terça-feira, agosto 18, 2020

A Legião do Tempo

Estudantes que estão se familiarizando com a cultura dos países anglófonos costumam achar curioso e engraçado quando descobrem como é que se diz "telenovela" em inglês: é soap opera – literalmente, 'ópera de sabão'. Vi meus colegas terem exatamente essa reação numa aula de inglês no primeiro ano do ensino médio, muitos anos atrás, e, quando uma menina perguntou o porquê desse nome, a mestra (professora Sandra, lembro bem) confessou que não sabia. Se fosse nos dias de hoje, uma rápida busca na internet teria satisfeito a curiosidade, mas na época as coisas não eram tão fáceis. De qualquer forma, embora a timidez dos 15 anos tenha mantido meus lábios grudados naquela ocasião, a verdade é que eu sabia a resposta: acontece que nos Estados Unidos, da mesma forma que aqui no Brasil, as novelas nasceram no rádio, só mais tarde migrando para a TV, e, durante a "era de ouro do rádio", que, lá, foi nas décadas de 1920-30, elas, além de extremamente populares, eram notórias por serem patrocinadas por fabricantes de sabão em pó, cujos jingles sempre antecediam o início do capítulo do dia. Isso explica o porquê do soap; quanto ao opera, ainda é um mistério para mim (mesmo hoje, com internet e tudo), e ficarei grato se alguém que me lê souber esclarecer.

A essa altura vocês talvez estejam se perguntando (e parabéns pela perspicácia se estiverem): peraí, moleque, como é que você, sendo brasileiro, com 15 anos de idade e numa época sem internet, sabia de tudo isso? Simples: aos 15 anos (e bem antes) eu já era nerd e apaixonado por ficção científica. Acontece que, embora a maior parte das novelas de rádio se ocupassem de tramas dramáticas e sentimentais (o mesmo tipo de coisa que move as novelas da TV até hoje), tendo como público-alvo basicamente moças e senhoras, havia uma ou outra soap opera alternativa, por assim dizer: essas visavam ouvintes adolescentes e jovens-adultos do sexo masculino e ofereciam mais ação e aventura. Como já existia o termo soap opera, essas produções ganharam nomes adaptados a partir dele e levemente brincalhões: se fossem histórias de faroeste, eram chamadas de horse operas ('óperas de cavalos'); se fossem de ficção científica, eram space operas ('óperas do espaço'). Esses dois eram os gêneros mais comuns. Li isso tudo na introdução de alguma velha antologia de ficção científica.

Por extensão, o termo space opera passou a designar um subgênero dentro da ficção científica, aplicando-se a toda história – mesmo em livro, quadrinhos ou cinema – que apresentasse as mesmas características que aquelas aventuras espaciais do rádio: narrativa vertiginosa, cheia de reviravoltas e com muita ação, personagens simples mas mesmo assim carismáticos, batalhas espaciais em profusão, vilões sinistros e superpoderosos para enfrentar, e, muitas vezes, uma bela mocinha em perigo precisando de um herói, já que a garotada que ouvia, lia e assistia a essas histórias, embora torcendo o nariz para as tramas lacrimosas que suas mães e irmãs acompanhavam pelo rádio, no fundo também tinha a sua parcela de romantismo – sem contar que, se trocarmos as pistolas laser por espadas e os planetas exóticos por reinos medievais na Europa, muitas space operas se transformam facilmente em romances de cavalaria, e o que é um romance de cavalaria sem uma donzela para ser salva?

Como é fácil supor, esse subgênero produziu muita coisa descartável, mas também deu espaço (hehehe!) à ascensão de autores que, faz agora quase um século, turbinam os sonhos de milhares de adolescentes de todas as idades, caras como Edgar Rice Burroughs, Poul Anderson, Edmond Hamilton, E. E. "Doc" Smith e C. L. Moore, entre outros. Não estou atribuindo a todos esses autores o mesmo nível de qualidade, apenas dizendo que são alguns dos nomes que emergiram na space opera para ganhar um lugar na história da ficção científica. Mesmo autores de maior peso, conhecidos por obras mais sérias e profundas, chegaram, em algum momento, a flertar com o subgênero, vide as aventuras de Lucky Starr escritas por Isaac Asimov.

(Não resisto a fazer mais um desses meus parágrafos entre parênteses, mas prometo que este será breve. Ocorre que, embora eu tenha me referido àquele punhado de autores ali em cima como "caras", o "C" de C. L. Moore é de Catherine, e a autora adotou a abreviatura porque ela, ou seu editor, e provavelmente ambos, sabiam muito bem que o adolescente-americano-leitor-de-ficção-científica típico da época ficaria seriamente cabreiro se soubesse que a história que estampava a capa da edição do mês de sua revista favorita havia sido escrita por uma mulher. Embora já houvesse uma mulher entre os pioneiros do gênero em pleno século XIX – claro que me refiro a Mary W. Shelley, autora de Frankenstein –, temos que admitir que a ficção científica foi durante muito tempo uma espécie de clube do Bolinha literário, sendo escrita e lida quase exclusivamente por "cuecas". Felizmente, isso mudaria com o tempo.)

Antes de prosseguir, preciso adverti-los de que a definição de space opera com a qual estou trabalhando é a que encontrei, como disse, em artigos ou introduções de livros de ficção científica que li ao longo dos anos, mas parece que a definição não está muito bem pacificada, pois, pesquisando na internet, encontrei até mesmo 2001: Odisseia Espacial, de Arthur C. Clarke, classificado como space opera em determinados sites – sendo que eu dificilmente conseguiria pensar num livro de ficção científica que estivesse mais distante de tudo o que esse rótulo me traz à cabeça. Se me pedissem para classificar 2001, eu diria que é hard science-fiction, assim como Duna, de Frank Herbert, ou a saga Fundação, de Isaac Asimov: são todos livros muito densos e complexos, que não são para qualquer um, e certamente não recomendáveis para leitores muito jovens e inexperientes. Portanto, tenham em mente que a expressão space opera pode ser usada com sentidos diferentes em outros lugares.

E não é possível contar a história da space opera sem citar o nome de John Stewart Williamson (1908-2006), imortalizado como Jack Williamson, autor que brilhou durante a era de ouro da ficção científica (sim, não é só o rádio que tem direito a isso), que durou, aproximadamente, do final dos anos 30 ao final dos 40. Williamson, entretanto, já era um veterano nessa época, pois estava em atividade desde fins dos anos 20. Suas primeiras histórias foram publicadas na legendária revista Amazing Stories, fundada e, na época, ainda editada por ninguém menos que o pioneiro Hugo Gernsback, o homem que deu nome a um dos mais importantes prêmios da ficção científica. Um nome frequentemente presente nessa revista era o de Miles J. Breuer, americano de origem tcheca, médico de profissão e escritor por paixão, amigo de Gernsback e que se tornou uma influência importante na fase inicial da carreira de Williamson; os dois chegaram a escrever em parceria.

Paralelamente a uma carreira acadêmica na área de língua e literatura inglesa, Williamson publicou, ao longo das décadas seguintes, mais de 30 romances, além de dezenas de contos em várias das mais prestigiosas revistas de ficção científica e fantasia: Wonder Stories, Astounding Stories, Weird Tales… Pode-se destacar The Reefs of Space ('Os Recifes do Espaço'), em parceria com Frederik Pohl, que foi publicado como uma série na revista Worlds of If durante os anos 60 antes de sair em forma de livro. Para dar uma ideia do lugar especial que Williamson ocupa na galeria de honra da ficção científica, ele teve entre seus ávidos leitores e fãs o adolescente Isaac Asimov, que registrou em sua autobiografia que, quando conseguiu vender sua primeira história para publicação, quase tão empolgante quanto o fato em si foi ter recebido uma carta de Williamson congratulando-o e dando-lhe boas-vindas ao time dos escritores. Eu sei, é estranho pensar em Asimov como um jovem escritor iniciante em vez de um monstro sagrado da ficção científica, mas é sempre bom não esquecer que todo mestre também teve seus próprios mestres.

The Reefs of Space não foi a primeira experiência de Jack Williamson em se tratando de publicar romances serializados em revistas. The Legion of Space, publicado em seis partes pela Astounding em 1934, só ganharia a primeira edição em livro 13 anos depois. Trata-se de uma das mais cultuadas space operas de todos os tempos e se tornaria o piloto de uma série de romances. Esse livro ganhou edição brasileira, dentro da tão querida e importante coleção Mundos da Ficção Científica, da editora Francisco Alves; graças a isso, pude lê-lo na minha adolescência, e há algum tempo consegui adquirir um exemplar, de modo que uma releitura está nos meus planos, e, quando isso acontecer, não há dúvida de que merecerá um post aqui no blog. Porém, embora fosse um épico de qualidades inegáveis, The Legion of Space não apresentava nada de muito inusitado em relação ao que já vinha sendo feito na ficção científica da época. Coisa bem diferente acontece com The Legion of Time (publicado como série na Astounding em 1938, e em forma de livro em 1952), que, mesmo trabalhando com dois conceitos bem conhecidos – viagem no tempo e realidades alternativas –, faz isso de uma forma inovadora e empolgante.

Jack Williamson se manteve em atividade até seus últimos dias de vida. Em 2001, aos 93 anos, ganhou o Prêmio Hugo pela história The Ultimate Earth, publicada no ano anterior, tornando-se o mais idoso escritor a receber essa distinção. Publicou seu último livro, The Stonehenge Gate, em 2005, aos 97 anos. Faleceu no Novo México, onde vivera a maior parte de sua vida, em 10 de novembro de 2006.

Pois bem… Apesar do paralelismo dos títulos, A Legião do Tempo não tem conexão alguma com A Legião do Espaço, e, enquanto este último, como dito acima, tem edição nacional, o outro, pelo menos até onde eu sei, nunca foi publicado em português, fosse no Brasil ou em Portugal. Encontrei na internet uma versão em inglês em PDF, li assim e, como um exercício pessoal, eu mesmo o traduzi; imprimi, mandei encadernar, e agora essa edição de um único exemplar está na minha estante, ao lado de A Legião do Espaço da Francisco Alves. Trabalhoso demais? Certamente que não, em se tratando de um livro que eu queria ler há tanto tempo. Além disso, gostei da experiência de traduzir.

Assim como os escritores de terror do século XIX e início do XX adoravam lançar mão do recurso da "narrativa dentro da narrativa", fazendo seus personagens encontrarem alguém que contava uma história, ou acharem um manuscrito que a continha, os autores de ficção científica que vieram depois também tinham seus expedientes favoritos, e um deles era o de fazer um personagem do presente receber, de alguma maneira, mensagens do futuro. É assim em A Legião do Tempo. Dennis "Denny" Lanning, um adolescente de 18 anos que vive no ano de 1927, está prestes a colar grau na Universidade de Harvard (parece que, na época, as pessoas se formavam bem mais cedo do que hoje) quando, numa noite aparentemente comum, sozinho no apartamento que divide com alguns colegas, ele recebe a visita de uma linda e misteriosa jovem que aparece do nada (depois Lanning percebe que ela não está realmente ali – o que ele vê é algum tipo de projeção) e se identifica como Lethonee. Ela vem apelar ao rapaz em nome de sua cidade, Jonbar, sobre a qual tudo o que se sabe nesse momento é que existe num futuro distante, talvez na Terra, talvez em algum mundo que a humanidade haja colonizado. Lethonee afirma que o destino de Jonbar está nas mãos de Lanning, mas o que isso significa na prática permanece um mistério. Ela o alerta de que deve faltar a sua aula de voo do dia seguinte, na qual ele e seu melhor amigo, Barry Halloran, voariam solo pela primeira vez. Denny faz o que Lethonee pede – e Halloran morre num trágico acidente.

Lethonee dá também outro aviso: Lanning será certamente procurado por alguém de nome Sorainya ("a mulher da guerra, a flor do mal"), de um lugar chamado Gyronchi, e, quando isso acontecer, não deve dar-lhe ouvidos em hipótese alguma, pois, caso o faça, isso será o fim de Jonbar e também dela, Lethonee. Dito e feito: Sorainya aparece, tempos depois, também por meio de uma projeção, e, assim como Lethonee, faz um apelo a Lanning em nome de sua cidade, Gyronchi, e do império do qual ela é a capital. É nesse momento que o livro revela a grande sacada de seu enredo: Jonbar e Gyronchi são dois futuros possíveis, e, se uma delas se concretizar, a outra terá sido varrida para sempre da existência. A encruzilhada é algum ato que Lanning ainda vai praticar, ou alguma decisão que ele irá tomar, e é por isso que ambas as governantes procuram ganhar a boa vontade do jovem para suas respectivas causas.

Assim como diversas mocinhas da ficção atual (alguém disse Jogos Vorazes?) ficam divididas entre o amor de dois rapazes – um mais gentil e sensível, o outro mais visceral e selvagem –, o nosso Denny Lanning, cuja experiência anterior com o sexo oposto parece ser nula, se vê atordoado pelas figuras de Lethonee e Sorainya: a primeira é meiga e serena, de uma beleza etérea; a outra é impetuosa, sensual e sedutora. As visitas de ambas poderiam parecer um sonho, se não fossem, para o rapaz, mais reais que a própria realidade cotidiana, mas ele não mais as vê durante muito tempo, e sua vida segue. Dennis Lanning torna-se um repórter arrojado, um correspondente destemido que está sempre nos lugares mais perigosos do mundo, cobrindo guerras, revoluções e convulsões sociais de todo tipo. Não raras vezes se vê envolvido na ação direta, precisa manejar armas, sofre ferimentos, prisões; passa por todos os apertos imagináveis. Os dez anos seguintes transformam o rapazinho sonhador num homem rijo, de nervos de aço, mas que não perdeu nem seu idealismo nem seu romantismo. Ele não se esquece de Lethonee nem de Sorainya, e esta última lhe aparece de novo, alguns anos depois da primeira visita, encontrando um Lanning, naturalmente, mais velho, ao passo que ela não mudou nada. Ela usa de todo o seu poder de sedução e de outras tentações, garantindo ao jovem que, se ele quiser, poderá viver com ela e governar ao seu lado o império de Gyronchi.

Intrigado, Lanning chega a tentar contato com um de seus antigos colegas de quarto na faculdade, Wil McLan, um físico e matemático que se dedicava a estudos sobre a natureza do tempo, desejando ouvir sua opinião – mas descobre que McLan deixou o cargo que tinha numa prestigiosa universidade para dedicar-se a pesquisas particulares, e que seu paradeiro é desconhecido. Mais anos se passam, Lanning se envolve em mais aventuras, até que chega 1937 e ele recebe uma mensagem de outro antigo colega, Lao Meng Shan, perguntando-lhe se está disposto a ajudar a defender a China contra a invasão japonesa. Por sinal, Williamson parece ter pesquisado bastante: o livro apresenta um rigor histórico surpreendente ao mencionar batalhas e guerras. Essa invasão fez parte da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), conflito cujos desdobramentos se entrelaçaram com os da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Lanning atende ao chamado, e ele e Shan voam juntos na Batalha de Xangai, na qual o avião dos dois está para ser abatido pelos japoneses quando eles são salvos por uma estranha nave que se desloca tanto no tempo quanto no espaço. Seu comandante é ninguém menos que Wil McLan, mas uma versão idosa dele – uma versão que veio do futuro, já que seus estudos o conduziram à descoberta dos segredos da viagem no tempo. McLan e sua tripulação estão percorrendo as datas e locais de várias batalhas e desastres aéreos históricos, "recolhendo" pilotos hábeis e corajosos de diferentes nacionalidades, no exato momento de suas mortes, ou melhor, no momento em que teriam morrido, para alistá-los numa força que vai lutar por Jonbar – a Legião do Tempo. Jonbar e Gyronchi, apesar de não existirem na mesma realidade, estão em guerra uma com a outra, uma guerra que será lutada em diferentes lugares e épocas, e cujo resultado trará somente uma das duas cidades à existência. Espiando ainda mais longe no futuro de cada uma das duas linhas temporais (o que as engenhocas de McLan conseguem fazer), verifica-se que, na linha que inclui Jonbar, a humanidade terá um destino glorioso, enquanto a outra linha, a de Gyronchi, termina em guerras catastróficas e na extinção de nossa espécie.

Histórias sobre guerras futuristas já não eram nenhuma novidade na era de ouro da ficção científica, e menos ainda em 1952, mas sem dúvida que estamos diante de algo diferente quando nos deparamos com um plot no qual a maneira de um lado derrotar o outro não é destruindo-o, e sim impedindo que ele surja. Claro que isso deve ter feito vocês lembrarem do filme O Exterminador do Futuro, mas não esqueçam que ele é de 1984, e certamente que o diretor e roteirista James Cameron tem uma dívida para com os mestres da ficção científica de décadas anteriores, entre eles Jack Williamson (um chega a ser nomeado: no final do filme, logo antes dos créditos, aparece a informação de que o roteiro foi livremente inspirado em contos de Harlan Ellison, mas as contribuições deste referem-se mais à parte da rebelião das máquinas, e não às possibilidades da viagem no tempo). O mais interessante é que, pelo fato de Jonbar e Gyronchi serem realidades alternativas (de modo que a existência de uma delas é a negação da outra), é impossível qualquer contato físico, e por consequência, também é impossível um confronto entre as forças militares de ambas. Wil McLan explica a Denny Lanning a respeito do que ele chama de geodesias (palavra usada aqui com um sentido diferente do que encontramos nos dicionários), que seriam algo como nós ou encruzilhadas, pontos da História onde as diferentes realidades possíveis se ramificam; não há geodesias diretas ligando Jonbar e Gyronchi, e por isso as duas não podem interagir diretamente. Já McLan, Lanning e seus companheiros são do século XX, um período que faz parte do passado de ambas as linhas temporais, e assim, ao viajarem no tempo, podem chegar a qualquer uma delas, dependendo das geodesias que seguirem.

A Legião do Tempo representa perfeitamente a atmosfera da era de ouro da ficção científica, ou, ao menos, de um estilo que deixou sua marca nela: é uma história cheia de ação, que até procura se ancorar na ciência, mas não hesita em sacrificar a precisão científica, se com isso puder injetar doses extras de aventura e drama. Não sei se um crítico especializado seria da opinião de que a história "envelheceu bem", como eles dizem, mas, falando como um leitor que passou a adolescência lendo tanto Jack Williamson quanto outros gigantes da ficção científica, digo que, mais de 80 anos depois de sua primeira publicação, ela continua a oferecer um entretenimento formidável. Um de meus sonhos enquanto leitor é que apareça uma editora disposta a fazer pela ficção científica o que a Clock Tower tem feito pelo terror e pela fantasia, lançando novas edições de autores antigos que há muito não eram publicados no Brasil, ou que nunca o foram, mas que são importantes para a história do gênero em nível mundial, além de terem muito a oferecer às novas gerações de leitores.

Fiel à minha velha mania de montar trilhas sonoras para as histórias que leio, recomendo aos que forem fãs tanto de metal quanto de ficção científica que experimentem ler A Legião do Tempo ao som da banda sueca Sabaton, cujas músicas inspiradas em grandes batalhas históricas (históricas mesmo: eles deixam a fantasia para outras bandas) encaixam bem em vários trechos do livro.

quinta-feira, julho 30, 2020

Black Mirror

O uso imprudente (ou simplesmente tolo) da tecnologia é mais um dentre os muitos aspectos de uma questão muito maior: o Homo sapiens está, no mínimo há alguns séculos, vivendo num mundo para o qual ele não foi feito. Ao longo da nossa evolução, sempre precisamos lutar dia a dia por comida, e, na natureza, essa luta é constante e quase sempre feroz. Antes de aprenderem a estocar e conservar alimentos, nossos ancestrais se condicionaram durante centenas de milhares de anos a comer o quanto conseguissem quando havia comida disponível, já que ninguém sabia quando isso aconteceria de novo. De modo semelhante, nosso paladar evoluiu para achar agradáveis os sabores doces, porque coisas como mel ou certas frutas forneciam muitas calorias – que, naqueles tempos, eram preciosas. Hoje, graças à agropecuária moderna, aos transportes e ao comércio, a maioria de nós tem comida disponível na hora que precisar e na quantidade que quiser, mas o instinto de se empanturrar e o de gostar de doces continuam vivos no ser humano. Em consequência, as outrora escassas e valiosas calorias viraram um problema, e agora vamos à academia para gastá-las, fazendo movimentos que não têm qualquer finalidade prática – coisa que nossos ancestrais considerariam loucura. Coisa parecida acontece com o sexo: em uma hora navegando no XVideos, você provavelmente se expõe a mais estímulo sexual do que um ser humano médio era exposto durante toda a vida, um mero século atrás – e, como o nosso cérebro não sabe a diferença entre sexo virtual e real, não há dúvida de que isso, de algum modo, nos afeta. A tecnologia (e por esse nome não me refiro apenas a coisas como computadores e smartphones: a clava do homem primitivo já era tecnologia) surgiu para nos ajudar com problemas que tínhamos dificuldade em resolver sozinhos, e contribuiu de forma decisiva para a sobrevivência de nossa espécie mais vezes do que conseguimos contar – era o caminho mais recorrente que encontrávamos para usar nossa inteligência de maneiras que compensassem nossa debilidade física. Hoje, porém, ela mudou seu foco e, eu ousaria dizer, sua própria razão de ser: com nossa sobrevivência já garantida (pelo menos em relação às coisas que nos ameaçavam no passado), a tecnologia se propõe agora a ser uma extensão do próprio ser humano, mudando radical e talvez irreversivelmente a nossa maneira de interagir com o mundo e uns com os outros. Neste post tentarei comentar uma obra que trata de tudo isso.

Se me pedissem para descrever Black Mirror usando um único adjetivo, isso seria bem fácil, e esse adjetivo seria necessária. A série criada por Charlie Brooker apresenta uma história independente em cada episódio (apesar de vários deles parecerem frouxamente interligados entre si, muitas vezes por meio de detalhes que, para serem notados, exigem do espectador um certo grau de atenção), mas todos têm algo em comum: tratam da relação dos seres humanos com a tecnologia, e, na maioria das vezes, não de uma forma que nos deixe otimistas. E, ainda que isso seja penoso e exija de nós um bocado de coragem, essa questão precisa ser enfrentada – temos que respirar fundo e olhar nesse "espelho" (em inglês, mirror), pois dificilmente poderia haver um tema mais atual e que fosse mais relevante para um número tão grande de pessoas – praticamente a humanidade toda, a bem dizer.

A série nasceu na rede de TV britânica Channel 4, e sua primeira temporada foi ao ar em 2011. Eram apenas três episódios, já que se tratava de uma aposta um tanto arriscada: implicava em custos de produção consideráveis e não se sabia como seria a receptividade do público, entretanto parece que o saldo foi positivo, pois uma segunda temporada surgiu dois anos depois, com mais três episódios (como se vê, não é uma série recomendável para pessoas ansiosas). Em 2014 veio um único episódio, um especial de Natal com duração mais longa que o normal da série e seguindo aquela estrutura de filme-antologia que era popular no gênero terror durante os anos 80: havia uma história-moldura e, dentro dela, por meio de narrações, eram apresentadas três histórias curtas e (relativamente) independentes. No ano seguinte, a Netflix comprou a série, e, na sequência, anunciou novas temporadas, que chegaram em 2016 e 2017, cada uma com seis episódios. Outro especial foi lançado em 2018, Bandersnatch, um "filme interativo", no qual o espectador, via controle remoto, escolhe as ações do protagonista dentre duas ou três opções, e a soma de todas as suas decisões levará a um dos vários finais possíveis – é como naqueles livros tipo Enrola & Desenrola. A quinta e, até este momento, última temporada estreou em 2019 e tem três episódios.

O único gênero no qual consigo encaixar Black Mirror é a ficção científica, embora fazer isso pareça um pouco estranho, por razões fáceis de entender para quem vê a série, mas difíceis de explicar. Alguns episódios poderiam facilmente acontecer no mundo de hoje, com a tecnologia que já existe – na verdade, coisas parecidas já acontecem –, e outros parecem estar a um estalar de dedos de distância, quando pensamos em como a sociedade em que vivemos lida com coisas como redes sociais ou realidade virtual. O episódio da terceira temporada Queda Livre, por exemplo, retrata uma realidade na qual a dinâmica de like/dislike das redes sociais foi estendida para as interações presenciais do dia a dia: cada vez que interage com alguém no trabalho, na rua ou até em casa, você avalia essa pessoa numa escala de cinco estrelas; graças a certos implantes biocibernéticos que, nessa época, todo mundo tem, qualquer pessoa sabe instantaneamente a média de avaliações de qualquer outra, tão logo põe os olhos nela. Essa média é o que determina o que você é: um indivíduo popular, de quem todos querem ser amigos (para elevar suas próprias médias, é claro) ou um pária que as pessoas fingem não enxergar, tendo a entrada barrada em muitos lugares e sendo preterido no atendimento em estabelecimentos comerciais, aeroportos e até mesmo hospitais. Conclusão: hoje, em 2020, nós já vivemos num mundo onde o que você aparenta nas redes sociais é mais importante que o que você realmente é; tudo o que o mundo de Queda Livre tem de diferente é um tiquinho de tecnologia a mais – e as consequências assustadoras disso tudo. Talvez só a falta desse tiquinho de tecnologia esteja nos poupando, por enquanto, de arcar com essas consequências.

Em certa ocasião, numa entrevista, Charlie Brooker declarou que a tecnologia também é um tipo de droga, e, sendo assim, é uma preocupação válida se nos perguntarmos quais podem ser os seus efeitos colaterais – e esse é o motor que move Black Mirror. Não é mera força de expressão. Li tempos atrás na Superinteressante (salvo engano) a respeito de um estudo que indicava que é mais fácil uma pessoa se livrar do vício em crack que em redes sociais. O paralelo é completo: pode-se ter crise de abstinência de Facebook, Twitter e sei lá o que mais – nunca me interessei por essas coisas, e parece que foi melhor assim. É claro que a série não poderia ignorar esse assunto, que é pincelado em vários episódios, mas tem papel central em Smithereens, da quinta temporada, que conta a história de um homem em crise, que se culpa pela morte da noiva, há alguns anos: ele estava dirigindo o carro em que ambos viajavam, quando seu celular deu o alerta de alguma atualização em sua rede social favorita, e ele olhou. Esses segundos de distração causaram o acidente que custou a vida dela. Ele decide então sequestrar um alto executivo da empresa proprietária da rede social e ameaçar matá-lo, a menos que o todo-poderoso CEO da tal empresa converse com ele. Eis um episódio que pode levantar polêmica – polêmica de verdade, não do jeito como a tchurma da internet usa, chamando de "polêmica" qualquer coisa que cause hype e deixando claro que quem produz o conteúdo não tem a menor ideia do que essa palavra significa. Aqui cabe polêmica mesmo. À primeira vista, pôr a culpa nas redes sociais pelo uso obsessivo que muita gente faz delas (e que pode prejudicar seriamente suas vidas, de várias maneiras) parece tão sem sentido quanto querer processar o McDonald's exigindo indenização pela sua obesidade ou problemas cardiovasculares – afinal, ninguém obriga ninguém a se entupir de junk food cinco vezes por semana, nem a ficar 12 horas por dia numa rede social até isso ferrar seu cérebro e acabar com qualquer vida normal que porventura tivesse… Porém, a coisa muda de figura quando ficamos sabendo que as empresas de redes sociais têm departamentos inteiros que trabalham em tempo integral para encontrar maneiras de tornar o uso delas cada vez mais compulsivo, recorrendo para isso a todo o conhecimento que as ciências do comportamento podem oferecer.

Se alguns episódios de Black Mirror parecem se ambientar no presente (em geral, numa versão alternativa do presente), ou num futuro que pode ser real dentro de cinco, dez anos, outros chutam mais longe no campo da ficção científica, descrevendo futuros um pouco mais distantes, mas sempre com foco na questão da tecnologia e/ou mídias sociais. É o caso de Quinze Milhões de Méritos (primeira temporada), que retrata o cotidiano de pessoas que passam seus dias pedalando em bicicletas fixas para gerar energia, dentro de complexos aparentemente construídos para isso, sem contato com o mundo exterior. De acordo com a quantidade de energia que produzem, eles ganham méritos, que são uma espécie de moeda virtual com a qual podem adquirir desde comida até pequenas bobagens tecnológicas, acesso a jogos, TV etc. E, como a política do pão e circo nunca perde a atualidade, há um programa de talentos estilo The Voice que é extremamente popular; por meio dele um punhado de ex-pedaladores tornaram-se artistas de sucesso e alcançaram uma vida de glamour e conforto, o que, naturalmente, é o sonho de milhares, quiçá milhões. A inscrição para participar custa os 15 milhões de méritos do título, o que equivale a meses de trabalho frenético nas bicicletas. A história do episódio gira em torno de um jovem (o excelente Daniel Kaluuya, de Corra!), que se apaixona por uma garota com talento de cantora, mas que não tem como pagar a inscrição no programa. Ele a patrocina e ela realmente consegue participar, mas o resultado acaba sendo desastroso – muito pior do que ela levar "buzina", ou o equivalente a isso. O episódio termina dando-nos um doloroso tapa na cara para mostrar como até mesmo o protesto pode virar mercadoria comerciável e um instrumento a mais para fortalecer o status quo.

Pesquisando na internet em busca de informações sobre Black Mirror, vim a saber que as duas primeiras temporadas (as que foram lançadas enquanto a série ainda pertencia ao Channel 4) são as favoritas da maioria dos fãs; para mim, parece que essas pessoas estão cedendo ao instinto (tão comum) de dar mais valor ao que é alternativo só por ser alternativo, como quem pensa "ah, a Netflix é muito mainstream, não vai pegar bem se eu disser que ela fez um bom trabalho, tenho que ser da opinião de que a série só foi boa enquanto estava num canal menor e que, quando passou para a Netflix, decaiu – assim todo mundo vai me achar fodão". Minha própria opinião é que a primeira temporada é, de fato, muito intensa, mas não dá para dizer o mesmo da segunda, que tem um episódio forte, Urso Branco, um mediano, Volto Logo, e tem também Momento Waldo, a meu ver um dos episódios mais fracos de toda a série. A terceira e a quarta temporadas têm muito mais momentos marcantes, e mesmo a quinta, de modo geral execrada, tem coisas interessantes (já citei Smithereens). Suponho que a maior parte da bronca que muitos têm com essa temporada seja por causa do episódio Rachel, Jack e Ashley Too, uma história leve (para os padrões de Black Mirror, bem entendido) e com final otimista, o que deve ter decepcionado muita gente que, num episódio da série, espera ver coisas terríveis, trágicas ou chocantes. A participação da cantora Miley Cyrus, no papel de uma estrela pop (nããão, jura?!), também deve ter desagradado aos mais radicais. De minha parte, acho a variação de tons entre os episódios uma boa coisa; caso venham mais temporadas, espero ver um equilíbrio entre histórias mais tensas e outras mais divertidas. Não há motivo para que o futuro precise ser sempre retratado de modo tão negro e ameaçador. E, para falar francamente, Rachel, Jack e Ashley Too está longe de ser o melhor episódio de Black Mirror, mas está ainda mais longe de ser o pior.

Embora vários temas ligados à tecnologia sejam abordados na série, talvez o mais recorrente (e, pelo menos para mim, de longe o mais inquietante) é a possibilidade (teórica) da migração da consciência humana para algum tipo de dispositivo artificial. Em San Junípero (terceira temporada), pessoas próximas da morte podem ter a totalidade do conteúdo de suas mentes escaneada, copiada e carregada em poderosos servidores que rodam simulações virtuais perfeitas do mundo real, em qualquer época ou lugar que se deseje; na teoria, a pessoa pode passar a eternidade revivendo os momentos agradáveis de sua vida e/ou vivendo experiências novas, e, como o corpo que ela tem nas simulações é puramente virtual, pode descartar a idade e quaisquer doenças, voltar a ser jovem e forte e permanecer assim para sempre. Na teoria. À primeira vista, isso de fazer upload da sua mente para um computador pode parecer ótimo, e, em princípio, deve ser possível, pois, como dizia Joachim Kleronomas, uma mente humana é feita de memórias, memórias são dados, e dados podem ser copiados. Porém, se isso um dia se tornar factível, me parece, por simples lógica, que sua versão digitalizada não será realmente você. Para dar um exemplo: se sua mente for copiada para um substituto eletrônico de cérebro, e este for implantado num corpo robótico ou clonado (Westworld também lida com essa ideia), a criatura resultante pode parecer você, agir como você, pensar como você, pode até acreditar ser você, mas não creio que a sua consciência vá estar ali, que você realmente vá ver através daqueles olhos e experimentar as sensações daquele corpo. Será uma cópia sua, uma máquina programada para agir como se fosse você, e não mais que isso. Seu verdadeiro "eu" terá sido extinto ou terá migrado para outro plano de existência, conforme a crença que você tenha – enfim, você terá morrido, como sempre aconteceu com os seres humanos desde o princípio. Em palavras simples, acredito que seja possível copiar uma mente, mas não transplantá-la. Mas posso estar enganado, é claro.

O upload de consciência tem um papel-chave, também, no que talvez seja o episódio mais perturbador de todos (e é sem dúvida um dos melhores), Black Museum, o último da quarta temporada – mas se eu fosse descrever exatamente de que forma esse conceito é usado no episódio, teria que dar um spoiler pelo qual ninguém me perdoaria. Assim como Natal, trata-se de um filme-antologia. Na história principal, acompanhamos uma jovem que está viajando de carro pela estrada que corta o deserto no estado de Utah (Salt Lake City é mencionada) quando para num posto de combustíveis no meio do nada, só para descobrir que ele está fechado e vazio. Ela põe o carro para carregar usando a energia solar, mas isso demorará horas, e então, como se fosse uma decisão tomada de improviso, só para matar o tempo, ela vai até um estranho museu que fica exatamente ao lado – o Black Museum, cujo proprietário, administrador e cicerone é um homem chamado Rolo Haynes. Haynes explica à visitante que trabalhou durante muito tempo para a TCKR (empresa de tecnologia que aparece também em outros episódios) e esteve envolvido com certas experiências inovadoras e pouco ortodoxas, uma das quais acabou causando sua demissão. Então criou o museu, que reúne uma coleção de itens tecnológicos ligados de alguma forma ao crime ou tragédias. Ele conta as histórias de três dos objetos em exibição, mas o espectador atento reconhecerá outros, mostrados quase de relance, que tiveram papéis fundamentais em episódios anteriores. Por fim, a visitante é conduzida à atração principal do museu, sobre a qual não darei detalhes, mas, talvez mais que qualquer outro tema na série, essa revelação nos leva a refletir que a simbiose homem/máquina, que já começa a se tornar realidade em nossos dias, pode, sim, ter possibilidades (teóricas, insisto) fascinantes, mas também tem outras extremamente assustadoras e macabras. Tudo vai depender de como essas possibilidades vierem a ser exploradas, é claro, mas, se levarmos em conta o jeito como outras tecnologias têm sido aplicadas ao longo da História… Bem, acho que vocês me entendem.

Meu objetivo com este post foi apenas dar a quem ainda não assistiu uma ideia preliminar do que é Black Mirror, mencionando alguns episódios que considero relevantes; há vários outros que mereceriam destaque, e, se outra pessoa for redigir um texto com a intenção de apresentar a série, ela certamente escolherá episódios diferentes para citar. Há muitos sites e blogs por aí com análises aprofundadas, seja da série como um todo ou de episódios específicos – recomendo especialmente o Farofa Geek, que oferece uma interpretação fascinante a respeito de Black Museum, mas só leiam depois que tiverem assistido ao episódio. Minha conclusão será modesta, apenas reiterando que Black Mirror é muito necessária. Deveria ser vista por todos, já que todos vivemos nesse mundo maluco, e a maioria de nós viverá o suficiente para vê-lo tornar-se mais maluco ainda. É claro que a série dificilmente escapará da mesma sina que afeta a maior parte da ficção científica: por mais que suas previsões nos pareçam espantosas, a realidade, no devido tempo, muito provavelmente fará essas previsões parecerem tímidas e conservadoras. Ainda assim, ela vale por uma espécie de vacina mental, e talvez nos deixe um pouco mais preparados para o que devemos ver aparecer durante os próximos anos e décadas.

sexta-feira, junho 19, 2020

Manual Politicamente Incorreto da Civilização Ocidental

Caso queira ser chamado de simplório ou de repressor perverso, a maneira mais rápida é reconhecer que o mal realmente existe. No relativismo atual, a única coisa errada é dizer que algo é errado. (Anthony Esolen)

*          *          *

Não invoco nenhum mérito pessoal nisso (não decorre de nada que eu tenha feito conscientemente – me parece algo natural, como o formato do meu nariz), mas sempre fui atraído pela História, sempre desejei conhecer os fatos do passado, como eles estavam interligados uns com os outros e como influenciavam o presente. Sempre tive a curiosidade de saber como os povos de outros tempos viviam, lutavam e amavam – e, mais importante, saber o que eles amavam e pelo que lutavam. Sempre compreendi a dificuldade, e também a necessidade indispensável, de tentar "pensar com a cabeça da época", em vez de simplesmente aplicar os padrões atuais à realidade de séculos passados, como a maioria das pessoas faz sem perceber. E, sinceramente, não entendo como é que tanta gente vê a História como uma coisa estática, sem vida, tediosa, algo que, até onde lhes importa, se resume a decorar meia dúzia de nomes e datas para fazer uma prova, receber uma nota, e depois esquecer tudo. Tampouco consigo ver sentido naquelas duas frases repetidas à exaustão (e geralmente ditas juntas) por milhões de estudantes e por outros que já não o são há um bom tempo: "Estudar História é uma perda de tempo! Pra que eu vou usar isso?"

Para os poucos que compartilham essa minha vontade de saber por que o mundo e a humanidade são como são, e a quem devemos aquilo que temos e somos (o que traz junto o peso de uma grande responsa sobre os nossos ombros), livros como este são um achado. O autor Anthony Esolen promove nestas páginas uma extensa viagem às raízes do ocidente, além de buscar respostas para as questões que estão na cabeça de todo intelectual que, mesmo nesse desvairado século XXI, ainda insiste em prezar esse legado inestimável de arte, filosofia e princípios que recebemos de nossos antecessores. Dessas questões, a primeira que vem à mente nestes tempos é: a quem interessa a destruição sistemática de todos os valores que serviram de alicerce à nossa civilização – e por quê? Questão essa que levanta imediatamente uma outra: e quando esse mundo, que direta ou indiretamente nos deu tudo o que temos (pelo menos, tudo de bom e digno) estiver definitivamente demolido, ele será substituído… pelo quê? O livro de Esolen também discute possíveis maneiras de resistir, mesmo que nossa resistência seja como a dos poloneses no Levante de Varsóvia: há momentos em que devemos lutar porque essa é a coisa certa a se fazer, mesmo que a esperança de vitória pareça ser nenhuma.

Como sabemos, a Europa, e, por consequência, todo o ocidente, nasceu do tríplice encontro entre a filosofia grega, o direito romano e a fé judaico-cristã, e Esolen faz o percurso lógico, dedicando a cada uma dessas bases um capítulo logo no começo do livro. O mais interessante é que ele não se limita a discorrer sobre a "coisa em si": em vez de focar só na filosofia grega, por exemplo, oferece-nos um painel (bem resumido, é claro) do amadurecimento da civilização helênica, que tornou possível o nascimento dessa filosofia, com copiosas indicações bibliográficas para quem quiser se aprofundar na matéria, embora, infelizmente, a maioria dos livros que ele indica não tenha edição brasileira. Qualquer pessoa com um pingo de cultura sabe que a Grécia antiga foi o berço da democracia, é claro – mas Esolen nos mostra que, por mais que a democracia seja uma coisa magnífica, já naquela época, como hoje, ela, sozinha, não era e não é garantia de nada. Liberdade é um bonito conceito, mas, se entendida simplesmente como "cada um faz o que quer", leva à libertinagem e ao caos. O homem só é verdadeiramente livre quando compreende que a liberdade não vem de graça: ela traz consigo deveres e responsabilidades, e, se ele não se mostrar à altura, desonra-se perante si mesmo e perante seus pares – isso para não mencionar outras consequências piores que o deslustro de sua honra, piores por poderem afetar seus filhos, netos e demais descendentes, caso esse homem livre de que estamos falando falhe em fazer o que tempos de crise exigem dele. Isso explica, por exemplo, o que manteve os soldados de Leônidas, homens livres, firmes em seus postos mesmo diante da morte certa, numa situação na qual os soldados-escravos do rei da Pérsia já teriam debandado, ou o que levava um legionário romano a dar a vida para impedir que o inimigo se apossasse da águia de sua legião. Como Esolen diz em algum lugar, essas civilizações só alcançaram o que alcançaram porque dispunham de homens assim – homens que temiam menos a morte que a desonra. Graças, em grande parte, ao que a Grécia e Roma nos legaram, foi possível construir uma civilização na qual um sacrifício tão drástico raramente é necessário, mas, hoje, cabe a nós lutar outro tipo de batalha. Em nossos dias, a guerra é cultural, o inimigo é ardiloso e sem escrúpulos e, como dizia Thomas Jefferson, o preço da liberdade é a vigilância constante.

Falei em liberdade porque estava pensando em democracia; as duas não são a mesma coisa, é claro, mas estão estreitamente relacionadas, e, assim como a liberdade precisa ser merecida, a democracia traz em si alguns pressupostos: o povo precisa ter um nível mínimo de educação e de virtudes cívicas para estar em condições de fazer bom uso do poder que esse sistema coloca em suas mãos. O que nos deixa (a nós, brasileiros) numa sinuca de bico que não preciso explicar. Bem, vamos adiante.

Boa parte do Manual Politicamente Incorreto da Civilização Ocidental é dedicada a desmontar o mito politicamente correto que pinta a Idade Média como a "idade das trevas" ou até mesmo a "noite dos mil anos" (esta última só pode ter sido cunhada por algum historiador francês, provavelmente filiado ao Iluminismo). A origem desse mito é fácil de entender: a Idade Média foi o período de maior poder e influência da Igreja Católica – portanto, por razões ideológicas, é da mais alta importância para os politicamente corretos que ela tenha sido um período obscurantista e miserável, quase sem nenhum progresso. É claro que essa noção é muito mais antiga que esses movimentos lacradores que hoje tentam com tanto empenho tornar a nossa vida insuportável, mas deve-se àqueles que, poderíamos dizer, foram os ancestrais ideológicos desses movimentos: os iluministas do século XVIII (sempre eles). Esolen nos toma pela mão para um passeio instrutivo no qual mostra que coisas como as catedrais, palácios e até fortalezas militares espalhadas pela Europa são testemunhas de um progresso técnico notável nos campos da engenharia e da arquitetura, o que não teria sido possível numa era culturalmente estagnada; que os primeiros hospitais e universidades surgiram precisamente na Idade Média e por iniciativa da Igreja; que, ainda que as pessoas da época estivessem longe de ter uma vida fácil, ela também não era tão horrível quanto quiseram nos fazer acreditar. O engraçado (ou revoltante, depende de como você escolha encarar) é ver que, à medida que mais e mais descobertas de evidências arqueológicas e documentos históricos vão mostrando, para além de qualquer dúvida, que a Idade Média trouxe muitos e importantes progressos em muitas áreas, a mídia vai mudando seu discurso: diante da impossibilidade de negar que esses progressos aconteceram, ela passa a insinuar que eles foram alcançados apesar da Igreja Católica, e não graças a ela. Não que isso surpreenda a alguém, considerando o habitual modus operandi da mídia e dos grupos que a controlam, e o tipo de opinião que eles tentam plantar na cabeça da população pouco instruída – e, o que é pior, daquela parte da população que teve alguma instrução, mas não enxerga o quão ideológica e enviesada ela foi. O resultado disso, é claro, é que essas pessoas se julgam altamente "críticas" e "conscientes", quando na verdade tudo o que estão fazendo é engolir um discurso que receberam pronto, sem questionar nada, ir atrás da maioria e repetir as opiniões que as deixam "bem na foto".

Você certamente conhece o relato padrão da Renascença. Os plebeus se libertaram da tirania da Igreja, e – recém-libertos – tornaram-se mais felizes e sábios. Grandes artistas, escritores e pensadores, livres para se concentrar em algo além da fé empoeirada, criaram a maior revolução artística, filosófica e cultural já vista pela Europa. A Renascença, em suma, nos é vendida como uma rejeição da Idade Média e o glorioso triunfo do secularismo. (…) Todas essas formulações servem às finalidades de nossos dias. Denigrem a religião, exaltam a modernidade e permitem que os secularistas exijam o crédito pelo florescimento da criatividade. Elas também possuem a virtude da simplicidade. O absurdo também é simples. (p. 166)

Impossível não concordar, até porque a estratégia da mídia não tem muito como fugir da obviedade nesse particular: quando você está tentando vender uma versão tendenciosa, ela não funciona se não for óbvia. Logo, se a Idade Média era ruim por causa da influência da Igreja, a Renascença (e notem como até esse nome já está carregado de ideologia), por ter, alegadamente, rompido com a Idade Média, só podia ser boa. E não se trata aqui de negar as maravilhosas realizações que os artistas desse período alcançaram nos campos das artes plásticas e da música, principalmente, nem os progressos científicos que também ocorreram; afinal, a Renascença nos deu Leonardo da Vinci, que, só ele, já teria bastado para conferir relevância a essa época, mesmo que tivesse sido o seu único expoente importante – e não foi, aliás longe disso. Acontece que essa suposta ruptura com a Idade Média (e, por conseguinte, com a fé cristã) é quase sempre muito exagerada por conta do viés ideológico de quem está contando a história; em muitos casos, se corretamente examinadas, as grandes realizações renascentistas foram muito mais um desenvolvimento natural do que já vinha sendo feito durante a Idade Média do que um grito de independência em relação a ela. Por outro lado, é um engano achar que houve progresso em todas as áreas. Houve o surgimento de muitas obras incríveis, como já dito, nas artes plásticas (pintura, escultura), na música, além de avanços nas ciências naturais etc., mas o que dizer, por exemplo, da filosofia? Na Idade Média tivemos uma vasta e rica tradição filosófica (de base cristã), iniciada por Santo Agostinho e que encontrou sua coroação com São Tomás de Aquino, que conciliou de forma brilhante o pensamento de Aristóteles com a teologia cristã. Na Renascença, o que tivemos? Maquiavel? A comparação fala por si.

(É fato que Santo Agostinho, que viveu de 354 a 430, ainda pertence, cronologicamente, à Antiguidade, mas faz sentido considerá-lo um dos fundadores da filosofia medieval, devido à enorme influência que teve nos séculos seguintes e ao fato de que viveu apenas algumas décadas antes da data tradicionalmente considerada como a da transição da Idade Antiga para a Média, com a queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476.)

Vou admitir, por uma questão de honestidade intelectual, que por vezes, ao longo do livro, Esolen parece apoiar-se um pouco demais em sua fé católica para embasar seus pontos – e quem está dizendo isso é também um católico devoto. Se o objetivo do livro é defender as bases da civilização ocidental contra os ataques orquestrados pelos movimentos "progressistas" do nosso tempo, a meu ver o autor deveria fazê-lo de forma que soasse convincente para qualquer leitor, independentemente de sua fé ou da falta dela. Você pode ser um ateu, mas se, acima de tudo, for intelectualmente honesto (e não tiver se rendido à lavagem cerebral da mídia), não deverá ter problema em reconhecer que manter de pé a civilização que a Igreja Católica tornou possível seria benéfico para a humanidade de maneira geral, quer no campo cultural, social ou espiritual (e se você, como ateu, não gostar da palavra espiritual, pode substituí-la por "psicológico"; não é bem o que eu queria dizer, mas me falta palavra melhor – em todo caso, estou me referindo à saúde mental média da população do ocidente). Demolir as bases da nossa cultura e ensinar às novas gerações que não há ordem alguma no universo, muito menos algum sentido, e que o bem e o mal não passam de construções sociais, não vai criar um mundo mais livre e feliz; vai criar um mundo cheio de gente frívola, sem objetivos e com uma enorme tendência à depressão, às drogas e ao suicídio. Isso é algo que deveria ser evidente para qualquer pessoa razoável, fosse ela religiosa ou não. Infelizmente, o mundo sempre esteve em falta de pessoas razoáveis, e hoje não é diferente, com o agravante de que as facilidades de comunicação que a tecnologia trouxe, agora permitem que doidos de toda espécie arrastem para o seu lado multidões de jovens e de pessoas influenciáveis em geral, e que movimentos políticos com intenções escusas se aproveitem disso. Esolen estaria alcançando seus objetivos de forma bem mais eficiente se convencesse seu leitor de tudo isso sem precisar antes fazê-lo compartilhar de suas próprias convicções de fé – mas não o culpo, pois sei o quanto isso é difícil, ainda que os fatos e os exemplos históricos estejam aí à vista de todos, porque a mentalidade progressista já prendeu seus antolhos na cara de muita gente, e removê-los não é tarefa fácil.

A primeira vez que ouvi falar em "politicamente correto" foi durante os anos 90, e não dá para dizer que propriamente tenha ouvido falar; na verdade li sobre o assunto, numa revista (acho que era a Veja, mas não posso dar certeza) que folheava aleatoriamente na casa de alguém ou na sala de espera de um consultório qualquer – não lembro os detalhes. O texto era uma resenha sobre o livro Contos de Fadas Politicamente Corretos, de James Finn Garner (é claro que eu não lembrava o nome do autor também: procurei agora na internet), que, por sua vez, tinha o claro objetivo de ridicularizar a moda que estava então se popularizando nas universidades americanas, consistindo em fazer todo o esforço para purgar a linguagem de qualquer traço de racismo, sexismo, culturalismo, preconceito contra portadores de qualquer tipo de deficiência, e por aí afora… e de tudo o que as cabeças paranoicas e ultrassensíveis dos adeptos dessa ideologia entendessem como sendo qualquer uma dessas coisas, mesmo que o resultado fosse esquisitíssimo e, não raro, ridículo. Na prática, aplicado aos contos de fadas, isso gerou títulos como A Jovem de Origem Caucasiana e Seus Sete Amigos Prejudicados Verticalmente (para quem não entendeu, Branca de Neve e os Sete Anões). Nunca cheguei a ler o próprio livro, mas é fácil imaginar que a reação de quem o lesse seria, muito provavelmente, aquela pretendida pelo autor: dar risada. Naquele tempo, ainda parecia mais ou menos seguro confiar que essa "nova linguagem" seria encarada pela grande maioria das pessoas exatamente como aquilo que era – uma completa idiotice. Só que não era uma idiotice aleatória, e sim dotada de método e objetivo. Em 2020, em meio a notícias a respeito de escolas que estão adotando oficialmente o "gênero neutro" no ensino da língua portuguesa, fica bem mais difícil achar graça em tais coisas. "Politicamente correto", hoje, engloba muito mais que linguagem, virou designação de toda uma mentalidade que basicamente busca realizar o sonho dos marxistas mais radicais de décadas passadas: arrasar por completo a cultura e a sociedade existentes, para construir outras novas sobre as suas ruínas. Para conseguir isso, usa-se a mídia, que manipula informações de modo a moldar a opinião pública da maneira que mais favoreça esse objetivo, e a educação "moderna", que trata de inculcar cada vez mais cedo nas mentes de crianças e jovens a ojeriza a todos os valores tradicionais  (em especial religião e família) e a crença de que não existe bem ou mal, certo ou errado, de que tudo é relativo, maleável, questão de opinião e ponto de vista… E, embora tudo seja questão de opinião, só determinadas opiniões é que são aceitáveis. Agora é possível ver o que havia por trás da tal linguagem politicamente correta que nos arrancava risos há alguns anos: as palavras podem não ter poder sobre a realidade objetiva, mas têm poder sobre as mentes – o que, a longo prazo, vem a dar no mesmo. George Orwell, ao descrever a novilíngua em seu 1984, profetizou o que estamos vendo na prática hoje.

É revelador observar como, nessa nova cultura que tanto insiste em justiça e igualdade, tudo é seletivo, tudo tem dois pesos e duas medidas. O caso da linguagem apenas exemplifica o que acontece em todos os campos. A fala politicamente correta pisa em ovos para não deixar passar nada que possa soar longinquamente ofensivo a qualquer uma das assim chamadas minorias (você deve dizer "afrodescendente", porque “negro”, supostamente, traz conotações pejorativas), mas faz questão de ser o mais brutal e odiosa possível quando se trata de atacar o "outro lado": a expressão para "marido" é "estuprador legalizado". Foram inventadas até palavras e expressões totalmente novas, mas com objetivos óbvios, como "descolonização do corpo", que significa tornar-se lésbica… Porque, segundo o feminismo radical que acolheu de braços abertos a cultura politicamente correta, toda relação heterossexual é um estupro (elas afirmam isso com todas as letras), e, portanto, ser lésbica não é apenas uma característica que algumas pessoas apresentam e que deve ser respeitada: é uma escolha, um ato político – um ato de "libertação". Não podia ser mais evidente a intenção de pulverizar a família tradicional, que costuma ser um empecilho à implantação de regimes totalitários (com uma ou outra exceção, como o nazismo, que conseguiu, de certa forma, instrumentalizá-la). O mesmo com a religião: o “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, proferido por Jesus Cristo, deixou claro que há espaços na vida do indivíduo, e mesmo da sociedade, nos quais o Estado não deve interferir – ou seja, regimes totalitários são intrinsecamente maus e errados. Não causa surpresa, portanto, que os politicamente corretos de todas as vertentes tenham elegido o cristianismo como inimigo número um e alvo preferencial, e isso apesar de defenderem com tanto zelo (da boca para fora) a liberdade individual. No mundo de hoje, é opinião geral que toda pessoa deve ser livre para professar e praticar qualquer fé – contanto que não seja cristã. É malvisto criticar, ainda que moderadamente, o budismo, o islamismo ou qualquer forma de crença indígena/aborígine (é intolerância!), mas tudo bem dizer qualquer absurdo contra Deus, Jesus ou a Igreja (aí é liberdade de expressão). Há muito, mas muito objetivo por trás de tudo isso. O politicamente correto não é mais (se é que alguma vez o foi) um instrumento para proteger minorias; hoje, ele nada mais é que um meio que movimentos políticos usam para arrebanhar essas minorias – que, em termos de números, são na verdade a maioria – para usar como massa de manobra e, de quebra, calar quem discorda. Muito deste parágrafo e do anterior são observações minhas, aproveitando um ou dois ganchos fornecidos no livro de Esolen.

O capítulo VIII, já próximo do final do livro, intitula-se O Século XIX: o Homem é um Deus; o Homem é uma Besta, e inclui reflexões sobre mais de um ponto interessante. Primeiro, o que lhe dá título – no século XIX, impulsionada pelo romantismo, instaurou-se uma tendência de endeusar a natureza, o que, por sua vez, abriria caminho para a divinização do homem, que ganhou um porta-voz em Friedrich Nietzsche (1844-1900). Não que o romantismo, de maneira geral, fosse particularmente propenso ao ateísmo – muitos de seus expoentes eram cristãos, e mesmo os que não o eram, geralmente cultivavam alguma forma de espiritualidade –, mas a ênfase que ele punha nos sentimentos, no "mundo interior" de cada um, na coisa subjetiva, levou muitos (não todos, nem a maioria, mas muitos) a uma tendência perigosa para o individualismo, e daí para o ateísmo o caminho costuma ser curto. Uma vez que se admita que não há Deus, os próximos passos são previsíveis. O ideal do comportamento humano seria que o simples fato de compreendermos o que é certo e o que é errado fosse suficiente para nos levar a buscar o primeiro e evitar o segundo – porque isso é o correto a se fazer e pronto, sem necessidade de qualquer promessa de recompensa ou de castigo. Mas, repito, isso seria o ideal. Na prática, o ser humano não é assim. Se ele achar que ninguém nunca irá lhe pedir contas do que andou fazendo, quase sempre agirá conforme suas inclinações o inspirarem, fará o que tiver vontade sem se importar com quem prejudica. Ou seja, como escreveu Dostoiévski de forma tão concisa e certeira, "se Deus não existe, tudo é permitido". O homem fica livre (pelo menos, tem a impressão de que isso é liberdade) para agir ao sabor dos impulsos, deixar-se conduzir unicamente por seus instintos. Esolen exemplifica citando certas "comunidades alternativas" que surgiram na Europa no século XIX, nas quais se praticava o assim chamado amor livre. "O homem é um deus, o homem é uma besta (no sentido de animal ou fera); o homem é tudo, menos um homem."

O último capítulo, O Século XX: um Século de Sangue é dedicado a mostrar como as bases do ocidente foram sendo lentamente (ou nem tão lentamente assim) solapadas ao longo do século passado, por muitos e variados meios. A crescente intromissão do Estado na vida do indivíduo levou ao enfraquecimento da autonomia da família e dos laços entre seus membros; hoje em dia, sob o pretexto de proteger as crianças contra abusos, vem-se tirando dos pais, cada vez mais, o direito de dar a seus filhos o tipo de educação que julgarem melhor. A revolta infantiloide da maior parte da comunidade artística contra as convenções "burguesas" da arte clássica mudou as coisas, e, na minha opinião, não foi para melhor: achar que o objetivo da arte deve ser a beleza é considerado agora um ponto de vista míope e atrasado, ou até mesmo elitista – e quem contraria essa corrente é sistematicamente boicotado. O poder que a arte – aí incluídas não apenas as artes plásticas, mas também a literatura, a música e assim por diante – exerce sobre a mente do indivíduo e, por consequência, sobre a sociedade, é subestimado em muitos círculos, mas parece que o grupo dos que se interessam pela implosão da cultura ocidental o conhece muito bem. A análise de Esolen a respeito disso é elucidativa e perturbadora.

Como uma observação final sobre o livro, quero registrar que, tal como no único outro Manual Politicamente Incorreto que já tinha lido (ver aqui), senti o peso de um ponto de vista fortemente norte-americano, em especial quando o autor se alonga por páginas e mais páginas que pouco dizem aos não-estadunidenses, por abordarem a história dos EUA – da qual, sem dúvida, seria útil termos um conhecimento maior – ou aspectos do cotidiano daquele país, muito descolados da nossa realidade. Mesmo assim, o livro é valioso e importante, por acrescentar muitos conhecimentos e fornecer insights aos que desejam fazer a sua parte, por menor que seja, no esforço de resistência contra a demolição sistemática que vem sendo empreendida contra a nossa civilização.

sexta-feira, maio 22, 2020

As Crônicas de Nárnia

É claro que eu sempre soube que em algum momento leria as Crônicas de Nárnia; já tenho o livro há alguns anos, mas o dia de realmente pegá-lo para ler vinha sendo protelado devido ao apelo irresistível de outros livros, que sem a menor cerimônia furavam a fila. Foi minha namorada, Cintia, quem providenciou o empurrão de que eu precisava ao reclamar, e não pela primeira nem segunda vez, que não aguentava não ter com quem comentar algo de muito surpreendente, empolgante ou curioso que acontece ou é revelado no último livro da saga, adequadamente intitulado A Última Batalha. Quando o protesto foi substituído pela ameaça de "spoilear" a coisa para poder comentar de um jeito ou de outro, me rendi. Bem-vindos aos domínios do poderoso Aslam!

Na verdade eu já tinha lido os dois primeiros livros, O Sobrinho do Mago e O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, na primeira edição da Martins Fontes, que era em pequenos volumes separados; tenho até mesmo um velho exemplar de O Príncipe e a Ilha Mágica, que vem a ser o mesmíssimo Príncipe Caspian (1951), segundo livro a ser publicado (quarto pela ordem cronológica), em sua primeira edição brasileira, lançada pela obscura editora ABU lá nos anos 80. Porém, depois de tanto tempo, o melhor era começar de novo e ler de uma tacada o volume único, também da Martins Fontes, como se fosse tudo um livro só. E foi o que fiz.

Se Clive Staples Lewis (1898-1963) não tivesse se dedicado à literatura fantástica, é provável que, hoje em dia, só fosse conhecido no restrito círculo dos estudos profundos de teoria literária e história da literatura, e possivelmente, também, pelos interessados em apologética cristã. Pois ele se dedicou a tudo isso, e sobressaiu em todas essas áreas. Irlandês de nascimento, Lewis ensinou nas universidades britânicas de Cambridge e Oxford; nesta última, foi colega de J. R. R. Tolkien, com quem firmou uma profunda amizade, reforçada pelos interesses comuns em língua e literatura, especialmente literatura medieval. Apesar da amizade, os dois divergiam em alguns pontos fundamentais, como no fato de Tolkien ser um católico fervoroso, enquanto Lewis era ateu. Depois de anos de discussões filosóficas, em 1931, ao final de uma conversa legendária que varou a madrugada, Tolkien por fim logrou êxito em converter Lewis ao cristianismo, ainda que tenha ficado um tanto decepcionado porque o amigo optou por voltar à Igreja Anglicana, na qual fora educado e da qual se afastara na adolescência, ao invés de abraçar a fé católica, como ele esperava. Os dois e mais alguns amigos literatos fundaram um grupo, uma espécie de pequeno clube informal denominado The Inklings; a tradução é difícil, o mais próximo que consigo chegar é "os da tinta", assim como Earthling significa "da Terra", com o sentido de terráqueo. Esse grupo se reunia num pub nas noites de quinta-feira para conversar sobre literatura; nessas ocasiões trocavam manuscritos ou os liam uns para os outros. Foi assim que Lewis tornou-se uma das primeiras pessoas a ler O Hobbit, e incentivou fortemente Tolkien a publicá-lo, tal como também o incentivaria durante o demorado processo criativo de O Senhor dos Anéis. Tudo indica que a influência de Tolkien tenha sido um dos fatores que levaram Lewis a, por sua vez, dedicar-se a escrever fantasia, embora também seja verdade que ele sempre teve um fascínio por folclore e mitologia, as fontes originais desse tipo de literatura.

As Crônicas de Nárnia só tiveram seu primeiro livro publicado em 1950, sendo que as reuniões dos Inklings deixaram de realizar-se no ano anterior, mas é provável que Tolkien e os outros tenham tido acesso a versões iniciais; sabe-se que o Professor nunca gostou muito delas, por serem essencialmente alegóricas, coisa que ele não apreciava, já que considerava a alegoria como uma forma de coerção intelectual – o autor estaria como que obrigando o leitor a interpretar a história da mesma maneira que ele. Em todo caso, Tolkien reconhecia às Crônicas o mérito de fábulas morais que poderiam contribuir para transmitir às novas gerações a moralidade cristã e os valores humanos fundamentais.


Quando me referi a O Sobrinho do Mago como sendo o primeiro livro das Crônicas, considerei a ordem cronológica da leitura, que é como os sete livros são apresentados nesta edição em volume único; pela ordem de publicação, ele seria o penúltimo, pois sua primeira edição é de 1955, depois de cinco outros livros e antes apenas de A Última Batalha. Entretanto, é em O Sobrinho do Mago que vamos encontrar a narrativa da criação do mundo que abriga o reino de Nárnia e dos primeiros contatos entre esse mundo e o nosso. O narrador afirma que os acontecimentos ali descritos tiveram lugar quando "Sherlock Holmes ainda vivia em Londres", o que significa algo entre o fim do século XIX e os primeiros anos do XX. O sobrinho do mago em questão é o garoto Digory Kirke, que acaba de mudar-se do interior da Inglaterra para Londres, em companhia da mãe doente, para morar com os tios André e Letícia, dois irmãos solteirões. O tio André é que é o mago… Ou, ao menos, acha que é: ele tem uma noção extremamente exagerada a respeito de seus próprios conhecimentos e poderes. Não sou muito de ficar procurando pelo em ovo, tenho uma tendência de me impacientar quando vejo alguém analisar uma obra e começar a atribuir-lhe "sentidos ocultos" e "mensagens nas entrelinhas" que provavelmente fariam o autor dar boas risadas se lhe perguntassem a respeito, mas, desta vez, não pude evitar que esse personagem me fizesse pensar em certo tipo de cientista, que se empolga tanto com os progressos alcançados, que por vezes não se dá conta de estar lidando com coisas que podem ser perigosas. Tio André herdou de sua falecida madrinha (segundo ele, uma descendente de fadas) um punhado de pó que teria vindo de outro mundo, ou outra dimensão, como diríamos hoje, e, trabalhando com esse material, consegue descobrir um meio de viajar magicamente para esse lugar, mas, em vez de ir pessoalmente, recruta Digory e sua amiga Polly como exploradores. Dessa forma as duas crianças chegam ao mundo de origem do tal pó, que, como descobrem, não é exatamente um mundo, mas uma espécie de encruzilhada entre as dimensões; tem a aparência de um bosque onde existem inúmeros pequenos lagos, cada um deles, na verdade, um portal para um mundo diferente. Passando por um deles, Digory e Polly vão sair num imenso palácio, uma edificação majestosa, mas quase em ruínas, como se já estivesse abandonado há séculos. Lá, inadvertidamente, acabam despertando a temível rainha-bruxa Jadis de uma espécie de sono mágico no qual ela se encontrava aprisionada sabe-se lá há quanto tempo. A feiticeira vem parar no nosso mundo, e, vendo o estrago que ela poderá causar caso sua estada se prolongue, Digory e Polly encontram um jeito de levá-la novamente ao Bosque Entre os Mundos, e, de lá, para qualquer mundo aleatório – e o mundo em questão acaba sendo aquele, ainda recém-criado, que abrigará Nárnia e outros reinos. Lá, Jadis estará entre os principais vilões da saga que irá se desenrolar.

Merece destaque a narração a respeito do nascimento da vida em Nárnia, que ainda é um lugar escuro e informe quando os personagens chegam lá; eles testemunham o primeiro nascer do sol e a criação da vida vegetal e animal, incluindo os seres míticos. Lewis é extremamente bem-sucedido ao narrar esses eventos com uma combinação de delicadeza e grandiosidade, tudo isso corporificado em Aslam, o Leão, cuja canção vai dando forma ao novo mundo (ou seja, aqui, como no Ainulindalë de Tolkien, o mundo nasce por meio da música!). Ao contrário de Tolkien, Lewis não via problema em recorrer a alegorias, e Aslam é sem dúvida a maior delas: o Leão é Jesus Cristo em pessoa sob uma aparência fantástica. Isso já fica suficientemente claro nesta primeira história, mas vai sendo reforçado por meio de suas palavras e atos ao longo das próximas.

A segunda história neste volume único foi a primeira a ser publicada; trata-se de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa (1950), cuja narrativa apresenta os quatro irmãos Pevensie: Peter, Susan, Edmund e Lucy, que na tradução são chamados de Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia (não sei ao certo o que penso a respeito de traduzir nomes próprios; às vezes isso parece necessário e adequado, às vezes não, e aqui é um dos casos em que não parece, mas OK). Os quatro são mandados pela mãe para longe de Londres, que sofria com os bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mundial, e hospedam-se na casa de campo de um amigo da família, o professor Kirke – que é ninguém menos que o garoto Digory, agora já um homem idoso, que teve uma carreira notável como intelectual e aventureiro. Tenho a "sensação" de que o professor pode ter sido inspirado em Tolkien – quero dizer, na pessoa de Tolkien, não em sua obra. Posso estar presumindo demais, mas há pelo menos um indício a favor dessa teoria: a mãe de Digory chama-se Mabel, o mesmo nome da mãe de Tolkien. Isso, porém, não é importante aqui.


A casa do professor Kirke é uma daquelas mansões rurais do interior da Inglaterra: muito antiga, e tão grande que o próprio professor declara que não a conhece muito bem. É nela, num dos muitos quartos desocupados, que Lúcia, a caçula dos quatro irmãos, acidentalmente descobre um guarda-roupa cujas portas dão acesso a uma passagem entre mundos. A origem desse guarda-roupa é contada no final de O Sobrinho do Mago: ele foi construído com a madeira de uma árvore cuja semente veio de Nárnia, e é lá que Lúcia vai sair. O tempo transcorre de maneiras diferentes em cada lugar, e parece que nem sempre do mesmo jeito: às vezes parece correr mais lento em Nárnia que na Inglaterra, e outras vezes sucede o contrário. Faz apenas algumas décadas que Digory Kirke esteve em Nárnia, mas, quando a pequena Lúcia põe os pés lá, séculos se passaram. O país está dominado pela temida Feiticeira Branca, que não é outra senão Jadis, outrora a imperatriz de um mundo já desaparecido, que ficou aprisionada em Nárnia em O Sobrinho do Mago, e lá tratou de consolidar seu poder. Agora se diz rainha de Nárnia, mas, embora parte dos narnianos (que são seres míticos ou animais falantes) tenha-se colocado a seu serviço, a grande maioria não a reconhece como tal e espera pelo cumprimento de uma profecia que promete o fim da tirania da feiticeira e a liberdade para toda a terra e seus habitantes. A profecia tem duas partes: uma fala sobre o retorno de Aslam, que não é visto em Nárnia há séculos; a outra diz que, quando os quatro tronos no castelo de Cair Paravel forem ocupados por "filhos de Adão e filhas de Eva", quer dizer, seres humanos, o poder de Jadis terá fim, e o inverno permanente que sua magia lançou sobre Nárnia finalmente acabará. A feiticeira, é claro, mantém observadores e presta a máxima atenção a quaisquer informes sobre a possível presença de humanos em Nárnia; quando Edmundo também faz a travessia pelo guarda-roupa, ela o encontra vagando sozinho pelos bosques gelados e facilmente obtém dele toda a informação de que precisa, engambelando-o com promessas de adotá-lo e fazer dele um príncipe, se trouxer até ela seu irmão e irmãs. Por serem justamente quatro, dois meninos e duas meninas, Jadis vê neles o potencial para cumprir a profecia, o que ela quer impedir a todo custo. Isso já é suficiente para dar uma ideia do enredo, e não vou continuar para não dar spoilers, mas não dá para deixar de comentar como Aslam se oferece como vítima em sacrifício em troca da vida de Edmundo, que deveria morrer por ter traído os irmãos, e, mesmo com todo o seu poder, deixa-se matar sem opor resistência, para depois ressuscitar mais poderoso e glorioso que antes – coisa com a qual Jadis não contava, porque, como Aslam explica, ela pode conhecer a Magia Profunda, mas ignora que existe outra magia ainda mais profunda, que vem de antes da aurora dos tempos.

Para completar, quando Edmundo retorna ao convívio dos irmãos, o Leão diz a estes que não devem recriminá-lo e que "o que passou, passou". Subentende-se que Edmundo já foi suficientemente castigado pela própria consciência, arrependeu-se e recebeu o perdão – isso é cristianismo puro. Deve-se notar que, ao ser resgatado das garras de Jadis e trazido até o acampamento onde estão Aslam, seu exército e também Pedro, Susana e Lúcia, Edmundo não é imediatamente conduzido para se juntar aos irmãos; antes disso, ele e Aslam têm uma conversa a sós, na qual, como o narrador sublinha bem, somente os dois sabem o que foi dito, e mais ninguém – uma clara alusão ao sacramento da confissão, muito prezado pelos católicos, mas alvo de controvérsia entre os anglicanos. Parece que, nesse ponto, Lewis se inclinava ao catolicismo.


A história seguinte é O Cavalo e seu Menino (1954), que tem lugar durante o reinado de Pedro como Grande Rei em Nárnia (com os irmãos como corregentes), mas começa em outro reino, Calormânia, onde o garoto Shasta vive com um pescador que o adotou e sonha em conhecer as terras do norte – quer dizer, Nárnia –, sobre as quais seu pai adotivo e os vizinhos evitam até mesmo falar. A sorte de Shasta tem uma reviravolta quando um tarcaã (parece ser um título nobiliárquico calormano; gostaria de saber como era isso no original…) se hospeda na cabana de seu pai e propõe comprá-lo como escravo, negociação essa que o pescador está disposto a aceitar, sendo o valor da transação a única dúvida. Shasta descobre que o cavalo do tarcaã nasceu em Nárnia e, como muitos animais lá, é capaz de falar e tão inteligente quanto um ser humano, detalhes esses que o animal sempre escondeu cuidadosamente de seu amo, mas revela a verdade ao garoto, e os dois decidem fugir juntos rumo ao norte. Por não conseguir pronunciar o nome com o qual o cavalo se apresenta, Shasta passa a chamá-lo de Bri. Durante sua viagem, os dois eventualmente se encontram com Aravis, a filha de um tarcaã que está fugindo da casa do pai para evitar um casamento arranjado, e a montaria de Aravis é Huin (onomatopeia de um relincho!), uma égua também de origem narniana e falante, como Bri. Como todos têm o mesmo destino, seguem viagem juntos; será inevitável passarem por Tashbaan, a capital da Calormânia, onde Shasta vem a conhecer Edmundo e Susana, dois dos quatro reis de Nárnia. Eles estão ali para as tratativas de um possível casamento entre Susana e o príncipe Rabadash, filho do Tisroc (título dado ao monarca calormano), mas a jovem acaba decidindo que não quer se casar com ele, e a delegação narniana parte de surpresa, para evitar que ela e o irmão acabem sendo feitos reféns. O príncipe, inconformado, convence o pai a invadir Nárnia, e, de formas que vocês saberão quando lerem o livro, esse plano chega ao conhecimento de Shasta, Aravis e seus amigos equinos, que precisam então avisar os reis de Nárnia e ajudá-los a impedir essa invasão. Não sei se alguma coisa do tipo foi levantada enquanto C. S. Lewis era vivo, mas hoje em dia, na "era da lacração", O Cavalo e Seu Menino é alvo de críticas, acusado até mesmo de racismo, porque a Calormânia e seus habitantes, nitidamente inspirados nos povos árabes, ficam com o papel de "império do mal", que tenta atacar a livre e pacífica Nárnia, que faria as vezes da Europa. Como sabemos, o discurso que garante os aplausos nestes nossos tristes dias consiste em pintar a longa e geralmente turbulenta relação entre o Oriente Médio e a civilização ocidental como se tivesse sido feita exclusivamente de ataques covardes e gratuitos desta última contra o primeiro; afinal, esses povos brancos e, pior ainda, cristãos, têm que ser apontados sempre como os vilões da História, não é mesmo? Eu não me surpreenderia se aparecesse gente propondo uma "reescrita" das obras de Lewis, como já quiseram fazer com as de Mark Twain… Antes de passar ao próximo livro, duas notas de pé de página. Primeira: no capítulo 14, uma conversa entre Aslam, Bri, Huin e Aravis toca num ponto importante da fé e da teologia cristãs; esse trecho deve ser lido mantendo em mente que o Leão simboliza Cristo. Seria empolgante esmiuçar a coisa, mas não posso permitir que este texto atinja dimensões demasiado absurdas, e, além disso, tem que sobrar algo para o leitor descobrir quando for ler o livro!… Segunda: a maneira de falar dos personagens calormanos de alta estirpe poderá cansar alguns leitores pelo excesso de floreios retóricos e poéticos, mas, correndo o risco de parecer pedante, devo dizer que me diverti muito com essas passagens. Lewis era certamente um mestre das palavras, e creio que isso tenha sido uma alfinetada proposital no estilo desnecessariamente rebuscado adotado por certos escritores e/ou oradores (assumo minha parcela de culpa).

Em Príncipe Caspian (1951), os irmãos Pevensie estão completando um ano desde seu retorno ao "mundo real" depois das aventuras vividas em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, e estão no meio de sua viagem de volta à escola, ao fim das férias, quando são novamente chamados a Nárnia, onde chegam de um jeito diferente da primeira vez – pois, segundo o ensinamento de Aslam, "nada acontece duas vezes da mesma maneira". Ao chegarem lá, descobrem que 13 séculos se passaram desde os tempos de seu reinado, e que Nárnia foi invadida pelos homens de Telmar, que a conquistaram de forma violenta e quase exterminaram os narnianos originais. Há alguns anos, o rei Caspian IX morreu, deixando um filho de mesmo nome, ainda pequeno, que, desde então, está sob a tutela de seu tio Miraz; este deveria atuar como regente até que o jovem Caspian chegasse à maioridade, mas acaba por fazer-se ele próprio rei. Caspian leva a vida normal de um príncipe herdeiro, mas tem uma particularidade: é fascinado pelas histórias da antiga Nárnia, que lhe são contadas primeiro por uma velha ama e mais tarde pelo Dr. Cornelius, seu preceptor – mas esse interesse não é bem visto pelo tio. Tudo a respeito dos narnianos é considerado mero conto de fadas nessa época, como se nunca tivesse existido de fato, e tanto Miraz quanto as demais figuras importantes da sociedade telmarina prefeririam que tudo isso fosse completamente esquecido.

Quando a esposa de Miraz tem um filho, o usurpador decide dar um fim em Caspian, que é salvo por Cornelius e parte em busca dos descendentes que restaram dos antigos narnianos, pedindo sua ajuda para conquistar o trono que por direito lhe pertence e prometendo que, se ele se tornar rei, iniciará uma nova era de paz entre telmarinos e narnianos, e reinará com justiça sobre ambos os povos. Pedro, Edmundo, Lúcia e Susana são figuras legendárias nesses tempos; como o próprio narrador compara, o retorno deles é para Nárnia o que seria para a Inglaterra a volta do rei Artur, como profetizado na lenda, e, ao que se espera, a presença deles fortalecerá a fé dos seguidores de Caspian durante a guerra que se prepara para estourar. Novamente, a narrativa de fantasia e aventura funciona por aquilo que é, e funcionaria mesmo que não houvesse qualquer mensagem em particular a ser passada – mas a mensagem existe, e desta vez o momento-chave está no capítulo 10, no qual um diálogo entre Lúcia e Aslam aborda a necessidade de acreditar mesmo que ninguém mais acredite, e de ter a coragem de seguir o caminho certo ainda que para isso seja preciso abandonar a segurança de um grupo e ir sozinho – coisas que sempre foram necessárias ao cristão, desde os primórdios, e hoje, talvez, mais do que nunca. Provavelmente vocês viram o filme, eu também vi e gostei, mas não se contentem com ele: leiam o livro. Há detalhes importantes que foram deixados de fora, importantes especialmente para quem está procurando interpretar o simbolismo cristão na obra de Lewis. Por outro lado, o roteiro do filme fez alguns acréscimos interessantes à história, coisas que não estão no livro, mas que são muito plausíveis e, poderíamos dizer, até mesmo adequadas, como a rivalidade que surge entre Pedro e Caspian, o antigo e o atual rei. E a parte sobre as árvores da floresta marchando para a batalha, essa eu poderia jurar que foi inspirada numa conversa entre Lewis e Tolkien!…


Em A Viagem do Peregrino da Alvorada, mais um ano se passou no "mundo real", a guerra já acabou (eu sei, no filme não) e Edmundo e Lúcia, os dois Pevensie mais jovens, estão hospedados, muito a contragosto, com seus tios Arnold e Alberta, que têm um filho chamado Eustáquio, o protótipo daquele primo insuportável que todo mundo tem ou já teve – a menos que você seja o primo insuportável. Não é por acaso que, dos quatro protagonistas anteriores, apenas Lúcia e Edmundo estão em cena: Aslam havia predito (ou decidido, como parece mais provável) que só os dois retornariam a Nárnia depois dos eventos do livro anterior, pois Pedro e Susana já haviam aprendido tudo o que podiam lá. E quando os dois fazem pela terceira vez a passagem entre os mundos, Eustáquio acaba indo junto. O trio se vê no meio do mar e é recolhido pela tripulação do Peregrino da Alvorada, um navio da novíssima armada de Nárnia, que o agora rei Caspian fez construir após ter conseguido, ao menos em parte, domar o pavor instintivo que seus patrícios telmarinos tinham do mar. E o rei em pessoa está a bordo; ele explica a Lúcia e Edmundo que o objetivo de sua viagem é procurar por sete nobres telmarinos que eram amigos de seu pai, o rei Caspian IX, e por isso foram exilados pelo usurpador Miraz, para impedir que apoiassem o jovem príncipe quando ele reivindicasse seu direito ao trono. A jornada vai levá-los a mares raramente navegados antes e a descobertas fantásticas; é uma narrativa de "viagens maravilhosas" que segue uma tradição antiga na literatura popular do ocidente – e não só do ocidente: alguém lembra das aventuras do marinheiro árabe Sinbad? As origens desse tipo de história remontam, pelo menos, à Odisseia de Homero (que Edmundo chega a citar) e às viagens de Jasão e os Argonautas, e digo pelo menos porque, pelo pouco que sei sobre a Epopeia de Gilgamesh e outros textos legendários sumérios e assírio-babilônicos, suas raízes podem ser ainda mais profundas. Como também é comum em narrativas de viagens por terras desconhecidas, A Viagem do Peregrino da Alvorada acaba sendo, ao mesmo tempo, uma jornada de autodescoberta para diversos personagens; os exemplos mais marcantes são Eustáquio, que vai aos poucos mudando para algo melhor que aquele garoto de maus instintos e desprovido de imaginação, e Caspian, ainda aprendendo a ser um bom rei e a controlar seu temperamento impulsivo e por vezes autoritário. Mais sutilmente, também Lúcia aprende e "cresce"; já Edmundo parece ter aprendido sua lição em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, e não faz novas grandes descobertas interiores, embora vá ganhando experiência e demonstrando mais maturidade. Além de tudo isso, Lewis não resistiu a fazer uma crítica bem-humorada a uns e outros por meio dos Tontópodes, criaturas simpáticas, embora um tanto ridículas (engraçadas, vá), que os aventureiros encontram numa das ilhas onde aportam: eles sempre concordam enfática e energicamente com quem estiver falando no momento, e, se logo em seguida outra pessoa tomar a palavra e disser exatamente o contrário do que disse a primeira, imediatamente lhe dão razão com o mesmo entusiasmo… Caramba, espero que o recado tenha sido entendido pelo menos por alguns. Ao final, Lúcia e Edmundo descobrem, entristecidos mas conformados, que essa aventura, na qual não chegaram a pôr os pés em Nárnia propriamente dita, marcou sua última visita àquele mundo. Tal como já acontecera a Pedro e Susana, daí em diante terão que encontrar seus caminhos em seu próprio mundo, onde Aslam também está, mas, como ele mesmo informa, é conhecido por outro nome.

Como, portanto, os dois últimos dos irmãos Pevensie não mais voltarão a Nárnia, é seu primo Eustáquio quem sobra para servir de elo com a história do sexto livro, A Cadeira de Prata. Durante o ano letivo que se segue às férias em que teve sua primeira experiência em Nárnia, Eustáquio está bastante mudado, e sua colega de escola, Jill Pole, que já o conhecia antes, não deixa de notar o fato. Os dois estudam num colégio experimental, e Lewis, experiente professor, não fazia questão alguma de esconder o que pensava daquela pedagogia moderna:

Os diretores achavam que as crianças podiam fazer o que desejassem. Infelizmente, porém, havia uns dez ou quinze da turma que só queriam atormentar os outros. Lá acontecia de tudo: coisas horríveis que, numa escola comum, seriam descobertas e punidas. Mas ali, não. Mesmo que se descobrisse quem as havia feito, o responsável não era expulso nem castigado. O diretor achava que se tratava de "interessantes casos psicológicos" e passava horas conversando com tais alunos. E estes, se encontrassem uma resposta adequada para dizer ao diretor, acabavam se tornando privilegiados.

E mais:

Devido aos curiosos métodos de ensino do Colégio Experimental, lá não se aprendia muito Matemática ou Latim, mas todos sabiam desaparecer rapidamente e sem ruído, quando eles [os bullies, diríamos hoje] estavam atrás de alguém.

Jill, então, acompanha Eustáquio quando ele é novamente transportado para o mundo onde fica Nárnia – e, para manter a tradição da saga, a viagem acontece de uma maneira nova, diferente de todas as passagens anteriores. Jill, de certa forma, recebe um privilégio, pois encontra-se com Aslam praticamente assim que chega a Nárnia, o que não acontecera com nenhum outro protagonista até então. O Leão explica-lhe que ela e Eustáquio estão ali porque têm uma missão a cumprir: o único filho do velho rei de Nárnia foi raptado, e eles devem encontrá-lo e trazê-lo de volta, já que a morte de um rei sem herdeiro pode facilmente lançar o reino no caos. Quando as duas crianças chegam à corte em Cair Paravel, Eustáquio sofre um choque ao ter seu primeiro contato com o fenômeno da marcha diferente do tempo no nosso mundo e em Nárnia: o rei não é outro senão Caspian X, que ele conheceu como um rapaz em sua visita anterior, e agora é um homem idoso, pois naquele mundo 70 anos se passaram, enquanto na Terra transcorriam apenas alguns meses.

Além de longo, o reinado de Caspian foi próspero e marcado pela justiça, mas também por uma tragédia: seu filho, o príncipe Rilian, foi raptado, faz vários anos, aparentemente por uma feiticeira por quem ele se havia apaixonado, que tinha o poder de metamorfosear-se numa serpente (acredito que qualquer semelhança com outras histórias envolvendo criaturas em forma de serpente que seduzem ou enganam os incautos não seja mera coincidência). Muitos dos mais bravos cavaleiros e guerreiros de Nárnia – humanos ou não – partiram em busca do príncipe desde então; nenhum obteve sucesso, e a maioria não voltou, então Caspian, embora arrasado pela perda, proibiu novas buscas, para impedir que mais valorosos narnianos perdessem a vida. Agora, porém, o velho rei, sentindo a proximidade da morte, decide partir, ele próprio, acompanhado de um grupo de súditos fiéis, para uma última e desesperada tentativa de encontrar o filho. A missão que Aslam designa a Eustáquio e Jill é a de fazerem sua própria busca a fim de localizar o príncipe e trazê-lo de volta. O Leão dá algumas indicações, e as duas crianças partem, tendo como guia um paulama; esses seres são semelhantes aos humanos de maneira geral, mas com pernas e braços muito mais longos em relação ao corpo, parecendo adaptados à vida nos pântanos – e, muito de acordo com isso, o nome desse paulama em particular é Brejeiro. O guia é o que Eustáquio chama de pé-frio, pois quase todas as suas falas consistem em previsões pessimistas, mas, ao mesmo tempo, mostra-se um companheiro corajoso e leal, que se mantém fiel mesmo ante as eventuais malcriações dos garotos, que por vezes se irritam com suas intermináveis lamúrias.



Não há dúvida de que a Busca é uma das situações mais recorrentes em aventuras heroicas, desde a lenda de Jasão e os Argonautas, que citei não faz muito, até A História Sem Fim, e aqui temos mais um exemplo. Eustáquio, Jill e Brejeiro nos conduzem numa viagem que descortina uma série de paisagens desse mundo fantástico, e que, é claro, não está isenta de perigos e sofrimentos – enfim, podemos, se quisermos, ver essa aventura como uma alegoria para a vida humana… Mas será que o "se quisermos" não faz com que deixe de ser uma alegoria, entrando no campo da aplicabilidade? Eis de novo o choque entre as visões de Lewis e de Tolkien, que nunca está muito longe enquanto lemos as Crônicas de Nárnia.

Bem, se a história for uma alegoria da vida humana, então torna-se claro o significado  de certo detalhe. Ao falar com Jill, logo no começo, Aslam descreve à menina uma série de sinais que ela e seus companheiros encontrarão ao longo do caminho e a orienta sobre como devem agir diante de cada sinal, faz com que ela memorize e repita tudo para ele, porém, mais tarde, envolvida com tantas outras coisas, ela se esquece da maior parte do que o Leão lhe disse; um sinal após outro é perdido e as coisas não saem como deveriam. É fácil ver aí mais um paralelo com o cristianismo: uma pessoa pode amar Cristo e desejar sinceramente agir conforme Seus ensinamentos, mas fazer isso no dia a dia ao longo da vida é difícil, e ela inevitavelmente irá falhar muitas vezes. Faz parte. Também quero registrar que no capítulo 12 há um diálogo que resulta ser uma afiada crítica a certos segmentos religiosos e principalmente filosóficos que tentam fazer com que as pessoas se fechem dentro de uma bolha, esquecendo o que existe lá fora, e ainda se julguem muito inteligentes por fazê-lo. É tentador falar mais sobre esse capítulo, mas não poderia fazê-lo sem dar um sério spoiler.

As Crônicas terminam com A Última Batalha, e esse livro começa numa pegada que lembra as fábulas de Esopo. Numa floresta de Nárnia vivem um velho macaco, Manhoso, e seu amigo, o jumento Confuso, que pertencem à classe dos animais falantes narnianos. Como assinalei ao tratar de O Cavalo e Seu Menino, esses animais não só falam como também possuem inteligência equivalente à de um ser humano – só que, não adianta negar, os seres humanos não têm todos a mesma inteligência, e entre eles não é diferente: Confuso faz jus a seu nome e ao estereótipo (falso, por falar nisso) que pesa sobre toda a sua espécie. Já Manhoso é esperto e matreiro, conseguindo sempre engambelar o amigo para que faça todo o trabalho pesado enquanto ele colhe os benefícios. Um belo dia, os dois encontram por acaso uma pele de leão, e Manhoso decide fazer com que Confuso a vista; como o narrador observa, os habitantes daquela região de Nárnia nunca viram nem sequer um leão comum, de modo que muitos se deixam enganar quando o macaco começa a apresentar o jumento disfarçado como sendo o próprio Aslam, e se autonomeia seu porta-voz. É claro que o pobre asno nem mesmo entende direito o que está acontecendo, limitando-se a fazer o que Manhoso lhe diz. Aproveitando-se de sua nova posição de poder, o macaco passa a dar ordens "em nome de Aslam" para conseguir que os outros animais façam tudo o que ele quer – mais uma alegoria fácil de identificar, na qual Manhoso é o falso profeta, representando tanto líderes religiosos quanto reis e potentados em geral que, ao longo da História, arrogaram-se autoridade divina.

A farsa começa como um problema apenas local, mas ganha dimensões maiores quando Manhoso, também à semelhança de muitos desses líderes, vai longe demais com sua ganância e passa a negociar com os calormanos, obrigando os animais a trabalhar para eles e até vendendo muitos para os inimigos, tudo em benefício do "profeta" (que, é claro, assegura que o dinheiro será usado para o bem da comunidade) e supostamente por ordem de Aslam. Quando as notícias chegam aos ouvidos do jovem rei Tirian (bisneto do bisneto de Rilian, filho de Caspian, pois, novamente, séculos se passaram), ele decide investigar pessoalmente, acompanhado apenas por seu melhor amigo, o unicórnio Precioso, e acaba capturado pelos calormanos. Quando, em desespero, o rei clama pelo socorro do verdadeiro Aslam, este lhe envia ajuda nas pessoas de Eustáquio e Jill, e os três, com o reforço de mais alguns aliados, encaram a missão de recolocar as coisas nos devidos lugares. A história aborda não apenas a questão do falso messianismo, mas também uma de suas mais graves consequências: quando o deus falso é desmascarado, muita gente acaba descrendo até mesmo do verdadeiro, como um grupo de anões que declaram que não existe Aslam nenhum e se põem a bradar "vivam os anões!", o que só pode simbolizar o ateísmo e a visão antropocêntrica moderna, para a qual o homem é a medida e a finalidade de tudo, e não existe nada acima dele. Por fim, a tentativa de Manhoso e do comandante calormano de fazer com que os narnianos acreditem que Aslam e o deus dos calormanos, Tash – uma divindade sanguinária, em cujos altares fazem-se sacrifícios humanos – são o mesmo deus, é um alerta contra aqueles que, em nome de uma suposta tolerância, trabalham para sabotar a fé dos cristãos tentando convencê-los de que o Deus em que acreditam é a mesma coisa que as divindades de outras religiões, e que, portanto, não faria sentido crer em dogmas que são exclusivamente cristãos.



Curiosidade da vez: Tirian, por especial graça de Aslam, tem a oportunidade de reunir-se com os Sete Amigos de Nárnia que habitam no mundo dos filhos de Adão e filhas de Eva, e que vêm a ser os protagonistas de todas as histórias narradas nas Crônicas. O leitor atento provavelmente fará a mesma coisa que eu fiz ao chegar a esse trecho: vai pausar a leitura e fazer um cálculo. Sete? Como assim? Digory, Polly, Pedro, Susana, Edmundo, Lúcia, Eustáquio e Jill: são oito! Só que tem um porém…

– Senhor – disse Tirian, após saudar a todos –, a não ser que eu tenha entendido mal as crônicas, deve haver mais alguém. Vossa Majestade não tem duas irmãs? Onde está a rainha Susana?
– Minha irmã Susana – respondeu Pedro, breve e gravemente – já não é mais amiga de Nárnia.
– É verdade – completou Eustáquio. – E toda vez que se tenta conversar com ela sobre Nárnia, ou fazer qualquer coisa que se refira a Nárnia, ela diz: "Mas que memória extraordinária vocês têm! Continuam no mundo da fantasia, pensando nessas brincadeiras tolas que a gente fazia quando era criança!"
– Essa Susana! – disse Jill. – Agora só pensa em lingeries, maquilagens e compromissos sociais. Aliás, ela sempre foi louquinha para ser gente grande.
– Gente grande, pois sim! – disse Lady Polly. – Gostaria que ela crescesse de verdade. Quando estava na escola, passava o tempo todo desejando ter a idade que tem agora, e agora vai passar o resto da vida tentando ficar nessa idade. Tudo em que ela pensa é correr para atingir a idade mais boba da vida o mais depressa possível e depois parar aí o máximo que puder.

Muita gente vê machismo aí, e no meio dessa "muita gente" estão nomes de peso como J. K. Rowling, que tem uma dívida visível com Lewis (é só comparar o modo como os centauros são descritos na obra de cada um, e esse é apenas um exemplo dentre vários possíveis), mas já chegou a criticar especificamente esse trecho. À primeira vista, as alegações levantadas por ela e outros parecem fazer sentido: Susana é retratada como a pessoa que escolheu a pior parte de duas maneiras diferentes (em outro texto eu poderia dizer que ela escolheu "o pior de dois mundos", mas aqui isso causaria confusão), pois, em nome de sua vontade de se afirmar como uma mulher adulta, abandonou a imaginação, mas ao mesmo tempo, não alcançou a verdadeira maturidade e vai provavelmente passar a vida, como diz Polly, ocupando-se de frivolidades próprias de moças jovens-adultas. Porém, a meu ver, Lewis poderia igualmente ter excluído Pedro do rol dos Amigos de Nárnia e colocado Susana para explicar a Tirian que seu irmão mais velho agora só pensa em trabalho e carreira e diz que tudo sobre Nárnia é "fantasia" ou "brincadeira tola"; alguém tinha que ser exemplo da tolice que há em enterrar a imaginação em prol de um suposto crescimento, e calhou de ser Susana. A patrulha politicamente correta vai objetar: e por que é que trabalho e carreira são "coisas de homem", enquanto maquiagem e compromissos sociais são "coisas de mulher"? Sei que é inútil pedir a esse pessoal que leve em consideração a perspectiva histórica (um conceito que eles parecem incapazes de compreender), mas, em todo caso, a resposta é simples: as Crônicas de Nárnia foram escritas durante a década de 50, quando relativamente poucas mulheres tinham carreiras profissionais, e a maioria das pessoas via como normal que a empreitada mais importante da vida delas consistisse em aproveitar o breve período de beleza na juventude para conseguir o melhor casamento que pudessem. Sessenta e poucos anos depois, a sociedade vê isso tudo de forma diferente, mas Lewis não tinha como prever isso.

Esta edição termina com Três Maneiras de Escrever para Crianças, um brevíssimo e agradável ensaio que, ao contrário do que poderia parecer, não se propõe a dar diretrizes sobre como escrever histórias infantis – poderíamos dizer que é muito mais descritivo que normativo. Não vou resumir tudo aqui, este texto já está longo demais e, além disso, vale a pena ler o próprio ensaio; será suficiente dizer que, nele, Lewis tece interessantes considerações sobre o que define a literatura infantil como tal, sublinhando que "literatura infantil" e "literatura para adultos" não são compartimentos absolutamente estanques. Sua opinião, com a qual eu concordo inteiramente, é que uma das marcas de uma boa história para crianças é a capacidade de interessar também ao leitor adulto; faço, porém, uma ressalva: uma boa história infantil é a que consegue interessar a certo tipo de leitor adulto. As próprias Crônicas de Nárnia são um bom exemplo, pois, mesmo classificadas como literatura infanto-juvenil, têm multidões de fãs de todas as idades. Nenhum leitor verdadeiramente maduro deixará de ler o que o agrada e atrai por receio de que este ou aquele o julguem "muito criança" por causa disso; Lewis, afiado e certeiro, resume o caso parafraseando São Paulo: "Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino, inclusive o medo de ser infantil e o desejo de ser muito adulto". Desta vez vou juntar-me aos Tontópodes e afirmar enfaticamente que "ninguém jamais disse palavras mais sábias!"

As Crônicas de Nárnia, sem dúvida, integram a seleta lista das obras de fantasia mais importantes do século XX, sendo, ao lado de O Senhor dos Anéis e mais algumas, uma das mais fortes e recorrentes influências dos autores do gênero que estão em atividade hoje, ou estiveram durante as últimas décadas. Como Lewis também observa em seu ensaio, há histórias de fantasia que são mais adequadas ao público infantil, e outras, a leitores mais maduros, mas não é raro que o público de ambos os tipos acabe sendo o mesmo; ele poderia estar falando exatamente sobre sua própria obra e a de seu amigo. Há leitores de todo o mundo que leram as Crônicas na infância e, depois de um pouco mais velhos, apaixonaram-se pela beleza intrincada do mundo de Tolkien, mas há também muitos outros que só chegaram a Nárnia depois de já conhecerem a Terra-média (meu caso) e nem por isso a amaram menos. As Crônicas são mais simples e despretensiosas que o SdA, mas não menos inspiradoras, empolgantes, comoventes ou cheias de significado. Todo fã de fantasia deveria conhecê-las.