sábado, abril 17, 2021

DVD: Devoção Verdadeira a D.

Os que leram VHS viram com curiosidade e expectativa a chegada deste novo livro de Cesar Bravo, que nos leva de volta àquele mesmo universo para nos mostrar o que mudou e o que continua igual, alguns anos depois, na cidade fictícia de Três Rios e sua região. A paixão pelo cinema em geral e o de terror em particular (naturalmente) continua escorrendo de cada página, unindo o autor, os leitores e os personagens, e fornecendo a lente através da qual iremos ver uma nova coleção de horrores e bizarrices. Se vocês se identificam com tudo isso, preparem a pipoca, pois o livro vai mantê-los absortos por horas, tanto quanto ficariam ao assistir a um bom filme.

VHS, se não me falha a memória, não mencionava datas específicas, mas dava para inferir que os acontecimentos envolvendo a locadora FireStar e os personagens Pedro, Dênis e Renan deviam passar-se entre o final dos anos 80 e o início dos 90, podendo os outros contos ambientar-se um pouco antes ou depois; já DVD informa que o ano em curso é 2002. Pedro e Dênis, que eram meros sócios-proprietários de uma videolocadora, expandiram o escopo de seus negócios, embora continuem lidando com o universo dos filmes: agora são produtores cinematográficos, e, além disso, a FireStar virou uma rede, da qual eles são os franqueadores – e, na qualidade de franqueado, o outrora ajudante Renan é agora o proprietário e gerente da Loja Um, a primeira FireStar, aquela mesma onde ele começou, e que segue funcionando no centro de Três Rios. Acompanhando a mudança dos tempos, a locadora está trocando seu acervo de fitas VHS pelo novo formato… Mas, seja em fitas analógicas ou em discos digitais, o famigerado Lote Nove continua respondendo por boa parte do movimento, constituindo, inclusive, o principal interesse de alguns clientes. Como o mundo não para de dar voltas, há um novo jovem ajudante, conhecido simplesmente por "Guri", em quem Renan frequentemente se vê tal como era em seus primeiros tempos de FireStar, e em quem agora já confia o suficiente para chamá-lo para uma conversa mais franca, a portas fechadas, sobre o Lote Nove, tal como Pedro e Dênis um dia fizeram com ele. Isso tudo é revelado em FireStar DVD & Vídeo, o primeiro conto propriamente dito do livro, que vem depois de dois enigmáticos introitos intitulados Águas Turvas e Prelúdio em Dó Menor. Nessa história, além de Renan, revemos também Millôr Aleixo, o sujeito que amputou a própria perna utilizando um trem como instrumento cirúrgico no conto Torniquete, do primeiro livro – ele agora vive numa cadeira de rodas, fuma compulsivamente e parece ter envelhecido umas três vezes o que seria normal nos poucos anos transcorridos desde o incidente. Além disso, nunca superou o término com sua antiga namorada, Kelly Milena, cujo nome está, de alguma forma misteriosa, ligado aos fatos tenebrosos que aconteceram e talvez ainda aconteçam no Matadouro 7, em cuja administração ela trabalha.

Pandemonium lida com certos dramas e desafios que todo mundo que já foi adolescente conheceu, com a possível exceção dos mais populares – que, na certa, enfrentaram problemas de outros tipos para compensar. Gabriel, um garoto aparentemente comum de 13 anos, decide aproveitar uma saída dos pais para promover uma sessão de cinema em sua casa, com a aparente intenção de galgar alguns degraus na pirâmide social do colégio; para tanto, convida um pequeno grupo escolhido a dedo, composto de garotas bonitas e caras "descolados". Normalmente, tais pessoas ignorariam um convite desses vindo de um pária como Gabriel, mas ele conta com um trunfo: depois de seu nome ficar por semanas numa lista de espera, ele acaba de conseguir alugar na FireStar o "filme maldito" do momento, o tal Pandemonium do título, cujas cenas chocantes, ao que se diz, já "maluqueceram" algumas pessoas; para adolescentes, e mesmo para muitos adultos, não poderia haver propaganda melhor que essa para um filme – é ainda melhor (ou pior, vai saber) que "proibido em trocentos países" escrito em letras berrantes na caixa da fita. Anda todo mundo doido para ver esse filme, mas, por alguma razão inimaginável, uma cláusula no contrato de licenciamento estabelece que a distribuidora só pode vender uma cópia para cada locadora. Com tudo isso, a sessão de cinema de Gabriel tem tudo para ser um sucesso… mas o final não será feliz. A ação transcorre em 1989, o que só ficamos sabendo bem depois de ler o conto, embora já tivesse ficado evidente que devia ser por volta dessa época, já que, nele, Dênis e Pedro ainda administram a FireStar, e Renan ainda é apenas um ajudante, ou seja, cronologicamente, Pandemonium poderia fazer parte de VHS.

Em A Voz que Caminhava, a pequena Rafaela, ajudando o irmão a esvaziar o quartinho dos guardados na casa da família, encontra uma relíquia: um velho walkman que pertencia a seu pai, que não o usa há mais de 20 anos. A menina se encanta com a velha engenhoca, e o pai, achando graça, permite que fique com ela. O primeiro sinal de que nem tudo está normal vem quando Rafa se mostra assustada ao ouvir, nas estações de rádio que ela sintoniza em seu novo-velho brinquedo, notícias sobre uma iminente guerra nuclear que poderá acarretar o fim do mundo – notícias essas que refletem a situação mundial lá pelos anos 80, quando a catástrofe foi evitada por um triz mais de uma vez. Ela ouve também sobre um menino que foi achado morto no banheiro do mesmo colégio onde ela e o irmão estudam, o tradicional Aureliano Gomes, na cidade de Velha Granada, vizinha de Três Rios – e, embora ela não guarde o nome, o menino não era outro senão o encrenqueiro Jonas Duna, mencionado no conto Branco Como Algodão, de VHS. Quando Rafa começa a fazer coisas estranhas (e perigosas), totalmente alheias ao seu comportamento habitual, o pai se vê forçado a admitir que tudo está  interligado… e que o walkman vagabundo de seus tempos de escola, que sua filha agora carrega para todo lado, pode estar assombrado. O conto é curto, eficiente, e sua ligação com algo que os leitores de Cesar Bravo já conhecem parece potencializar o efeito tenebroso.

O título de Ballet Royale é um trocadilho com "battle royale", expressão que se popularizou a partir do romance homônimo do escritor japonês Koushun Takami publicado em 1999 e acabou dando nome ao que se tornou praticamente um subgênero dentro da ficção distópica, tendo seu mais famoso exemplo na franquia Jogos Vorazes: é aquele tipo de enredo em que um grupo de pessoas é jogado em alguma espécie de arena e obrigado a lutar entre si até que só um reste vivo. Aqui, as regras são um pouco diferentes, mas tão brutais quanto: várias mulheres aparentemente sem qualquer ligação umas com as outras são sequestradas e levadas ao que parece ser uma mansão isolada no meio da mata, onde são forçadas por três carcereiras mascaradas a dançar balé – coisa que a maioria delas jamais fez na vida –, sendo exigido que executem com perfeição os mais difíceis movimentos, e qualquer falha é punida com violência absurda. A lógica do conto é a mesma de Bicho-Papão (que chega a ser mencionado dentro da história!): no começo ficamos chocados, penalizados e torcendo por alguma reviravolta que faça as cativas levarem a melhor sobre suas algozes, mas depois há certas revelações que mudam tudo; essas revelações mostram também que, ao contrário do que parecia, todas essas mulheres têm, sim, alguma coisa em comum.

Em Sopa de Letrinhas, somos apresentados a Bia, uma menina pequena, e a sua avó, D. Eslovena, com quem a garotinha vive desde que sua mãe (a filha de Eslovena) foi embora não se sabe para onde. Por várias páginas nos perguntamos o que aquela história está fazendo num livro de terror, pois o que lemos é uma sucessão de cenas fofas que mostram Bia descobrindo o mundo sob o olhar da avó carinhosa, que a educa com infinita bondade e paciência. Mas, como sei que já escrevi em algum lugar deste blog (e talvez mais de uma vez), começar com cenas da vida normal é um recurso que o terror usa há muito tempo e que parece nunca perder a eficácia: as coisas começam a ficar estranhas quando Bia, que ainda nem chegou à idade de alfabetização, mas já consegue ler palavras simples, passa a ver as letrinhas de macarrão na sopa que a avó lhe serve formarem mensagens, como numa espécie de tábua Ouija para crianças do pré-maternal. Talvez a sinopse, colocada assim, pareça boba, mas, se for o caso, a culpa é minha, e não de Bravo: a justaposição da inocência infantil com sugestões preternaturais tem um efeito poderoso quando a coisa é bem feita, tanto que, mesmo sendo muito mais curta, muitíssimo mais simples, e não tendo qualquer semelhança notável em termos de enredo, Sopa de Letrinhas me fez pensar em O Povo Branco, de Arthur Machen. Ah, e existe uma conexão entre Sopa de Letrinhas e Pandemonium, conexão essa que evidencia novamente que é melhor o leitor não fazer muita questão de uma cronologia precisa, primeiro porque cada conto pode transcorrer num ano diferente e eles não estão colocados em ordem, e segundo porque, no universo de Cesar Bravo, existem certas, digamos, singularidades no que diz respeito ao tempo.

Lar, Doce Lar segue os personagens Duque e Paloma – um gângster do interior paulista e sua amante –, que acabam de assaltar um banco, escapar da polícia e, em sua fuga, utilizam estradas secundárias que os levam em direção à microrregião maldita formada por Três Rios e os municípios menores que a cercam. Nessa viagem, vários fenômenos estranhos se manifestam: tanto a aparência do céu quanto a dos campos que ladeiam a estrada muda de repente, trovões ensurdecedores soam do nada, sem que haja sinal de chuva e, o mais desconcertante, olhando pelo espelho retrovisor veem-se coisas que simplesmente não estavam ali quando o carro passou pelos mesmos locais, segundos antes. A região parece ser uma encruzilhada, mas não de estradas: uma encruzilhada no tempo, e talvez também entre dimensões.

O Homem da Terra leva-nos de volta ao final do século XIX para nos apresentar a Ítalo Dulce, um imigrante italiano e personagem arquetípico, já que, como ele próprio observa, "ítalo" é a mesma coisa que italiano (falta uma boa explicação para que seu sobrenome seja "Doce" em espanhol). Ele e sua esposa, Gemma (não poderia haver nome mais adequado) vivem todas as durezas que os imigrantes enfrentavam naqueles anos; são colonos, quer dizer, receberam do governo um lote de terra para trabalhar por conta própria, diferentemente de outros imigrantes que vinham como empregados para as fazendas de café, para, na prática, substituir a mão de obra dos escravos, que haviam sido libertados pouco antes. Não tenho conhecimento suficiente para dizer em qual das duas situações um imigrante batia mais cabeça; é provável que ambas fossem igualmente ferradas de maneiras diferentes, embora ainda fosse melhor que ficar no país de origem, onde, na época, a imigração era para muita gente a única alternativa para (tentar) escapar da miséria. Tudo indica que Ítalo terá o mesmo destino de muitos outros italianos em terras brasileiras, que era o de trabalhar de sol a sol pela simples sobrevivência enquanto tivesse forças para tanto e, depois disso, só Deus sabe… Até que certo dia, tirando mel numa gruta junto à nascente do rio Escuro (um dos três que dariam nome à cidade que mais tarde existiria ali), não muito longe de sua casa, o imigrante encontra um misterioso personagem que lhe propõe um pacto. Para evitar spoilers, direi apenas que, nos tempos nos quais se ambienta a maior parte das histórias de VHS e DVD, Ítalo Dulce é considerado um vulto histórico, uma espécie de patriarca, um dos homens que tornaram possível a prosperidade econômica de que a região viria a gozar – e o Mel da Gruta ainda é um produto muito apreciado, com "tradição de mais de um século".

Gladiadores em Technicolor é protagonizado por Lívia, filha de Renan (ela já havia aparecido, pequenininha, em FireStar DVD & Vídeo, e aqui ressurge um pouco mais velha, mas não muito). Ela e seus amigos Juliano e Cléber estão fazendo um filme, uma fita caseira de ação/fantasia inspirada nos clássicos dos anos 80, como Os Aventureiros do Bairro Proibido, filme estrelado por Kurt Russell que chega a ser citado, entre outros. A história é curta e tem um sabor nostálgico de infância e de amizades separadas, pois Lívia está prestes a mudar-se de Três Rios com os pais – Renan, muito a contragosto, está tentando vender a locadora. Chega a parecer que o conto vai ser feito apenas desse misto de diversão e melancolia, mas boatos sobre acontecimentos estranhos em Três Rios e arredores aparecem na conversa das três crianças, e ela termina num elo explícito com Lar, Doce Lar. Ah, e tem um detalhe que não se pode deixar passar: o título do filme que os garotos estão fazendo é A Batalha de Devorac – e Devorac é um nome que voltará a aparecer.

Em Solo Sagrado, lemos sobre o esforço de Saulo Renan Sampaio, um jovem pastor evangélico que chega a Três Rios decidido a instalar uma nova igreja, e, para tanto, adquire o terreno da antiga locadora FireStar (e digo isso apenas para deixar vocês curiosos; não contarei o que aconteceu com a locadora). Conforme encara a luta para erguer sua igreja e depois para fazê-la começar a funcionar, Saulo vai ficando menos cético a respeito das histórias macabras que ouviu sobre Três Rios: é como se alguém, ou mais provavelmente algo, estivesse tentando impedir ou ao menos dificultar o máximo possível a pregação da palavra de Deus naquele lugar – sendo que "lugar" pode significar o local específico onde ficava a locadora, ou a cidade como um todo. Perto do final do conto, o pastor se vê dialogando com um misterioso "homem de camisa vermelha" que lhe desperta sensações não muito agradáveis, e que menciona de passagem ter conhecido há muito tempo um sujeito de nome Deodoro… Leitores atentos e de boa memória que leram VHS matarão a charada. Por falar nisso, conforme vamos nos aproximando do final de DVD, vai crescendo um impulso de, ao terminá-lo, emendar com uma releitura do livro anterior, pois há uma viva sensação de que, agora que temos novas informações, muitas coisas dele serão melhor compreendidas e se encaixarão melhor no grande e tenebroso quebra-cabeça que Bravo está criando.

Em Devorac, a região de Três Rios está sendo aterrorizada pelos ataques do que a polícia e a imprensa assumem ser um serial killer que, por alguma razão, mata apenas idosos – mas que, fora isso, não parece fazer nenhum tipo de distinção, atacando homens, mulheres, brancos, negros, o que for. Os corpos dos anciãos são sempre encontrados com terríveis mutilações que desafiam os peritos da polícia e enchem de pavor qualquer um que as veja. Como acontece tanto no terror, há aquela teimosa obstinação por parte das pessoas "racionais" em tentar obrigar a realidade a encaixar-se dentro da moldura do "plausível": um serial killer é uma coisa horrenda, mas que ainda pertence ao campo dos fatos explicáveis, e portanto (pensam as tais pessoas "racionais") essa deve ser a resposta. Tem que ser. Por favor, seja, porque a alternativa é muito pior! As mutilações nas vítimas são coisas que não poderiam ter sido feitas por nenhum ser humano, não importa o quão louco, e nem mesmo por qualquer animal conhecido, mas ninguém quer pensar nisso. Mais uma vez, o leitor atento terá reunido pistas, ao longo da leitura deste livro e do anterior, que lhe permitirão ir construindo uma teoria sobre o que pode ser o tal Devorac. A AlphaCore Biotecnologia, empresa do magnata Hermes Piedade, pode ter algo a ver com isso. Piedade (eita sobrenome irônico) é considerado por muitos um homem de visão e um benfeitor que trouxe o progresso para a região – e por outros tantos uma cria do demônio, que, junto com o tal “progresso”, pode ter trazido também outras coisas bem menos desejáveis. O conto Bom pra Cachorro, que vem logo depois de Devorac, fornece mais algumas pistas nessa direção, mas sem revelar demais. Ainda sobre Devorac, preciso confessar que o jeito como o narrador fala sobre o predador misterioso me fez pensar na igualmente misteriosa Besta de Gévaudan (caso essa referência não lhes seja familiar, vejam o excelente filme O Pacto dos Lobos, de Christophe Ganz, com Vincent Cassel e Monica Belucci).

Polaroid Colorpack 80 leva o nome de um tipo de câmera fotográfica que já foi bastante popular graças ao diferencial de não precisar de revelação (a garotada que já nasceu na era das fotos digitais talvez nem entenda do que estou falando, mas, se for o caso, basta ir até a Wikipédia e pesquisar um pouco sobre história da fotografia). Você tirava a foto e, em segundos, ela saía por uma fenda na câmera, já impressa e pronta. Quem chegou a ter uma Polaroid conta que as fotos não eram tão boas, deixavam a desejar em nitidez e colorido, e, além disso, desbotavam depois de alguns anos, mas, mesmo assim, a praticidade da coisa conquistou alguns fãs – sem contar que essa câmera era a favorita dos serial killers e outros freaks para registrar seus "feitos", já que as câmeras convencionais tinham o sério inconveniente de que seus filmes precisavam ser levados até um estúdio ou loja de fotografia para serem revelados – e o laboratorista que topasse com imagens de natureza potencialmente criminosa, sem dúvida notificaria a polícia… a menos que o próprio serial killer soubesse revelar, como alguns de fato sabiam, mas isso não vem ao caso aqui. A história tem como protagonista um sujeito de nome Leone Dantas, proprietário, gerente e atendente da Paraíso Perdido, loja em Três Rios especializada em comprar e vender todo tipo de item usado, desde móveis até discos e revistas, passando por antigos eletrodomésticos (ou "eletromésticos", como diz o anúncio da loja nos classificados) que agora têm basicamente o valor de curiosidades. Certo dia, Jaime Extremo (sobrenomes improváveis, e às vezes nomes também, são meio que uma peculiaridade regional em Três Rios e arredores), um idoso que é uma espécie de ajudante informal de Leone, aparece com uma notícia potencialmente interessante: um cidadão chamado Amâncio Gruta acaba de morrer e, como vivia sozinho e não tinha esposa, filhos ou outros parentes chegados, sua casa passou em herança à família extensa, e vai ser leiloada. Enquanto isso não acontece, os bens móveis que o falecido deixou na casa podem ser arrematados em lote por um valor razoável, e, com alguma sorte, alguns itens podem dar lucro ao serem postos à venda na Paraíso Perdido. Há um detalhe que pode fazer bastante diferença: apesar de não levar o sobrenome, Amâncio era descendente dos Dulce, talvez um bisneto do semilendário Ítalo Dulce, e, considerando a estreita ligação dessa família com a história da região, há uma possibilidade real de que a casa do velho guarde alguns objetos dotados de valor histórico. Assim, Leone aceita o negócio e, tempos depois, ele e Jaime vão até a casa para conferir seu conteúdo. Entre a esperada coleção de itens comuns, com variados graus de interesse para venda, eles encontram uma caixa contendo fotos – fotos que mostram, muitas delas, pontos conhecidos de Três Rios e cidades vizinhas, mas, naqueles panoramas familiares, há por vezes alguma coisa que não parece estar certa, e Leone acaba entendendo o que é: algumas das imagens mostram os lugares com alterações que ainda vão acontecer, tal como o atual local da locadora FireStar ocupado por uma igreja evangélica… Outras fotos mostram imagens perturbadoras e inexplicáveis, que o leitor reconhecerá como sendo registros de cenas descritas em vários dos contos de VHS e DVD, e examiná-las acaba afetando a sanidade do lojista. Na minha humilde opinião, Polaroid Colorpack 80 merece um lugar entre as melhores histórias do "bravoverso" publicadas até agora.

A penúltima história do livro é Tomada En Passant, cuja maior parte é dedicada a narrar uma reunião dos Filhos de Jocasta, que parecem ser uma espécie de "maçonaria" local, congregando as figuras mais destacadas da sociedade desse noroeste paulista fictício. O ponto de vista é o de um homem chamado Almirante Querido (!!!), que veio de origens humildes e agora é um rico homem de negócios, tão importante, de fato, que até ganhou uma cadeira nesse seleto clube. Inesperadamente, a sessão é invadida por ninguém menos que Hermes Piedade, que, por sinal, já foi por várias vezes convidado a tornar-se membro dos Filhos, mas nunca aceitou. O magnata veio apresentar à assembleia seu novo parceiro nos negócios, um jovem empresário que, diz ele, veio para "revolucionar" a economia local. Considerando o que já sabemos sobre as atividades de Piedade, é difícil esperar boas coisas dessa tal "revolução", e Almirante encara a novidade com bastante ceticismo… mas descobrirá que ficar no caminho de Hermes Piedade significa arriscar muita coisa. Esse conto parece ter sido bolado para preparar certos acontecimentos que podem estar por vir em volumes futuros dessa… série? Também parece ser esse o objetivo de algumas notícias enigmáticas dos jornais da região, "reproduzidas" nas últimas páginas do livro. Em tempo: eu me pergunto se eventualmente receberemos uma explicação para o nome dessa irmandade. "Filhos de Jocasta" evoca associações de incesto e/ou tragédia, e, como se fosse para assinalar que a escolha do nome não foi casual, o "mestre da ordem" recebe o título de “Édipo”.

DVD termina com Sete Vidas, que narra (com detalhes agoniantes) o destino final de Sagitário Piedade, filho caçula de Hermes Piedade e mau elemento irremediável desde sempre: era colega de Gabriel Cantão (o do Pandemonium) em fins dos anos 80, sendo já então um dos piores bullies do colégio, e sua carreira a partir daí consistiu numa sucessão de roubos, sequestros, assassinatos, estupros e coisas que tais, tendo constante necessidade da intervenção do pai, com sua influência e seu dinheiro, para repetidamente livrá-lo das garras da justiça e mantê-lo livre para praticar novas vilanias – até ser apanhado por dois personagens misteriosos, decididos a fazer justiça com as próprias mãos e, aproveitando a oportunidade, usar "Sági" como cobaia para uma curiosa experiência envolvendo memória e viagem no tempo. Mais uma vez, o esporear de emoções causado pela história segue o mesmo itinerário de Bicho-Papão e Ballet Royale, como se lançasse um desafio ao leitor: e aí, vai ficar com peninha, ou acha que ele só está recebendo o que merece? De todo jeito, a leitura é pra lá de incômoda, e os resultados da tal experiência, ainda que inconclusivos, abrem uma infinidade de possibilidades.

Tal como já havia feito em VHS, atribuindo a essa conhecida sigla o novo significado de "Verdadeiras Histórias de Sangue", Cesar Bravo também brincou com o título de DVD: ao mesmo tempo que designa o novo formato de vídeo com o qual a FireStar e demais locadoras passaram a trabalhar, essa é também a sigla de "Devoção Verdadeira a D.", mas ainda não é neste livro que ficamos sabendo o que significa essa inicial misteriosa: ela aparece aqui e ali, mas não é objeto de explicações. Com esse novo livro, Bravo promove uma considerável ampliação em seu universo sombrio, deixando seus leitores fiéis (pois ele já os tem) cada vez mais curiosos e ansiosos por mais. Em algum canto da internet, já vi alguém se referir ao escritor como o "Stephen King tupiniquim", uma comparação que, tenho certeza, o deixaria satisfeito, já que, assim como (pelo menos) grande parte de seu público, ele é provavelmente um fã do mestre do Maine, e, de fato, o que Bravo está fazendo com sua Três Rios lembra o que King fez com Jerusalem's Lot, Derry e Castle Rock – está construindo uma mitologia, tijolo por tijolo. Como só os realmente bons conseguem fazer, Bravo foi capaz de aprender com King (e com outros mestres do terror) sem se transformar num mero copycat: seu estilo é muito pessoal, marcante e fácil de reconhecer. Se a DarkSide topou publicar mais este livro, é porque o anterior deve ter sido bem-sucedido, e com muito mérito. Torço para que essa parceria continue.