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sexta-feira, novembro 30, 2012

Góticos

Quando encontrei esta antologia na Livraria Curitiba do shopping Estação, na capital paranaense, há alguns dias, vi-me diante de um pequeno dilema: praticamente metade dos contos que a integram, eu já possuía em outras coletâneas - alguns deles, em mais de uma. Mesmo assim, acabei decidindo pela compra: os textos que eu ainda não conhecia eram irresistíveis, já valendo, só eles, o valor a ser pago, aliás muito razoável. Minha namorada Cintia, que estava comigo na ocasião, observou que, a julgar pela capa, deve tratar-se de uma edição visando o público adolescente do sexo feminino - leia-se: as fãs de Crepúsculo. Se assim for, e se o alvo for atingido, ótimo: é bom que essa faixa de público tenha a chance de conhecer um pouco do melhor que a literatura gótica já produziu, e de ter um contato direto com a ficção de horror no sentido estrito do termo. Pelas páginas deste volume desfilam nomes veneráveis da literatura do sobrenatural como Bram Stoker, Mary W. Shelley, Edgar Allan Poe e Joseph Sheridan Le Fanu; outros que, embora famosos, não costumam ser imediatamente associados ao horror, como Robert Louis Stevenson (autor do clássico romance de aventura de piratas A Ilha do Tesouro, mas também da não menos clássica novela de horror O Médico e o Monstro), Sir Arthur Conan Doyle (criador do mais famoso detetive da ficção, Sherlock Holmes) e o francês Théophile Gautier, melhor conhecido por sua poesia; e, por fim, nomes que bem mereceriam ser mais conhecidos do que são, como W. W. Jacobs e a figura fascinante, mesmo que apagada pelas circunstâncias, de John William Polidori. Por fim, é preciso notar, para crédito do organizador Luiz Antônio Aguiar, que foi uma bela ideia não fazer do livro uma coletânea apenas de contos, mas de textos góticos ou sobre o movimento literário gótico de maneira geral: além dos contos, ele também inclui poemas de Byron e Goethe (seria difícil pensar em dois poetas que melhor representassem essa corrente estética) e interessantes ensaios curtos assinados por Pedro Bandeira (nome coroado da literatura teen no Brasil, criador da série Os Karas, cujo piloto é o merecidamente aclamado A Droga da Obediência), Luiz Raul Machado, Daniel Piza, e pelo próprio Aguiar. O problema com esses ensaios é que parecem ter sido escritos mediante um convite genérico feito separadamente a cada autor, sem obedecer a um plano geral para o livro, o que acaba fazendo com que alguns temas sejam abordados de forma repetitiva, enquanto outros pontos interessantes ficam sem receber atenção.

Góticos, portanto, tem a clara intenção de servir de porta de entrada para os jovens leitores (ou leitoras) do século XXI travarem conhecimento com os grandes nomes da literatura de horror, e isso explica por que a maioria dos autores que nele marcam presença vêm representados por trabalhos que estão entre os mais famosos que produziram - eis o motivo pelo qual muitos dos contos já são conhecidos de quem já acumulou certa experiência no gênero, como este que vos escreve. Conan Doyle, por exemplo, comparece com o delicioso e arrepiante Lote 249, também presente na coletânea Encantamentos; pouca gente sabe, mas Doyle foi o primeiro a usar uma múmia como personagem de horror. De Edgar Allan Poe, temos A Queda da Casa de Usher, clássico absoluto, a "mãe" de todas as histórias de casas assombradas. Infelizmente, esse conto, tal como aparece no livro, constitui mais um desagradável exemplo do grande problema que é a falta de cultura geral para um tradutor de literatura: no rol dos livros que o narrador anônimo lê em companhia de seu amigo em vias de enlouquecer, Roderick Usher, há uma tentativa de informar nas notas de rodapé a tradução dos títulos, que, no original, estão em diversas línguas. O tradutor Domingos Demasi meramente informa ao leitor que títulos como Belphegor e Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae "não têm tradução"... Ora, é claro que Belphegor não terá tradução se a pessoa simplesmente tentar achá-lo num dicionário como se fosse um substantivo comum, mas alguém com um pouco de conhecimento de ocultismo saberia que esse é o nome de um dos demônios favoritos dos satanistas medievais, um demônio identificado com o elemento fogo e que, dos Sete Pecados Capitais, presidia o da preguiça. Já o outro título, em latim, encerra um trocadilho genial e totalmente pertinente com o tema da história: numa tradução literal, significaria a "vigília dos mortos segundo o coro da igreja de Mogúncia" (cidade alemã que em latim é Moguntia, em alemão Mainz); só que vigiliae mortuorum pode tanto ter o inocente significado de uma vigília de oração na intenção das almas dos mortos, quanto pode querer dizer algo parecido com "despertar os mortos"... É um desperdício privar o leitor dessa sacada magistral de Poe. A impressão que dá é de que o senhor tradutor conclui que uma coisa "não tem tradução" quando ela não se enquadra em sua experiência anterior e tampouco é resolvida pelo Google Translator.

Bram Stoker é representado por O Hóspede de Drácula, história curta que é quase presença obrigatória em antologias de contos vampirescos, e também uma boa pedida para coletâneas voltadas para o sobrenatural em geral, como esta. Esse conto, a propósito, até hoje gera controvérsia entre fãs e estudiosos da obra de Bram Stoker: enquanto uns o consideram um trecho excluído de Drácula, outros creem que foi concebido desde o início como um conto independente, embora ambientado no mesmo universo. Luiz Antônio Aguiar expõe a interessante hipótese de que o texto teria sido escrito para ser o capítulo inicial do romance, mas que Stoker o cortou ao perceber que havia ido muito fundo, logo de cara, no clima sobrenatural: o autor acabou preferindo que a imersão do leitor no ambiente tenebroso da história fosse gradual, efeito que conseguiu ao dar aos primeiros capítulos da versão definitiva uma aparência de normalidade que ia aos poucos sendo modificada por meio de sugestões sombrias. O leitor atento notará que a frase que Jonathan Harker (pois está na cara que é ele o viajante inglês sem nome que protagoniza o conto) encontra gravada num túmulo ("Os mortos viajam depressa"), e que não aparece no romance, foi resgatada por Francis Ford Coppola em seu filme Bram Stoker's Dracula (1992), bem como alguns outros detalhes do conto. É pena que Aguiar prejudique a boa impressão que seu posfácio à história de Stoker causa ao leitor, ao cometer um dos erros mais vergonha-alheia que me lembro de já ter encontrado impressos em livro: "...vemos Jonathan chegando ao castelo do conde-vampiro, na Pensilvânia". Transilvânia, Aguiar, Transilvânia, que fica na Romênia, pelo amor de Deus! O estado norte-americano da Pensilvânia nada tem a ver com isso; até onde sabemos, Drácula nunca pôs o pé lá.

E, como é de vampiros que estamos falando, não posso deixar de dizer algumas palavras sobre John William Polidori, perfeito exemplo de um talento promissor que foi perdido sem produzir aqueles que poderiam ter sido seus melhores frutos, e hoje lembrado principalmente pelo fato de sua biografia estar estreitamente entrelaçada com as de mais de um nome essencial da literatura gótica. Nascido em Londres em 1795, filho de mãe inglesa e pai italiano, foi amigo e médico pessoal do aristocrata e poeta, barão George Gordon Byron, que passaria à posteridade simplesmente como Lord Byron e foi, poder-se-ia dizer, uma das primeiras "celebridades" da História, no sentido que damos hoje a essa palavra. Ocorreu que, durante o verão de 1816, Polidori encontrava-se numa casa de campo às margens do lago Genebra, na Suíça, em companhia de Byron, de seu amigo e também poeta Percy Bysshe Shelley, e da jovem esposa deste, Mary, quando, depois de terem lido diversas histórias de fantasmas uns para os outros, o anfitrião propôs que cada um do quarteto escrevesse também uma; essas histórias depois seriam lidas pelo grupo, e escolheriam a melhor. Byron e Shelley nunca terminaram as histórias que começaram com vistas a esse desafio, mas Polidori escreveu The Vampyre, que muitas fontes apontam como a primeira história de vampiro publicada em língua inglesa, enquanto Mary Shelley produziu um conto ao qual chamou O Moderno Prometeu, que mais tarde desenvolveria sob a forma do romance Frankenstein, hoje uma obra essencial tanto para a literatura de horror quanto para a de ficção científica.

(Julgo necessário fazer um parêntese para esclarecer aos não iniciados em mitologia que o Prometeu do título nada tem a ver com o verbo "prometer"; refere-se ao titã Prometeu, que, no mito grego, roubou dos deuses o segredo do fogo para dá-lo aos homens, o que arrancou estes últimos da animalidade e tornou possível o surgimento da civilização. Como castigo, Zeus acorrentou Prometeu ao topo de uma montanha, onde diariamente um gigantesco abutre ia devorar-lhe o fígado, que crescia novamente durante a noite, de modo que seu tormento jamais tivesse fim - mas teve, séculos mais tarde, quando o herói Hércules subiu a montanha, matou o abutre e libertou Prometeu. O que nos interessa diretamente aqui, porém, é notar o paralelo que Mary Shelley traça entre o titã e seu herói Victor Frankenstein: ambos metem-se com segredos que não deveriam conhecer e pagam o preço de sua ousadia. Um ponto de vista tipicamente romântico - pois o gótico, é bom não esquecermos, nada mais foi do que uma ramificação do movimento artístico designado genericamente como Romantismo. Aliás, embora isso seja uma definição um tanto simplista, pode-se dizer que o gótico caracterizava-se precisamente por levar aos extremos certos elementos que outras correntes românticas cultivavam de forma mais moderada.)

Voltando a falar de Polidori, ele só publicou uma outra obra digna de nota, um poema intitulado The Fall of the Angels, com claras influências de Byron, em 1821. Morreu nesse mesmo ano, sem ter completado 26 anos. Nas páginas de Góticos, podemos ter o prazer de ler The Vampyre, conto que, mesmo com muitas marcas do amadorismo de seu autor (que, embora já então formado em medicina, tinha meros 20 anos quando o escreveu), demonstra um inegável dom para criar a atmosfera tenebrosa necessária ao bom horror gótico, e dá uma ideia do formidável escritor que Polidori poderia ter-se tornado, caso vivesse o suficiente. É interessante notar que o vampiro dessa história não mora em nenhum castelo isolado - em vez disso, transita livremente pela alta sociedade inglesa - e não se alimenta apenas de sangue, mas também de atos perversos em geral, comprazendo-se em espalhar ruína, degradação e morte por onde passa.

Também no terreno do vampirismo, embora de maneira mais lírica, situa-se o conto A Amante Morta, de Théopile Gautier, que aparece em outras coletâneas como A Morte Amorosa, A Morta Apaixonada, entre outros títulos, todos com alguma sutil diferença em relação uns aos outros. Nele, um jovem padre se vê desviado, ainda que apenas na esfera dos sonhos e pensamentos (ou assim ele acredita) de sua vocação virtuosa ao apaixonar-se pela misteriosa Clarimonde, a mais bela das mulheres, cujo único defeito, aparentemente, é o de não pertencer ao mundo dos vivos.

Um autor essencial para a literatura vampiresca, mas que, no conto aqui presente, decidiu seguir outro rumo, é o irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, cujo Carmilla (1872) plasmou várias das características que hoje associamos automaticamente aos vampiros, além de ter sido, juntamente com o já citado The Vampyre de John Polidori, a mais direta influência para que o igualmente irlandês Bram Stoker - contemporâneo, conhecido e admirador de Le Fanu - viesse a dar à luz (ou às trevas?) o mais famoso livro de vampiros de todos os tempos, cujo título acho desnecessário repetir. Le Fanu deve ter causado certa comoção, em sua época, ao descrever em Carmilla a paixão sentimental e erótica entre uma bela vampira e sua igualmente bela vítima - do sexo feminino. Aqui em Góticos, entretanto, o que o organizador nos oferece é um conto curto no qual Le Fanu preferiu ousar menos: Dickon, o Diabo, é uma história de fantasmas tradicional, sem nada de muito surpreendente, mas, ainda assim, de uma tremenda força ao descrever a aparição do falecido senhor de uma antiga mansão campestre, com uma sutileza que arrepia muito mais que o horror escancarado de grande parte da ficção espectral moderna, seja literária ou cinematográfica.

Retornando por um instante a Mary Shelley, em Góticos tive uma agradável surpresa ao ler um conto seu que não conhecia, Transformação, que apresenta um protagonista totalmente típico do Romantismo - um jovem fidalgo impetuoso, de espírito rebelde (está bem, vá: um playboy renascentista desmiolado), que dilapida a fortuna da família numa vida boêmia e, com isso, arruína suas chances de desposar a jovem que ama. Para não fugir a nenhum chavão romântico, esse personagem é italiano de Gênova e chama-se Guido. O tempero macabro nesse até aí manjadíssimo plot surge quando ele encontra um anão demoníaco e decide aceitar sua proposta para uma troca temporária de corpos, acreditando que isso lhe dará os meios de consertar as bobagens que fez... Não é preciso dizer que as coisas não serão tão fáceis.

Góticos pode ser recomendado sem medo (ou com ele...), já que cumpre bem aquilo a que se propõe, tendo a vantagem de juntar num só lugar um expressivo punhado dos autores e obras mais indispensáveis a quem pretende começar a se arriscar em meio às trevas da melhor ficção de horror. Como, além da qualidade de seus textos, é uma edição de baixo custo, tem tudo para alcançar boas vendagens, e não seria má ideia se isso encorajasse seu coordenador e seus editores a organizar novos volumes: o lançamento de Góticos II, III e assim por diante não seria nenhum exagero, pois ainda há uma enormidade de excelentes textos e autores do mesmo gênero merecendo tornar-se acessíveis a um maior número de leitores. Tendo apenas o cuidado de corrigir as pequenas falhas citadas acima, Luiz Antônio Aguiar ainda poderá nos guiar através de muitas horas e páginas cheias dos mais deliciosos calafrios.

quinta-feira, março 03, 2011

A Ilha do Dr. Moreau

Passei os últimos quatro meses lendo a série O Imperador e escrevendo sobre ela, o que é suficiente para me deixar farto da temática romana durante umas... 24 horas, talvez. Entretanto, como alguma variedade é saudável, e o mundo está cheio de assuntos interessantes, decidi comentar este livro, que comecei a reler numa decisão repentina ao acidentalmente bater o olho nele na minha estante.

Li pela primeira vez A Ilha do Dr. Moreau na pré-adolescência, talvez com uns 12 anos de idade, quando estava começando a prestar atenção aos nomes dos autores dos livros que lia (vocês se surpreenderiam com o número de livros que li na infância e adoraria reencontrar hoje, mas não tenho como procurá-los porque o Marcos garoto simplesmente não se preocupava com quem era o autor). Meus irmãos andavam comentando entusiasmados o livro O Homem Invisível - que, por algum capricho do destino, não li até hoje! - e, quando topei na biblioteca com outro livro do mesmo autor, decidi conferir. Não era a mesma edição do exemplar que tenho hoje, esse comprei num sebo anos depois: se não me engano, a edição que li primeiro tinha tradução de ninguém menos que Monteiro Lobato. Foi meu primeiro contato com a obra de Herbert George Wells (1866-1946).

Esse autor britânico, como vim a saber, divide com o francês Júlio Verne o mérito do pioneirismo no gênero que mais tarde ganharia o nome de ficção científica. Verne e Wells não foram realmente os primeiros a escrever coisas do tipo (o famosíssimo Frankenstein, de Mary W. Shelley, em tudo e por tudo uma história de ficção científica, é de 1817), mas foram os primeiros escritores que se dedicaram de forma consistente ao gênero e conquistaram para ele um público fiel. Suas semelhanças, porém, terminam aí, pois os dois tinham estilos muito diferentes. As obras de Verne costumam ser mais leves, com um sentido de aventura e descoberta que as torna atraentes tanto para o leitor adolescente quanto para o adulto, além de, não raro, terem um toque de humor (Da Terra à Lua tem trechos realmente hilários!). Ao mesmo tempo, Verne revelava uma preocupação maior com o aspecto "técnico" do que escrevia, procurava fornecer explicações plausíveis para a forma como as coisas de que falava eram ou viriam a ser possíveis. Wells, por sua vez, visava claramente um público mais maduro, e pensava mais no lado humano das situações. Para ele, não importava tanto como um homem pode ficar invisível ou qual a tecnologia usada pelos marcianos nas naves com que invadiram a Terra: interessava-lhe muito mais saber quais seriam as consequências disso tudo para a cultura e a sociedade.

A Ilha do Dr. Moreau, de 1896, ocupa um lugar à parte na obra de H.G. Wells. Mencionei há pouco o Frankenstein como sendo obra de ficção científica, e não há dúvida de que o é, embora seja lembrado com muito mais frequência como um clássico da literatura de terror. O fato é que o danado do livro pertence a ambos os gêneros, e A Ilha... também não está muito longe disso. Ao mesmo tempo em que levanta questões importantes sobre ciência e a ética dos cientistas, o livro está recheado de passagens sombrias e tensas, onde o horror ora é sutil, alimentado pela sensação indefinida de realidades desconhecidas e possivelmente hostis, ora explícito, por meio de presenças bizarras e assustadoras.

O livro trata das aventuras de um inglês do século XIX, Edward Prendick, que, após sobreviver a um naufrágio e penar miseravelmente durante dias num escaler à deriva no sul do Pacífico, acaba sendo resgatado por uma escuna que leva a bordo um sujeito misterioso de nome Montgomery, que diz viver numa pequena ilha sem nome, onde a embarcação o deixará antes de seguir para seu destino. Nos arredores da ilha, como o capitão bêbado e rabugento recusa-se a levar Prendick mais adiante, ele acaba sendo obrigado a desembarcar, e se vê jogado num pequeno mundo habitado apenas por Montgomery, por um velho cientista a quem ele parece servir de assistente, e por um grupo de homens de aparência estranha, parecendo fisicamente mal acabados, com inteligência subumana e certos inconfundíveis traços animais na fisionomia e no comportamento.

O nome do velho cientista, Moreau, não é estranho a Prendick, que acaba por se lembrar de onde o ouviu: Moreau foi em tempos um médico eminente na Inglaterra, famoso tanto por seu conhecimento quanto pelas ideias pouco ortodoxas e pela crença de que, em prol da ciência, os fins justificam quaisquer meios. Juntando as terríveis histórias que ouviu quando garoto com as coisas que vê na ilha, Prendick chega à horrenda conclusão de que os seres disformes que perambulam por ela já foram homens, ficando reduzidos àquela condição degradante como resultado de algum tipo de atroz experimento levado a cabo pelo médico ensandecido. Dou uma pista: as coisas não são como Prendick pensa - e mais que isso não digo, pois seria estragar o arrepiante mistério que serve de fio condutor à história.

Entre outras influências oriundas de sua sólida formação científica, H.G. Wells pautava suas ideias na teoria da evolução de Darwin, e, dessa forma, sua mente especulativa inevitavelmente levantaria a questão de em que momento o homem separou-se dos animais, e se a linha que os distingue é mesmo tão nítida quanto geralmente se acredita. Que diferença haveria entre um animal humanizado e um homem animalizado? Até onde é preciso ir para que o ser humano reverta à selvageria, que, afinal de contas, é seu estado natural? A Ilha... é também mais um exemplo do gosto de Wells por pequenos universos fechados utilizados como alegoria para a sociedade humana como um todo: em seu conto Em Terra de Cego, o vale isolado nos Andes, habitado apenas por cegos, é uma metáfora dos absurdos a que pode levar a construção do conhecimento por meio de uma filosofia materialista que não aceita a possibilidade de realidades fora do alcance dos sentidos físicos e da experiência direta; em A Ilha do Dr. Moreau, o comportamento por vezes insano dos habitantes da ilha é uma crítica aos dogmas religiosos e às convenções sociais - mas, paradoxalmente, a conclusão à qual a história leva é a de que, com os defeitos que possam ter, esses dogmas e convenções são indispensáveis para que a civilização seja viável.

Em tempo: sei da existência de três versões filmadas de A Ilha do Dr. Moreau. Nunca vi a mais antiga, de 1932, mas, pelo que pude descobrir sobre ela na internet, não deve ser grande coisa: o maior destaque parece ser uma sexy (para os padrões da época) "mulher-pantera", enxertada no roteiro para tentar aumentar a bilheteria. Os dois filmes mais recentes eu vi, e tudo o que posso dizer é que é difícil escolher qual o pior, se o de 1977, com Burt Lancaster, ou o de 1996, com Marlon Brando e Val Kilmer. Ambos jogaram fora a tensão e as ideias perturbadoras do livro em prol de cenas ordinárias de ação e de um horror canhestro que lembra aqueles filmes pastelão sobre lobisomens, mas sem a veia de humor autogozador que torna esses filmes divertidos. Num deles, os temores de Prendick (ou como quer que tenham rebatizado o personagem) se concretizam e o Dr. Moreau realmente tenta usá-lo como cobaia em suas experiências - coisa que o Moreau do livro jamais faria. Resumindo: 115 anos depois de sua publicação, uma das melhores obras do mestre H.G. Wells ainda está à espera de uma adaptação cinematográfica decente. Deixem o DVD desligado e leiam o livro.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Eu, Robô

Isaac Asimov nasceu em Petrovich, na então União Soviética, em 02 de janeiro de 1920, e faleceu em Nova York, onde morava, em 06 de abril de 1992. Entre uma coisa e outra, teve tempo de ser um dos mais prolíficos e admirados escritores norte-americanos do século XX (pois, apesar de nascido na Rússia, mudou-se com a família para os Estados Unidos aos três anos de idade, e sempre se considerou um cidadão americano). Desde pequeno foi um leitor voraz, e, graças à leitura das revistas de ficção científica mais populares da época, desenvolveu também o entusiasmo pela ciência. Formou-se em Bioquímica na Universidade de Columbia, onde mais tarde também lecionou. Porém, fizesse o que fizesse, nunca deixou de escrever.

Tenho uma longa história com o livro Eu, Robô. Li pela primeira vez aos 12 anos, e ele foi um dos grandes responsáveis por me tornar um fã de ficção científica, o que fui durante muitos anos - e ainda sou, embora hoje em dia tenha tantos outros interesses no campo da leitura, que tornou-se um tanto raro pegar um livro do gênero. O livro reúne nove contos - nove exemplos do que de melhor se produziu em matéria de ficção robótica durante a assim chamada "era de ouro da ficção científica", que foi do fim dos anos 30 ao fim dos 40, aproximadamente - escritos quando Asimov tinha de 19 a 30 anos, e publicados ao longo desse período em diversas revistas. Em 1950, o autor selecionou exatamente esses nove (dentre a enormidade de coisas que havia escrito desde 1939) para integrarem este livro, que viria a ser uma das "bíblias" do gênero.

O livro começa em 2057, quando a famosa robopsicóloga (sim, isso mesmo: psicóloga de robôs) Susan Calvin, uma das figuras mais importantes da gigante US Robôs e Homens Mecânicos S.A., está para se aposentar, e um repórter é incumbido de entrevistá-la. Essa conversa acaba não sendo apenas sobre a vida da Dra. Calvin, mas sobre a história da US Robôs e, por conseqüência, também sobre a evolução dos robôs positrônicos, sem os quais já não é possível imaginar a sociedade naqueles tempos. Os nove contos originais são inseridos na conversa entre a cientista e o repórter, como sendo lembranças de histórias de que ela participou, que testemunhou ou ouviu contar durante mais de 50 anos de vida dedicados ao trabalho com os robôs.

Para nove histórias que foram escritas independentemente umas das outras, é impressionante como os contos ilustram bem a crescente importância que os robôs assumem ao longo da primeira metade do século XXI (não esqueçam, essas histórias foram escritas quando o século XXI era um futuro relativamente distante). O primeiro conto, Robbie, passa-se ainda no século XX, para ser mais exato em 1998, e trata da amizade entre Gloria, uma menina de oito anos, e um robô programado para ser sua ama-seca (!). Detalhe: Robbie é mudo, pois foi construído antes da invenção dos sintetizadores de voz que depois equipariam robôs mais avançados, mas isso não o impede de comunicar-se com sua pequena dona. Mas talvez o ponto mais importante do conto seja a abordagem da tecnofobia, que iria se manifestando com cada vez mais força à medida em que os robôs se tornassem mais sofisticados. Embora Robbie seja um modelo relativamente rudimentar, causa desconfiança à mãe de Gloria, que não gosta da ideia de sua filha ser "criada por uma máquina" e empenha-se ferozmente em separar os dois amigos.

A tecnofobia, aliás, tem a ver com uma das principais razões que fizeram as histórias de robôs de Asimov serem consideradas revolucionárias, apesar de tantos autores de ficção científica antes dele já terem escrito sobre o assunto. Ele foi o grande responsável por eliminar (ou, ao menos, suavizar) o "complexo de Frankenstein", que era o ponto de vista predominante até então: a idéia de que, se o homem criasse uma máquina tão ou mais inteligente que ele próprio, essa máquina fatalmente destruiria seu criador. Vale lembrar que Frankenstein, de Mary Shelley, escrito em 1818, é considerado uma das primeiras obras de ficção científica, apesar de seu ponto de vista ainda ser típico do Romantismo (refiro-me ao movimento artístico) vigente na época: "Há coisas que o homem não deve descobrir!"

Asimov mudou isso ao criar as Três Leis da Robótica, que são enunciadas pela primeira vez no segundo conto de Eu, Robô (que, por falar nisso, é também onde foi inventada a palavra "robótica"). O conto é Brincadeira de Pegar, e, nele, os engenheiros da US Robôs Gregory Powell e Michael Donovan estão em sérios apuros, em pleno planeta Mercúrio, com sua sobrevivência dependendo de um robô que aparentemente enlouquece de uma hora para outra. Para descobrir o porquê do estranho comportamento da máquina, os dois homens precisam raciocinar tendo como base as Três Leis, que são:

1. Um robô não pode fazer mal a um ser humano, ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer tipo de mal.
2. Um robô deve obedecer às ordens recebidas de seres humanos, exceto quando tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.
3. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que, fazendo isso, não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Leis.

A idéia é que tais leis fossem o "princípio zero" no cérebro dos robôs, de tal forma que nenhum "bug" (como diríamos hoje) seja capaz de interferir nelas: qualquer robô simplesmente pararia de funcionar muito antes de se tornar capaz de desobedecer a essas leis.

Ao longo dos contos seguintes, somos confrontados com uma série de situações desafiadoras envolvendo robôs de diversos tipos, sempre tendo como eixo as Três Leis e as possíveis implicações e problemas do seu cumprimento. O que a inflexível lógica binária dos robôs interpretaria como "fazer mal"?... Mesmo que um robô se julgue superior aos seres humanos (e, sob muitos aspectos, sem dúvida ele o é), continua a ter a obrigação de obedecer a tais criaturas patéticas?...

Os dois últimos contos são os de maior alcance e implicações mais profundas. Em Prova, um certo Stephen Byerley, candidato a prefeito de Nova York, é suspeito de ser na verdade um robô de aparência humanóide. A Dra. Susan Calvin, que nesse conto participa diretamente da ação, declara que o teste para saber a verdade é um só, mas não é conclusivo: se Byerley transgredir as Três Leis, então ele é humano - mas, se ele as respeitar, isso não prova coisa alguma! No último conto, O Conflito Evitável, Byerley já é Coordenador Mundial, numa época em que a maior parte das funções de governo são desempenhadas por supercomputadores, que, por também serem robôs de certo tipo, operam subordinados às Três Leis, o que faz deles governantes muito mais confiáveis que a maioria dos políticos que conhecemos. Quantos líderes, ao longo da História, se lembraram que seu verdadeiro papel devia ser o de servir àqueles a quem governavam?... Nesse conto, escrito às vésperas da década de 50 - o período mais tenso da Guerra Fria -, Asimov aposta em que os robôs, com sua inteligência artificial, poderiam um dia evitar que nós, seres humanos, nos autodestruíssemos com nossa burrice natural.

Deixo a conclusão para a própria Dra. Calvin: "E isto é tudo. Vi tudo desde o começo, quando os pobres robôs não podiam falar, até o fim, quando servem como baluartes, postados entre a humanidade e a destruição. Nada mais tenho a ver. Minha vida terminou. Cabe a vocês ver o que virá no futuro."

Uma nota final: por muito tempo me neguei a ver o filme Eu, Robô, de 2004, estrelado por aquela mistura de cantor de rap, comediante e ator de ação que atende pelo nome de Will Smith, por receio de ficar excessivamente enfurecido no caso de os enredos profundamente cerebrais bolados por Asimov terem sido transformados num pastiche propício para Smith protagonizar cenas de ação ensandecida e soltar suas piadinhas sem graça, mas, recentemente, quando o filme passou na TV, resolvi encarar, e, para minha surpresa, ele não é um desastre total. Certo, Susan Calvin aparece totalmente descaracterizada, e Asimov JAMAIS criaria um herói como o interpretado por Smith, mas o enredo geral, baseado no conto Pobre Robô Perdido, que também está em Eu, Robô, manteve o elemento de mistério do original - Asimov também escreveu histórias policiais, e, dentro de sua produção de ficção científica, esse é provavelmente o conto mais "policial". Não terá sido por outro motivo que foi escolhido para basear o filme.