estar em contínuo aperfeiçoamento, garantindo que o leitor fique preso página após página, mesmo que o tema seja banal se comparado àquilo que estávamos acostumados a receber dela. Embora todos nós saibamos (e ela própria, sem dúvida, melhor que ninguém) que o estigma de "autora de Harry Potter" irá acompanhá-la até o túmulo e muito além, Rowling parece determinada a explorar outras searas e a procurar não ficar marcada como autora de um sucesso só, de modo que ficamos, desde já, curiosos pelo que mais pode estar vindo por aí.