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sexta-feira, maio 22, 2020

As Crônicas de Nárnia

É claro que eu sempre soube que em algum momento leria as Crônicas de Nárnia; já tenho o livro há alguns anos, mas o dia de realmente pegá-lo para ler vinha sendo protelado devido ao apelo irresistível de outros livros, que sem a menor cerimônia furavam a fila. Foi minha namorada, Cintia, quem providenciou o empurrão de que eu precisava ao reclamar, e não pela primeira nem segunda vez, que não aguentava não ter com quem comentar algo de muito surpreendente, empolgante ou curioso que acontece ou é revelado no último livro da saga, adequadamente intitulado A Última Batalha. Quando o protesto foi substituído pela ameaça de "spoilear" a coisa para poder comentar de um jeito ou de outro, me rendi. Bem-vindos aos domínios do poderoso Aslam!

Na verdade eu já tinha lido os dois primeiros livros, O Sobrinho do Mago e O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, na primeira edição da Martins Fontes, que era em pequenos volumes separados; tenho até mesmo um velho exemplar de O Príncipe e a Ilha Mágica, que vem a ser o mesmíssimo Príncipe Caspian (1951), segundo livro a ser publicado (quarto pela ordem cronológica), em sua primeira edição brasileira, lançada pela obscura editora ABU lá nos anos 80. Porém, depois de tanto tempo, o melhor era começar de novo e ler de uma tacada o volume único, também da Martins Fontes, como se fosse tudo um livro só. E foi o que fiz.

Se Clive Staples Lewis (1898-1963) não tivesse se dedicado à literatura fantástica, é provável que, hoje em dia, só fosse conhecido no restrito círculo dos estudos profundos de teoria literária e história da literatura, e possivelmente, também, pelos interessados em apologética cristã. Pois ele se dedicou a tudo isso, e sobressaiu em todas essas áreas. Irlandês de nascimento, Lewis ensinou nas universidades britânicas de Cambridge e Oxford; nesta última, foi colega de J. R. R. Tolkien, com quem firmou uma profunda amizade, reforçada pelos interesses comuns em língua e literatura, especialmente literatura medieval. Apesar da amizade, os dois divergiam em alguns pontos fundamentais, como no fato de Tolkien ser um católico fervoroso, enquanto Lewis era ateu. Depois de anos de discussões filosóficas, em 1931, ao final de uma conversa legendária que varou a madrugada, Tolkien por fim logrou êxito em converter Lewis ao cristianismo, ainda que tenha ficado um tanto decepcionado porque o amigo optou por voltar à Igreja Anglicana, na qual fora educado e da qual se afastara na adolescência, ao invés de abraçar a fé católica, como ele esperava. Os dois e mais alguns amigos literatos fundaram um grupo, uma espécie de pequeno clube informal denominado The Inklings; a tradução é difícil, o mais próximo que consigo chegar é "os da tinta", assim como Earthling significa "da Terra", com o sentido de terráqueo. Esse grupo se reunia num pub nas noites de quinta-feira para conversar sobre literatura; nessas ocasiões trocavam manuscritos ou os liam uns para os outros. Foi assim que Lewis tornou-se uma das primeiras pessoas a ler O Hobbit, e incentivou fortemente Tolkien a publicá-lo, tal como também o incentivaria durante o demorado processo criativo de O Senhor dos Anéis. Tudo indica que a influência de Tolkien tenha sido um dos fatores que levaram Lewis a, por sua vez, dedicar-se a escrever fantasia, embora também seja verdade que ele sempre teve um fascínio por folclore e mitologia, as fontes originais desse tipo de literatura.

As Crônicas de Nárnia só tiveram seu primeiro livro publicado em 1950, sendo que as reuniões dos Inklings deixaram de realizar-se no ano anterior, mas é provável que Tolkien e os outros tenham tido acesso a versões iniciais; sabe-se que o Professor nunca gostou muito delas, por serem essencialmente alegóricas, coisa que ele não apreciava, já que considerava a alegoria como uma forma de coerção intelectual – o autor estaria como que obrigando o leitor a interpretar a história da mesma maneira que ele. Em todo caso, Tolkien reconhecia às Crônicas o mérito de fábulas morais que poderiam contribuir para transmitir às novas gerações a moralidade cristã e os valores humanos fundamentais.


Quando me referi a O Sobrinho do Mago como sendo o primeiro livro das Crônicas, considerei a ordem cronológica da leitura, que é como os sete livros são apresentados nesta edição em volume único; pela ordem de publicação, ele seria o penúltimo, pois sua primeira edição é de 1955, depois de cinco outros livros e antes apenas de A Última Batalha. Entretanto, é em O Sobrinho do Mago que vamos encontrar a narrativa da criação do mundo que abriga o reino de Nárnia e dos primeiros contatos entre esse mundo e o nosso. O narrador afirma que os acontecimentos ali descritos tiveram lugar quando "Sherlock Holmes ainda vivia em Londres", o que significa algo entre o fim do século XIX e os primeiros anos do XX. O sobrinho do mago em questão é o garoto Digory Kirke, que acaba de mudar-se do interior da Inglaterra para Londres, em companhia da mãe doente, para morar com os tios André e Letícia, dois irmãos solteirões. O tio André é que é o mago… Ou, ao menos, acha que é: ele tem uma noção extremamente exagerada a respeito de seus próprios conhecimentos e poderes. Não sou muito de ficar procurando pelo em ovo, tenho uma tendência de me impacientar quando vejo alguém analisar uma obra e começar a atribuir-lhe "sentidos ocultos" e "mensagens nas entrelinhas" que provavelmente fariam o autor dar boas risadas se lhe perguntassem a respeito, mas, desta vez, não pude evitar que esse personagem me fizesse pensar em certo tipo de cientista, que se empolga tanto com os progressos alcançados, que por vezes não se dá conta de estar lidando com coisas que podem ser perigosas. Tio André herdou de sua falecida madrinha (segundo ele, uma descendente de fadas) um punhado de pó que teria vindo de outro mundo, ou outra dimensão, como diríamos hoje, e, trabalhando com esse material, consegue descobrir um meio de viajar magicamente para esse lugar, mas, em vez de ir pessoalmente, recruta Digory e sua amiga Polly como exploradores. Dessa forma as duas crianças chegam ao mundo de origem do tal pó, que, como descobrem, não é exatamente um mundo, mas uma espécie de encruzilhada entre as dimensões; tem a aparência de um bosque onde existem inúmeros pequenos lagos, cada um deles, na verdade, um portal para um mundo diferente. Passando por um deles, Digory e Polly vão sair num imenso palácio, uma edificação majestosa, mas quase em ruínas, como se já estivesse abandonado há séculos. Lá, inadvertidamente, acabam despertando a temível rainha-bruxa Jadis de uma espécie de sono mágico no qual ela se encontrava aprisionada sabe-se lá há quanto tempo. A feiticeira vem parar no nosso mundo, e, vendo o estrago que ela poderá causar caso sua estada se prolongue, Digory e Polly encontram um jeito de levá-la novamente ao Bosque Entre os Mundos, e, de lá, para qualquer mundo aleatório – e o mundo em questão acaba sendo aquele, ainda recém-criado, que abrigará Nárnia e outros reinos. Lá, Jadis estará entre os principais vilões da saga que irá se desenrolar.

Merece destaque a narração a respeito do nascimento da vida em Nárnia, que ainda é um lugar escuro e informe quando os personagens chegam lá; eles testemunham o primeiro nascer do sol e a criação da vida vegetal e animal, incluindo os seres míticos. Lewis é extremamente bem-sucedido ao narrar esses eventos com uma combinação de delicadeza e grandiosidade, tudo isso corporificado em Aslam, o Leão, cuja canção vai dando forma ao novo mundo (ou seja, aqui, como no Ainulindalë de Tolkien, o mundo nasce por meio da música!). Ao contrário de Tolkien, Lewis não via problema em recorrer a alegorias, e Aslam é sem dúvida a maior delas: o Leão é Jesus Cristo em pessoa sob uma aparência fantástica. Isso já fica suficientemente claro nesta primeira história, mas vai sendo reforçado por meio de suas palavras e atos ao longo das próximas.

A segunda história neste volume único foi a primeira a ser publicada; trata-se de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa (1950), cuja narrativa apresenta os quatro irmãos Pevensie: Peter, Susan, Edmund e Lucy, que na tradução são chamados de Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia (não sei ao certo o que penso a respeito de traduzir nomes próprios; às vezes isso parece necessário e adequado, às vezes não, e aqui é um dos casos em que não parece, mas OK). Os quatro são mandados pela mãe para longe de Londres, que sofria com os bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mundial, e hospedam-se na casa de campo de um amigo da família, o professor Kirke – que é ninguém menos que o garoto Digory, agora já um homem idoso, que teve uma carreira notável como intelectual e aventureiro. Tenho a "sensação" de que o professor pode ter sido inspirado em Tolkien – quero dizer, na pessoa de Tolkien, não em sua obra. Posso estar presumindo demais, mas há pelo menos um indício a favor dessa teoria: a mãe de Digory chama-se Mabel, o mesmo nome da mãe de Tolkien. Isso, porém, não é importante aqui.


A casa do professor Kirke é uma daquelas mansões rurais do interior da Inglaterra: muito antiga, e tão grande que o próprio professor declara que não a conhece muito bem. É nela, num dos muitos quartos desocupados, que Lúcia, a caçula dos quatro irmãos, acidentalmente descobre um guarda-roupa cujas portas dão acesso a uma passagem entre mundos. A origem desse guarda-roupa é contada no final de O Sobrinho do Mago: ele foi construído com a madeira de uma árvore cuja semente veio de Nárnia, e é lá que Lúcia vai sair. O tempo transcorre de maneiras diferentes em cada lugar, e parece que nem sempre do mesmo jeito: às vezes parece correr mais lento em Nárnia que na Inglaterra, e outras vezes sucede o contrário. Faz apenas algumas décadas que Digory Kirke esteve em Nárnia, mas, quando a pequena Lúcia põe os pés lá, séculos se passaram. O país está dominado pela temida Feiticeira Branca, que não é outra senão Jadis, outrora a imperatriz de um mundo já desaparecido, que ficou aprisionada em Nárnia em O Sobrinho do Mago, e lá tratou de consolidar seu poder. Agora se diz rainha de Nárnia, mas, embora parte dos narnianos (que são seres míticos ou animais falantes) tenha-se colocado a seu serviço, a grande maioria não a reconhece como tal e espera pelo cumprimento de uma profecia que promete o fim da tirania da feiticeira e a liberdade para toda a terra e seus habitantes. A profecia tem duas partes: uma fala sobre o retorno de Aslam, que não é visto em Nárnia há séculos; a outra diz que, quando os quatro tronos no castelo de Cair Paravel forem ocupados por "filhos de Adão e filhas de Eva", quer dizer, seres humanos, o poder de Jadis terá fim, e o inverno permanente que sua magia lançou sobre Nárnia finalmente acabará. A feiticeira, é claro, mantém observadores e presta a máxima atenção a quaisquer informes sobre a possível presença de humanos em Nárnia; quando Edmundo também faz a travessia pelo guarda-roupa, ela o encontra vagando sozinho pelos bosques gelados e facilmente obtém dele toda a informação de que precisa, engambelando-o com promessas de adotá-lo e fazer dele um príncipe, se trouxer até ela seu irmão e irmãs. Por serem justamente quatro, dois meninos e duas meninas, Jadis vê neles o potencial para cumprir a profecia, o que ela quer impedir a todo custo. Isso já é suficiente para dar uma ideia do enredo, e não vou continuar para não dar spoilers, mas não dá para deixar de comentar como Aslam se oferece como vítima em sacrifício em troca da vida de Edmundo, que deveria morrer por ter traído os irmãos, e, mesmo com todo o seu poder, deixa-se matar sem opor resistência, para depois ressuscitar mais poderoso e glorioso que antes – coisa com a qual Jadis não contava, porque, como Aslam explica, ela pode conhecer a Magia Profunda, mas ignora que existe outra magia ainda mais profunda, que vem de antes da aurora dos tempos.

Para completar, quando Edmundo retorna ao convívio dos irmãos, o Leão diz a estes que não devem recriminá-lo e que "o que passou, passou". Subentende-se que Edmundo já foi suficientemente castigado pela própria consciência, arrependeu-se e recebeu o perdão – isso é cristianismo puro. Deve-se notar que, ao ser resgatado das garras de Jadis e trazido até o acampamento onde estão Aslam, seu exército e também Pedro, Susana e Lúcia, Edmundo não é imediatamente conduzido para se juntar aos irmãos; antes disso, ele e Aslam têm uma conversa a sós, na qual, como o narrador sublinha bem, somente os dois sabem o que foi dito, e mais ninguém – uma clara alusão ao sacramento da confissão, muito prezado pelos católicos, mas alvo de controvérsia entre os anglicanos. Parece que, nesse ponto, Lewis se inclinava ao catolicismo.


A história seguinte é O Cavalo e seu Menino (1954), que tem lugar durante o reinado de Pedro como Grande Rei em Nárnia (com os irmãos como corregentes), mas começa em outro reino, Calormânia, onde o garoto Shasta vive com um pescador que o adotou e sonha em conhecer as terras do norte – quer dizer, Nárnia –, sobre as quais seu pai adotivo e os vizinhos evitam até mesmo falar. A sorte de Shasta tem uma reviravolta quando um tarcaã (parece ser um título nobiliárquico calormano; gostaria de saber como era isso no original…) se hospeda na cabana de seu pai e propõe comprá-lo como escravo, negociação essa que o pescador está disposto a aceitar, sendo o valor da transação a única dúvida. Shasta descobre que o cavalo do tarcaã nasceu em Nárnia e, como muitos animais lá, é capaz de falar e tão inteligente quanto um ser humano, detalhes esses que o animal sempre escondeu cuidadosamente de seu amo, mas revela a verdade ao garoto, e os dois decidem fugir juntos rumo ao norte. Por não conseguir pronunciar o nome com o qual o cavalo se apresenta, Shasta passa a chamá-lo de Bri. Durante sua viagem, os dois eventualmente se encontram com Aravis, a filha de um tarcaã que está fugindo da casa do pai para evitar um casamento arranjado, e a montaria de Aravis é Huin (onomatopeia de um relincho!), uma égua também de origem narniana e falante, como Bri. Como todos têm o mesmo destino, seguem viagem juntos; será inevitável passarem por Tashbaan, a capital da Calormânia, onde Shasta vem a conhecer Edmundo e Susana, dois dos quatro reis de Nárnia. Eles estão ali para as tratativas de um possível casamento entre Susana e o príncipe Rabadash, filho do Tisroc (título dado ao monarca calormano), mas a jovem acaba decidindo que não quer se casar com ele, e a delegação narniana parte de surpresa, para evitar que ela e o irmão acabem sendo feitos reféns. O príncipe, inconformado, convence o pai a invadir Nárnia, e, de formas que vocês saberão quando lerem o livro, esse plano chega ao conhecimento de Shasta, Aravis e seus amigos equinos, que precisam então avisar os reis de Nárnia e ajudá-los a impedir essa invasão. Não sei se alguma coisa do tipo foi levantada enquanto C. S. Lewis era vivo, mas hoje em dia, na "era da lacração", O Cavalo e Seu Menino é alvo de críticas, acusado até mesmo de racismo, porque a Calormânia e seus habitantes, nitidamente inspirados nos povos árabes, ficam com o papel de "império do mal", que tenta atacar a livre e pacífica Nárnia, que faria as vezes da Europa. Como sabemos, o discurso que garante os aplausos nestes nossos tristes dias consiste em pintar a longa e geralmente turbulenta relação entre o Oriente Médio e a civilização ocidental como se tivesse sido feita exclusivamente de ataques covardes e gratuitos desta última contra o primeiro; afinal, esses povos brancos e, pior ainda, cristãos, têm que ser apontados sempre como os vilões da História, não é mesmo? Eu não me surpreenderia se aparecesse gente propondo uma "reescrita" das obras de Lewis, como já quiseram fazer com as de Mark Twain… Antes de passar ao próximo livro, duas notas de pé de página. Primeira: no capítulo 14, uma conversa entre Aslam, Bri, Huin e Aravis toca num ponto importante da fé e da teologia cristãs; esse trecho deve ser lido mantendo em mente que o Leão simboliza Cristo. Seria empolgante esmiuçar a coisa, mas não posso permitir que este texto atinja dimensões demasiado absurdas, e, além disso, tem que sobrar algo para o leitor descobrir quando for ler o livro!… Segunda: a maneira de falar dos personagens calormanos de alta estirpe poderá cansar alguns leitores pelo excesso de floreios retóricos e poéticos, mas, correndo o risco de parecer pedante, devo dizer que me diverti muito com essas passagens. Lewis era certamente um mestre das palavras, e creio que isso tenha sido uma alfinetada proposital no estilo desnecessariamente rebuscado adotado por certos escritores e/ou oradores (assumo minha parcela de culpa).

Em Príncipe Caspian (1951), os irmãos Pevensie estão completando um ano desde seu retorno ao "mundo real" depois das aventuras vividas em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, e estão no meio de sua viagem de volta à escola, ao fim das férias, quando são novamente chamados a Nárnia, onde chegam de um jeito diferente da primeira vez – pois, segundo o ensinamento de Aslam, "nada acontece duas vezes da mesma maneira". Ao chegarem lá, descobrem que 13 séculos se passaram desde os tempos de seu reinado, e que Nárnia foi invadida pelos homens de Telmar, que a conquistaram de forma violenta e quase exterminaram os narnianos originais. Há alguns anos, o rei Caspian IX morreu, deixando um filho de mesmo nome, ainda pequeno, que, desde então, está sob a tutela de seu tio Miraz; este deveria atuar como regente até que o jovem Caspian chegasse à maioridade, mas acaba por fazer-se ele próprio rei. Caspian leva a vida normal de um príncipe herdeiro, mas tem uma particularidade: é fascinado pelas histórias da antiga Nárnia, que lhe são contadas primeiro por uma velha ama e mais tarde pelo Dr. Cornelius, seu preceptor – mas esse interesse não é bem visto pelo tio. Tudo a respeito dos narnianos é considerado mero conto de fadas nessa época, como se nunca tivesse existido de fato, e tanto Miraz quanto as demais figuras importantes da sociedade telmarina prefeririam que tudo isso fosse completamente esquecido.

Quando a esposa de Miraz tem um filho, o usurpador decide dar um fim em Caspian, que é salvo por Cornelius e parte em busca dos descendentes que restaram dos antigos narnianos, pedindo sua ajuda para conquistar o trono que por direito lhe pertence e prometendo que, se ele se tornar rei, iniciará uma nova era de paz entre telmarinos e narnianos, e reinará com justiça sobre ambos os povos. Pedro, Edmundo, Lúcia e Susana são figuras legendárias nesses tempos; como o próprio narrador compara, o retorno deles é para Nárnia o que seria para a Inglaterra a volta do rei Artur, como profetizado na lenda, e, ao que se espera, a presença deles fortalecerá a fé dos seguidores de Caspian durante a guerra que se prepara para estourar. Novamente, a narrativa de fantasia e aventura funciona por aquilo que é, e funcionaria mesmo que não houvesse qualquer mensagem em particular a ser passada – mas a mensagem existe, e desta vez o momento-chave está no capítulo 10, no qual um diálogo entre Lúcia e Aslam aborda a necessidade de acreditar mesmo que ninguém mais acredite, e de ter a coragem de seguir o caminho certo ainda que para isso seja preciso abandonar a segurança de um grupo e ir sozinho – coisas que sempre foram necessárias ao cristão, desde os primórdios, e hoje, talvez, mais do que nunca. Provavelmente vocês viram o filme, eu também vi e gostei, mas não se contentem com ele: leiam o livro. Há detalhes importantes que foram deixados de fora, importantes especialmente para quem está procurando interpretar o simbolismo cristão na obra de Lewis. Por outro lado, o roteiro do filme fez alguns acréscimos interessantes à história, coisas que não estão no livro, mas que são muito plausíveis e, poderíamos dizer, até mesmo adequadas, como a rivalidade que surge entre Pedro e Caspian, o antigo e o atual rei. E a parte sobre as árvores da floresta marchando para a batalha, essa eu poderia jurar que foi inspirada numa conversa entre Lewis e Tolkien!…


Em A Viagem do Peregrino da Alvorada, mais um ano se passou no "mundo real", a guerra já acabou (eu sei, no filme não) e Edmundo e Lúcia, os dois Pevensie mais jovens, estão hospedados, muito a contragosto, com seus tios Arnold e Alberta, que têm um filho chamado Eustáquio, o protótipo daquele primo insuportável que todo mundo tem ou já teve – a menos que você seja o primo insuportável. Não é por acaso que, dos quatro protagonistas anteriores, apenas Lúcia e Edmundo estão em cena: Aslam havia predito (ou decidido, como parece mais provável) que só os dois retornariam a Nárnia depois dos eventos do livro anterior, pois Pedro e Susana já haviam aprendido tudo o que podiam lá. E quando os dois fazem pela terceira vez a passagem entre os mundos, Eustáquio acaba indo junto. O trio se vê no meio do mar e é recolhido pela tripulação do Peregrino da Alvorada, um navio da novíssima armada de Nárnia, que o agora rei Caspian fez construir após ter conseguido, ao menos em parte, domar o pavor instintivo que seus patrícios telmarinos tinham do mar. E o rei em pessoa está a bordo; ele explica a Lúcia e Edmundo que o objetivo de sua viagem é procurar por sete nobres telmarinos que eram amigos de seu pai, o rei Caspian IX, e por isso foram exilados pelo usurpador Miraz, para impedir que apoiassem o jovem príncipe quando ele reivindicasse seu direito ao trono. A jornada vai levá-los a mares raramente navegados antes e a descobertas fantásticas; é uma narrativa de "viagens maravilhosas" que segue uma tradição antiga na literatura popular do ocidente – e não só do ocidente: alguém lembra das aventuras do marinheiro árabe Sinbad? As origens desse tipo de história remontam, pelo menos, à Odisseia de Homero (que Edmundo chega a citar) e às viagens de Jasão e os Argonautas, e digo pelo menos porque, pelo pouco que sei sobre a Epopeia de Gilgamesh e outros textos legendários sumérios e assírio-babilônicos, suas raízes podem ser ainda mais profundas. Como também é comum em narrativas de viagens por terras desconhecidas, A Viagem do Peregrino da Alvorada acaba sendo, ao mesmo tempo, uma jornada de autodescoberta para diversos personagens; os exemplos mais marcantes são Eustáquio, que vai aos poucos mudando para algo melhor que aquele garoto de maus instintos e desprovido de imaginação, e Caspian, ainda aprendendo a ser um bom rei e a controlar seu temperamento impulsivo e por vezes autoritário. Mais sutilmente, também Lúcia aprende e "cresce"; já Edmundo parece ter aprendido sua lição em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, e não faz novas grandes descobertas interiores, embora vá ganhando experiência e demonstrando mais maturidade. Além de tudo isso, Lewis não resistiu a fazer uma crítica bem-humorada a uns e outros por meio dos Tontópodes, criaturas simpáticas, embora um tanto ridículas (engraçadas, vá), que os aventureiros encontram numa das ilhas onde aportam: eles sempre concordam enfática e energicamente com quem estiver falando no momento, e, se logo em seguida outra pessoa tomar a palavra e disser exatamente o contrário do que disse a primeira, imediatamente lhe dão razão com o mesmo entusiasmo… Caramba, espero que o recado tenha sido entendido pelo menos por alguns. Ao final, Lúcia e Edmundo descobrem, entristecidos mas conformados, que essa aventura, na qual não chegaram a pôr os pés em Nárnia propriamente dita, marcou sua última visita àquele mundo. Tal como já acontecera a Pedro e Susana, daí em diante terão que encontrar seus caminhos em seu próprio mundo, onde Aslam também está, mas, como ele mesmo informa, é conhecido por outro nome.

Como, portanto, os dois últimos dos irmãos Pevensie não mais voltarão a Nárnia, é seu primo Eustáquio quem sobra para servir de elo com a história do sexto livro, A Cadeira de Prata. Durante o ano letivo que se segue às férias em que teve sua primeira experiência em Nárnia, Eustáquio está bastante mudado, e sua colega de escola, Jill Pole, que já o conhecia antes, não deixa de notar o fato. Os dois estudam num colégio experimental, e Lewis, experiente professor, não fazia questão alguma de esconder o que pensava daquela pedagogia moderna:

Os diretores achavam que as crianças podiam fazer o que desejassem. Infelizmente, porém, havia uns dez ou quinze da turma que só queriam atormentar os outros. Lá acontecia de tudo: coisas horríveis que, numa escola comum, seriam descobertas e punidas. Mas ali, não. Mesmo que se descobrisse quem as havia feito, o responsável não era expulso nem castigado. O diretor achava que se tratava de "interessantes casos psicológicos" e passava horas conversando com tais alunos. E estes, se encontrassem uma resposta adequada para dizer ao diretor, acabavam se tornando privilegiados.

E mais:

Devido aos curiosos métodos de ensino do Colégio Experimental, lá não se aprendia muito Matemática ou Latim, mas todos sabiam desaparecer rapidamente e sem ruído, quando eles [os bullies, diríamos hoje] estavam atrás de alguém.

Jill, então, acompanha Eustáquio quando ele é novamente transportado para o mundo onde fica Nárnia – e, para manter a tradição da saga, a viagem acontece de uma maneira nova, diferente de todas as passagens anteriores. Jill, de certa forma, recebe um privilégio, pois encontra-se com Aslam praticamente assim que chega a Nárnia, o que não acontecera com nenhum outro protagonista até então. O Leão explica-lhe que ela e Eustáquio estão ali porque têm uma missão a cumprir: o único filho do velho rei de Nárnia foi raptado, e eles devem encontrá-lo e trazê-lo de volta, já que a morte de um rei sem herdeiro pode facilmente lançar o reino no caos. Quando as duas crianças chegam à corte em Cair Paravel, Eustáquio sofre um choque ao ter seu primeiro contato com o fenômeno da marcha diferente do tempo no nosso mundo e em Nárnia: o rei não é outro senão Caspian X, que ele conheceu como um rapaz em sua visita anterior, e agora é um homem idoso, pois naquele mundo 70 anos se passaram, enquanto na Terra transcorriam apenas alguns meses.

Além de longo, o reinado de Caspian foi próspero e marcado pela justiça, mas também por uma tragédia: seu filho, o príncipe Rilian, foi raptado, faz vários anos, aparentemente por uma feiticeira por quem ele se havia apaixonado, que tinha o poder de metamorfosear-se numa serpente (acredito que qualquer semelhança com outras histórias envolvendo criaturas em forma de serpente que seduzem ou enganam os incautos não seja mera coincidência). Muitos dos mais bravos cavaleiros e guerreiros de Nárnia – humanos ou não – partiram em busca do príncipe desde então; nenhum obteve sucesso, e a maioria não voltou, então Caspian, embora arrasado pela perda, proibiu novas buscas, para impedir que mais valorosos narnianos perdessem a vida. Agora, porém, o velho rei, sentindo a proximidade da morte, decide partir, ele próprio, acompanhado de um grupo de súditos fiéis, para uma última e desesperada tentativa de encontrar o filho. A missão que Aslam designa a Eustáquio e Jill é a de fazerem sua própria busca a fim de localizar o príncipe e trazê-lo de volta. O Leão dá algumas indicações, e as duas crianças partem, tendo como guia um paulama; esses seres são semelhantes aos humanos de maneira geral, mas com pernas e braços muito mais longos em relação ao corpo, parecendo adaptados à vida nos pântanos – e, muito de acordo com isso, o nome desse paulama em particular é Brejeiro. O guia é o que Eustáquio chama de pé-frio, pois quase todas as suas falas consistem em previsões pessimistas, mas, ao mesmo tempo, mostra-se um companheiro corajoso e leal, que se mantém fiel mesmo ante as eventuais malcriações dos garotos, que por vezes se irritam com suas intermináveis lamúrias.



Não há dúvida de que a Busca é uma das situações mais recorrentes em aventuras heroicas, desde a lenda de Jasão e os Argonautas, que citei não faz muito, até A História Sem Fim, e aqui temos mais um exemplo. Eustáquio, Jill e Brejeiro nos conduzem numa viagem que descortina uma série de paisagens desse mundo fantástico, e que, é claro, não está isenta de perigos e sofrimentos – enfim, podemos, se quisermos, ver essa aventura como uma alegoria para a vida humana… Mas será que o "se quisermos" não faz com que deixe de ser uma alegoria, entrando no campo da aplicabilidade? Eis de novo o choque entre as visões de Lewis e de Tolkien, que nunca está muito longe enquanto lemos as Crônicas de Nárnia.

Bem, se a história for uma alegoria da vida humana, então torna-se claro o significado  de certo detalhe. Ao falar com Jill, logo no começo, Aslam descreve à menina uma série de sinais que ela e seus companheiros encontrarão ao longo do caminho e a orienta sobre como devem agir diante de cada sinal, faz com que ela memorize e repita tudo para ele, porém, mais tarde, envolvida com tantas outras coisas, ela se esquece da maior parte do que o Leão lhe disse; um sinal após outro é perdido e as coisas não saem como deveriam. É fácil ver aí mais um paralelo com o cristianismo: uma pessoa pode amar Cristo e desejar sinceramente agir conforme Seus ensinamentos, mas fazer isso no dia a dia ao longo da vida é difícil, e ela inevitavelmente irá falhar muitas vezes. Faz parte. Também quero registrar que no capítulo 12 há um diálogo que resulta ser uma afiada crítica a certos segmentos religiosos e principalmente filosóficos que tentam fazer com que as pessoas se fechem dentro de uma bolha, esquecendo o que existe lá fora, e ainda se julguem muito inteligentes por fazê-lo. É tentador falar mais sobre esse capítulo, mas não poderia fazê-lo sem dar um sério spoiler.

As Crônicas terminam com A Última Batalha, e esse livro começa numa pegada que lembra as fábulas de Esopo. Numa floresta de Nárnia vivem um velho macaco, Manhoso, e seu amigo, o jumento Confuso, que pertencem à classe dos animais falantes narnianos. Como assinalei ao tratar de O Cavalo e Seu Menino, esses animais não só falam como também possuem inteligência equivalente à de um ser humano – só que, não adianta negar, os seres humanos não têm todos a mesma inteligência, e entre eles não é diferente: Confuso faz jus a seu nome e ao estereótipo (falso, por falar nisso) que pesa sobre toda a sua espécie. Já Manhoso é esperto e matreiro, conseguindo sempre engambelar o amigo para que faça todo o trabalho pesado enquanto ele colhe os benefícios. Um belo dia, os dois encontram por acaso uma pele de leão, e Manhoso decide fazer com que Confuso a vista; como o narrador observa, os habitantes daquela região de Nárnia nunca viram nem sequer um leão comum, de modo que muitos se deixam enganar quando o macaco começa a apresentar o jumento disfarçado como sendo o próprio Aslam, e se autonomeia seu porta-voz. É claro que o pobre asno nem mesmo entende direito o que está acontecendo, limitando-se a fazer o que Manhoso lhe diz. Aproveitando-se de sua nova posição de poder, o macaco passa a dar ordens "em nome de Aslam" para conseguir que os outros animais façam tudo o que ele quer – mais uma alegoria fácil de identificar, na qual Manhoso é o falso profeta, representando tanto líderes religiosos quanto reis e potentados em geral que, ao longo da História, arrogaram-se autoridade divina.

A farsa começa como um problema apenas local, mas ganha dimensões maiores quando Manhoso, também à semelhança de muitos desses líderes, vai longe demais com sua ganância e passa a negociar com os calormanos, obrigando os animais a trabalhar para eles e até vendendo muitos para os inimigos, tudo em benefício do "profeta" (que, é claro, assegura que o dinheiro será usado para o bem da comunidade) e supostamente por ordem de Aslam. Quando as notícias chegam aos ouvidos do jovem rei Tirian (bisneto do bisneto de Rilian, filho de Caspian, pois, novamente, séculos se passaram), ele decide investigar pessoalmente, acompanhado apenas por seu melhor amigo, o unicórnio Precioso, e acaba capturado pelos calormanos. Quando, em desespero, o rei clama pelo socorro do verdadeiro Aslam, este lhe envia ajuda nas pessoas de Eustáquio e Jill, e os três, com o reforço de mais alguns aliados, encaram a missão de recolocar as coisas nos devidos lugares. A história aborda não apenas a questão do falso messianismo, mas também uma de suas mais graves consequências: quando o deus falso é desmascarado, muita gente acaba descrendo até mesmo do verdadeiro, como um grupo de anões que declaram que não existe Aslam nenhum e se põem a bradar "vivam os anões!", o que só pode simbolizar o ateísmo e a visão antropocêntrica moderna, para a qual o homem é a medida e a finalidade de tudo, e não existe nada acima dele. Por fim, a tentativa de Manhoso e do comandante calormano de fazer com que os narnianos acreditem que Aslam e o deus dos calormanos, Tash – uma divindade sanguinária, em cujos altares fazem-se sacrifícios humanos – são o mesmo deus, é um alerta contra aqueles que, em nome de uma suposta tolerância, trabalham para sabotar a fé dos cristãos tentando convencê-los de que o Deus em que acreditam é a mesma coisa que as divindades de outras religiões, e que, portanto, não faria sentido crer em dogmas que são exclusivamente cristãos.



Curiosidade da vez: Tirian, por especial graça de Aslam, tem a oportunidade de reunir-se com os Sete Amigos de Nárnia que habitam no mundo dos filhos de Adão e filhas de Eva, e que vêm a ser os protagonistas de todas as histórias narradas nas Crônicas. O leitor atento provavelmente fará a mesma coisa que eu fiz ao chegar a esse trecho: vai pausar a leitura e fazer um cálculo. Sete? Como assim? Digory, Polly, Pedro, Susana, Edmundo, Lúcia, Eustáquio e Jill: são oito! Só que tem um porém…

– Senhor – disse Tirian, após saudar a todos –, a não ser que eu tenha entendido mal as crônicas, deve haver mais alguém. Vossa Majestade não tem duas irmãs? Onde está a rainha Susana?
– Minha irmã Susana – respondeu Pedro, breve e gravemente – já não é mais amiga de Nárnia.
– É verdade – completou Eustáquio. – E toda vez que se tenta conversar com ela sobre Nárnia, ou fazer qualquer coisa que se refira a Nárnia, ela diz: "Mas que memória extraordinária vocês têm! Continuam no mundo da fantasia, pensando nessas brincadeiras tolas que a gente fazia quando era criança!"
– Essa Susana! – disse Jill. – Agora só pensa em lingeries, maquilagens e compromissos sociais. Aliás, ela sempre foi louquinha para ser gente grande.
– Gente grande, pois sim! – disse Lady Polly. – Gostaria que ela crescesse de verdade. Quando estava na escola, passava o tempo todo desejando ter a idade que tem agora, e agora vai passar o resto da vida tentando ficar nessa idade. Tudo em que ela pensa é correr para atingir a idade mais boba da vida o mais depressa possível e depois parar aí o máximo que puder.

Muita gente vê machismo aí, e no meio dessa "muita gente" estão nomes de peso como J. K. Rowling, que tem uma dívida visível com Lewis (é só comparar o modo como os centauros são descritos na obra de cada um, e esse é apenas um exemplo dentre vários possíveis), mas já chegou a criticar especificamente esse trecho. À primeira vista, as alegações levantadas por ela e outros parecem fazer sentido: Susana é retratada como a pessoa que escolheu a pior parte de duas maneiras diferentes (em outro texto eu poderia dizer que ela escolheu "o pior de dois mundos", mas aqui isso causaria confusão), pois, em nome de sua vontade de se afirmar como uma mulher adulta, abandonou a imaginação, mas ao mesmo tempo, não alcançou a verdadeira maturidade e vai provavelmente passar a vida, como diz Polly, ocupando-se de frivolidades próprias de moças jovens-adultas. Porém, a meu ver, Lewis poderia igualmente ter excluído Pedro do rol dos Amigos de Nárnia e colocado Susana para explicar a Tirian que seu irmão mais velho agora só pensa em trabalho e carreira e diz que tudo sobre Nárnia é "fantasia" ou "brincadeira tola"; alguém tinha que ser exemplo da tolice que há em enterrar a imaginação em prol de um suposto crescimento, e calhou de ser Susana. A patrulha politicamente correta vai objetar: e por que é que trabalho e carreira são "coisas de homem", enquanto maquiagem e compromissos sociais são "coisas de mulher"? Sei que é inútil pedir a esse pessoal que leve em consideração a perspectiva histórica (um conceito que eles parecem incapazes de compreender), mas, em todo caso, a resposta é simples: as Crônicas de Nárnia foram escritas durante a década de 50, quando relativamente poucas mulheres tinham carreiras profissionais, e a maioria das pessoas via como normal que a empreitada mais importante da vida delas consistisse em aproveitar o breve período de beleza na juventude para conseguir o melhor casamento que pudessem. Sessenta e poucos anos depois, a sociedade vê isso tudo de forma diferente, mas Lewis não tinha como prever isso.

Esta edição termina com Três Maneiras de Escrever para Crianças, um brevíssimo e agradável ensaio que, ao contrário do que poderia parecer, não se propõe a dar diretrizes sobre como escrever histórias infantis – poderíamos dizer que é muito mais descritivo que normativo. Não vou resumir tudo aqui, este texto já está longo demais e, além disso, vale a pena ler o próprio ensaio; será suficiente dizer que, nele, Lewis tece interessantes considerações sobre o que define a literatura infantil como tal, sublinhando que "literatura infantil" e "literatura para adultos" não são compartimentos absolutamente estanques. Sua opinião, com a qual eu concordo inteiramente, é que uma das marcas de uma boa história para crianças é a capacidade de interessar também ao leitor adulto; faço, porém, uma ressalva: uma boa história infantil é a que consegue interessar a certo tipo de leitor adulto. As próprias Crônicas de Nárnia são um bom exemplo, pois, mesmo classificadas como literatura infanto-juvenil, têm multidões de fãs de todas as idades. Nenhum leitor verdadeiramente maduro deixará de ler o que o agrada e atrai por receio de que este ou aquele o julguem "muito criança" por causa disso; Lewis, afiado e certeiro, resume o caso parafraseando São Paulo: "Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino, inclusive o medo de ser infantil e o desejo de ser muito adulto". Desta vez vou juntar-me aos Tontópodes e afirmar enfaticamente que "ninguém jamais disse palavras mais sábias!"

As Crônicas de Nárnia, sem dúvida, integram a seleta lista das obras de fantasia mais importantes do século XX, sendo, ao lado de O Senhor dos Anéis e mais algumas, uma das mais fortes e recorrentes influências dos autores do gênero que estão em atividade hoje, ou estiveram durante as últimas décadas. Como Lewis também observa em seu ensaio, há histórias de fantasia que são mais adequadas ao público infantil, e outras, a leitores mais maduros, mas não é raro que o público de ambos os tipos acabe sendo o mesmo; ele poderia estar falando exatamente sobre sua própria obra e a de seu amigo. Há leitores de todo o mundo que leram as Crônicas na infância e, depois de um pouco mais velhos, apaixonaram-se pela beleza intrincada do mundo de Tolkien, mas há também muitos outros que só chegaram a Nárnia depois de já conhecerem a Terra-média (meu caso) e nem por isso a amaram menos. As Crônicas são mais simples e despretensiosas que o SdA, mas não menos inspiradoras, empolgantes, comoventes ou cheias de significado. Todo fã de fantasia deveria conhecê-las.

quinta-feira, novembro 16, 2017

O Silmarillion

Meu início na literatura de J. R. R. Tolkien foi exatamente o mesmo que eu hoje aconselho a quem me perguntar por onde começar: O Hobbit, que é, sem dúvida, a mais simples e leve das obras a respeito da Terra-média. Fácil de ler, divertido, empolgante, não requer qualquer conhecimento prévio, e já traz em si aquela combinação tocante de grandiosidade, atmosfera épica, humor e nostalgia – uma nostalgia inexplicável de algo que jamais conhecemos. Porém, depois que você já adquiriu uma certa intimidade com o universo criado pelo autor, passa a querer saber sua história desde o começo – o verdadeiro começo, mesmo que outras partes dessa história tenham sido contadas primeiro.

O Silmarillion satisfaz, ao menos em parte, esse desejo. Diz a lenda (para os apaixonados por Tolkien, não é exagero falar assim) que, depois do inesperado sucesso de O Hobbit, publicado em 1937, o editor Stanley Unwin disse a Tolkien que o público estava sedento por novas aventuras ambientadas na Terra-média, e que, se houvesse tais histórias, ele as publicaria sem dúvida. O Professor, entretanto, metódico como sempre, em vez de simplesmente escrever novas histórias seguindo a receita já aprovada, quis "começar pelo começo", e apresentou a Unwin um punhado de manuscritos soltos, embora interligados entre si, que tratavam da origem e dos primeiros tempos daquele mundo. O editor foi da opinião de que aquele tipo de coisa era demasiado séria e complexa para agradar aos leitores que tinham adorado O Hobbit, e recomendou ao autor que focasse nos hobbits, já que era principalmente nas pequenas criaturas de pés peludos e apetite voraz que o interesse do público parecia se concentrar. O resultado foi O Senhor dos Anéis, livro que, se tivesse podido fazer as coisas como queria, Tolkien talvez jamais tivesse escrito – e sobre o qual poderíamos dizer que, se a ideia era mesmo fazer algo "não tão complexo", então parece que nem tudo saiu conforme os planos. Seja como for, hoje em dia a esmagadora maioria dos fãs do Professor (maioria na qual, com toda a certeza, eu me incluo) considera o SdA como sua obra-prima.

Acontece que, mesmo sem terem sido publicados, os textos de O Silmarillion sempre foram importantes para Tolkien, que os considerava, "oficialmente" e para todos os fins, parte da história da Terra-média, como mostram suas cartas e outros escritos. Não era possível que seus leitores ficassem para sempre privados desses conhecimentos, mas foi preciso esperar até 1977 (quatro anos depois da morte de Tolkien) para que esses textos fossem reunidos num livro, editado por Christopher Tolkien, filho do autor, o que deu início a uma longa e árdua, embora frutífera, missão, que continua até hoje, apesar do fato de Christopher, veterano da Segunda Guerra e aposentado da cátedra de Língua Inglesa na Universidade de Oxford, completar 93 anos agora em novembro.

O livro publicado sob o título de O Silmarillion reúne, na verdade, vários textos menores – menores, bem entendido, no sentido de mais curtos, não no de menos importantes. O primeiro deles é Ainulindalë, 'a Música dos Ainur', que, para definir da maneira mais sucinta, trata da criação do mundo. Em muitos lugares nos escritos de Tolkien há sugestões (e, por vezes, mais que sugestões) de que o mundo sobre o qual suas obras versam é o nosso próprio mundo num passado distante. Como se fosse para reforçar esse entendimento, esse mundo é chamado de Arda, nome que possui ligação evidente com Earth em inglês, Erde em alemão, Jord (pronunciado Iord) em nórdico antigo, e assim por diante, todos significando 'Terra'; Tolkien, como hábil linguista que era, naturalmente não perderia a oportunidade de utilizar nomes e palavras como uma forma de fornecer informações que um leitor atento e com certo conhecimento poderia captar. Não que os nomes tenham sido criados como um recurso para apoiar as narrativas: de certa forma, foi o inverso. O Professor criou primeiro as línguas de seu mundo fantástico, e só depois, levado pela vontade de dar a elas um substrato histórico e lendário, criou as histórias. Certa vez, falando sobre o esperanto, ele disse que essa língua artificial de criação moderna está muito mais "morta" que o latim ou o grego antigo, porque não possui história e tampouco um corpus mitológico ligado a ela – coisas que o grego antigo e o latim possuem. O desejo de evitar que seus tão queridos idiomas élficos tivessem essa mesma sina de "línguas natimortas" foi o que o motivou a criar as lendas que tanto amamos e que, hoje, fascinam milhões de leitores no mundo todo, independentemente do interesse que eles tenham ou não tenham em filologia.

Eu e minhas digressões… Estava dizendo que Ainulindalë, a primeira parte de O Silmarillion, trata da criação do mundo. Sendo um católico devoto, Tolkien, conscientemente ou não, desenvolveu essa narrativa de uma forma essencialmente compatível com a visão cristã sobre o assunto, encontrada em parte na Bíblia, em parte na tradição da Igreja. Por falar nisso, e apesar do que muita gente pensa, a Igreja não é avessa à ciência e não considera que aceitar o que ela descobriu sobre as origens da vida e do universo seja incompatível com a crença num Deus criador – essa é a posição oficial, mas há os católicos fundamentalistas, que insistem na interpretação literal do Gênesis, isso para não mencionar os membros de outras denominações cristãs. Não sei qual era a opinião pessoal de Tolkien sobre essa questão, mas isso não faz tanta diferença para o nosso assunto do momento: seja como for, Ainulindalë é a criação do mundo narrada de uma forma poética, não científica.

Ele nos conta que, no início, "havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar" – ou seja, Deus. Ilúvatar significa 'Pai de Todos' em Quenya, uma das duas línguas élficas inventadas por Tolkien (que também criou línguas para os anões, orcs, entre outros, embora, a essas, tenha-se dedicado menos), e, como no caso de Arda, é fácil estabelecer a correlação entre vátar ('pai') e seus equivalentes em várias línguas de raiz germânica: father em inglês, Vater em alemão, fađir em islandês… Eru Ilúvatar, então, deu existência aos Ainur (no singular, Ainu), seres espirituais dotados de grande sabedoria e poder. Novamente em consonância com a visão católica, os Ainur não são deuses, mas poderíamos dizer que são anjos, criados por Deus antes que o mundo que conhecemos existisse. E, na narrativa de Tolkien, o trabalho de criação realizado por Ilúvatar se dá através da música. Primeiro Ele canta para os Ainur, depois pede-lhes que cantem também, sob Sua regência, e as maravilhosas melodias que produzem vão dando forma ao mundo que viria a ser Arda, mas que os Ainur chamaram primeiro Eä – numa tradução livre, 'o Mundo que É', quer dizer, o mundo que deixou de ser apenas uma ideia na mente de Eru para ganhar existência real. Mas, mesmo no reino de Eru, nada é perfeito. Um dos Ainur, de nome Melkor, quis criar sua própria melodia, e, com isso, trouxe desarmonia à música que seus irmãos faziam seguindo fielmente a orientação de seu Senhor.

Não é nada difícil ver que Melkor é a versão de Tolkien para Lúcifer – um dos anjos mais poderosos e mais próximos de Deus, que um belo dia decidiu que servir não era suficiente para ele – mas seria um redondo engano achar que o Ainulindalë limita-se a parafrasear de forma óbvia a narrativa cristã sobre a queda dos anjos. Ele traz um acréscimo muito interessante, enunciado nesta fala de Ilúvatar:

(…) Tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.

Isso também faz parte da visão cristã, mas nem todo mundo sabe ou se dá conta: é a ideia de Santo Agostinho, de que "Deus não permitiria o mal, se dele não pudesse tirar um bem maior". Por mais que Suas criaturas se rebelem, no final ficará provado que tudo tinha um lugar no plano de Deus. Não que Ele deseje que elas se rebelem; simplesmente sabe de antemão quando isso acontecerá, já que é onisciente, e toma as providências necessárias.

Uma vez criado o mundo, e antes que surgissem os Filhos de Eru (elfos e homens), alguns dos Ainur optaram por viver nele, cabendo a cada um deles administrar um aspecto da criação; esses Ainur que viviam na Terra passaram a ser chamados de Valar (singular Vala, que no feminino fica Valië). No começo da segunda parte d'O Silmarillion, intitulada Valaquenta ('História dos Valar'), é dito que os Valar foram, com frequência, chamados de deuses pelos humanos, o que explica a semelhança das características de muitos deles com as de divindades de diferentes panteões, bem como as dessas divindades entre si. Impossível, por exemplo, olhar para uma ilustração de Ulmo, o Vala responsável pelas águas, e não lembrar imediatamente de Poseidon, o deus grego do mar. Do mesmo modo, Aulë, o Vala associado ao fogo e ao trabalho do metal, assemelha-se a Hefestos, o mesmo que os romanos chamavam de Vulcano. Já em Varda, a Valië da luz, que teria feito as estrelas, Tolkien permitiu-se revelar um vislumbre de sua própria fé, retratando não alguma deusa, mas a Virgem Maria, por meio de várias características que nós, católicos, atribuímos a ela e que ele deu também a Varda – o que não significa que as figuras das duas sejam sempre equivalentes, pois isso seria uma alegoria, coisa da qual o Professor notoriamente não gostava. Como sempre em sua obra, o que há é campo aberto para a famosa "aplicabilidade": num momento e situação específicos, Varda pode representar Maria; em outra situação, Varda pode representar outra coisa, e, em outro lugar da obra do autor, outra personagem pode assumir as atribuições de Nossa Senhora, como o faz Galadriel em O Senhor dos Anéis, quando dá a Frodo um cristal contendo a luz da estrela Eärendil. Mais tarde, quando o hobbit está perdido na escuridão da caverna de Laracna, esse presente não apenas ilumina seu caminho, mas renova sua coragem; não há como não ver aí exatamente o que a proteção da Mãe de Jesus significa para nós e, sem a menor dúvida, significava para Tolkien.

Os Valar, pois, estavam na Terra, cada um cuidando da parte dela que lhe fora confiada por Ilúvatar, mas Melkor, o Vala renegado, não se manteve ocioso; fazia tudo o que podia para arruinar o trabalho dos outros, e não estava sozinho nessa tarefa, contando com a ajuda de outros Ainur que o seguiam, bem como de inúmeros espíritos de menor poder – tal como Lúcifer, que, de acordo com a tradição cristã, foi seguido em sua rebelião por um terço dos anjos. Isso gerou muitos conflitos para os quais o jovem mundo serviu de palco. Os Valar fiéis sabiam do plano de Ilúvatar de trazer à vida os elfos e os homens, mas não sabiam quando isso aconteceria, e tanto tempo se passou que Aulë, impaciente, desejando ter criaturas inteligentes às quais pudesse ensinar suas artes, acabou criando os anões. Quando Eru viu o que o Vala havia feito sem Seu consentimento, repreendeu-o com severidade. Aulë, ao contrário do soberbo Melkor, acatou humildemente a reprimenda de seu Senhor, e, embora entristecido, ergueu seu martelo, pronto para destruir sua criação, lembrando um Abraão prestes a sacrificar o filho Isaac – mas, tal como o fez com Abraão, Deus não permitiu que concretizasse o ato; deteve a mão de Aulë e, magnanimamente, deixou que os anões vivessem, com a condição de que ficassem adormecidos até que Ele julgasse chegado o momento de despertar seus primogênitos, os elfos. Essa bela história fornece uma adequada explicação mítica para as características essenciais dos anões: Aulë os fez resistentes e teimosos para que pudessem sobreviver num mundo ainda castigado pelas artes malignas de Melkor; quanto ao amor pela mineração e pelo trabalho do metal, herdaram-no de seu "pai".

Conforme prosseguimos a leitura de O Silmarillion, vamos nos deparando com as origens de povos, personagens e lugares que já conhecemos, e, pelo menos nessa primeira vez, fiquei satisfeito por estar lendo-o agora, que já conheço O Hobbit e O Senhor dos Anéis: O Silmarillion amarra muitas pontas que pareciam soltas e coloca as coisas dentro de uma perspectiva mais ampla. Alguém que fosse lê-lo sem antes conhecer essas outras obras talvez achasse a leitura cansativa; do jeito como eu fiz, de forma alguma… Bem, não durante a maior parte do tempo. Há, sim, trechos que exigem paciência por parte do leitor, como o capítulo XIV, De Beleriand e Seus Reinos, que consta de nove páginas de anotações geográficas e topográficas. Tenham em mente que o livro é um apanhado de escritos soltos de diferentes tipos: é provável que Tolkien tenha escrito esse texto para sua própria referência, sem imaginar que algum dia seria publicado. E como material de referência e consulta, ele é útil para os que desejam conhecer a fundo o universo do autor, mas não esperem que seja divertido. Pretendo, um dia, reler as obras do Professor em ordem cronológica, à luz do conhecimento adquirido nas primeiras leituras.

Entre as revelações mais importantes para a história da Terra-média presentes em O Silmarillion estão as que tratam de Melkor, o primeiro Senhor das Trevas (gosto mais dessa forma, corrente em Portugal, que de "Senhor do Escuro", usada no Brasil desde a tradução d'O Senhor dos Anéis feita nos anos 90 por Lenita Rímoli Esteves), título que, mais tarde, passaria dele para seu servo, Sauron, que vem a ser o Senhor das Trevas mais conhecido pelos leitores de Tolkien – ou, melhor dizendo, aquele com cujo nome estamos mais familiarizados, já que, no SdA, embora seja a sua vontade que move as forças do mal, Sauron não chega a aparecer como um personagem propriamente dito, uma vez que, na ocasião, encontrava-se privado de um corpo. Não deixei de notar, também, que o paralelo entre Melkor e Lúcifer não fica apenas na semelhança das trajetórias de ambos, estendendo-se a sua índole e modus operandi: na tradição judaico-cristã, o diabo empenha-se em imitar Deus, embora sempre de forma imperfeita ou invertida; Melkor não tem o poder de criar novos seres como o faz Ilúvatar, então dedica-se a perverter a obra do Criador. Fez isso, por exemplo, quando tomou alguns elfos que havia capturado e, por meio de "lentas artes de crueldade" (nas palavras do autor) que é melhor nem tentarmos imaginar, desenvolveu, a partir deles, a raça dos orcs, destinados a serem seus soldados e escravos. Num processo semelhante, também inventou os trolls a partir dos ents, os "pastores de árvores".

Um personagem importante em O Silmarillion – e na história da Terra-média de modo geral – é Feänor, filho de Finwë, rei dos elfos Noldor e, sem dúvida, um dos mais poderosos e brilhantes representantes da raça élfica em todas as eras do mundo. Feänor criou as Silmarils, três joias inigualáveis que guardavam a luz de Telperion e Laurelin, as Duas Árvores que iluminavam Valinor (a terra dos Valar, no extremo oeste, separada da Terra-média por um mar) antes que o sol e a lua existissem. Também é atribuída a ele a invenção das Palantíri, artefatos que permitiam ver o passado, o futuro e o que acontecia em lugares distantes, e do alfabeto Tengwar, às vezes chamado de "runas élficas" ou "caracteres feänorianos". Porém, apesar de toda a sua sabedoria, Feänor também deixou um legado de violência, quando Melkor roubou as Silmarils e fugiu com elas em direção à Terra-média. Feänor conclamou todos os Noldor a segui-lo numa cruzada contra Melkor (a quem ele deu o nome de Morgoth, o 'Inimigo Negro'), para recuperar as gemas e vingar seu pai, Finwë, que o Vala renegado havia assassinado, fazendo dele o primeiro elfo a morrer de forma violenta… Só que, por mais justas que fossem as motivações, essa iniciativa causaria muitas desgraças. Para alcançar seu duplo objetivo, Feänor não se deteria diante de nada, mesmo que precisasse lutar contra outros elfos. Isso conduziu ao histórico e sangrento Fratricídio de Alqualondë, quando Feänor e seus Noldor travaram batalha contra os Teleri, um ramo dos elfos que vivia à beira-mar e que, até então, os considerava um povo amigo. Esse e outros episódios fazem da busca de Feänor, a meu ver, uma das partes mais emocionantes e mais trágicas de O Silmarillion, embora haja as que rivalizam. Omiti de propósito detalhes da história que tornarão a experiência mais interessante se vocês os descobrirem somente quando lerem.

Quem conhece um pouco da biografia de Tolkien também conhece algo de sua índole e opiniões, e sabe do sério problema que ele tinha com a tecnologia e o mundo moderno de forma geral (é engraçado tentar imaginar o que ele diria se pudesse ter previsto a internet e sabido que, no futuro, ela serviria para integrar seus fãs dos quatro cantos do mundo). Isso transparece em suas histórias, como quando ele descreve a cidade de Melkor/Morgoth, protegida pelas Ered Engrin, "Montanhas de Ferro", e conta que a fortaleza do inimigo tinha altas torres que exalavam fumaça e vapores que obscureciam o céu e envenenavam o ar… Isso pode até fazer pensar em vulcões, mas, para mim, parece bem mais com uma imagem de grandes fábricas com suas chaminés poluidoras. Mais tarde, Sauron seguiria o exemplo de seu mestre nesse ponto, assim como em outros; também Saruman, o mago-mestre que traiu sua ordem e se aliou ao Senhor das Trevas, adaptou sua fortaleza, Isengard, a esse padrão tenebroso, mandando derrubar suas florestas para transformá-las em lenha e alimentar as forjas que trabalhavam dia e noite produzindo armas para seu exército de orcs. Para Tolkien, o mundo moderno e industrial era o inimigo da natureza, e, por consequência, de tudo o que existia de belo e bom.

Embora as histórias interessantes em O Silmarillion sejam várias, a mais notável (na opinião do próprio Tolkien) é a de Beren e Lúthien. Beren, um jovem guerreiro humano, de origem nobre, mas caído em desgraça (não vou me alongar com os detalhes; basta dizer que sua família teve uma história trágica), vagando por uma floresta, vê Lúthien, filha do rei elfo Elu Thingol, dançando sobre uma colina, e apaixona-se por ela. O sentimento é mútuo, mas Thingol, que nutre um desprezo a priori pelos humanos, declara que só consentirá na união dos dois caso Beren lhe traga uma das Silmarils – as joias feitas tanto tempo antes por seu parente Feänor, roubadas por Morgoth, e que, naquele momento, são mantidas na fortaleza deste último, protegidas por todo o seu exército e por seus poderes tenebrosos. Nenhum rei elfo, mesmo com exércitos às suas ordens, jamais ousou atacar Morgoth no intuito de recuperar as Silmarils, e Thingol sabe disso muito bem; para um jovem sozinho e sem quaisquer recursos, tentar essa empreitada seria morte certa, e é justamente isso o que o pai de Lúthien pretende. Beren, entretanto, simplesmente ri e replica que "por preço baixo os reis élficos vendem suas filhas: por pedras preciosas e objetos criados por artífices", e parte para encarar o desafio. Sem spoilers, direi apenas que, na aventura cheia de peripécias que se segue a isso, Lúthien não fica com o papel da frágil donzela que apenas espera pela volta de seu herói e teme pela sorte dele: mostra-se sagaz e corajosa, dona de habilidades valiosas. Mais tarde, em nome de seu amor por Beren, ela vem a abrir mão de sua imortalidade. Essa história, de certa forma, tem um eco na Terceira Era (milênios depois), com Aragorn e Arwen, embora haja algumas diferenças importantes: enquanto o pai de Lúthien odiava Beren, Elrond, o pai de Arwen, gosta de Aragorn e vê com simpatia o amor dos dois, ainda que não pareça muito otimista quanto ao tipo de futuro que eles poderão ter. O mais bonito vem agora: nas figuras de Beren e Lúthien, Tolkien retratou a si próprio e a sua esposa, Edith; os nomes foram gravados junto dos seus próprios na lápide do túmulo que os dois compartilham no cemitério de Wolvercote, em Oxford.

Uma coisa em O Silmarillion poderá decepcionar a alguns: o livro conta as origens de elfos, anões, homens, até dos orcs, mas não diz um A sobre os hobbits (há uma única e brevíssima menção a eles no apêndice denominado Dos Anéis de Poder e da Terceira Era, que, como Christopher Tolkien salienta no prefácio, é realmente um apêndice, não fazendo parte de O Silmarillion; de todo modo, essa menção não diz sobre o Povo Pequeno nada que já não soubéssemos). Talvez a explicação esteja no fato de que, segundo Tolkien (provavelmente em alguma de suas cartas; não lembro onde foi que li isso), o povo de Bilbo e Frodo não constitui uma raça à parte, mas um ramo dos humanos. Usando uma linguagem mais científica, não falaríamos em "raças": elfos, anões e homens seriam diferentes espécies, embora muito próximas uma das outras, ao ponto de ser possível o nascimento de crianças mestiças – ao menos no caso de humanos e elfos; nunca soube da existência de mestiços humano/anão ou anão/elfo, pelo menos no universo de Tolkien. Seguindo o mesmo raciocínio, os hobbits seriam uma subespécie dos humanos. Mesmo levando isso em consideração, a existência dos hobbits, o quando, o como e talvez o porquê de terem se diferenciado dos outros seres humanos, isso tudo deve ter uma história fascinante por trás – talvez uma que o Professor não tenha chegado a escrever. Uma pena! Porém, estou longe de ser um especialista em Tolkien e estou bem ciente disso; se alguma história assim existir e alguém que me lê a conhecer, ficarei agradecido por ser corrigido, e também pela indicação de onde poderei ler tal história.

Ainda há muito mais neste livro, mas acho que já "falei" demais. Assim, já entrando na reta final do post, acho necessário indicar que, fora todos os que já citei, estão aqui, pelo menos, mais três conteúdos importantes. O primeiro, ainda dentro d'O Silmarillion propriamente dito, é a história de Túrin Turambar, que, no universo de Tolkien, preenche o arquétipo do herói valoroso, porém desventurado; parece que o autor se inspirou numa história presente no Kalevala finlandês, a respeito de um personagem de nome Kullervo, mas, enquanto lia sobre as calamidades que perseguiam Túrin, lembrei por mais de uma vez do mito grego de Édipo, tão bem aproveitado por Sófocles em suas peças Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona. O segundo, no apêndice Akallabêthtrata da terra de Númenor, habitada pelo ramo mais nobre da raça dos homens, do qual descendia o herói Aragorn, bem conhecido de quem leu O Senhor dos Anéis; e o terceiro, no já citado Dos Anéis de Poder e da Terceira Eraé precisamente a origem dos Anéis do Poder, os detalhes a respeito de sua forjadura, tema que só havia sido tangenciado naquele livro.

Boa parte das críticas que O Silmarillion recebeu logo a seguir ao seu lançamento deve ter despertado a ira dos fãs de Tolkien (o punhado de excertos que li certamente despertou a minha!), mas é difícil negar os pedaços de verdade que há em algumas delas, em especial quando se referem ao fato de, não raras vezes, tornar-se praticamente impossível seguir o texto e reter tudo o que se está lendo, ou não se cansar com as dezenas e dezenas de nomes exóticos que pipocam a cada página: não dá para memorizar tudo isso. O Professor, à semelhança de uma criança extraordinariamente criativa e engenhosa, deleitava-se a brincar com os brinquedos que havia construído para si próprio – suas línguas fictícias, que ele não se contentou em criar, mas levou a um grau inacreditável de coerência e detalhamento, com etimologia própria, uma gramática com direito a tempos verbais, conjugações, declinações e tudo o mais. Tal criação não é menos que genial, e é totalmente compreensível que o autor quisesse vê-la funcionando, sem esquecer que a Terra-média e sua mitologia só existem por causa dessas línguas, mas nada disso impede que, em várias partes do livro, a avalanche de nomes de personagens e lugares (todos esses nomes, sem exceção, com significados precisos em uma ou outra língua imaginária) deixe o leitor meio desarvorado, mesmo que ele já tenha alguma experiência com a escrita de Tolkien. Como um louvável esforço para amenizar esse problema para os leitores, Christopher Tolkien incluiu um glossário dos famigerados nomes de personagens, lugares, povos, etnias etc., que podemos consultar sempre que não lembrarmos ao que um determinado nome se refere. Há também um apêndice com elementos formativos dos nomes nos idiomas quenya e sindarin, para que tenhamos a chance de, aos poucos, pegar gosto por decifrar os sentidos desses nomes, dominando seus radicais e vendo como eles se encaixam como peças de um quebra-cabeça para formar nomes e palavras. Dessa forma, talvez cheguemos até a acumular um pequeno vocabulário nessas línguas. Tão úteis quanto tudo isso, há árvores genealógicas das linhagens de homens e elfos que têm papéis de destaque nas histórias. Enfim, O Silmarillion vai, por vezes, exigir esforço e paciência do leitor, mas, vamos concordar, quase tudo o que vale a pena na vida exige esforço e paciência. É um belíssimo livro, indispensável para todos os fãs de Tolkien.

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

O Senhor das Moscas

Eu não ligo mais para esse mundo
Eu só quero viver minha própria fantasia.
O destino nos trouxe a estas praias
O que tinha que ser agora está acontecendo.

Eu descobri que gosto desta vida em perigo
Viver no limite nos faz sentir como um só.
Quem liga agora para o que é certo ou errado, isto é a realidade.
Matando nós sobrevivemos, onde quer que possamos vagar,
Onde quer que possamos nos esconder, temos que fugir.

Eu não quero que a existência termine.
Nós devemos nos preparar para os elementos.
Eu só quero sentir que somos fortes
Nós não precisamos de um código de moralidade.

Eu gosto de toda essa emoção misturada e raiva
Isso traz à tona o animal,
o poder que você pode sentir.
E sentindo-nos tão altos com toda essa adrenalina
Excitados, mas assustados de acreditar no que nos tornamos.

Santos e pecadores
Algo dentro de nós
Nós somos o senhor das moscas.

Santos e pecadores
Algo que nos quer
Para ser o senhor das moscas.


                                        Iron Maiden
                                        Lord of the Flies
                                        Álbum: The X Factor (1995)

*       *       *

Quando um livro atinge o status de clássico, seu autor ganha o raro privilégio da imortalidade: seu nome continuará a ser citado séculos e, em casos extremos, milênios depois de sua morte biológica. Em compensação, o livro, pela exposição e influência que passa a ter, vira objeto de inúmeros estudos, e, por consequência, fica sujeito a todo tipo de interpretação – muitas delas que, estou certo, deixariam o autor sem fala se lhe perguntassem a respeito. Por mais que eu ame o estudo da literatura, uma coisa que sempre me incomodou nele, pelo menos dentro do ambiente acadêmico, foi essa obrigatoriedade de sempre encontrar algum significado oculto ao analisar qualquer obra… Significados esses que, com toda a probabilidade, em sua maioria jamais passaram pela cabeça do autor. Uma vez que um livro passa a ser considerado um clássico, parece se tornar inconcebível a possibilidade de que, ao escrevê-lo, o autor quisesse dizer exatamente aquilo que disse, e nada mais que isso. Citando Stephen King, que, por sua vez, estava citando Bob Dylan, a explicação deve ser que, quando você tem muitos garfos e facas, é preciso cortar alguma coisa. Não que eu ache que O Senhor das Moscas seja um exemplo de livro que diz claramente tudo o que quer dizer: pelo contrário, ele sem dúvida apresenta diversas alegorias e metáforas, e lê-lo apenas como história de aventuras seria perder de vista seus aspectos mais interessantes. Apenas acho exagerado (forçado, se quiserem) ficar tentando ver nele tudo quanto é significado político, como já vi fazerem. A meu ver, é muito mais razoável interpretá-lo como um convite a refletir sobre a natureza do ser humano e sobre a sociedade, que, no fim das contas, é um desdobramento de nossa própria essência, já que interagir uns com os outros é uma parte indissociável da condição humana.

Para (tentar) ser mais claro, eu poderia dizer que sim, certamente há alegorias políticas em O Senhor das Moscas; porém, discordo de quem quer ver aí referências específicas: "Jack é Hitler", ou mesmo o nazifascismo de modo geral. Para mim, isso é, ao mesmo tempo, forçar uma interpretação e limitar o alcance da obra. Talvez, na verdade, eu veja O Senhor das Moscas como uma história que se presta melhor à aplicabilidade que à alegoria, conforme a diferença entre as duas é explicada por Tolkien: "Acho que muitos confundem 'aplicabilidade' com 'alegoria', mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda, na dominação proposital do autor."

Também já li em algum lugar que o tema deste livro, ou, ao menos, um de seus temas, é o do mal supostamente inerente ao ser humano – e essa ideia já é mais difícil de desprezar, considerando o título da obra: 'Senhor das Moscas' é a tradução literal de Ba'al Zebuth, nome de um deus cultuado pelos antigos fenícios e cananeus, e que era associado tanto à chuva e à fertilidade (quando de bom humor) quanto à morte, principalmente a morte pela peste (quando enfurecido), donde a ligação com as moscas. O nome dessa divindade chegou aos tempos modernos como Beelzebub em inglês, Belzebu em português, e formas parecidas nas outras línguas – e, em todas elas, é um dos inúmeros nomes do diabo da tradição judaico-cristã. Com um título desses, não parece forçado aceitar que se trate de um livro a respeito do mal.

Na história, é tempo de guerra. Não sabemos qual guerra, e isso não é relevante para seus fins. Ocorre que um avião transportando dezenas de estudantes ingleses é abatido por artilharia inimiga e cai numa ilha aparentemente desabitada do Pacífico; a maioria dos jovens passageiros escapa, mas nenhum membro da tripulação sobrevive, de modo que os garotos, com idades variando de seis a doze anos, estão por sua própria conta, sem qualquer adulto para ajudá-los, tampouco para lhes dizer o que fazer ou não fazer. Estão assustados, é claro, mas também empolgados, pois aquela situação oferece mais oportunidades para aventuras e descobertas do que eles normalmente teriam em toda a vida. Dois deles, Ralph e Porquinho, encontram uma grande concha que, quando soprada da forma adequada, produz um som potente que pode ser ouvido praticamente em toda a ilha, e que logo se torna o sinal de reunir. Os dois garotos são muito diferentes, mas, de certa forma, se completam: Ralph, por ser bonito e ter um talento natural para liderar, preenche o papel do herói no imaginário dos companheiros, e é logo eleito o chefe; Porquinho é gordo e tímido, mas claramente o mais inteligente ali. Pouco depois, entra em cena uma terceira figura proeminente, Jack Merridew, que lidera um grupo que costumava ser um coro, e que também viajava no avião. Por estar acostumado ao comando, Jack mostra-se disposto a rivalizar com Ralph pela liderança geral, mas, quando o outro é eleito por aclamação, parece, no começo, aceitar o fato; Ralph lhe permite conservar a liderança do coro, e os dois parecem estar formando uma amizade.


A primeira coisa sobre a qual O Senhor das Moscas nos leva a refletir (ou, ao menos, comigo foi assim) é o fato de que, por mais civilizados e sofisticados que nos tornemos, nada mudará a verdade básica de que a selvageria sempre será o estado natural do homem. Não é preciso muito para revertermos a ela – e, em se tratando de crianças, é preciso menos ainda. Em questão de semanas, os elegantes e bem-educados alunos de tradicionais instituições de ensino britânicas já estão lembrando mais uma tribo pré-histórica – quer pela aparência, quer pelo comportamento. Cansados de sua dieta de frutas do mato, os garotos voltam seus olhos para os porcos selvagens que habitam a ilha… Porém, muito mais determinante que a vontade de todos de comer carne é o forte desejo de Jack de experimentar aquelas sensações que apenas um caçador conhece: o "poder de impor sua vontade a uma coisa viva". Abater seu primeiro porco torna-se uma obsessão, e ele converte os antigos membros do coro num time de caçadores – que, aos poucos, também vão se adaptando a fazer as vezes de sua guarda pessoal, sendo leais antes a ele que a Ralph. O primeiro conflito sério acontece quando Jack e seu grupo retornam de sua primeira caçada bem-sucedida (depois de muitas tentativas falhadas), carregando um porco morto: para ir caçar, eles abandonaram a fogueira que todos haviam concordado em sempre manter acesa no topo de um morro, e ela se apagou. O objetivo da fogueira é chamar a atenção de algum navio que porventura passe próximo à ilha, o que é a única chance de serem resgatados. De fato, um navio apareceu – Ralph o viu. E passou direto, pois a fogueira estava apagada.

A partir daí, conforme vai acumulando sucessos na caça, Jack vai ficando cada vez mais disposto a desafiar a autoridade do líder; matar parece aumentar sua autoestima e diminuir sua inclinação para obedecer, seja às ordens de Ralph ou a regras de qualquer espécie. Esse espírito contagia primeiro o coro, e depois, gradualmente, alguns dos outros.

Cada um dos principais personagens de O Senhor das Moscas passa por sua própria jornada de crescimento, o que não quer dizer necessariamente um processo de melhoria, mas apenas o caminho inevitável de tornar-se aquilo que está destinado a ser. Ralph, por exemplo, aprende a duras penas o que liderar realmente significa. Todo mundo já sonhou em ser o chefe da turminha da vizinhança (e quem nunca, que atire o primeiro coelho azul de pelúcia). Pudera: na cabeça de uma criança, "chefe" é alguém que manda em todo mundo e em quem ninguém manda, que pode fazer tudo o que quiser e não precisa fazer nada que não queira; é só status e privilégio. Porém, Ralph não demora a compreender que o posto é uma responsabilidade pesada, que exige sacrifícios e, muitas vezes, é desesperador. Tendo sido professor, o autor do livro, William Golding (1911-1993), sem dúvida sabia bem como são as crianças, particularmente os meninos. E o fato é que meninos se entusiasmam por uma ideia com a mesma facilidade com que perdem o interesse nela pouco depois. Quando Ralph sopra a concha, todos comparecem sem demora; parece haver algo na solenidade da coisa que torna essas reuniões divertidas, mas as decisões que nelas são tomadas, embora referendadas por todos e, a princípio, seguidas, são esquecidas em pouco tempo. Não é fácil ser chefe desse jeito.

Quando um dos garotos menores começa a falar sobre um "bicho" que aparece à noite, parece, a princípio, que a coisa não é mais que um pesadelo, ou um medo infantil sem origem definida – mas, quando o menino some sem que ninguém saiba como, e outros passam a acreditar ter visto a criatura, já não é tão fácil ter certeza. Ralph e Porquinho insistem que não pode haver nenhum animal ameaçador, porque nenhum grande carnívoro sobreviveria numa ilha tão pequena, mas ficam sem ter o que responder quando outro dos pequenos afirma que "o bicho sai do mar" – o que multiplica o potencial assustador do boato. Jack, por seu turno, não faz esforço algum para que os outros percam o medo; em vez disso, procura usar o "mito" em benefício próprio, garantindo a todos que, se houver um bicho, ele e seus caçadores vão matá-lo. Se isso for uma alegoria (ou se quisermos exercer a nossa liberdade como leitores para encontrar a aplicabilidade do texto), os caçadores podem simbolizar o exército, e o próprio Jack, qualquer um dos inúmeros ditadores sobre os quais a História nos conta, pois foi assim que a maioria deles chegou ao poder: tirando vantagem do medo que a população sentia, oferecendo proteção, tanto faz se contra ameaças reais ou imaginadas. Em algum momento, um dos personagens pensa em voz alta que "talvez não haja nenhum bicho; talvez sejamos só nós" (não consegui encontrar a passagem para copiar a frase exata, mas é essencialmente isso), referindo-se de maneira alegórica, mas mesmo assim bem clara, ao mal que cada pessoa traz dentro de si – e que, não raras vezes, é projetado no outro, porque fica mais fácil lidar com ele dessa forma. O ódio de Jack por Porquinho também não é gratuito: o gordinho é a voz da razão e do conhecimento, que dissipam o medo. Se Jack permitir que isso aconteça, ficará privado de seu maior trunfo.

Jack leva adiante seu trabalho de sedição, que chega ao ponto da ruptura, com ele e seus seguidores separando-se da "tribo" para formar a sua própria. Para convencer mais garotos a trocar de grupo, ele lança mão de qualquer meio ao seu alcance, desde promessas (principalmente a de que quem o seguir sempre terá carne para comer) até intimidação. À medida em que a inimizade entre os dois grupos vai ficando mais amarga e mais séria, as regras de conduta introjetadas mediante anos de educação vão se revelando como nada mais que um fino verniz, que descasca e cai se não for continuamente reforçado. Enquanto Ralph tenta fazer com que seus companheiros não se esqueçam do que significa ser humano, Jack e os seus vão progressivamente cedendo à tentação da violência e da arbitrariedade, num conflito que acaba por ser mais profundo e de implicações mais graves (ao menos para quem está vivendo a situação) que o tradicional antagonismo "bem" versus "mal". Não há surpresa quando a tensão descamba para a violência homicida – mas a ausência de surpresa não faz com que o fato deixe de ser chocante. Bem, ao menos deveria sê-lo; não creio que o público dos anos 2000, acostumado a ver violência extrema ser apresentada como uma forma de entretenimento, se perturbe com o final da narrativa. O que eu não consigo ver como um bom sinal.

O Senhor das Moscas, publicado originalmente em 1954, teve o mesmo destino de muitos outros clássicos: não foi nenhum sucesso instantâneo. Sua primeira edição não vendeu nem três mil cópias, mas, redescoberto durante as décadas de 60 e 70, ganhou o status de cult e acabou dando a seu autor o Prêmio Nobel de Literatura em 1983. Hoje é leitura obrigatória em muitas escolas secundárias em todos os países de língua inglesa – e eu sinceramente espero que isso, por si só, não leve muita gente a desenvolver uma antipatia a priori por ele, o que seria mesmo uma pena. A grande sacada do livro, na minha opinião, é a de ter pego um enredo que nada tinha de original (grupos de personagens isolados em ilhas desertas ou lugares semelhantes são um plot que vem sendo explorado desde a Antiguidade) e, a partir disso, criado tantas situações fascinantes e cheias de significados. Além disso, Golding é excelente na arte da narração e da descrição; provavelmente o melhor exemplo disso está no capítulo chamado Visão de Uma Morte, no qual o autor demonstra saber perfeitamente como é uma tempestade nos trópicos – coisa que a maioria dos anglo-saxões não consegue nem imaginar. Em resumo, O Senhor das Moscas deve ser lido, antes de mais nada, por prazer, mas é altamente aconselhável manter um olho aberto para o que ele pode nos ensinar e para as reflexões que pode estimular. E essa é a melhor combinação que podemos encontrar num livro.