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terça-feira, julho 28, 2015

A Trilogia da Escuridão + The Strain

Quando um voo da Regis Airlines, procedente de Berlim, se prepara para pousar no aeroporto internacional John F. Kennedy, em Nova York, não parece haver razão alguma para imaginar que algo possa estar errado. A enorme aeronave toca o solo em segurança e no horário previsto. Porém, quando seus motores desligam, o mesmo acontece com todas as luzes a bordo, e, o que é pior, a tripulação deixa de responder às insistentes tentativas de comunicação por parte da torre de controle do aeroporto. E há os passageiros, que normalmente ficam num frenesi para desembarcar assim que o avião aterrissa, mas que, no presente caso, parecem estar muito quietos… Quietos demais para ser um bom sinal. A primeira coisa em que todos pensam, claro, é numa ação terrorista, possivelmente com uso de armas químicas ou biológicas. Para lidar com a possível presença de patógenos desconhecidos, é chamada a equipe do Centro de Controle de Doenças, liderada pelo Dr. Ephraim Goodweather, também coordenador do Projeto Canário, cuja função é manter vigilância constante contra ameaças de epidemias. Quando Ephraim ("Eph" para os amigos) e sua colega, a Dra. Nora Martinez, ambos pesadamente protegidos contra qualquer contágio, entram no avião para investigar, a cena que encontram é atordoante. Duzentas e seis pessoas, entre passageiros e tripulação, estão aparentemente mortas, sem sinal de violência, e, se houve infecção, o agente foi algo diferente de tudo o que os dois experientes epidemiologistas já viram. Com o tempo, quatro pessoas – três passageiros e o comandante – despertam, mas nenhuma delas consegue dizer o que aconteceu no voo, e nem mesmo acrescentar qualquer informação que lance alguma luz sobre a estranheza do caso.

A investigação conduzida pelas autoridades encarregadas do tráfego aéreo só encontra um objeto suspeito, ou, no mínimo, estranho a bordo do avião: uma enorme caixa retangular de madeira de lei, toda coberta de intrincadas figuras entalhadas representando morte e sofrimento. A caixa dá a ideia de um esquife, mas tem mais de dois metros e meio de comprimento, e, em vez de uma simples tampa, possui portas duplas, à maneira de um guarda-roupa, por assim dizer. Quando é aberta, descobre-se que possui um trinco pelo lado de dentro. No mais, a caixa contém apenas terra. O inacreditável é que ela não consta no manifesto de bagagem, o que não faz nenhum sentido: em tempos pós-Onze de Setembro, deveria ser impossível embarcar com carga não declarada em qualquer voo com destino aos Estados Unidos, e ainda mais um objeto desse tamanho. Eph deseja submeter a caixa a mais análises, assim como os corpos das vítimas e os quatro sobreviventes, que, nem é preciso dizer, deverão ficar sob rigorosa quarentena até segunda ordem – mas não consegue que nenhuma dessas providências seja tomada. A caixa desaparece misteriosamente, apesar de estar sendo mantida em área de acesso restrito, e um dos sobreviventes é uma advogada arrogante e (infelizmente) com "contatos importantes", que consegue que ela e os outros sejam liberados, solenemente passando por cima das normas de segurança médica. Quanto ao exame dos corpos, ele bem que começa a ser feito, mas os procedimentos são interrompidos de forma bizarra, quando os supostos mortos começam a levantar das mesas de autópsia e a atacar quem encontram pela frente, usando novos e horrendos órgãos que parecem ter desenvolvido durante o período de latência que foi confundido com morte.

O agente é, sem dúvida, um vírus, e, como todo vírus, tem um único objetivo na existência: infectar seres vivos, para obrigar suas células a funcionar como fábricas, produzindo o maior número possível de novos vírus. Isso mesmo: um vírus só existe para se replicar. Ele não faz mais nada. Não é capaz de mais nada. Sob esse aspecto, como dissemos, o vírus em questão é igual a qualquer outro… Em tudo o mais, porém, é horrivelmente único. Ele "reescreve" o código genético do organismo infectado, causando transformações físicas para tornar o hospedeiro mais útil aos "interesses" do vírus. Os órgãos internos secam e atrofiam, já que a maior parte das funções que realizavam não são mais necessárias à nova criatura. Na garganta, desenvolve-se uma espécie de tentáculo muscular, que fica recolhido, talvez enrolado quando em repouso, mas que, esticado, chega a medir até um metro e oitenta de comprimento, terminando num ferrão. A criatura usa o tentáculo como se fosse um chicote para subjugar a presa; feito isso, crava o ferrão para sugar o sangue – e quem é sugado fica infectado, de modo que o processo recomeça.

A última parte lembra algo? Não é mera coincidência. Há um homem em Nova York que conhece tanto as antigas lendas quanto a realidade por trás delas. Abraham Setrakian, um judeu de origem armênia, mas criado na Romênia, é proprietário de uma loja de penhores no Harlem, mas já foi professor de literatura e folclore eslavos na universidade de Viena, e teve seu primeiro contato com a praga vampírica mais de 60 anos antes, quando era prisioneiro dos alemães em Treblinka, na Polônia. Embora Treblinka fosse um campo de extermínio, Setrakian, como outros prisioneiros jovens e fortes, foi mantido vivo, em caráter temporário, para que o Terceiro Reich pudesse se beneficiar de sua força de trabalho. Foi graças a essa prorrogação de vida que ele teve a chance de aproveitar o caos que se abateu sobre o campo por ocasião de um ataque do exército russo, e escapar. Antes de sua fuga, contudo, o jovem Abraham testemunhou um horror ainda maior que as atrocidades dos nazistas, que faziam parte do cotidiano do lugar. Escondida nas sombras da noite, uma criatura misteriosa, dotada de força e velocidade impossíveis, esgueirava-se pelos barracões que serviam de alojamento aos prisioneiros, alimentando-se dos homens adormecidos, e, o que é pior, com a conivência do comandante do campo – Abraham tem certeza desse detalhe, pois foi ele quem construiu e entalhou a caixa, por ordem do comandante e para uma finalidade que não é difícil imaginar. O oficial nazista permitia a esse ser fartar-se do sangue dos prisioneiros – que seriam mortos de qualquer forma – e lhe oferecia abrigo, em troca… do quê? A busca da resposta para essa pergunta, do conhecimento da verdadeira natureza da criatura, e de uma maneira de destruí-la, viriam a tornar-se a razão da vida de Setrakian durante as décadas seguintes. Agora ele está velho e sofrendo do coração, mas, se seu vigor físico já não é igual ao de outros tempos, sua coragem continua a mesma, e sua mente está mais aguçada que nunca.

Embora seja um folclorista por formação, Setrakian não negligenciou o que a ciência tinha a contribuir durante seus longos anos de pesquisas e investigações. Ele já sabe, por exemplo, que o que transforma seres humanos em vampiros é um vírus, não uma maldição ou qualquer outra coisa sobrenatural. Descobriu também que o vetor da praga é um pequeno verme, com menos de cinco centímetros de comprimento e espessura pouco maior que a de um fio de cabelo, e com uma habilidade extraordinária para perfurar a pele humana: se você tiver contato físico com um desses, em segundos ele estará na sua corrente sanguínea, e então, nada mais poderá ser feito para salvá-lo. O velho professor apurou, ainda, que a criatura que ele viu em Treblinka era um vampiro-mestre, algum tipo de consciência antiga e maligna, capaz de trocar de corpo ao longo do tempo – o que o faz praticamente imortal – e que controla o contágio do vírus para servir a seus próprios planos. Os vampiros comuns são seres apenas semi-inteligentes, capazes de pouca coisa além de ir atrás de sangue e espalhar a praga, mas o Mestre pode, quando assim deseja, transformar certos humanos escolhidos em uma classe superior de vampiros, mais espertos e poderosos, com capacidade de controlar seus instintos e lembrança total de suas vidas anteriores. Esses, ele reserva para serem seus servidores diretos.


Todo esse conhecimento acumulado por Setrakian, bem como sua impressionante coleção de armas e livros, irá mostrar-se de importância vital para o pequeno grupo dos que irão opor-se aos planos do Mestre a fim de tentar evitar um "apocalipse vampiro" de proporções mundiais. Desse grupo fazem parte Eph e Nora, que por meios tortuosos vêm a conhecer o professor e a somar forças com ele, já que, no fim das contas, todos têm o mesmo objetivo, embora discordem sobre quem recrutou quem para sua causa. Aos três, junta-se eventualmente um sujeito de nome Vasiliy Fet, um filho de imigrantes russos que trabalha para a secretaria municipal de saúde como exterminador de pragas, sendo os ratos sua especialidade. Graças a sua experiência profissional, Vasiliy é o primeiro a perceber que, sob certos aspectos, os vampiros agem de forma parecida à dos roedores. Além disso, ele pensa de forma fria, desprovida de sentimentalismo. Eph e Nora, ao menos no início, sentem uma compreensível hesitação em situações que exigem a eliminação física de vampiros, porque não conseguem deixar de pensar neles como os seres humanos que já foram, e pelos quais eles, como médicos, juraram zelar. Já para Vasiliy, a partir do momento em que alguém é infectado, passa a ser nada mais que um veículo disseminador de doença, assim como os ratos – e deve ser tratado tal como eles. Essa atitude, aprovada por Setrakian, causa horror e repulsa aos outros dois, o que abala a união do grupo ― e isso só pode ser bom para o Mestre… Porém, muitas reviravoltas ainda terão lugar antes do fim.

E, como se a situação já não fosse desesperadora o suficiente, existem outras forças e outros interesses em ação. Um tal Eldritch Palmer (haveria algum paralelo com Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K. Dick? Hum…), um dos homens mais ricos do mundo, está agindo em parceria com o Mestre. Para começar, foi graças a ele que o grande vampiro conseguiu transpor o oceano para chegar da Europa aos Estados Unidos ― pois, embora os vampiros desta história tenham muitas diferenças em relação aos vampiros clássicos, também possuem semelhanças, e uma delas é a incapacidade de atravessar água em movimento, a não ser com a ajuda de humanos; qual seria a explicação científica para isso, não se sabe (no terceiro volume é oferecida uma explicação mítica). Palmer é um homem poderoso em todos os sentidos, exceto o físico: sempre teve uma constituição débil e uma saúde frágil. Já tem certa idade, uma idade à qual um homem comum com os mesmos problemas dificilmente teria chegado; só conseguiu manter-se vivo graças ao fato de ter dinheiro para recorrer sempre aos mais modernos tratamentos médicos, e ainda não acha que tenha vivido o suficiente. Na verdade, ele almeja a imortalidade, que o Mestre já ofereceu a alguns humanos antes: Palmer quer ser transformado num daqueles vampiros superiores, com memória e inteligência, e assim seguir vivendo indefinidamente. Em troca, providenciou a viagem do Mestre (com pressões ou subornos às pessoas certas, conseguiu que a enorme caixa fosse embarcada naquele voo, sem registros e sem perguntas), e agora usa sua influência junto à imprensa numa maciça campanha de desinformação, para evitar que o público em geral fique sabendo o que realmente está acontecendo. Nisso, a incredulidade teimosa que é sempre a reação da maioria diante do insólito é uma grande aliada: a TV e os jornais falam em “tumultos”, "saques", uma onda de desaparecimentos, e todo tipo de perturbação da ordem, mas sem nunca revelar o que há por trás de todo esse caos. Boatos circulam, é claro, mas as pessoas preferem acreditar no que conhecem. Vampiros? Quem acreditaria nessa "bobagem"? A maior parte das pessoas vai sempre se obstinar em fechar os olhos à realidade, se ela for muito diferente daquilo que estão acostumadas a ver como "realidade".

Escrevi acima que os vampiros da Trilogia da Escuridão têm diferenças e também semelhanças com os vampiros clássicos. Pois outra semelhança, além da questão da água corrente, é a velha crença segundo a qual um vampiro recém-transformado irá atrás, em primeiro lugar, de seus familiares e amigos – daqueles que ele amou em vida. Essa crença, infelizmente, é verdadeira. Ao longo do primeiro volume, Noturno, enquanto o mundo ainda mantém uma certa aparência de normalidade, acompanhamos a disputa entre Eph Goodweather e sua ex-esposa, Kelly, pela guarda do filho de onze anos, Zack. Isso pode parecer apenas um recurso para fazer de Eph um personagem mais complexo, dando-lhe background e mais humanidade, mas vira algo bem diferente a partir do momento em que Kelly é infectada pelo vírus. Em sua nova existência como vampira, ela não vai descansar enquanto não infectar também o garoto para poder tê-lo novamente junto dela, de modo que a disputa que antes acontecia nos tribunais irá continuar, só que de uma maneira bem mais selvagem e assustadora.

Puxa, comentar livros muito ricos é difícil! Conforme vou escrevendo, vão surgindo mais e mais pontos interessantes que não parece certo deixar de mencionar. Um deles acaba de me ocorrer por causa dessa comparação entre os vampiros de que estamos falando aqui e os vampiros clássicos. Mas, afinal, que raios é um "vampiro clássico"? Suponho que podemos defini-los como sendo os vampiros criados por autores vitorianos como Bram Stoker, John William Polidori, Joseph Sheridan Le Fanu, esse pessoal, e os que vieram depois, diretamente influenciados por eles, tanto na literatura quanto no cinema. Porém, o vampiro em si é mais antigo que isso, e, em sua origem, muito menos glamouroso. Para falar a verdade, nas lendas da Europa oriental, que datam, no mínimo, do fim da Idade Média (e muito provavelmente de bem antes), os vampiros são descritos como seres repelentes, tão dignos de pena quanto de temor, com uma aparência hedionda – às vezes cadavérica, outras com traços animais –, que andavam nus ou cobertos de trapos imundos, escondiam-se em túmulos enlameados e tinham pouca ou nenhuma inteligência. Que diferença entre isso e as representações de vampiros na cultura popular do século XXI, não?… O que a Trilogia da Escuridão faz, de certa forma, é apontar para as origens, ao mostrar a face mais bestial e menos sedutora do vampirismo. Ao mesmo tempo, a existência de exemplares "superiores", como os escolhidos do Mestre, pode ser vista como a possível origem das noções a respeito de vampiros mais inteligentes e sofisticados, como os Lordes Ruthven, as Carmillas e os Dráculas dos vitorianos.


Os fãs do cineasta mexicano Guillermo del Toro ficaram surpresos com a notícia de sua estreia como escritor, e, quando se soube que seria em parceria com o veterano Chuck Hogan, foi inevitável a dúvida: será que esse não vai ser mais um daqueles casos em que um dos autores faz o trabalho, enquanto o outro entra com o nome famoso? Porém, quem leu convenceu-se do contrário: Hogan provavelmente foi o responsável por dar forma ao texto, mas o estilo de Del Toro está por toda parte; a própria ideia geral deve ter sido dele. E, se a estreia do cara na literatura surpreendeu, o fato de a obra resultante ser adaptada para a tela já era de se esperar – só que a tela em questão acabou sendo a da TV em vez da do cinema, seu campo costumeiro de atuação. O que nos leva ao próximo tópico…

Na TV

The Strain (algo como "linhagem, descendência") era o título original da Trilogia da Escuridão, e foi mantido na série de TV baseada nela. A produção é do canal FX, e a primeira temporada, exibida nos Estados Unidos em 2014, já está disponível entre nós em DVD. A segunda está indo ao ar este ano em terras gringas, e a terceira está confirmada para 2016; uma temporada para cada volume da trilogia. Quando a série chegou ao Brasil, foi exibida e lançada em DVD com o título em inglês mesmo, que provavelmente foi considerado mais chamativo – algo bem típico do nosso país, embora eu não possa dizer que aprovo.

Quem lê um livro e gosta muito costuma ficar contrariado quando assiste à versão audiovisual e constata que muita coisa foi alterada – mas será que faz sentido ter essa reação quando o próprio autor esteve envolvido na produção? Quando as mudanças feitas foram decididas ou, pelo menos, aprovadas por ele? É o que se verifica aqui: Del Toro e Hogan criaram a série, baseada, naturalmente, em seus próprios livros, e assinam a produção executiva; além disso, Del Toro dirigiu o episódio-piloto, verdadeiro longa-metragem com mais de 70 minutos de duração, muito mais que os outros episódios, que têm em torno de 40 minutos cada. Num dos extras encontrados nos DVDs da primeira temporada, ele diz que uma das coisas legais nas alterações feitas é que, dessa forma, a série reserva surpresas até mesmo para quem leu os livros. Eu acrescentaria que, para os autores, essa produção deve ter representado uma oportunidade rara: a de "passar a limpo" uma obra depois de já publicada! Quem escreve fatalmente conhece a experiência e a sensação: você está trabalhando num texto (seja um post para um blog ou uma trilogia de romances, tanto faz) e, depois de muito quebrar a cabeça, por fim consegue lhe dar uma forma final que o deixa satisfeito – naquele momento. Porém, é inevitável que, ao reler o resultado mais tarde, você ache que poderia ter ficado melhor, caso tivesse feito isto ou aquilo de forma diferente. Até onde sei, a história da literatura registra raros casos de livros que tenham sido "mexidos" de forma significativa (ao menos por seus próprios autores) depois de publicados. Hoje em dia, entretanto, novas mídias abrem possibilidades novas, e, graças a isso, Del Toro e Hogan puderam reinventar o que consideraram "reinventável" em sua saga, sem atormentar seus leitores com diferentes versões dos livros.

Nos papéis principais da série estão David Bradley (que interpreta Abraham Setrakian na atualidade, sendo substituído por Jim Watson nas cenas da juventude do personagem), Corey Stoll (Eph Goodweather), Mia Maestro (Nora Martinez), Kevin Durand (Vasiliy Fet), Jonathan Hyde (Eldritch Palmer) e Robin Atkin Downes (o Mestre). E, a meu ver, duas das mais importantes mudanças ocorridas na transição das páginas para a tela são representadas por dois personagens que não fazem parte dessa lista de "principais". Um deles já existia nos livros, embora só aparecesse no segundo volume e tivesse relativamente pouca importância: é Thomas Eichhorst, que comandava o campo de Treblinka quando Setrakian era prisioneiro lá. Convertido em vampiro, Eichhorst continua vivo (se é que ser vampiro é estar vivo) e em plena atividade no século XXI. Na série, o personagem aumentou muito em importância, aparecendo, e bastante, desde o início da primeira temporada. No presente, serve ao Mestre, sendo o contato entre ele e Palmer; no passado, é uma figura-chave durante os flashbacks ambientados nos dias da Segunda Guerra, que, por sinal, foram muito ampliados em relação ao que havia nos livros. Para completar, Eichhorst é magnificamente interpretado por Richard Sammel, que, além de atuar bem, tem até a aparência perfeita para "ser" um oficial nazista.


A outra personagem a que me referi é a hacker Dutch Velders; essa foi criada para a série. Ela começa do lado errado: Palmer a contrata para derrubar os principais servidores de internet da América do Norte, a fim de dificultar as comunicações e reduzir as chances de que se forme alguma resistência organizada contra a propagação da praga vampírica. Dutch, que nada sabe sobre o vírus e seus efeitos, executa a sabotagem acreditando estar "apenas" servindo a alguma trapaça corporativa; quando conhece o grupo de heróis e compreende o que ajudou a fazer, ela muda de lado e torna-se uma aliada valiosa para Setrakian e companhia – além de atrair o interesse de Vasiliy, um sujeito, até então, bem pouco romântico. Dutch é interpretada por Ruta Gedmintas, que, por causa desse nome incomum e de sua beleza exótica, cheguei a pensar que viesse de algum país improvável, mas não: a gata é inglesa (sua personagem também é, apesar do apelido de Dutch, 'Holandesa'), nascida na histórica Canterbury, e já participou de outras produções de destaque, como The Tudors, que, infelizmente, ainda não conheço. A inclusão de Dutch na trama parece atender às rápidas mudanças no mundo da mídia e das comunicações: o primeiro volume da Trilogia foi publicado em 2009, mas começou a ser bolado alguns anos antes, por volta de 2005. Nessa época, a internet já era parte integrante da vida de pessoas e nações, mas as comunicações ainda não eram totalmente dependentes dela, como hoje, de modo que Hogan e Del Toro provavelmente não pensaram que Palmer e o Mestre teriam que fazer algo com a rede para que seu plano funcionasse. Já em 2014, esse seria necessariamente um ponto essencial da coisa toda, e é aí que entra Dutch. São os autores reinventando sua criação, como escrevi acima.

Acho curioso, ainda, assinalar um detalhe sobre Nora. Nos livros, nada é dito sobre sua nacionalidade, mas, como seu nome e biotipo indicam origem hispânica, o leitor é levado a deduzir que ela pode ser mexicana, ou hispano-americana mesmo. Na série, é revelado que ela nasceu na Argentina e lá viveu sua infância, presumivelmente durante os anos 70 e início dos 80, ainda sofrendo os efeitos de uma das mais cruéis ditaduras que a América Latina, infelizmente tão experiente com esse tipo de coisa, já conheceu. Em um ou dois diálogos com Eph, Nora traça breves comparações entre tirania e vampirismo, baseadas no que viu e sentiu em seu país de origem quando era criança. Aí tem o dedo de Del Toro, que, sendo mexicano e admirado mundo afora, está em boa posição para lembrar ao público dos Estados Unidos que o resto do mundo existe e tem seus próprios problemas ― algo que os ianques têm extrema facilidade em esquecer. Além disso, o cara parece considerar questão de honra mostrar a dura realidade da vida de pessoas comuns sob regimes ditatoriais, como deve ter notado quem viu O Labirinto do Fauno.

A Trilogia da Escuridão e The Strain, a série de TV, são algo um pouco diferente das coisas que os fãs de Guillermo del Toro estão acostumados a receber dele, mas não menos fascinante ou empolgante. Ambas as obras misturam com eficiência drama, suspense, terror e ficção científica, e acorrentam o leitor/espectador de forma implacável, levando-o a querer mais e mais, até chegar ao desfecho da coisa toda. Prevejo que quem assistir à primeira temporada da série vai querer ler os livros, nem que seja só por não aguentar esperar mais dois anos pelo final da história. E essa é uma leitura que recomendo com entusiasmo!

domingo, julho 06, 2014

As Fabulosas Aventuras de Salomão Kane

Você, jovem leitor do século XXI, acostumado a entrar em qualquer livraria e encontrar uma fartura de títulos de fantasia para escolher, não tem como imaginar o que era a vida de um fã do gênero no Brasil durante os anos 80 e primeira metade dos 90. O "raciocínio" dos editores da época era o de que, como essas histórias com dragões, elfos e magos eram uma coisa tão distante do cotidiano dos brasileiros, os leitores em potencial não se interessariam por elas. (Pergunto: que espécie de mocorongo, ao escolher um livro de ficção, um livro para se divertir, deseja encontrar nele as mesmas coisas do cotidiano, coisas essas das quais já atura o suficiente  e, em geral, muito mais que o suficiente ― em seu próprio dia-a-dia?) E, como os editores achavam isso, os autores fantásticos estrangeiros eram muito pouco traduzidos ou publicados por estas paragens. Autores nacionais? Um brasileiro querendo escrever fantasia naqueles dias era mais ou menos como um filho de agricultores do interior gaúcho querendo ser astronauta.

Uma das poucas alternativas que tínhamos eram os livros importados ― e para quem, na época, ainda não lia em inglês, tinham que ser os importados de Portugal. Editoras como a Europa-América, que, já no próprio nome, demonstrava o objetivo de integrar leitores portugueses e brasileiros, eram meio que a nossa tábua de salvação. Graças a ela, pude ler as Crônicas de Dragonlance em 1992/93, vários anos antes de sua primeira edição brasileira, edição essa que, por tudo o que sabíamos então, poderia jamais sair. Mesmo em tempos mais recentes, depois de a literatura de imaginação ter finalmente conquistado espaço e visibilidade em nosso país, os livros portugueses continuaram a ser objetos de desejo, já que muitas obras famosas e/ou importantes que não encontramos em versões brasileiras estão disponíveis em edições de além-mar.

Eis aqui um exemplo: este volume das aventuras de Salomão Kane, herói criado por Robert E. Howard quatro anos antes que Conan aparecesse, foi publicado pela portuguesa Saída de Emergência (campeã indisputada no quesito Nome Mais Exótico) em 2005, ganhando mais tarde uma sobrecapa com a imagem do pôster do filme sobre o personagem lançado em 2009, estrelado por James Purefoy ― que, para mim, será sempre o Marco Antônio da série Roma. Note-se que o nome do personagem é grafado no livro como Salomão Kane, enquanto, na sobrecapa, aparece na forma inglesa, Solomon, tal como usado no filme. Usarei Salomão mesmo, tanto por causa do livro como pelo fato de meu primeiro contato com o personagem ter sido nas páginas d'A Espada Selvagem de Conan, que também grafava dessa forma.

E quem é Salomão Kane? Trata-se de um puritano que vive entre o final do século XVI e o início do XVII, tempos do reinado de Elizabeth I, tempos de Shakespeare e de Francis Drake, bem como de tantas outras personalidades e eventos da maior importância na história da Inglaterra. De modo especial, foi quando o Império Britânico viveu seu momento de maior ímpeto expansionista. "Puritano", aí, significa adepto do puritanismo, movimento religioso que se desenvolveu na Inglaterra, caracterizado por alinhar-se teologicamente com as igrejas protestantes, rejeitando tanto a doutrina católica quanto a anglicana, e por insistir na austeridade dos costumes, tanto que, hoje, é relativamente comum referir-se a qualquer pessoa que se conduza segundo uma moral rígida como sendo "puritana", sem que isso tenha necessariamente a ver com sua formação religiosa.

O interessante para nós é que Kane, em vez de ficar em sua nativa Devon e tornar-se um pregador, decidiu correr o mundo buscando "destruir o mal em todas as suas formas", o que geralmente significa matar monstros sobrenaturais. Por causa de tal temática, suas aventuras estão entre as histórias mais sinistras escritas por Robert E. Howard, revelando um interesse do autor pelo clima de terror, que mais tarde seria um pouco posto de lado, quando Conan se firmou como a mais popular de suas criações, e a que capitalizou a maior parte de seus esforços durante seus últimos anos de vida. Tenho a sensação de que, se Howard tivesse vivido mais algumas décadas, teria eventualmente retomado a linha mais sombria, fosse com Salomão Kane ou com outros heróis. Mas isso, infelizmente, ficará para sempre no terreno do "se".

Howard define Kane, na história A Lua de Caveiras, como "uma estranha mistura de puritano e cavaleiro, com um toque do filósofo antigo, e mais toques humanos do paganismo, embora a última asserção o tivesse chocado". Essa perfeita descrição do caráter do personagem permite, ainda, ler nas entrelinhas algo mais: Kane sempre gostou de lutar. O amor pela loucura da batalha, herança de seus ancestrais saxões, corre em suas veias, mas, ao mesmo tempo, tendo sido educado como cristão, ele aprendeu que a paz é preciosa. Assim, o nobre objetivo de exterminar o mal e proteger os inocentes ajuda-o a conciliar as coisas, tornando possível para ele saciar sua fome de luta sem ser torturado pela consciência. O que não quer dizer que ele não tenha seus conflitos: por mais que os críticos irritantes que gostam de malhar Howard se recusem a admitir, a verdade é que Salomão Kane está longe de ser um personagem raso.

Este livro reúne sete contos e um poema, originalmente publicados nas revistas pulp para as quais Robert E. Howard habitualmente vendia o que escrevia, mas que, de lá para cá, já apareceram em muitas compilações dirigidas aos fãs do autor ― em língua inglesa, é claro. Os contos O Chocalhar de Ossos e Asas na Noite, bem como o poema O Retorno a Casa de Salomão Kane, eu já conhecia d'A Espada Selvagem; Asas na Noite é provavelmente o melhor, tanto na ideia quanto no desenvolvimento, alternando momentos sinistros, épicos e trágicos ao narrar os esforços de Kane para defender uma tribo africana contra os ataques de uma raça de monstros alados. O Chocalhar de Ossos e A Mão Direita do Destino são magníficos contos de terror, sendo que, no segundo, cabe a Kane apenas o papel de testemunha ― e, creiam, ficou muito legal assim! A Lua de Caveiras é a história mais longa, talvez tenha sido tema da capa da revista por ocasião de sua publicação original, mas não é tão emocionante, chegando a deixar o leitor impaciente em algumas passagens. Ainda assim, vale a leitura, em especial por causa das partes que desvelam um pouco da história das eras antigas do mundo tal como imaginadas por Howard ― as menções a Atlântida e Lemúria configuram, ainda que de forma nebulosa, os conceitos da Era Pré-Cataclísmica na qual teriam lugar as aventuras do rei Kull, personagem criado em 1929 e que serviria de modelo direto para a criação de Conan, o Bárbaro, três anos depois. Kull teve apenas três histórias publicadas em vida do autor, todas mais ou menos no mesmo período em que saíram as aventuras de Salomão Kane (A Lua de Caveiras é de 1930).


A partir de A Lua de Caveiras, as histórias parecem formar uma sequência, coisa pouco comum na obra de Howard, que geralmente preferia escrever narrativas "soltas", sem se preocupar em seguir uma ordem cronológica. Desse conto em diante, o cenário é sempre o continente africano, que Kane desbrava sozinho, aparentemente sem outro objetivo a não ser obedecer a um impulso inexplicável que o faz ir sempre para o leste ― isto é, na direção do desconhecido, do inexplorado. Confesso que até pensei em criticar o fato de que os africanos nativos retratados nesta páginas parecem extremamente estereotipados, nada mais que a figura do "selvagem" tal como imaginada por europeus e norte-americanos com pouco ou nenhum conhecimento sobre os elementos humanos da África ― no máximo, há "bons" e "maus" selvagens. Mas optei por não fazer isso: quantos de nós podem dizer que realmente possuem um conhecimento ao menos razoável sobre as características e os costumes das tribos africanas? Mesmo para quem tenha interesse, essas não são informações de fácil acesso, nem sequer hoje, que dirá na época de Howard, então prefiro considerar que o cara fez o melhor que pôde.

Com Salomão Kane, Robert E. Howard conseguiu fundir, de forma eficiente, o terror e a aventura heroica, definindo um estilo muito pessoal, que se tornaria sua marca registrada e influenciaria muitos outros escritores ao longo das décadas seguintes. Ler As Fabulosas Aventuras… dá a fãs e não-fãs do autor a chance de compreender a tremenda injustiça do papel secundário ― na verdade, o semiesquecimento ― que foi o que restou aos outros heróis de Howard a partir do surgimento de Conan. Daí em diante, pouca gente quis saber deles, e, como os leitores não se interessavam, os editores, consequentemente, também não. Assim, Howard, que, como todo mundo, precisava ganhar o pão, teve que se curvar às exigências do mercado, de modo que, de 1932 até sua morte quatro anos depois, praticamente só escreveu sobre o cimério. Mesmo que, mais tarde, tenham sido resgatados, esses personagens e suas aventuras, ainda hoje, recebem muito menos atenção do que merecem, e é por isso que iniciativas como a da Saída de Emergência ao publicar este livro devem ser aplaudidas e prestigiadas. Quem achar, por favor, compre! Só assim podemos ter esperança de que tantos outros tesouros ocultos escritos pelo filho mais ilustre de Cross Plains possam continuar, aos poucos, vindo à luz.

terça-feira, março 18, 2014

Assombro

Um punhado de pessoas com ambições literárias responde a um anúncio tentador colocado em vários quadros de avisos: um convite para um "retiro de escritores". A proposta é que, durante três meses, os participantes deixem para trás tudo o que os impede de criar sua obra-prima: emprego, família, casamento, distrações, vícios. Durante esses 90 dias, esses candidatos a autores de bestsellers ficarão isolados do mundo, dedicando-se exclusivamente a seu trabalho criativo.

Parece muito bom, até que todos chegam ao local do retiro –um velho teatro – e descobrem que estão presos lá. Seu anfitrião, o velho Sr. Whittier, alega que tudo o que pede deles é que façam o que vieram fazer, aquilo que, enquanto estavam no mundo exterior, tudo servia de desculpa para não fazerem: dedicar-se a escrever algo realmente bom, ou, pelo menos, vendável. Mas ninguém parece escrever coisa alguma. A narrativa alterna entre o que acontece no teatro e histórias que os "confinados" contam uns aos outros, e que aparecem no livro sob a forma de contos. O mais curioso é que as histórias não parecem ser ficção, e sim coisas que aconteceram na vida real de cada um dos presentes – por mais que os fatos narrados, de tão bizarros, pareçam inventados. E, para não destoar da bizarrice, os eventos no teatro também são absolutamente esdrúxulos, embora sigam uma lógica (tortuosa) e uma motivação (mesquinha). O que há é que as pessoas trancadas no antigo teatro constituem a coleção mais variada possível, mas todos têm algo em comum: ninguém ali quer virar escritor por amor à arte – o que todos querem é ficar ricos e famosos. E a melhor oportunidade para isso, pensam eles, é escrevendo a história de seu "cruel encarceramento" pelo "maníaco" Sr. Whittier e sua cúmplice, a Sra. Clark. Pois, como está escrito em alguma página de Assombro, "esse é o sonho americano: transformar sua vida em algo que você possa vender".

Na verdade, a vida ali não é particularmente ruim: há comida à vontade e ninguém é submetido a maus-tratos. A única coisa é que não podem sair antes do prazo fixado de 90 dias, tempo durante o qual espera-se que produzam qualquer coisa de notável. É claro que essa situação não renderia um romance capaz de liderar as listas de bestsellers e de ser transformado em roteiro para um blockbuster de cinema – mas com alguns retoques, quem sabe? Então, as próprias "vítimas" encarregam-se de piorar as coisas, adotando providências que vão desde violar embalagens de alimentos para que estraguem mais depressa, até automutilações (!). O raciocínio é simples: quando o cativeiro for descoberto e a polícia invadir o local para "salvá-los", as câmeras de TV certamente estarão gravando tudo, e o que haveria de chocante ou de sensacional em um grupo de pessoas sendo resgatadas ilesas e bem-alimentadas? De jeito nenhum! É preciso que todos estejam satisfatoriamente magros e abatidos, e que tenham ferimentos para exibir, a fim de "provar" os horrores inimagináveis pelos quais dirão ter passado: isso tudo é indispensável para obterem a simpatia do público, convites para participar de programas entrevistas na TV e, mais tarde, uma adequada atenção da mídia para seu livro/filme. A propósito, ninguém parece ter dúvida de que o resgate vai chegar uma hora ou outra, e tudo o que acontece no interior do teatro vai sendo anotado, gravado em áudio ou vídeo, e, principalmente, reelaborado e discutido: será que isso vai ficar bacana na tela? Deveríamos exagerar um pouco esta parte? Como o público vai reagir a isso? Enfim, a mídia é o parâmetro para tudo, principalmente para a vida real, sem excluir seus momentos mais bizarros e desesperados.

Na história principal – a dos aspirantes a escritores trancados no teatro –, nunca fica claro quem é que está narrando. Durante a maior parte do tempo, a pessoa verbal é a primeira do plural ("nós"), como se a voz pertencesse a um dos confinados, sem que saibamos qual deles. Já nos contos, fica variando, de forma aparentemente aleatória, do "você", como se o narrador estivesse dizendo ao personagem o que acontece com ele (ou, mais propriamente, levando o leitor a pôr-se na pele do personagem), para "eu" ou "nós", inclusive dentro do mesmo conto. Essa oscilação de pessoa verbal é uma inconsistência comum em textos produzidos por gente pouco acostumada a escrever; como não li nenhum outro livro de Palahniuk antes, não sei dizer se ele é daqueles autores que cultivam um estilo tosco deliberadamente, se é dos que não gostam de "perder tempo" com "bobagens" como coesão e coerência, ou se está apenas procurando dar cores mais vivas ao enredo, tentando escrever como escreveriam as pessoas envolvidas, nenhuma das quais parece ter maior intimidade com literatura, apesar do sonho de serem escritores, ou, melhor dizendo, de terem a boa vida que acreditam que um escritor de sucesso tenha. De qualquer forma, embora a narrativa principal tenha os seus achados, a atração do livro são mesmo os contos.

Não é possível adiantar muita coisa sobre essas "histórias dentro da história" sem entregar detalhes-chave que estragariam o prazer do leitor – se bem que "prazer", aqui, é uma palavra que deve ser usada com reservas. Ao escrever quase todos esses contos, Palahniuk tinha a clara intenção de dar um tapa na cara de seus compatriotas norte-americanos, e precisamos admitir que, em maior ou menor grau, esse "tapa" serve também para os leitores de qualquer outro país, e pode ser igualmente útil para "acordá-los" um pouco. Vamos concordar que, quando uma sociedade valoriza as aparências acima de tudo, faz cobranças absurdas e rotula de fracassado quem não consegue satisfazê-las, recompensa o mau-caratismo, transforma a mediocridade e a pobreza de espírito num padrão, acoberta formas camufladas de violência em nome de dogmas "politicamente corretos", e estimula as pessoas a fazerem de suas vidas um reality show, é porque alguma coisa está muito errada. E, para nos jogar esse fato na cara de um modo que seja impossível ignorar, o meio que o autor escolheu foi narrar situações que causam desconforto, mal-estar e aflição.

De qualquer forma, pode-se dar algumas dicas… Se vocês (como eu) são daqueles que gostam de perambular por sites como o Medo B ou o Quero Medo, que, além de terror propriamente dito, também publicam curiosidades e bizarrices em geral, é bem possível que já tenham lido o conto Tripas – o primeiro e um dos mais aflitivos do livro, embora outros sejam, cada um a seu modo, tão terríveis quanto. Pós-produção é sobre exibicionismo e voyeurismo, e, principalmente, sobre como a diferença entre o que as telas mostram e a realidade pode ser grande e brutal ao ponto de destruir uma pessoa, ou, no caso, um casal. Canto do Cisne aborda a curiosidade das massas por notícias escabrosas e desastrosas, o que pode levar certos representantes da mídia a chegar a atos inimagináveis para saciar esse apetite doentio, porque "é preciso dar ao público o que ele quer". Falas Amargas aposta no humor negro (e bota negro nisso…) para criticar certo tipo de "feminismo". Fiquei surpreso ao constatar que pelo menos dois contos em Assombro – A Caixa de Pesadelos e Crepúsculo Civil – são, em tudo e por tudo, contos de terror, e bons contos de terror, que o mestre Richard Matheson possivelmente gostaria de ter escrito, e é interessante notar que, embora o elemento gore apareça bastante ao longo do livro, ele brilha pela ausência nessas duas histórias: nelas não há tortura, mutilação ou qualquer outra "amenidade" desse tipo, e a morte, quando aparece, tem uma função no enredo, em vez de ser a atração principal. O que o autor busca (e consegue) é aquela sensação perturbadora do desconhecido, do misterioso e do sinistro, de modo que não parece absurdo admitir que, nesses contos em particular, Pahlaniuk chega muito perto do que H. P. Lovecraft chamava de "horror cósmico", ainda que esse esteja longe de ser seu gênero por excelência. Estava na ponta dos meus dedos incluir aí mais um conto, Espíritos Malignos, mas acabei concluindo que esse trata-se de outro tipo de coisa, pois além de (apesar do título) não trazer sugestões sobrenaturais, suas características oscilam entre o "terror científico" e o drama.

Palahniuk fez o que os falantes de inglês chamam de save the best for last – guardar o melhor para o fim. O último conto é Obsoletos, uma coisa bastante diferente dos demais, e de várias maneiras. Para começar, é o único que não parece uma passagem autobiográfica contada por um dos personagens, e sim uma criação ficcional atribuída a um deles. Em segundo lugar, é um dos poucos que não estão limitados pela preocupação do verossímil: a maioria dos contos presentes no livro trata de coisas que poderiam acontecer, que provavelmente já aconteceram, ou que podem estar acontecendo em algum lugar; Obsoletos e dois ou três outros lançam mão dos recursos da pura imaginação – terror, fantasia e, aqui especificamente, uma mistura alucinante de misticismo com uma pitada de ficção científica – para provocar reflexão sobre certos temas muito reais e cotidianos. Com uma observação: o misticismo aí mencionado não envolve coisas difíceis como fé, autoconhecimento ou desejo de melhorar; é o misticismo fast food, rápido, prático, consumível, enfim, o tipo de misticismo que tem procura no mercado. Quando terminei Obsoletos, desejei que Assombro não fosse o primeiro livro do autor que eu estivesse lendo: se eu o conhecesse melhor, estaria devidamente embasado para emitir a opinião de que "mais Palahniuk, impossível". Grande conto.

Dizer que um determinado autor, ou você ama, ou odeia, é um dos mais manjados lugares-comuns da crítica literária, e, como seria de se esperar, já li isso também sobre Chuck Palahniuk. Se for verdade, eu ainda não consegui decidir de que lado fico… Não dá para negar que vários dos contos que fazem parte de Assombro são trabalhos de alto nível: escritos de forma vigorosa, prendem a atenção, provocam, perturbam, deixam o leitor refletindo depois, e qualquer pessoa que já tenha lido bastante na vida sabe que um escritor que consegue fazer com que seus textos tenham todas essas características merece, no mínimo, respeito. Por outro lado, nota-se em Palahniuk um gosto por chocar e escandalizar, e eu não sei até que ponto acho isso uma coisa que se deva admirar. É possível que eu conclua que essa tendência se justifica quando não é gratuita: não simplesmente chocar por chocar, mas, por exemplo, para chamar atenção para um fato absurdo que achamos normal porque estamos habituados a ele, usando a lente do grotesco para nos mostrar esse mesmo fato sob uma ótica diferente e, assim, forçar-nos a encarar a dúvida, a pensar sobre o assunto, o que, de outra forma, talvez não viéssemos a fazer. Pode ser. Por ora, tudo o que posso adiantar é que pretendo ler outras coisas do autor antes de fazer um julgamento. E que Assombro pode ser recomendado para aqueles leitores que não se sentem ameaçados quando alguém os desafia a questionar algumas coisas "normais" e cotidianas. Ah: um estômago forte também ajuda.

terça-feira, setembro 24, 2013

A Casa Infernal

Dois mil e treze ficará tristemente marcado para os fãs de literatura de imaginação como o ano do falecimento de um dos mais versáteis autores de ficção científica, fantasia e horror de todos os tempos - se é que cabe tristeza pelo fim inevitável de uma vida que foi tão longa e produtiva. Richard Matheson, norte-americano filho de noruegueses, nascido em 1926, teve uma prolífica e variada carreira que durou mais de 60 anos, sobressaindo em todos os três gêneros. Muita gente provavelmente já se empolgou e "viajou" com suas criações sem saber: Matheson foi o autor do romance Em Algum Lugar do Passado, publicado originalmente em 1975 e levado às telas com enorme sucesso cinco anos depois, com Christopher "Superman" Reeve no papel do homem que viaja no tempo para encontrar uma mulher que viveu no início do século e por quem apaixonou-se por meio de uma fotografia. Também são obra sua os roteiros de alguns dos melhores episódios da série clássica de Jornada nas Estrelas, incluindo o antológico O Inimigo Interior. Matheson foi ainda um dos principais responsáveis pela série original de Além da Imaginação, e, como se tudo isso fosse pouco, também escreveu Eu Sou a Lenda, um dos mais impressionantes romances do hoje popular subgênero pós-apocalíptico de ficção científica, filmado nada menos que três vezes, a última em 2007, com Will Smith como protagonista.

Uma boa dimensão da polivalência de Matheson é dada pelo fato de que as mocinhas sonhadoras que lotavam salas de cinema no início da década de 80 para suspirar assistindo a Em Algum Lugar do Passado provavelmente teriam um treco ante a simples ideia de ler este A Casa Infernal (1971), ou mesmo de ver o filme baseado nele (1973). Seguindo a tradição de A Queda da Casa de Usher, do imortal Edgar Allan Poe - que será para sempre um parâmetro para todas as histórias de casas assombradas -, Matheson conseguiu dar ao tema um tratamento moderno, que inclui insights científicos e psicológicos, além de uma certa dose de erotismo sinistro, resultando num romance arrepiante, que agradará em cheio aos apreciadores de boas histórias de horror.

O livro começa pouco antes do Natal de 1970. O magnata da imprensa Rolf Deutsch, já velho e com a saúde abalada, contrata o Dr. Lionel Barrett, um físico que por mais de 20 anos dedicou-se a pesquisas parapsicológicas, para tentar desvendar os mistérios da Mansão Belasco (popularmente conhecida como a "Casa Infernal"), onde outrora viveu o milionário Emeric Belasco, famoso por promover em sua casa espantosas orgias nas quais todo tipo de comportamento aberrante era não só tolerado como estimulado. Inúmeras pessoas morreram na casa durante esses horripilantes divertimentos, que só terminaram quando o próprio Belasco desapareceu. Desde então, a casa é considerada assombrada, e, no momento em que Barrett recebe a incumbência, tem estado desabitada há cerca de duas décadas. Embora Deutsch não o diga, Barrett percebe que o que o velho e rico homem deseja é uma resposta para a eterna questão da vida após a morte - questão essa que provavelmente cresceu em importância aos seus olhos, agora que ele sabe que seu próprio fim está próximo. Há um detalhe que Stephen King - por sinal, um fã de carteirinha de Matheson - consideraria auspicioso: a mansão fica no Maine, estado onde ele próprio nasceu, mora e ambienta quase todas as suas histórias.

Barrett não irá sozinho: sua esposa e eventual assistente, Edith, insiste em acompanhá-lo, e, além disso, Deutsch também contratou os médiuns Florence Tanner e Benjamin Franklin Fischer; ela, uma ex-atriz que agora é ministra de uma pequena igreja espiritualista, ele, o único sobrevivente de uma expedição anterior à Casa Infernal, trinta anos antes. O quarteto não poderia ser mais heterogêneo. Barrett é um cético empedernido, que não acredita em fantasmas ou assombrações, e, embora não descarte totalmente a possibilidade da existência de vida depois da morte, é da opinião que um verdadeiro cientista não deve apoiar-se nessa crença em sua busca por respostas. Para ele, todos os fenômenos ditos "inexplicáveis" da Casa Belasco têm uma única explicação: desordens no campo eletromagnético do local, um problema que ele está certo de poder resolver utilizando uma máquina de sua própria invenção. Edith é uma mulher insegura e instável, tão dependente emocionalmente do marido, que entra em pânico com a perspectiva de ficar longe dele, por uma hora que seja. Florence, além de atraente, é emotiva e idealista, firmemente determinada a pôr fim à maldição da casa por meio do amor, levando libertação aos espíritos atormentados ali aprisionados. Fischer, por fim, é o personagem mais enigmático. Já foi considerado um dos mais poderosos médiuns do mundo, razão pela qual foi incluído na missão anterior, apesar de, na época, não passar de um adolescente. As horríveis experiências que viveu naquela casa fizeram com que se afastasse da parapsicologia, mas, apesar disso, continua com seus poderes intactos.

Os primeiros dias na casa correm em relativa tranquilidade, embora fenômenos inquietantes não deixem de acontecer; cada membro da missão começa a agir à sua própria maneira. Enquanto Barrett colhe dados científicos e aguarda a entrega de sua máquina, Florence começa a interagir ativamente com as forças espirituais em ação na casa, acreditando, inclusive, haver feito contato com o fantasma de Daniel Belasco, o suposto filho do antigo dono da casa, cuja própria existência é duvidosa, já que não há registros de seu nascimento. A compaixão que sente pelo espírito do rapaz e pelas demais almas aprisionadas na casa pode acabar sendo sua ruína, como Fischer não deixa de adverti-la, mas sua sincera piedade religiosa leva-a a insistir, mesmo à custa da própria segurança. Quanto a Fischer, ele não esconde o fato de que tudo o que pretende é ficar na casa até o final da semana que foi o prazo dado por Deutsch e então embolsar o polpudo pagamento prometido pelo velho: mantém sua mente fechada a influências ou contatos, recusando-se a correr o risco de reviver o que passou na juventude naquele mesmo local. As descrições dos fenômenos paranormais são vívidas e perturbadoras, e uma atmosfera de paranoia permeia a narrativa à medida em que as entidades sobrenaturais presentes na casa começam a agir - ora sutis, ora brutais, mas sempre traiçoeiras. Além de tudo isso, há uma tensão permanente entre Florence e o Dr. Barrett, que entram em atrito com frequência, ela achando que ele se recusa a ver o que está diante de seus olhos para não ter que admitir que suas teorias podem precisar ser revistas, enquanto ele acredita que ela se utilize, talvez inconscientemente, de suas habilidades mediúnicas para manipular as energias da casa a fim de fornecer aparentes provas que apoiem suas convicções.


Richard Matheson era um mestre em criar atmosfera: suas descrições levam o leitor a mergulhar de fato nas sensações que o autor deseja transmitir, seja a admiração pela grandiosidade e magnificência da mansão - imensa, de arquitetura maravilhosa, e repleta de obras de arte -, seja o medo gelado que parece espreitar os heróis por detrás de cada coluna esculpida e de cada móvel antigo. Se falta algo, talvez seja um personagem realmente carismático: eu, pelo menos, não consegui me identificar muito com nenhum deles. O Dr. Barrett, durante a maior parte do tempo, é irritante com seu ceticismo, enquanto Florence torna-se piegas com seu excesso de emotividade e sua doçura enjoativa -, dois personagens estereotipados, enfim. Talvez o mais interessante seja Fischer, mas sua persistente atitude de ficar à margem dos acontecimentos impede que se pense nele como um protagonista no verdadeiro sentido do termo. Curiosamente, é com Edith - a personagem à primeira vista menos importante, e que, a rigor, nem precisaria estar ali - que o livro consegue ter o seu quantum satis de profundidade psicológica, pois a esposa de Barrett é uma pessoa complicada, cem por cento devotada ao marido, mas perturbada por traumas de infância e por uma sexualidade reprimida, o que faz dela um alvo perfeito para as forças sinistras que ocupam a Mansão Belasco. O desfecho é como teria que ser numa história assim - surpreendente -, mas seus detalhes parecem um tanto incompatíveis com o que havia sido dito antes sobre Emeric Belasco.

A Casa Infernal não é perfeito, mas é sem dúvida um ótimo livro - e "ótimo" é provavelmente o adjetivo que se pode aplicar às menos inspiradas dentre as obras de Matheson. Prende com sua narrativa e possui as doses certas de suspense e de sustos, de modo que nenhum apreciador de terror haverá de dar por perdido o tempo que dedicar à sua leitura.

sexta-feira, novembro 30, 2012

Góticos

Quando encontrei esta antologia na Livraria Curitiba do shopping Estação, na capital paranaense, há alguns dias, vi-me diante de um pequeno dilema: praticamente metade dos contos que a integram, eu já possuía em outras coletâneas - alguns deles, em mais de uma. Mesmo assim, acabei decidindo pela compra: os textos que eu ainda não conhecia eram irresistíveis, já valendo, só eles, o valor a ser pago, aliás muito razoável. Minha namorada Cintia, que estava comigo na ocasião, observou que, a julgar pela capa, deve tratar-se de uma edição visando o público adolescente do sexo feminino - leia-se: as fãs de Crepúsculo. Se assim for, e se o alvo for atingido, ótimo: é bom que essa faixa de público tenha a chance de conhecer um pouco do melhor que a literatura gótica já produziu, e de ter um contato direto com a ficção de horror no sentido estrito do termo. Pelas páginas deste volume desfilam nomes veneráveis da literatura do sobrenatural como Bram Stoker, Mary W. Shelley, Edgar Allan Poe e Joseph Sheridan Le Fanu; outros que, embora famosos, não costumam ser imediatamente associados ao horror, como Robert Louis Stevenson (autor do clássico romance de aventura de piratas A Ilha do Tesouro, mas também da não menos clássica novela de horror O Médico e o Monstro), Sir Arthur Conan Doyle (criador do mais famoso detetive da ficção, Sherlock Holmes) e o francês Théophile Gautier, melhor conhecido por sua poesia; e, por fim, nomes que bem mereceriam ser mais conhecidos do que são, como W. W. Jacobs e a figura fascinante, mesmo que apagada pelas circunstâncias, de John William Polidori. Por fim, é preciso notar, para crédito do organizador Luiz Antônio Aguiar, que foi uma bela ideia não fazer do livro uma coletânea apenas de contos, mas de textos góticos ou sobre o movimento literário gótico de maneira geral: além dos contos, ele também inclui poemas de Byron e Goethe (seria difícil pensar em dois poetas que melhor representassem essa corrente estética) e interessantes ensaios curtos assinados por Pedro Bandeira (nome coroado da literatura teen no Brasil, criador da série Os Karas, cujo piloto é o merecidamente aclamado A Droga da Obediência), Luiz Raul Machado, Daniel Piza, e pelo próprio Aguiar. O problema com esses ensaios é que parecem ter sido escritos mediante um convite genérico feito separadamente a cada autor, sem obedecer a um plano geral para o livro, o que acaba fazendo com que alguns temas sejam abordados de forma repetitiva, enquanto outros pontos interessantes ficam sem receber atenção.

Góticos, portanto, tem a clara intenção de servir de porta de entrada para os jovens leitores (ou leitoras) do século XXI travarem conhecimento com os grandes nomes da literatura de horror, e isso explica por que a maioria dos autores que nele marcam presença vêm representados por trabalhos que estão entre os mais famosos que produziram - eis o motivo pelo qual muitos dos contos já são conhecidos de quem já acumulou certa experiência no gênero, como este que vos escreve. Conan Doyle, por exemplo, comparece com o delicioso e arrepiante Lote 249, também presente na coletânea Encantamentos; pouca gente sabe, mas Doyle foi o primeiro a usar uma múmia como personagem de horror. De Edgar Allan Poe, temos A Queda da Casa de Usher, clássico absoluto, a "mãe" de todas as histórias de casas assombradas. Infelizmente, esse conto, tal como aparece no livro, constitui mais um desagradável exemplo do grande problema que é a falta de cultura geral para um tradutor de literatura: no rol dos livros que o narrador anônimo lê em companhia de seu amigo em vias de enlouquecer, Roderick Usher, há uma tentativa de informar nas notas de rodapé a tradução dos títulos, que, no original, estão em diversas línguas. O tradutor Domingos Demasi meramente informa ao leitor que títulos como Belphegor e Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae "não têm tradução"... Ora, é claro que Belphegor não terá tradução se a pessoa simplesmente tentar achá-lo num dicionário como se fosse um substantivo comum, mas alguém com um pouco de conhecimento de ocultismo saberia que esse é o nome de um dos demônios favoritos dos satanistas medievais, um demônio identificado com o elemento fogo e que, dos Sete Pecados Capitais, presidia o da preguiça. Já o outro título, em latim, encerra um trocadilho genial e totalmente pertinente com o tema da história: numa tradução literal, significaria a "vigília dos mortos segundo o coro da igreja de Mogúncia" (cidade alemã que em latim é Moguntia, em alemão Mainz); só que vigiliae mortuorum pode tanto ter o inocente significado de uma vigília de oração na intenção das almas dos mortos, quanto pode querer dizer algo parecido com "despertar os mortos"... É um desperdício privar o leitor dessa sacada magistral de Poe. A impressão que dá é de que o senhor tradutor conclui que uma coisa "não tem tradução" quando ela não se enquadra em sua experiência anterior e tampouco é resolvida pelo Google Translator.

Bram Stoker é representado por O Hóspede de Drácula, história curta que é quase presença obrigatória em antologias de contos vampirescos, e também uma boa pedida para coletâneas voltadas para o sobrenatural em geral, como esta. Esse conto, a propósito, até hoje gera controvérsia entre fãs e estudiosos da obra de Bram Stoker: enquanto uns o consideram um trecho excluído de Drácula, outros creem que foi concebido desde o início como um conto independente, embora ambientado no mesmo universo. Luiz Antônio Aguiar expõe a interessante hipótese de que o texto teria sido escrito para ser o capítulo inicial do romance, mas que Stoker o cortou ao perceber que havia ido muito fundo, logo de cara, no clima sobrenatural: o autor acabou preferindo que a imersão do leitor no ambiente tenebroso da história fosse gradual, efeito que conseguiu ao dar aos primeiros capítulos da versão definitiva uma aparência de normalidade que ia aos poucos sendo modificada por meio de sugestões sombrias. O leitor atento notará que a frase que Jonathan Harker (pois está na cara que é ele o viajante inglês sem nome que protagoniza o conto) encontra gravada num túmulo ("Os mortos viajam depressa"), e que não aparece no romance, foi resgatada por Francis Ford Coppola em seu filme Bram Stoker's Dracula (1992), bem como alguns outros detalhes do conto. É pena que Aguiar prejudique a boa impressão que seu posfácio à história de Stoker causa ao leitor, ao cometer um dos erros mais vergonha-alheia que me lembro de já ter encontrado impressos em livro: "...vemos Jonathan chegando ao castelo do conde-vampiro, na Pensilvânia". Transilvânia, Aguiar, Transilvânia, que fica na Romênia, pelo amor de Deus! O estado norte-americano da Pensilvânia nada tem a ver com isso; até onde sabemos, Drácula nunca pôs o pé lá.

E, como é de vampiros que estamos falando, não posso deixar de dizer algumas palavras sobre John William Polidori, perfeito exemplo de um talento promissor que foi perdido sem produzir aqueles que poderiam ter sido seus melhores frutos, e hoje lembrado principalmente pelo fato de sua biografia estar estreitamente entrelaçada com as de mais de um nome essencial da literatura gótica. Nascido em Londres em 1795, filho de mãe inglesa e pai italiano, foi amigo e médico pessoal do aristocrata e poeta, barão George Gordon Byron, que passaria à posteridade simplesmente como Lord Byron e foi, poder-se-ia dizer, uma das primeiras "celebridades" da História, no sentido que damos hoje a essa palavra. Ocorreu que, durante o verão de 1816, Polidori encontrava-se numa casa de campo às margens do lago Genebra, na Suíça, em companhia de Byron, de seu amigo e também poeta Percy Bysshe Shelley, e da jovem esposa deste, Mary, quando, depois de terem lido diversas histórias de fantasmas uns para os outros, o anfitrião propôs que cada um do quarteto escrevesse também uma; essas histórias depois seriam lidas pelo grupo, e escolheriam a melhor. Byron e Shelley nunca terminaram as histórias que começaram com vistas a esse desafio, mas Polidori escreveu The Vampyre, que muitas fontes apontam como a primeira história de vampiro publicada em língua inglesa, enquanto Mary Shelley produziu um conto ao qual chamou O Moderno Prometeu, que mais tarde desenvolveria sob a forma do romance Frankenstein, hoje uma obra essencial tanto para a literatura de horror quanto para a de ficção científica.

(Julgo necessário fazer um parêntese para esclarecer aos não iniciados em mitologia que o Prometeu do título nada tem a ver com o verbo "prometer"; refere-se ao titã Prometeu, que, no mito grego, roubou dos deuses o segredo do fogo para dá-lo aos homens, o que arrancou estes últimos da animalidade e tornou possível o surgimento da civilização. Como castigo, Zeus acorrentou Prometeu ao topo de uma montanha, onde diariamente um gigantesco abutre ia devorar-lhe o fígado, que crescia novamente durante a noite, de modo que seu tormento jamais tivesse fim - mas teve, séculos mais tarde, quando o herói Hércules subiu a montanha, matou o abutre e libertou Prometeu. O que nos interessa diretamente aqui, porém, é notar o paralelo que Mary Shelley traça entre o titã e seu herói Victor Frankenstein: ambos metem-se com segredos que não deveriam conhecer e pagam o preço de sua ousadia. Um ponto de vista tipicamente romântico - pois o gótico, é bom não esquecermos, nada mais foi do que uma ramificação do movimento artístico designado genericamente como Romantismo. Aliás, embora isso seja uma definição um tanto simplista, pode-se dizer que o gótico caracterizava-se precisamente por levar aos extremos certos elementos que outras correntes românticas cultivavam de forma mais moderada.)

Voltando a falar de Polidori, ele só publicou uma outra obra digna de nota, um poema intitulado The Fall of the Angels, com claras influências de Byron, em 1821. Morreu nesse mesmo ano, sem ter completado 26 anos. Nas páginas de Góticos, podemos ter o prazer de ler The Vampyre, conto que, mesmo com muitas marcas do amadorismo de seu autor (que, embora já então formado em medicina, tinha meros 20 anos quando o escreveu), demonstra um inegável dom para criar a atmosfera tenebrosa necessária ao bom horror gótico, e dá uma ideia do formidável escritor que Polidori poderia ter-se tornado, caso vivesse o suficiente. É interessante notar que o vampiro dessa história não mora em nenhum castelo isolado - em vez disso, transita livremente pela alta sociedade inglesa - e não se alimenta apenas de sangue, mas também de atos perversos em geral, comprazendo-se em espalhar ruína, degradação e morte por onde passa.

Também no terreno do vampirismo, embora de maneira mais lírica, situa-se o conto A Amante Morta, de Théopile Gautier, que aparece em outras coletâneas como A Morte Amorosa, A Morta Apaixonada, entre outros títulos, todos com alguma sutil diferença em relação uns aos outros. Nele, um jovem padre se vê desviado, ainda que apenas na esfera dos sonhos e pensamentos (ou assim ele acredita) de sua vocação virtuosa ao apaixonar-se pela misteriosa Clarimonde, a mais bela das mulheres, cujo único defeito, aparentemente, é o de não pertencer ao mundo dos vivos.

Um autor essencial para a literatura vampiresca, mas que, no conto aqui presente, decidiu seguir outro rumo, é o irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, cujo Carmilla (1872) plasmou várias das características que hoje associamos automaticamente aos vampiros, além de ter sido, juntamente com o já citado The Vampyre de John Polidori, a mais direta influência para que o igualmente irlandês Bram Stoker - contemporâneo, conhecido e admirador de Le Fanu - viesse a dar à luz (ou às trevas?) o mais famoso livro de vampiros de todos os tempos, cujo título acho desnecessário repetir. Le Fanu deve ter causado certa comoção, em sua época, ao descrever em Carmilla a paixão sentimental e erótica entre uma bela vampira e sua igualmente bela vítima - do sexo feminino. Aqui em Góticos, entretanto, o que o organizador nos oferece é um conto curto no qual Le Fanu preferiu ousar menos: Dickon, o Diabo, é uma história de fantasmas tradicional, sem nada de muito surpreendente, mas, ainda assim, de uma tremenda força ao descrever a aparição do falecido senhor de uma antiga mansão campestre, com uma sutileza que arrepia muito mais que o horror escancarado de grande parte da ficção espectral moderna, seja literária ou cinematográfica.

Retornando por um instante a Mary Shelley, em Góticos tive uma agradável surpresa ao ler um conto seu que não conhecia, Transformação, que apresenta um protagonista totalmente típico do Romantismo - um jovem fidalgo impetuoso, de espírito rebelde (está bem, vá: um playboy renascentista desmiolado), que dilapida a fortuna da família numa vida boêmia e, com isso, arruína suas chances de desposar a jovem que ama. Para não fugir a nenhum chavão romântico, esse personagem é italiano de Gênova e chama-se Guido. O tempero macabro nesse até aí manjadíssimo plot surge quando ele encontra um anão demoníaco e decide aceitar sua proposta para uma troca temporária de corpos, acreditando que isso lhe dará os meios de consertar as bobagens que fez... Não é preciso dizer que as coisas não serão tão fáceis.

Góticos pode ser recomendado sem medo (ou com ele...), já que cumpre bem aquilo a que se propõe, tendo a vantagem de juntar num só lugar um expressivo punhado dos autores e obras mais indispensáveis a quem pretende começar a se arriscar em meio às trevas da melhor ficção de horror. Como, além da qualidade de seus textos, é uma edição de baixo custo, tem tudo para alcançar boas vendagens, e não seria má ideia se isso encorajasse seu coordenador e seus editores a organizar novos volumes: o lançamento de Góticos II, III e assim por diante não seria nenhum exagero, pois ainda há uma enormidade de excelentes textos e autores do mesmo gênero merecendo tornar-se acessíveis a um maior número de leitores. Tendo apenas o cuidado de corrigir as pequenas falhas citadas acima, Luiz Antônio Aguiar ainda poderá nos guiar através de muitas horas e páginas cheias dos mais deliciosos calafrios.

quinta-feira, março 03, 2011

A Ilha do Dr. Moreau

Passei os últimos quatro meses lendo a série O Imperador e escrevendo sobre ela, o que é suficiente para me deixar farto da temática romana durante umas... 24 horas, talvez. Entretanto, como alguma variedade é saudável, e o mundo está cheio de assuntos interessantes, decidi comentar este livro, que comecei a reler numa decisão repentina ao acidentalmente bater o olho nele na minha estante.

Li pela primeira vez A Ilha do Dr. Moreau na pré-adolescência, talvez com uns 12 anos de idade, quando estava começando a prestar atenção aos nomes dos autores dos livros que lia (vocês se surpreenderiam com o número de livros que li na infância e adoraria reencontrar hoje, mas não tenho como procurá-los porque o Marcos garoto simplesmente não se preocupava com quem era o autor). Meus irmãos andavam comentando entusiasmados o livro O Homem Invisível - que, por algum capricho do destino, não li até hoje! - e, quando topei na biblioteca com outro livro do mesmo autor, decidi conferir. Não era a mesma edição do exemplar que tenho hoje, esse comprei num sebo anos depois: se não me engano, a edição que li primeiro tinha tradução de ninguém menos que Monteiro Lobato. Foi meu primeiro contato com a obra de Herbert George Wells (1866-1946).

Esse autor britânico, como vim a saber, divide com o francês Júlio Verne o mérito do pioneirismo no gênero que mais tarde ganharia o nome de ficção científica. Verne e Wells não foram realmente os primeiros a escrever coisas do tipo (o famosíssimo Frankenstein, de Mary W. Shelley, em tudo e por tudo uma história de ficção científica, é de 1817), mas foram os primeiros escritores que se dedicaram de forma consistente ao gênero e conquistaram para ele um público fiel. Suas semelhanças, porém, terminam aí, pois os dois tinham estilos muito diferentes. As obras de Verne costumam ser mais leves, com um sentido de aventura e descoberta que as torna atraentes tanto para o leitor adolescente quanto para o adulto, além de, não raro, terem um toque de humor (Da Terra à Lua tem trechos realmente hilários!). Ao mesmo tempo, Verne revelava uma preocupação maior com o aspecto "técnico" do que escrevia, procurava fornecer explicações plausíveis para a forma como as coisas de que falava eram ou viriam a ser possíveis. Wells, por sua vez, visava claramente um público mais maduro, e pensava mais no lado humano das situações. Para ele, não importava tanto como um homem pode ficar invisível ou qual a tecnologia usada pelos marcianos nas naves com que invadiram a Terra: interessava-lhe muito mais saber quais seriam as consequências disso tudo para a cultura e a sociedade.

A Ilha do Dr. Moreau, de 1896, ocupa um lugar à parte na obra de H.G. Wells. Mencionei há pouco o Frankenstein como sendo obra de ficção científica, e não há dúvida de que o é, embora seja lembrado com muito mais frequência como um clássico da literatura de terror. O fato é que o danado do livro pertence a ambos os gêneros, e A Ilha... também não está muito longe disso. Ao mesmo tempo em que levanta questões importantes sobre ciência e a ética dos cientistas, o livro está recheado de passagens sombrias e tensas, onde o horror ora é sutil, alimentado pela sensação indefinida de realidades desconhecidas e possivelmente hostis, ora explícito, por meio de presenças bizarras e assustadoras.

O livro trata das aventuras de um inglês do século XIX, Edward Prendick, que, após sobreviver a um naufrágio e penar miseravelmente durante dias num escaler à deriva no sul do Pacífico, acaba sendo resgatado por uma escuna que leva a bordo um sujeito misterioso de nome Montgomery, que diz viver numa pequena ilha sem nome, onde a embarcação o deixará antes de seguir para seu destino. Nos arredores da ilha, como o capitão bêbado e rabugento recusa-se a levar Prendick mais adiante, ele acaba sendo obrigado a desembarcar, e se vê jogado num pequeno mundo habitado apenas por Montgomery, por um velho cientista a quem ele parece servir de assistente, e por um grupo de homens de aparência estranha, parecendo fisicamente mal acabados, com inteligência subumana e certos inconfundíveis traços animais na fisionomia e no comportamento.

O nome do velho cientista, Moreau, não é estranho a Prendick, que acaba por se lembrar de onde o ouviu: Moreau foi em tempos um médico eminente na Inglaterra, famoso tanto por seu conhecimento quanto pelas ideias pouco ortodoxas e pela crença de que, em prol da ciência, os fins justificam quaisquer meios. Juntando as terríveis histórias que ouviu quando garoto com as coisas que vê na ilha, Prendick chega à horrenda conclusão de que os seres disformes que perambulam por ela já foram homens, ficando reduzidos àquela condição degradante como resultado de algum tipo de atroz experimento levado a cabo pelo médico ensandecido. Dou uma pista: as coisas não são como Prendick pensa - e mais que isso não digo, pois seria estragar o arrepiante mistério que serve de fio condutor à história.

Entre outras influências oriundas de sua sólida formação científica, H.G. Wells pautava suas ideias na teoria da evolução de Darwin, e, dessa forma, sua mente especulativa inevitavelmente levantaria a questão de em que momento o homem separou-se dos animais, e se a linha que os distingue é mesmo tão nítida quanto geralmente se acredita. Que diferença haveria entre um animal humanizado e um homem animalizado? Até onde é preciso ir para que o ser humano reverta à selvageria, que, afinal de contas, é seu estado natural? A Ilha... é também mais um exemplo do gosto de Wells por pequenos universos fechados utilizados como alegoria para a sociedade humana como um todo: em seu conto Em Terra de Cego, o vale isolado nos Andes, habitado apenas por cegos, é uma metáfora dos absurdos a que pode levar a construção do conhecimento por meio de uma filosofia materialista que não aceita a possibilidade de realidades fora do alcance dos sentidos físicos e da experiência direta; em A Ilha do Dr. Moreau, o comportamento por vezes insano dos habitantes da ilha é uma crítica aos dogmas religiosos e às convenções sociais - mas, paradoxalmente, a conclusão à qual a história leva é a de que, com os defeitos que possam ter, esses dogmas e convenções são indispensáveis para que a civilização seja viável.

Em tempo: sei da existência de três versões filmadas de A Ilha do Dr. Moreau. Nunca vi a mais antiga, de 1932, mas, pelo que pude descobrir sobre ela na internet, não deve ser grande coisa: o maior destaque parece ser uma sexy (para os padrões da época) "mulher-pantera", enxertada no roteiro para tentar aumentar a bilheteria. Os dois filmes mais recentes eu vi, e tudo o que posso dizer é que é difícil escolher qual o pior, se o de 1977, com Burt Lancaster, ou o de 1996, com Marlon Brando e Val Kilmer. Ambos jogaram fora a tensão e as ideias perturbadoras do livro em prol de cenas ordinárias de ação e de um horror canhestro que lembra aqueles filmes pastelão sobre lobisomens, mas sem a veia de humor autogozador que torna esses filmes divertidos. Num deles, os temores de Prendick (ou como quer que tenham rebatizado o personagem) se concretizam e o Dr. Moreau realmente tenta usá-lo como cobaia em suas experiências - coisa que o Moreau do livro jamais faria. Resumindo: 115 anos depois de sua publicação, uma das melhores obras do mestre H.G. Wells ainda está à espera de uma adaptação cinematográfica decente. Deixem o DVD desligado e leiam o livro.