quinta-feira, novembro 16, 2017

O Silmarillion

Meu início na literatura de J. R. R. Tolkien foi exatamente o mesmo que eu hoje aconselho a quem me perguntar por onde começar: O Hobbit, que é, sem dúvida, a mais simples e leve das obras a respeito da Terra-média. Fácil de ler, divertido, empolgante, não requer qualquer conhecimento prévio, e já traz em si aquela combinação tocante de grandiosidade, atmosfera épica, humor e nostalgia – uma nostalgia inexplicável de algo que jamais conhecemos. Porém, depois que você já adquiriu uma certa intimidade com o universo criado pelo autor, passa a querer saber sua história desde o começo – o verdadeiro começo, mesmo que outras partes dessa história tenham sido contadas primeiro.

O Silmarillion satisfaz, ao menos em parte, esse desejo. Diz a lenda (para os apaixonados por Tolkien, não é exagero falar assim) que, depois do inesperado sucesso de O Hobbit, publicado em 1937, o editor Stanley Unwin disse a Tolkien que o público estava sedento por novas aventuras ambientadas na Terra-média, e que, se houvesse tais histórias, ele as publicaria sem dúvida. O Professor, entretanto, metódico como sempre, em vez de simplesmente escrever novas histórias seguindo a receita já aprovada, quis "começar pelo começo", e apresentou a Unwin um punhado de manuscritos soltos, embora interligados entre si, que tratavam da origem e dos primeiros tempos daquele mundo. O editor foi da opinião de que aquele tipo de coisa era demasiado séria e complexa para agradar aos leitores que tinham adorado O Hobbit, e recomendou ao autor que focasse nos hobbits, já que era principalmente nas pequenas criaturas de pés peludos e apetite voraz que o interesse do público parecia se concentrar. O resultado foi O Senhor dos Anéis, livro que, se tivesse podido fazer as coisas como queria, Tolkien talvez jamais tivesse escrito – e sobre o qual poderíamos dizer que, se a ideia era mesmo fazer algo "não tão complexo", então parece que nem tudo saiu conforme os planos. Seja como for, hoje em dia a esmagadora maioria dos fãs do Professor (maioria na qual, com toda a certeza, eu me incluo) considera o SdA como sua obra-prima.

Acontece que, mesmo sem terem sido publicados, os textos de O Silmarillion sempre foram importantes para Tolkien, que os considerava, "oficialmente" e para todos os fins, parte da história da Terra-média, como mostram suas cartas e outros escritos. Não era possível que seus leitores ficassem para sempre privados desses conhecimentos, mas foi preciso esperar até 1977 (quatro anos depois da morte de Tolkien) para que esses textos fossem reunidos num livro, editado por Christopher Tolkien, filho do autor, o que deu início a uma longa e árdua, embora frutífera, missão, que continua até hoje, apesar do fato de Christopher, veterano da Segunda Guerra e aposentado da cátedra de Língua Inglesa na Universidade de Oxford, completar 93 anos agora em novembro.

O livro publicado sob o título de O Silmarillion reúne, na verdade, vários textos menores – menores, bem entendido, no sentido de mais curtos, não no de menos importantes. O primeiro deles é Ainulindalë, 'a Música dos Ainur', que, para definir da maneira mais sucinta, trata da criação do mundo. Em muitos lugares nos escritos de Tolkien há sugestões (e, por vezes, mais que sugestões) de que o mundo sobre o qual suas obras versam é o nosso próprio mundo num passado distante. Como se fosse para reforçar esse entendimento, esse mundo é chamado de Arda, nome que possui ligação evidente com Earth em inglês, Erde em alemão, Jord (pronunciado Iord) em nórdico antigo, e assim por diante, todos significando 'Terra'; Tolkien, como hábil linguista que era, naturalmente não perderia a oportunidade de utilizar nomes e palavras como uma forma de fornecer informações que um leitor atento e com certo conhecimento poderia captar. Não que os nomes tenham sido criados como um recurso para apoiar as narrativas: de certa forma, foi o inverso. O Professor criou primeiro as línguas de seu mundo fantástico, e só depois, levado pela vontade de dar a elas um substrato histórico e lendário, criou as histórias. Certa vez, falando sobre o esperanto, ele disse que essa língua artificial de criação moderna está muito mais "morta" que o latim ou o grego antigo, porque não possui história e tampouco um corpus mitológico ligado a ela – coisas que o grego antigo e o latim possuem. O desejo de evitar que seus tão queridos idiomas élficos tivessem essa mesma sina de "línguas natimortas" foi o que o motivou a criar as lendas que tanto amamos e que, hoje, fascinam milhões de leitores no mundo todo, independentemente do interesse que eles tenham ou não tenham em filologia.

Eu e minhas digressões… Estava dizendo que Ainulindalë, a primeira parte de O Silmarillion, trata da criação do mundo. Sendo um católico devoto, Tolkien, conscientemente ou não, desenvolveu essa narrativa de uma forma essencialmente compatível com a visão cristã sobre o assunto, encontrada em parte na Bíblia, em parte na tradição da Igreja. Por falar nisso, e apesar do que muita gente pensa, a Igreja não é avessa à ciência e não considera que aceitar o que ela descobriu sobre as origens da vida e do universo seja incompatível com a crença num Deus criador – essa é a posição oficial, mas há os católicos fundamentalistas, que insistem na interpretação literal do Gênesis, isso para não mencionar os membros de outras denominações cristãs. Não sei qual era a opinião pessoal de Tolkien sobre essa questão, mas isso não faz tanta diferença para o nosso assunto do momento: seja como for, Ainulindalë é a criação do mundo narrada de uma forma poética, não científica.

Ele nos conta que, no início, "havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar" – ou seja, Deus. Ilúvatar significa 'Pai de Todos' em Quenya, uma das duas línguas élficas inventadas por Tolkien (que também criou línguas para os anões, orcs, entre outros, embora, a essas, tenha-se dedicado menos), e, como no caso de Arda, é fácil estabelecer a correlação entre vátar ('pai') e seus equivalentes em várias línguas de raiz germânica: father em inglês, Vater em alemão, fađir em islandês… Eru Ilúvatar, então, deu existência aos Ainur (no singular, Ainu), seres espirituais dotados de grande sabedoria e poder. Novamente em consonância com a visão católica, os Ainur não são deuses, mas poderíamos dizer que são anjos, criados por Deus antes que o mundo que conhecemos existisse. E, na narrativa de Tolkien, o trabalho de criação realizado por Ilúvatar se dá através da música. Primeiro Ele canta para os Ainur, depois pede-lhes que cantem também, sob Sua regência, e as maravilhosas melodias que produzem vão dando forma ao mundo que viria a ser Arda, mas que os Ainur chamaram primeiro Eä – numa tradução livre, 'o Mundo que É', quer dizer, o mundo que deixou de ser apenas uma ideia na mente de Eru para ganhar existência real. Mas, mesmo no reino de Eru, nada é perfeito. Um dos Ainur, de nome Melkor, quis criar sua própria melodia, e, com isso, trouxe desarmonia à música que seus irmãos faziam seguindo fielmente a orientação de seu Senhor.

Não é nada difícil ver que Melkor é a versão de Tolkien para Lúcifer – um dos anjos mais poderosos e mais próximos de Deus, que um belo dia decidiu que servir não era suficiente para ele – mas seria um redondo engano achar que o Ainulindalë limita-se a parafrasear de forma óbvia a narrativa cristã sobre a queda dos anjos. Ele traz um acréscimo muito interessante, enunciado nesta fala de Ilúvatar:

(…) Tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.

Isso também faz parte da visão cristã, mas nem todo mundo sabe ou se dá conta: é a ideia de Santo Agostinho, de que "Deus não permitiria o mal, se dele não pudesse tirar um bem maior". Por mais que Suas criaturas se rebelem, no final ficará provado que tudo tinha um lugar no plano de Deus. Não que Ele deseje que elas se rebelem; simplesmente sabe de antemão quando isso acontecerá, já que é onisciente, e toma as providências necessárias.

Uma vez criado o mundo, e antes que surgissem os Filhos de Eru (elfos e homens), alguns dos Ainur optaram por viver nele, cabendo a cada um deles administrar um aspecto da criação; esses Ainur que viviam na Terra passaram a ser chamados de Valar (singular Vala, que no feminino fica Valië). No começo da segunda parte d'O Silmarillion, intitulada Valaquenta ('História dos Valar'), é dito que os Valar foram, com frequência, chamados de deuses pelos humanos, o que explica a semelhança das características de muitos deles com as de divindades de diferentes panteões, bem como as dessas divindades entre si. Impossível, por exemplo, olhar para uma ilustração de Ulmo, o Vala responsável pelas águas, e não lembrar imediatamente de Poseidon, o deus grego do mar. Do mesmo modo, Aulë, o Vala associado ao fogo e ao trabalho do metal, assemelha-se a Hefestos, o mesmo que os romanos chamavam de Vulcano. Já em Varda, a Valië da luz, que teria feito as estrelas, Tolkien permitiu-se revelar um vislumbre de sua própria fé, retratando não alguma deusa, mas a Virgem Maria, por meio de várias características que nós, católicos, atribuímos a ela e que ele deu também a Varda – o que não significa que as figuras das duas sejam sempre equivalentes, pois isso seria uma alegoria, coisa da qual o Professor notoriamente não gostava. Como sempre em sua obra, o que há é campo aberto para a famosa "aplicabilidade": num momento e situação específicos, Varda pode representar Maria; em outra situação, Varda pode representar outra coisa, e, em outro lugar da obra do autor, outra personagem pode assumir as atribuições de Nossa Senhora, como o faz Galadriel em O Senhor dos Anéis, quando dá a Frodo um cristal contendo a luz da estrela Eärendil. Mais tarde, quando o hobbit está perdido na escuridão da caverna de Laracna, esse presente não apenas ilumina seu caminho, mas renova sua coragem; não há como não ver aí exatamente o que a proteção da Mãe de Jesus significa para nós e, sem a menor dúvida, significava para Tolkien.

Os Valar, pois, estavam na Terra, cada um cuidando da parte dela que lhe fora confiada por Ilúvatar, mas Melkor, o Vala renegado, não se manteve ocioso; fazia tudo o que podia para arruinar o trabalho dos outros, e não estava sozinho nessa tarefa, contando com a ajuda de outros Ainur que o seguiam, bem como de inúmeros espíritos de menor poder – tal como Lúcifer, que, de acordo com a tradição cristã, foi seguido em sua rebelião por um terço dos anjos. Isso gerou muitos conflitos para os quais o jovem mundo serviu de palco. Os Valar fiéis sabiam do plano de Ilúvatar de trazer à vida os elfos e os homens, mas não sabiam quando isso aconteceria, e tanto tempo se passou que Aulë, impaciente, desejando ter criaturas inteligentes às quais pudesse ensinar suas artes, acabou criando os anões. Quando Eru viu o que o Vala havia feito sem Seu consentimento, repreendeu-o com severidade. Aulë, ao contrário do soberbo Melkor, acatou humildemente a reprimenda de seu Senhor, e, embora entristecido, ergueu seu martelo, pronto para destruir sua criação, lembrando um Abraão prestes a sacrificar o filho Isaac – mas, tal como o fez com Abraão, Deus não permitiu que concretizasse o ato; deteve a mão de Aulë e, magnanimamente, deixou que os anões vivessem, com a condição de que ficassem adormecidos até que Ele julgasse chegado o momento de despertar seus primogênitos, os elfos. Essa bela história fornece uma adequada explicação mítica para as características essenciais dos anões: Aulë os fez resistentes e teimosos para que pudessem sobreviver num mundo ainda castigado pelas artes malignas de Melkor; quanto ao amor pela mineração e pelo trabalho do metal, herdaram-no de seu "pai".

Conforme prosseguimos a leitura de O Silmarillion, vamos nos deparando com as origens de povos, personagens e lugares que já conhecemos, e, pelo menos nessa primeira vez, fiquei satisfeito por estar lendo-o agora, que já conheço O Hobbit e O Senhor dos Anéis: O Silmarillion amarra muitas pontas que pareciam soltas e coloca as coisas dentro de uma perspectiva mais ampla. Alguém que fosse lê-lo sem antes conhecer essas outras obras talvez achasse a leitura cansativa; do jeito como eu fiz, de forma alguma… Bem, não durante a maior parte do tempo. Há, sim, trechos que exigem paciência por parte do leitor, como o capítulo XIV, De Beleriand e Seus Reinos, que consta de nove páginas de anotações geográficas e topográficas. Tenham em mente que o livro é um apanhado de escritos soltos de diferentes tipos: é provável que Tolkien tenha escrito esse texto para sua própria referência, sem imaginar que algum dia seria publicado. E como material de referência e consulta, ele é útil para os que desejam conhecer a fundo o universo do autor, mas não esperem que seja divertido. Pretendo, um dia, reler as obras do Professor em ordem cronológica, à luz do conhecimento adquirido nas primeiras leituras.

Entre as revelações mais importantes para a história da Terra-média presentes em O Silmarillion estão as que tratam de Melkor, o primeiro Senhor das Trevas (gosto mais dessa forma, corrente em Portugal, que de "Senhor do Escuro", usada no Brasil desde a tradução d'O Senhor dos Anéis feita nos anos 90 por Lenita Rímoli Esteves), título que, mais tarde, passaria dele para seu servo, Sauron, que vem a ser o Senhor das Trevas mais conhecido pelos leitores de Tolkien – ou, melhor dizendo, aquele com cujo nome estamos mais familiarizados, já que, no SdA, embora seja a sua vontade que move as forças do mal, Sauron não chega a aparecer como um personagem propriamente dito, uma vez que, na ocasião, encontrava-se privado de um corpo. Não deixei de notar, também, que o paralelo entre Melkor e Lúcifer não fica apenas na semelhança das trajetórias de ambos, estendendo-se a sua índole e modus operandi: na tradição judaico-cristã, o diabo empenha-se em imitar Deus, embora sempre de forma imperfeita ou invertida; Melkor não tem o poder de criar novos seres como o faz Ilúvatar, então dedica-se a perverter a obra do Criador. Fez isso, por exemplo, quando tomou alguns elfos que havia capturado e, por meio de "lentas artes de crueldade" (nas palavras do autor) que é melhor nem tentarmos imaginar, desenvolveu, a partir deles, a raça dos orcs, destinados a serem seus soldados e escravos. Num processo semelhante, também inventou os trolls a partir dos ents, os "pastores de árvores".

Um personagem importante em O Silmarillion – e na história da Terra-média de modo geral – é Feänor, filho de Finwë, rei dos elfos Noldor e, sem dúvida, um dos mais poderosos e brilhantes representantes da raça élfica em todas as eras do mundo. Feänor criou as Silmarils, três joias inigualáveis que guardavam a luz de Telperion e Laurelin, as Duas Árvores que iluminavam Valinor (a terra dos Valar, no extremo oeste, separada da Terra-média por um mar) antes que o sol e a lua existissem. Também é atribuída a ele a invenção das Palantíri, artefatos que permitiam ver o passado, o futuro e o que acontecia em lugares distantes, e do alfabeto Tengwar, às vezes chamado de "runas élficas" ou "caracteres feänorianos". Porém, apesar de toda a sua sabedoria, Feänor também deixou um legado de violência, quando Melkor roubou as Silmarils e fugiu com elas em direção à Terra-média. Feänor conclamou todos os Noldor a segui-lo numa cruzada contra Melkor (a quem ele deu o nome de Morgoth, o 'Inimigo Negro'), para recuperar as gemas e vingar seu pai, Finwë, que o Vala renegado havia assassinado, fazendo dele o primeiro elfo a morrer de forma violenta… Só que, por mais justas que fossem as motivações, essa iniciativa causaria muitas desgraças. Para alcançar seu duplo objetivo, Feänor não se deteria diante de nada, mesmo que precisasse lutar contra outros elfos. Isso conduziu ao histórico e sangrento Fratricídio de Alqualondë, quando Feänor e seus Noldor travaram batalha contra os Teleri, um ramo dos elfos que vivia à beira-mar e que, até então, os considerava um povo amigo. Esse e outros episódios fazem da busca de Feänor, a meu ver, uma das partes mais emocionantes e mais trágicas de O Silmarillion, embora haja as que rivalizam. Omiti de propósito detalhes da história que tornarão a experiência mais interessante se vocês os descobrirem somente quando lerem.

Quem conhece um pouco da biografia de Tolkien também conhece algo de sua índole e opiniões, e sabe do sério problema que ele tinha com a tecnologia e o mundo moderno de forma geral (é engraçado tentar imaginar o que ele diria se pudesse ter previsto a internet e sabido que, no futuro, ela serviria para integrar seus fãs dos quatro cantos do mundo). Isso transparece em suas histórias, como quando ele descreve a cidade de Melkor/Morgoth, protegida pelas Ered Engrin, "Montanhas de Ferro", e conta que a fortaleza do inimigo tinha altas torres que exalavam fumaça e vapores que obscureciam o céu e envenenavam o ar… Isso pode até fazer pensar em vulcões, mas, para mim, parece bem mais com uma imagem de grandes fábricas com suas chaminés poluidoras. Mais tarde, Sauron seguiria o exemplo de seu mestre nesse ponto, assim como em outros; também Saruman, o mago-mestre que traiu sua ordem e se aliou ao Senhor das Trevas, adaptou sua fortaleza, Isengard, a esse padrão tenebroso, mandando derrubar suas florestas para transformá-las em lenha e alimentar as forjas que trabalhavam dia e noite produzindo armas para seu exército de orcs. Para Tolkien, o mundo moderno e industrial era o inimigo da natureza, e, por consequência, de tudo o que existia de belo e bom.

Embora as histórias interessantes em O Silmarillion sejam várias, a mais notável (na opinião do próprio Tolkien) é a de Beren e Lúthien. Beren, um jovem guerreiro humano, de origem nobre, mas caído em desgraça (não vou me alongar com os detalhes; basta dizer que sua família teve uma história trágica), vagando por uma floresta, vê Lúthien, filha do rei elfo Elu Thingol, dançando sobre uma colina, e apaixona-se por ela. O sentimento é mútuo, mas Thingol, que nutre um desprezo a priori pelos humanos, declara que só consentirá na união dos dois caso Beren lhe traga uma das Silmarils – as joias feitas tanto tempo antes por seu parente Feänor, roubadas por Morgoth, e que, naquele momento, são mantidas na fortaleza deste último, protegidas por todo o seu exército e por seus poderes tenebrosos. Nenhum rei elfo, mesmo com exércitos às suas ordens, jamais ousou atacar Morgoth no intuito de recuperar as Silmarils, e Thingol sabe disso muito bem; para um jovem sozinho e sem quaisquer recursos, tentar essa empreitada seria morte certa, e é justamente isso o que o pai de Lúthien pretende. Beren, entretanto, simplesmente ri e replica que "por preço baixo os reis élficos vendem suas filhas: por pedras preciosas e objetos criados por artífices", e parte para encarar o desafio. Sem spoilers, direi apenas que, na aventura cheia de peripécias que se segue a isso, Lúthien não fica com o papel da frágil donzela que apenas espera pela volta de seu herói e teme pela sorte dele: mostra-se sagaz e corajosa, dona de habilidades valiosas. Mais tarde, em nome de seu amor por Beren, ela vem a abrir mão de sua imortalidade. Essa história, de certa forma, tem um eco na Terceira Era (milênios depois), com Aragorn e Arwen, embora haja algumas diferenças importantes: enquanto o pai de Lúthien odiava Beren, Elrond, o pai de Arwen, gosta de Aragorn e vê com simpatia o amor dos dois, ainda que não pareça muito otimista quanto ao tipo de futuro que eles poderão ter. O mais bonito vem agora: nas figuras de Beren e Lúthien, Tolkien retratou a si próprio e a sua esposa, Edith; os nomes foram gravados junto dos seus próprios na lápide do túmulo que os dois compartilham no cemitério de Wolvercote, em Oxford.

Uma coisa em O Silmarillion poderá decepcionar a alguns: o livro conta as origens de elfos, anões, homens, até dos orcs, mas não diz um A sobre os hobbits (há uma única e brevíssima menção a eles no apêndice denominado Dos Anéis de Poder e da Terceira Era, que, como Christopher Tolkien salienta no prefácio, é realmente um apêndice, não fazendo parte de O Silmarillion; de todo modo, essa menção não diz sobre o Povo Pequeno nada que já não soubéssemos). Talvez a explicação esteja no fato de que, segundo Tolkien (provavelmente em alguma de suas cartas; não lembro onde foi que li isso), o povo de Bilbo e Frodo não constitui uma raça à parte, mas um ramo dos humanos. Usando uma linguagem mais científica, não falaríamos em "raças": elfos, anões e homens seriam diferentes espécies, embora muito próximas uma das outras, ao ponto de ser possível o nascimento de crianças mestiças – ao menos no caso de humanos e elfos; nunca soube da existência de mestiços humano/anão ou anão/elfo, pelo menos no universo de Tolkien. Seguindo o mesmo raciocínio, os hobbits seriam uma subespécie dos humanos. Mesmo levando isso em consideração, a existência dos hobbits, o quando, o como e talvez o porquê de terem se diferenciado dos outros seres humanos, isso tudo deve ter uma história fascinante por trás – talvez uma que o Professor não tenha chegado a escrever. Uma pena! Porém, estou longe de ser um especialista em Tolkien e estou bem ciente disso; se alguma história assim existir e alguém que me lê a conhecer, ficarei agradecido por ser corrigido, e também pela indicação de onde poderei ler tal história.

Ainda há muito mais neste livro, mas acho que já "falei" demais. Assim, já entrando na reta final do post, acho necessário indicar que, fora todos os que já citei, estão aqui, pelo menos, mais três conteúdos importantes. O primeiro, ainda dentro d'O Silmarillion propriamente dito, é a história de Túrin Turambar, que, no universo de Tolkien, preenche o arquétipo do herói valoroso, porém desventurado; parece que o autor se inspirou numa história presente no Kalevala finlandês, a respeito de um personagem de nome Kullervo, mas, enquanto lia sobre as calamidades que perseguiam Túrin, lembrei por mais de uma vez do mito grego de Édipo, tão bem aproveitado por Sófocles em suas peças Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona. O segundo, no apêndice Akallabêthtrata da terra de Númenor, habitada pelo ramo mais nobre da raça dos homens, do qual descendia o herói Aragorn, bem conhecido de quem leu O Senhor dos Anéis; e o terceiro, no já citado Dos Anéis de Poder e da Terceira Eraé precisamente a origem dos Anéis do Poder, os detalhes a respeito de sua forjadura, tema que só havia sido tangenciado naquele livro.

Boa parte das críticas que O Silmarillion recebeu logo a seguir ao seu lançamento deve ter despertado a ira dos fãs de Tolkien (o punhado de excertos que li certamente despertou a minha!), mas é difícil negar os pedaços de verdade que há em algumas delas, em especial quando se referem ao fato de, não raras vezes, tornar-se praticamente impossível seguir o texto e reter tudo o que se está lendo, ou não se cansar com as dezenas e dezenas de nomes exóticos que pipocam a cada página: não dá para memorizar tudo isso. O Professor, à semelhança de uma criança extraordinariamente criativa e engenhosa, deleitava-se a brincar com os brinquedos que havia construído para si próprio – suas línguas fictícias, que ele não se contentou em criar, mas levou a um grau inacreditável de coerência e detalhamento, com etimologia própria, uma gramática com direito a tempos verbais, conjugações, declinações e tudo o mais. Tal criação não é menos que genial, e é totalmente compreensível que o autor quisesse vê-la funcionando, sem esquecer que a Terra-média e sua mitologia só existem por causa dessas línguas, mas nada disso impede que, em várias partes do livro, a avalanche de nomes de personagens e lugares (todos esses nomes, sem exceção, com significados precisos em uma ou outra língua imaginária) deixe o leitor meio desarvorado, mesmo que ele já tenha alguma experiência com a escrita de Tolkien. Como um louvável esforço para amenizar esse problema para os leitores, Christopher Tolkien incluiu um glossário dos famigerados nomes de personagens, lugares, povos, etnias etc., que podemos consultar sempre que não lembrarmos ao que um determinado nome se refere. Há também um apêndice com elementos formativos dos nomes nos idiomas quenya e sindarin, para que tenhamos a chance de, aos poucos, pegar gosto por decifrar os sentidos desses nomes, dominando seus radicais e vendo como eles se encaixam como peças de um quebra-cabeça para formar nomes e palavras. Dessa forma, talvez cheguemos até a acumular um pequeno vocabulário nessas línguas. Tão úteis quanto tudo isso, há árvores genealógicas das linhagens de homens e elfos que têm papéis de destaque nas histórias. Enfim, O Silmarillion vai, por vezes, exigir esforço e paciência do leitor, mas, vamos concordar, quase tudo o que vale a pena na vida exige esforço e paciência. É um belíssimo livro, indispensável para todos os fãs de Tolkien.

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