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sexta-feira, março 30, 2012

Jogos Vorazes

Mais uma vez, muita gente vai torcer o nariz para uma coisa legal só porque ela está bombando na mídia – fala-se de Jogos Vorazes como uma "nova grande franquia", no rastro de Harry Potter ou Crepúsculo, o que significa que a indústria cultural está contando com ele para faturar os tubos, não só com livros e filmes, mas com todo tipo de memorabilia imaginável e com uma fornada de imitações mais ou menos óbvias, e isso será suficiente para que muitos nem sequer levem a sério a possibilidade de lê-lo. Como continuo acreditando que nenhum "dogma" deve ser colocado acima do julgamento individual, pus os preconceitos de lado e li.

E, vejam só, o que concluí foi que, se Jogos Vorazes vier mesmo a se tornar uma febre como aqueles outros, será preciso reconhecer que a autora Suzanne Collins visou – e acertou – um alvo bastante diferente do de suas antecessoras. Harry Potter, embora, em seus volumes finais, tenha-se permitido lidar com climas pesados e tratar de questões bastante sérias, começou de uma maneira leve, quase infantil mesmo – como escrevi em outro post, J. K. Rowling apostou em que uma geração de leitores amadureceria junto com o herói. Crepúsculo, por sua vez, é uma releitura romantizada dos vampiros do folclore e da literatura gótica. Nada disso se aplica a Jogos Vorazes. Há romance, sim, mas ele não é a mola propulsora da história. Trata-se de um universo bem mais sombrio e de um enredo bem mais cru e brutal que o de qualquer "grande franquia" que tenhamos visto recentemente. Uma aposta num público diferente?

Estamos alguns séculos no futuro. No local onde antes existiam os Estados Unidos da América, há agora um país chamado Panem, governado pelo Capitólio (no original, "the Capitol", que na tradução virou "a Capital"... Tradutores sem cultura me tiram do sério) e formado por doze distritos designados simplesmente por números. Os cidadãos do Capitólio vivem uma vida despreocupada e de abundância material, enquanto os habitantes dos distritos trabalham duramente para garantir a sobrevivência – uma sobrevivência bem mais magra e penosa em alguns deles do que em outros: aparentemente, os distritos são numerados de acordo com uma ordem, dos mais ricos para os mais pobres. Cada distrito exerce uma atividade principal: agricultura, pesca, mineração e assim por diante. Sabe-se que, décadas antes do início da história, houve uma guerra na qual os distritos, que então eram em número de 13, tentaram libertar-se do domínio do Capitólio. Doze deles foram subjugados, e o último, destruído por completo. A partir daí, o Capitólio promove anualmente os Jogos Vorazes – um evento para o qual cada distrito é obrigado a enviar um casal de jovens, de 12 a 18 anos, que serão colocados em uma imensa arena a céu aberto, onde lutarão entre si até que apenas um reste vivo. Esse retorna rico e famoso ao seu distrito, para servir (conforme a propaganda oficial) como uma "lembrança da benevolência e generosidade" do Capitólio. Detalhe: a competição, ou antes, a carnificina, é transmitida ao vivo, em rede nacional, pela televisão. Esses jovens recebem o nome de "tributos". Enquanto, na maioria dos distritos, é necessário um sorteio geral entre toda a população capaz dentro da faixa etária visada, nos distritos mais ricos, notoriamente no 1 e 2, existem os assim chamados "carreiristas", que são treinados intensivamente durante anos e, ao completarem 18, oferecem-se como voluntários. Desnecessário dizer que são quase sempre esses que vencem.

A heroína narradora é Katniss Everdeen, uma garota de 16 anos que vive no Distrito 12, onde a atividade econômica predominante é a extração de carvão. O pai de Katniss morreu cinco anos antes, numa explosão na mina onde trabalhava; a mãe caiu numa espécie de estupor causado pela depressão, ficando durante meses sem falar ou fazer coisa alguma, o que forçou Katniss, então com onze anos de idade, a, nas suas próprias palavras, assumir a liderança da família, tendo que, de algum modo, garantir sua própria sobrevivência, a da mãe e a da irmã, Prim, de sete anos. Felizmente, o Sr. Everdeen não era apenas um mineiro, mas também um homem que sabia como mover-se numa floresta, caçar e coletar plantas comestíveis ou medicinais, e, antes de morrer, teve tempo de ensinar um pouco disso à filha mais velha. Daí em diante, Katniss passa a maior parte do tempo perambulando pela região selvagem que fica além da cerca de seu distrito, seu arco garantindo carne para a mesa de sua família e para ser trocada pelas outras coisas de que precisam. Ter sido obrigada a arcar com tanta responsabilidade cedo demais fez de Katniss uma jovem aparentemente fria e dura, acostumada a reprimir as emoções. Só Prim e, em bem menor grau, o amigo e companheiro de caçada, Gale, conseguem, uma ou outra vez, fazer com que sorria ou demonstre algum débil traço de capacidade de interação afetiva.

É nesse pé que as coisas estão quando chega o dia da "Colheita" – o sorteio dos participantes – destinada à septuagésima quarta edição dos Jogos. Pela primeira vez, não só o nome de Katniss estará na urna, mas também o de Prim, que completou 12 anos desde a edição anterior. Como crianças dessa idade não têm, na prática, a menor chance contra competidores mais velhos, muito mais fortes e hábeis, a organização dos Jogos criou uma maneira de reduzir as chances de que sejam sorteadas: as inscrições são cumulativas, quer dizer, os de 12 anos têm seus nomes inscritos apenas uma vez, os de 13, duas, os de 14, três, e assim por diante até os 18. Além disso, há um sistema de distribuição de tésseras (um sinônimo arcaico para senhas) que dão direito a pequenas rações de grãos, mas, em troca de cada uma, o jovem ou a jovem tem seu nome inscrito uma vez a mais. Embora ela própria já tenha pego muitas tésseras para afastar de casa o fantasma da fome enquanto ainda não sabia caçar muito bem, Katniss jamais permitiria que Prim fizesse o mesmo. Porém, mesmo todas as probabilidades estando contra, Prim é sorteada logo em sua primeira vez, e Katniss, sabendo que a irmã estaria indo para uma morte certa, apresenta-se como voluntária no lugar dela.

(Parêntese: lendo a narrativa a respeito da Colheita, é impossível não lembrar de outro sorteio muito parecido, o que era realizado entre os jovens de Atenas para selecionar os que seriam levados a Creta para serem devorados pelo Minotauro. Collins ganhou alguns pontos comigo com essa citação clássica indireta.)

O outro tributo do ano é Peeta (uma variação futurista de Peter?) Mellark, filho do padeiro da cidade. Como Katniss observa, a boa alimentação e o trabalho constante sovando massa e carregando pesados sacos de farinha fizeram dele um rapaz forte e bem constituído, aparentemente capaz de ter alguma chance nos Jogos. O que ela não esperava era que, além disso, Peeta também se mostrasse um ator nato, capaz de tornar impossível saber quando está ou não mostrando seus verdadeiros sentimentos, seja ao dizer-se apaixonado por ela ou ao blefar na arena. Enfim, esse sujeito se daria bem nos revoltantes reality shows do século XXI. E, de qualquer forma, com ou sem paixão, há um fato implacável pairando sobre suas cabeças: só um pode sair vivo da arena. Na improvável hipótese de os outros 22 tributos morrerem e só os dois restarem, um será obrigado a matar o outro.

Mencionar os reality shows leva-me a outro ponto: eles são sem dúvida um dos muitos elementos aos quais Collins está fazendo referência em sua obra. Uma referência, por sinal, nada lisonjeira – e, vamos ser francos, eles não merecem outra coisa. Antes de os Jogos terem início, os tributos recebem um "polimento" nas mãos de estilistas, são entrevistados na TV, apresentados ao público e tudo o mais, e precisam angariar simpatias, pois isso pode significar a diferença entre a vida e a morte na arena: os Jogos Vorazes dependem de patrocinadores, que, mediante o pagamento de quantias obscenas, podem mandar algum tipo de ajuda para seus tributos favoritos, sob a forma de alimento, remédios ou outros itens vitais durante a competição. Naturalmente, os tributos mais populares têm mais chances de receber esses donativos. E, para ganhar popularidade, o que acontece, tanto nos Jogos Vorazes quanto nos Big Brothers da vida, é que as pessoas fingem ser o que não são. Embora a palavra realidade faça parte do próprio nome desse tipo de programa, tudo parece ser uma grande armação. Nos realities reais (dãã...), os participantes são, via de regra, pessoas tão rasas, vulgares e sem qualquer traço distintivo marcante, que a produção e os apresentadores procuram grudar um rótulo berrante em cada um para que o público consiga, pelo menos, distinguir um do outro: este é o palhaço, aquele é o atleta, aquele outro é o maquiavélico, e assim por diante. Romances de ocasião também ajudam. Da mesma forma, Peeta e seu mentor, Haymitch (mentor é uma pessoa que já venceu os Jogos uma vez e agora auxilia e orienta os atuais tributos) arquitetam cuidadosamente, juntos, o romance dele com Katniss, a fim de vender a imagem dos dois como os "amantes desafortunados do Distrito 12", o que faz com que sobressaiam e atraiam a atenção do público sedento de emoção – só que Peeta, o cara enigmático, mantém tanto Katniss quanto o leitor em suspense sobre se isso tudo é teatro ou se ele realmente gosta dela. Também é fato que, tanto nos realities quanto nos Jogos Vorazes, forjam-se alianças que são necessariamente temporárias, pois, caso um grupo de aliados derrote seus adversários, não restará outra alternativa a não ser apunhalarem-se uns aos outros logo depois. A única diferença é que, na arena de Panem, o apunhalamento é literal.

Registre-se também que, como não podia deixar de ser em se tratando de uma história sobre pessoas que lutam até a morte para a diversão de outras, há citações bastante claras aos combates de gladiadores da Roma antiga, o que aparece até mesmo no fato de muitos dos habitantes do Capitólio terem nomes romanos: Caesar, Claudius, Portia, Cinna... Capitólio, aliás, embora o tradutor Alexandre D'Elia, pelo visto, não saiba disso, era o nome de uma das sete colinas de Roma, onde ficava o templo de Júpiter Capitolino, protetor da cidade. Séculos mais tarde, o nome foi dado ao prédio do centro legislativo dos Estados Unidos, em Washington. A qual dos Capitólios estaria Collins fazendo alusão? Acho que a ambos. O próprio nome do país onde tudo acontece também não foi escolhido gratuitamente. Panem é pão em latim, e faz parte de uma das mais célebres expressões proverbiais da História: Panem et circenses, ou seja, 'pão e atrações de circo', significando que, enquanto o povo tiver a barriga cheia e alguma distração que não demande muito cérebro, ele não causará problemas aos poderosos, façam estes o que fizerem. Tudo a ver com Jogos Vorazes e, infelizmente, também com a nossa realidade.

Certo, não há nada de radicalmente inovador na obra de Suzanne Collins: quadros sombrios de civilizações distópicas no futuro existem em quantidade na literatura e no cinema de ficção científica (1984, Blade Runner, O Exterminador do Futuro, e isso mal serve de início se quisermos fazer uma lista), e a ideia de um programa de TV ao vivo com pessoas lutando e matando-se já aparecia num filme de 1987, The Running Man, exibido no Brasil como O Sobrevivente, com Arnold Schwarzenegger, que, por sua vez, era livremente inspirado (e bota livremente nisso...) num romance de Stephen King publicado em 1982, mas não dá para tirar o mérito da autora se ela soube recombinar esses elementos e criar algo tão capaz de prender a atenção quanto Jogos Vorazes, que, de quebra, ainda vale por uma intencional e louvável cuspida na cara de certos setores da indústria do entretenimento em nossos dias. As sequências, Em Chamas e A Esperança, estão desde já na minha lista de leitura.

quinta-feira, outubro 12, 2006

1984

Desejo, ao iniciar esta postagem, agradecer ao Prof. Luís Augusto Fischer por ter gentilmente autorizado a utilização do texto abaixo. Eu pensava há algum tempo em escrever um post para este blog enfocando 1984, de George Orwell, livro extremamente importante por uma série de razões. Entretanto, no último domingo, dia 08/10, ao ler o jornal Vale do Sinos, aqui da minha cidade (São Leopoldo/RS), topei com este magnífico artigo, de autoria do Prof. Fischer. Como, depois de lê-lo, nada que eu pudesse escrever sobre o mesmo assunto me pareceria bom o bastante, enviei um e-mail ao autor solicitando permissão para reproduzir o texto. Numa postagem separada, sob o título O "meu" 1984, incluí alguns comentários adicionais de minha própria autoria.




Um livro profético

Por Luís Augusto Fischer

Reli agora, adulto, um livro que não é tão bom quanto poderia, mas que mantém grande interesse para nossos dias. É o famoso 1984, de George Orwell (com tradução recente pela editora Nacional). Trata-se de uma fantasia medonha, uma utopia negativa (ou uma distopia, como alguns preferem chamar): lançado em 1949 e escrito no ano anterior, 1984 relata a história de um sujeito chamado Winston Smith, que vive em Londres num sombrio futuro (que para nós é passado, mas isso é apenas um detalhe): o mundo todo é atravessado por guerras infinitas e está dividido em três grandes blocos.

Winston vive numa cidade ocupada por cartazes gigantes do Grande Irmão – se o leitor não sabe, foi daqui, deste livro, precisamente, que nasceu a imagem do Big Brother, este ser onipresente, que para Orwell era uma caricatura do líder soviético Stálin, mas também representava qualquer ditador, muito especialmente Hitler. Big Brother que veio a ser, anos depois, caricaturado pela televisão naquele programa inventado na Holanda e espalhado por todo o mundo, no Brasil pela Globo. No mundo inventado no livro, além da imagem do Irmão que a tudo vê metaforicamente, porque está espalhado por tudo, há coisa pior, uma engenhoca chamada teletela, uma tela de televisão que despeja incessantemente, nas ruas e nos interiores, nos comércios e nas casas, toneladas de informações sempre otimistas sobre os níveis de produção do país, mesma tela que inspeciona a vida de todo mundo, como se fosse uma antecipação perversa das câmeras de vídeo que se multiplicam nas cidades atuais.

Orwell foi profético em vários sentidos, como na teletela. O mundo que o atormentava era o da falta de liberdade, o mundo da sociedade administrada, sem espaço para a criatividade, que nasce do exercício da individualidade, dos sentimentos elevados do ser humano quando vive dignamente. Seu personagem trabalha numa repartição pública que se chama Departamento de Registro; seu trabalho consiste em reescrever antigas notícias de jornal, portanto alterando dados da história, falseando fatos ocorridos, tudo segundo as conveniências do poder, que é absoluto. Se por exemplo algum sujeito, no presente da história, caiu em desgraça por ter desagradado a cúpula do poder, do Partido, os registros históricos que envolviam seu nome serão alterados, de forma que no futuro não será possível ler seu nome, nem saber que ele existiu, que fez alguma coisa, nada.

Escrever para quê?

Winston vive nesse mundo mas com algum desconforto. Não consegue formular uma crítica concatenada contra o poder, contra a opressão, a falta de liberdade, mas apenas sente que o mundo poderia ser diferente. Sabe que houve organização social diferente da que ele vive no presente, mas não consegue dizer como era. Recorda imprecisamente haver coisas como família, liberdade, amor, mas tudo em sua mente é esparso, lacunoso. E é claro que suas lembranças atrapalham sua perfeita inserção naquele mundo, que deseja que os cidadãos sejam uniformemente concordinos, que trabalhem e não pensem.

Em certa altura, ele vai ter um relacionamento com uma jovem, Júlia. Ele tem seus 40, ela vinte e tantos. Ela trabalha em outro setor, o Departamento de Ficção, encarregado de escrever novelas baratas para entreter a camada de baixo da população, os proles – naquele mundo terrível, só existe o Partido, com seus filiados, e os proles. Dentro do Partido, naturalmente, há divisões, entre a cúpula, privilegiada, e a gente mais simples, como é o caso de Winston e Júlia, que são manipulados o tempo todo.

O livro descreve o trabalho de Júlia na invenção de novelas (equivalentes às telenovelas de nosso tempo, em grande parte), que também eram administradas, desde o plano geral feito por gente de cima até os retoques finais. Ela chegara a trabalhar numa subdivisão do departamento, encarregada de escrever pornografia, sempre para entreter os “proles”. De lá saíam títulos como Contos da chibata ou Uma noite num internato de moças. O procedimento, diz Júlia, era simples: eram só seis enredos, que eram misturados e adaptados, mediante um caleidoscópio que recombinava sempre os mesmos elementos. Parecido com nossos dias?

Orwell foi uma figura interessantíssima. Seu nome de batismo era Eric Arthur Blair; nasceu na Índia, onde seus pais, ingleses, trabalhavam, em 1903; estudou na Inglaterra, lugar de excelentes escolas públicas; depois, jovem, foi trabalhar na Birmânia, como policial (é preciso lembrar que a Inglaterra era a cabeça do maior império do mundo, naquela altura, até a Primeira Guerra Mundial); e resolveu escrever profissionalmente na altura dos vinte e poucos anos, quando adotou o pseudônimo, que junta o nome do santo padroeiro de seu país com o nome de um rio. Lutou na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos, porque sempre foi um sujeito de esquerda não autoritária, e sobre essas vivências escreveu excelentes textos, hoje em dia reunidos em edição brasileira chamada Lutando na Espanha (editora Globo); fez carreira como escritor, principalmente de ensaios e reportagens, mas também de ficções, como este 1984. Morreu em 1950, muito jovem ainda, e assustadíssimo com o destino da humanidade, como se pode ver.

Deixei para o fim uma cena que está bem no começo do romance e que me levou a essa evocação: Winston, o desconfortável habitante daquele mundo totalitário, conseguiu comprar um velho caderno de notas e resolve fazer um diário. Há o perigo da teletela, que o vigia também dentro de casa, de tal forma que ele precisa esconder-se numa reentrância da parede, dentro de seu próprio lar, para então ter um mínimo de liberdade - a liberdade de anotar pensamentos, impressões, palpites, lembranças. O primeiro texto que escreve é uma sucessão desordenada de sensações sobre um filme que viu no dia anterior. A letra treme, porque ele não está à vontade; um fluxo de associações lhe passa pela mente, sem que ele consiga ajeitar frase com frase; "de repente, pôs-se a escrever por puro pânico, mal percebendo o que estava registrando", diz o narrador.

Era um texto atropelado, uma desordem sem pontuação adequada, com palavras saindo erradas de sua caneta. Não importa: era um homem exercendo sua sofrida, pequena mas viva liberdade.

O "meu" 1984

Para quem mora na Grande Porto Alegre e mantém contato regular com o ambiente cultural/acadêmico, não há necessidade de apresentar o autor do texto acima; para os demais, aqui vai: Luís Augusto Fischer é professor da UFRGS, autor de diversos livros, e certamente uma das melhores cabeças da região para tudo quanto se refira a língua e literatura. Perdi por pouco a oportunidade de ser seu aluno, quando, em 2004, tendo sido aprovado no vestibular, estava iniciando meu segundo curso de graduação em Letras (bacharelado em tradução), mas fui obrigado a abandoná-lo depois de poucos dias de aulas para pegar o emprego burocrático onde ainda permaneço.

No artigo que acabamos de ler, Fischer nos brinda com uma análise magistral de um livro que sempre mereceu um olhar atento - e, em nossos dias, mais do que nunca. Quando li 1984, o ano que lhe dá o título já tinha passado havia cinco anos, mas, embora eu tivesse, na época, apenas 15, percebi logo que isso não significava, de forma alguma, que o risco de os horrores nele descritos se tornarem realidade tivesse sido afastado.

Aos 15 anos, eu andava mais interessado que nunca em estudos de natureza social e política, e foi isso, em grande parte, o que me levou a procurar esse livro. Mais tarde (lamento dizer), esse interesse diminuiu, creio que pelo fato de tudo à minha volta apontar para a impossibilidade de qualquer mudança real. De qualquer forma, 1984 me abriu os olhos para numerosas questões que ainda me perturbam - como sei que também perturbam a muitos outros.

O fato é que George Orwell, apesar de todo o clima de paranóia (justificada) que permeia seu romance, ficaria de cabelo em pé se pudesse, como Nostradamus, efetivamente ver o futuro e tomar conhecimento de como as coisas são nos dias de hoje. A teletela que ele descreve é aquilo que as pessoas simples do tempo do autor imaginavam que fosse a televisão (na época, uma invenção recente, e que ainda inspirava desconfiança): "eles" nos mostram as imagens que querem que vejamos, mas, ao mesmo tempo, "eles" também nos observam - o tempo todo. Entretanto, assustadora como possa parecer, essa idéia pouco representa se comparada a certas coisas que não são ficção... Hoje em dia, informações a nosso respeito são coletadas a cada passo que damos, e é impossível saber para o que estão sendo usadas. Alguns meses atrás, a revista Superinteressante publicou uma matéria sobre o assunto, que (admito) me preocupou. Imagine: você solicita um cartão numa dessas hipermegalojas de hoje - essas onde se pode comprar de tudo, de rabanetes a aviões. Graças ao cartão, obtém descontos, condições facilitadas de pagamento, e muitas vezes nem precisa mais carregar dinheiro nos bolsos - mas, em contrapartida a essas vantagens, o banco de dados da loja registra tudo o que você compra. Essas informações podem ser vendidas a outras empresas - por exemplo, uma companhia de planos de saúde, que, analisando as suas listas de compras, passa a conhecer seus hábitos alimentares, e, por conseguinte, a ter uma estimativa das chances que você tem de vir a precisar de serviços médicos. Com base nisso, a companhia calcula o preço que você terá que pagar por um plano de saúde!...

Isso é apenas um exemplo das coisas que ocorrem num mundo onde a privacidade, outrora um direito básico de todo cidadão, passou a ser um luxo nem sempre disponível. Também é tristemente irônico que o Grande Irmão - Big Brother - criado por Orwell com o objetivo de alertar a humanidade para o perigo do totalitarismo, tenha-se transformado num ícone da cultura do voyeurismo, ao ter seu nome usado para batizar um programa de TV onde pessoas absolutamente vulgares e sem conteúdo expõem sem o menor constrangimento sua mediocridade e, o que é pior, transformam-se em ídolos para uma população carente de exemplos mais construtivos ou de referências mais sólidas... Um paralelo, contudo, existe: no livro de Orwell, Winston lembra-se que o rosto do Grande Irmão nos cartazes ainda é o mesmo de quando ele era menino, 30 anos atrás - o GI não envelhece, porque não é uma pessoa de verdade, apenas um personagem, um rosto que personifica o próprio regime. Da mesma forma, as pessoas que se exibem no zoológico hi-tech que é o Big Brother da TV não são, enquanto estão ali, propriamente pessoas - apenas imagens, personagens, rostos e corpos que simbolizam algo na cabeça dos telespectadores. "Reality show"? Show, sem dúvida; de realidade, parece haver muito pouco.

O fato de a amante de Winston, Júlia, trabalhar no "Departamento de Ficção", chamou-me a atenção ao ser relembrado pelo Prof. Fischer; o paradoxo de tal detalhe me havia escapado quando li o livro - em parte, acredito, devido à minha pouca idade, e em parte ao fato de as principais mídias de então serem ainda basicamente as mesmas que Orwell conheceu em vida, ou cujo desenvolvimento já podia ser previsto em sua época: em 1989, embora os telefones já fossem coisa corriqueira, ninguém achava estranho o fato de uma família de classe média não ter um (de fato, na minha casa ele só seria instalado quatro anos depois); videocassetes, muita gente tinha, e muita gente não tinha; computadores caseiros eram raros; DVDs e celulares não existiam, e de internet, então, nem se falava. Por tudo isso, não causou estranhamento a um garoto de 15 anos que, na sociedade totalitária prevista por Orwell, o governo usasse a literatura como instrumento de lavagem cerebral. Hoje em dia só podemos ficar pensando em como seria bom se a população em geral lesse seja lá o que fosse, não importa o quão ordinária fosse essa literatura. Já foi dito, e é certo, que a leitura é uma forma de vício (um vício que deveríamos estimular nossas crianças a contrair o mais cedo possível...), e, como em outros vícios, também no caso dela o "usuário" desenvolve tolerância e passa a sentir necessidade de coisas mais fortes: quem começa hoje lendo Paulo Coelho, daqui a um ano ou dois sentirá vontade de experimentar algo mais consistente e bem escrito, e talvez passe a Sidney Sheldon, e assim, de passo em passo, quem sabe não acabe um dia tornando-se um apreciador de Tolstoi, Machado de Assis ou Shakespeare?... Mesmo que esse leitor jamais vá além do nível Sidney Sheldon, isso já será incomparavelmente melhor do que seguir pela vida sem ler nada. Sei que estou repetindo coisas já ditas milhares de vezes, mas é fato: ao contrário da televisão e de outras mídias que simplesmente nos despejam coisas prontas, a leitura estimula a imaginação, o senso crítico, e leva a pessoa a fazer-se perguntas e procurar as respostas. Não existe livro tão vagabundo que não ensine alguma coisa nova, por menor que seja, a quem o lê. A leitura, com tudo o que ela traz à vida de uma pessoa, é como uma avalanche, que, uma vez iniciada, não pode ser detida. Enfim, o Grande Irmão do século XXI jamais teria a seu serviço um Departamento de Ficção!...

sábado, dezembro 25, 2004

Tudo tem um início

Alguém espirituoso, e antenado no que rola em ambos os mundos - o real e o virtual - já disse que, ao lado da globalização, a outra grande tendência do mundo moderno é a "blogalização". Todo mundo parece estar fazendo um "blog", que, no meu modesto entendimento, parece ser o sucessor pós-moderno do diário que eu escrevia quando adolescente, com a diferença de que o diário era um de meus segredos mais bem guardados - que me lembre, jamais permiti que alguém o lesse -, enquanto os tais blogs ficam na internet, à disposição de qualquer um no planeta que tenha um computador e uma linha telefônica. Suponho que isso seja uma conseqüência dessa cultura do voyeurismo que anda tão em voga nos dias de hoje, exemplificada por programas do tipo Big Brother e assemelhados. Pessoalmente, nunca entendi por que alguém haveria de achar interessante saber detalhes da intimidade de pessoas que nem conhece; os tais programas jamais me interessaram, e, no que diz respeito aos blogs, os poucos em que cheguei a dar uma olhada eram verdadeiros festivais de banalidade e, pior, de cinismo - o que não é surpreendente, já que hoje em dia, quem quiser passar por inteligente e "sofisticado" precisa ser, antes de mais nada, cínico. De minha parte, sinto um franco desprezo por essa espécie de "modernidade".

A esta altura, seria bastante lógico que quem estiver lendo isto (se é que alguém vai chegar a ler) estivesse se perguntando por que motivo, se tenho tal opinião sobre essa coisa de blogs, resolvi eu também fazer um. É uma questão justa, e a resposta é que tenho a intenção de que este seja um blog diferente. Não pretendo aqui falar da minha vida, pois não me atrai a idéia de me transformar em personagem de um "diário-Big Brother"; será um espaço que dedicarei a uma de minhas maiores paixões: a literatura. Aqui vou falar - bem, vou escrever - sobre o que estiver lendo no momento ou sobre o que tiver lido anos atrás e que, por qualquer razão, me voltar à memória; sobre os grandes clássicos ou sobre os livros que eu considerar dignos de um dia virem a ser incluídos nessa categoria; e não tenham dúvida de que, quando eu não gostar de alguma coisa, vou dizer isso também. Sem dúvida que por vezes, ao falar sobre literatura, o próprio tema me levará a dedicar algumas linhas a assuntos que estejam relacionados a ela, como história, cinema ou música; isso faz parte da brincadeira, e o importante é que sempre estarei escrevendo sobre os assuntos a respeito dos quais me dá prazer escrever.

Mais uma coisa antes de realmente começar: estou ciente de que este blog não irá se tornar popular. Literatura é assunto que interessa a pouquíssima gente, de modo que a freqüência de visitantes aqui não chegará nem a dez por cento da que têm os blogs do outro tipo - aqueles onde as pessoas contam a que festa foram no fim de semana e com quem "ficaram". Isso não me preocupa. Gosto de pensar neste projeto como um "diário literário", e, como sou antiquado, para mim um diário é, ou deveria ser, algo que escrevemos, antes de mais nada, para nós mesmos. Se fosse um diário pessoal, eu não o colocaria na internet, pois, a meu ver, não haveria o menor sentido em fazer isso. Mas, já que é um diário apenas literário, e os livros que leio não pertencem apenas a mim, então aqui está o meu blog, que é, antes de mais nada, para mim; mas, se ao menos uma pessoa tiver a curiosidade despertada para um livro por algo que ler aqui, e graças a isso chegar a lê-lo, eu me considerarei gratificado.