Mostrando postagens com marcador sociologia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador sociologia. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, março 03, 2011

A Ilha do Dr. Moreau

Passei os últimos quatro meses lendo a série O Imperador e escrevendo sobre ela, o que é suficiente para me deixar farto da temática romana durante umas... 24 horas, talvez. Entretanto, como alguma variedade é saudável, e o mundo está cheio de assuntos interessantes, decidi comentar este livro, que comecei a reler numa decisão repentina ao acidentalmente bater o olho nele na minha estante.

Li pela primeira vez A Ilha do Dr. Moreau na pré-adolescência, talvez com uns 12 anos de idade, quando estava começando a prestar atenção aos nomes dos autores dos livros que lia (vocês se surpreenderiam com o número de livros que li na infância e adoraria reencontrar hoje, mas não tenho como procurá-los porque o Marcos garoto simplesmente não se preocupava com quem era o autor). Meus irmãos andavam comentando entusiasmados o livro O Homem Invisível - que, por algum capricho do destino, não li até hoje! - e, quando topei na biblioteca com outro livro do mesmo autor, decidi conferir. Não era a mesma edição do exemplar que tenho hoje, esse comprei num sebo anos depois: se não me engano, a edição que li primeiro tinha tradução de ninguém menos que Monteiro Lobato. Foi meu primeiro contato com a obra de Herbert George Wells (1866-1946).

Esse autor britânico, como vim a saber, divide com o francês Júlio Verne o mérito do pioneirismo no gênero que mais tarde ganharia o nome de ficção científica. Verne e Wells não foram realmente os primeiros a escrever coisas do tipo (o famosíssimo Frankenstein, de Mary W. Shelley, em tudo e por tudo uma história de ficção científica, é de 1817), mas foram os primeiros escritores que se dedicaram de forma consistente ao gênero e conquistaram para ele um público fiel. Suas semelhanças, porém, terminam aí, pois os dois tinham estilos muito diferentes. As obras de Verne costumam ser mais leves, com um sentido de aventura e descoberta que as torna atraentes tanto para o leitor adolescente quanto para o adulto, além de, não raro, terem um toque de humor (Da Terra à Lua tem trechos realmente hilários!). Ao mesmo tempo, Verne revelava uma preocupação maior com o aspecto "técnico" do que escrevia, procurava fornecer explicações plausíveis para a forma como as coisas de que falava eram ou viriam a ser possíveis. Wells, por sua vez, visava claramente um público mais maduro, e pensava mais no lado humano das situações. Para ele, não importava tanto como um homem pode ficar invisível ou qual a tecnologia usada pelos marcianos nas naves com que invadiram a Terra: interessava-lhe muito mais saber quais seriam as consequências disso tudo para a cultura e a sociedade.

A Ilha do Dr. Moreau, de 1896, ocupa um lugar à parte na obra de H.G. Wells. Mencionei há pouco o Frankenstein como sendo obra de ficção científica, e não há dúvida de que o é, embora seja lembrado com muito mais frequência como um clássico da literatura de terror. O fato é que o danado do livro pertence a ambos os gêneros, e A Ilha... também não está muito longe disso. Ao mesmo tempo em que levanta questões importantes sobre ciência e a ética dos cientistas, o livro está recheado de passagens sombrias e tensas, onde o horror ora é sutil, alimentado pela sensação indefinida de realidades desconhecidas e possivelmente hostis, ora explícito, por meio de presenças bizarras e assustadoras.

O livro trata das aventuras de um inglês do século XIX, Edward Prendick, que, após sobreviver a um naufrágio e penar miseravelmente durante dias num escaler à deriva no sul do Pacífico, acaba sendo resgatado por uma escuna que leva a bordo um sujeito misterioso de nome Montgomery, que diz viver numa pequena ilha sem nome, onde a embarcação o deixará antes de seguir para seu destino. Nos arredores da ilha, como o capitão bêbado e rabugento recusa-se a levar Prendick mais adiante, ele acaba sendo obrigado a desembarcar, e se vê jogado num pequeno mundo habitado apenas por Montgomery, por um velho cientista a quem ele parece servir de assistente, e por um grupo de homens de aparência estranha, parecendo fisicamente mal acabados, com inteligência subumana e certos inconfundíveis traços animais na fisionomia e no comportamento.

O nome do velho cientista, Moreau, não é estranho a Prendick, que acaba por se lembrar de onde o ouviu: Moreau foi em tempos um médico eminente na Inglaterra, famoso tanto por seu conhecimento quanto pelas ideias pouco ortodoxas e pela crença de que, em prol da ciência, os fins justificam quaisquer meios. Juntando as terríveis histórias que ouviu quando garoto com as coisas que vê na ilha, Prendick chega à horrenda conclusão de que os seres disformes que perambulam por ela já foram homens, ficando reduzidos àquela condição degradante como resultado de algum tipo de atroz experimento levado a cabo pelo médico ensandecido. Dou uma pista: as coisas não são como Prendick pensa - e mais que isso não digo, pois seria estragar o arrepiante mistério que serve de fio condutor à história.

Entre outras influências oriundas de sua sólida formação científica, H.G. Wells pautava suas ideias na teoria da evolução de Darwin, e, dessa forma, sua mente especulativa inevitavelmente levantaria a questão de em que momento o homem separou-se dos animais, e se a linha que os distingue é mesmo tão nítida quanto geralmente se acredita. Que diferença haveria entre um animal humanizado e um homem animalizado? Até onde é preciso ir para que o ser humano reverta à selvageria, que, afinal de contas, é seu estado natural? A Ilha... é também mais um exemplo do gosto de Wells por pequenos universos fechados utilizados como alegoria para a sociedade humana como um todo: em seu conto Em Terra de Cego, o vale isolado nos Andes, habitado apenas por cegos, é uma metáfora dos absurdos a que pode levar a construção do conhecimento por meio de uma filosofia materialista que não aceita a possibilidade de realidades fora do alcance dos sentidos físicos e da experiência direta; em A Ilha do Dr. Moreau, o comportamento por vezes insano dos habitantes da ilha é uma crítica aos dogmas religiosos e às convenções sociais - mas, paradoxalmente, a conclusão à qual a história leva é a de que, com os defeitos que possam ter, esses dogmas e convenções são indispensáveis para que a civilização seja viável.

Em tempo: sei da existência de três versões filmadas de A Ilha do Dr. Moreau. Nunca vi a mais antiga, de 1932, mas, pelo que pude descobrir sobre ela na internet, não deve ser grande coisa: o maior destaque parece ser uma sexy (para os padrões da época) "mulher-pantera", enxertada no roteiro para tentar aumentar a bilheteria. Os dois filmes mais recentes eu vi, e tudo o que posso dizer é que é difícil escolher qual o pior, se o de 1977, com Burt Lancaster, ou o de 1996, com Marlon Brando e Val Kilmer. Ambos jogaram fora a tensão e as ideias perturbadoras do livro em prol de cenas ordinárias de ação e de um horror canhestro que lembra aqueles filmes pastelão sobre lobisomens, mas sem a veia de humor autogozador que torna esses filmes divertidos. Num deles, os temores de Prendick (ou como quer que tenham rebatizado o personagem) se concretizam e o Dr. Moreau realmente tenta usá-lo como cobaia em suas experiências - coisa que o Moreau do livro jamais faria. Resumindo: 115 anos depois de sua publicação, uma das melhores obras do mestre H.G. Wells ainda está à espera de uma adaptação cinematográfica decente. Deixem o DVD desligado e leiam o livro.

quinta-feira, outubro 12, 2006

1984

Desejo, ao iniciar esta postagem, agradecer ao Prof. Luís Augusto Fischer por ter gentilmente autorizado a utilização do texto abaixo. Eu pensava há algum tempo em escrever um post para este blog enfocando 1984, de George Orwell, livro extremamente importante por uma série de razões. Entretanto, no último domingo, dia 08/10, ao ler o jornal Vale do Sinos, aqui da minha cidade (São Leopoldo/RS), topei com este magnífico artigo, de autoria do Prof. Fischer. Como, depois de lê-lo, nada que eu pudesse escrever sobre o mesmo assunto me pareceria bom o bastante, enviei um e-mail ao autor solicitando permissão para reproduzir o texto. Numa postagem separada, sob o título O "meu" 1984, incluí alguns comentários adicionais de minha própria autoria.




Um livro profético

Por Luís Augusto Fischer

Reli agora, adulto, um livro que não é tão bom quanto poderia, mas que mantém grande interesse para nossos dias. É o famoso 1984, de George Orwell (com tradução recente pela editora Nacional). Trata-se de uma fantasia medonha, uma utopia negativa (ou uma distopia, como alguns preferem chamar): lançado em 1949 e escrito no ano anterior, 1984 relata a história de um sujeito chamado Winston Smith, que vive em Londres num sombrio futuro (que para nós é passado, mas isso é apenas um detalhe): o mundo todo é atravessado por guerras infinitas e está dividido em três grandes blocos.

Winston vive numa cidade ocupada por cartazes gigantes do Grande Irmão – se o leitor não sabe, foi daqui, deste livro, precisamente, que nasceu a imagem do Big Brother, este ser onipresente, que para Orwell era uma caricatura do líder soviético Stálin, mas também representava qualquer ditador, muito especialmente Hitler. Big Brother que veio a ser, anos depois, caricaturado pela televisão naquele programa inventado na Holanda e espalhado por todo o mundo, no Brasil pela Globo. No mundo inventado no livro, além da imagem do Irmão que a tudo vê metaforicamente, porque está espalhado por tudo, há coisa pior, uma engenhoca chamada teletela, uma tela de televisão que despeja incessantemente, nas ruas e nos interiores, nos comércios e nas casas, toneladas de informações sempre otimistas sobre os níveis de produção do país, mesma tela que inspeciona a vida de todo mundo, como se fosse uma antecipação perversa das câmeras de vídeo que se multiplicam nas cidades atuais.

Orwell foi profético em vários sentidos, como na teletela. O mundo que o atormentava era o da falta de liberdade, o mundo da sociedade administrada, sem espaço para a criatividade, que nasce do exercício da individualidade, dos sentimentos elevados do ser humano quando vive dignamente. Seu personagem trabalha numa repartição pública que se chama Departamento de Registro; seu trabalho consiste em reescrever antigas notícias de jornal, portanto alterando dados da história, falseando fatos ocorridos, tudo segundo as conveniências do poder, que é absoluto. Se por exemplo algum sujeito, no presente da história, caiu em desgraça por ter desagradado a cúpula do poder, do Partido, os registros históricos que envolviam seu nome serão alterados, de forma que no futuro não será possível ler seu nome, nem saber que ele existiu, que fez alguma coisa, nada.

Escrever para quê?

Winston vive nesse mundo mas com algum desconforto. Não consegue formular uma crítica concatenada contra o poder, contra a opressão, a falta de liberdade, mas apenas sente que o mundo poderia ser diferente. Sabe que houve organização social diferente da que ele vive no presente, mas não consegue dizer como era. Recorda imprecisamente haver coisas como família, liberdade, amor, mas tudo em sua mente é esparso, lacunoso. E é claro que suas lembranças atrapalham sua perfeita inserção naquele mundo, que deseja que os cidadãos sejam uniformemente concordinos, que trabalhem e não pensem.

Em certa altura, ele vai ter um relacionamento com uma jovem, Júlia. Ele tem seus 40, ela vinte e tantos. Ela trabalha em outro setor, o Departamento de Ficção, encarregado de escrever novelas baratas para entreter a camada de baixo da população, os proles – naquele mundo terrível, só existe o Partido, com seus filiados, e os proles. Dentro do Partido, naturalmente, há divisões, entre a cúpula, privilegiada, e a gente mais simples, como é o caso de Winston e Júlia, que são manipulados o tempo todo.

O livro descreve o trabalho de Júlia na invenção de novelas (equivalentes às telenovelas de nosso tempo, em grande parte), que também eram administradas, desde o plano geral feito por gente de cima até os retoques finais. Ela chegara a trabalhar numa subdivisão do departamento, encarregada de escrever pornografia, sempre para entreter os “proles”. De lá saíam títulos como Contos da chibata ou Uma noite num internato de moças. O procedimento, diz Júlia, era simples: eram só seis enredos, que eram misturados e adaptados, mediante um caleidoscópio que recombinava sempre os mesmos elementos. Parecido com nossos dias?

Orwell foi uma figura interessantíssima. Seu nome de batismo era Eric Arthur Blair; nasceu na Índia, onde seus pais, ingleses, trabalhavam, em 1903; estudou na Inglaterra, lugar de excelentes escolas públicas; depois, jovem, foi trabalhar na Birmânia, como policial (é preciso lembrar que a Inglaterra era a cabeça do maior império do mundo, naquela altura, até a Primeira Guerra Mundial); e resolveu escrever profissionalmente na altura dos vinte e poucos anos, quando adotou o pseudônimo, que junta o nome do santo padroeiro de seu país com o nome de um rio. Lutou na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos, porque sempre foi um sujeito de esquerda não autoritária, e sobre essas vivências escreveu excelentes textos, hoje em dia reunidos em edição brasileira chamada Lutando na Espanha (editora Globo); fez carreira como escritor, principalmente de ensaios e reportagens, mas também de ficções, como este 1984. Morreu em 1950, muito jovem ainda, e assustadíssimo com o destino da humanidade, como se pode ver.

Deixei para o fim uma cena que está bem no começo do romance e que me levou a essa evocação: Winston, o desconfortável habitante daquele mundo totalitário, conseguiu comprar um velho caderno de notas e resolve fazer um diário. Há o perigo da teletela, que o vigia também dentro de casa, de tal forma que ele precisa esconder-se numa reentrância da parede, dentro de seu próprio lar, para então ter um mínimo de liberdade - a liberdade de anotar pensamentos, impressões, palpites, lembranças. O primeiro texto que escreve é uma sucessão desordenada de sensações sobre um filme que viu no dia anterior. A letra treme, porque ele não está à vontade; um fluxo de associações lhe passa pela mente, sem que ele consiga ajeitar frase com frase; "de repente, pôs-se a escrever por puro pânico, mal percebendo o que estava registrando", diz o narrador.

Era um texto atropelado, uma desordem sem pontuação adequada, com palavras saindo erradas de sua caneta. Não importa: era um homem exercendo sua sofrida, pequena mas viva liberdade.

O "meu" 1984

Para quem mora na Grande Porto Alegre e mantém contato regular com o ambiente cultural/acadêmico, não há necessidade de apresentar o autor do texto acima; para os demais, aqui vai: Luís Augusto Fischer é professor da UFRGS, autor de diversos livros, e certamente uma das melhores cabeças da região para tudo quanto se refira a língua e literatura. Perdi por pouco a oportunidade de ser seu aluno, quando, em 2004, tendo sido aprovado no vestibular, estava iniciando meu segundo curso de graduação em Letras (bacharelado em tradução), mas fui obrigado a abandoná-lo depois de poucos dias de aulas para pegar o emprego burocrático onde ainda permaneço.

No artigo que acabamos de ler, Fischer nos brinda com uma análise magistral de um livro que sempre mereceu um olhar atento - e, em nossos dias, mais do que nunca. Quando li 1984, o ano que lhe dá o título já tinha passado havia cinco anos, mas, embora eu tivesse, na época, apenas 15, percebi logo que isso não significava, de forma alguma, que o risco de os horrores nele descritos se tornarem realidade tivesse sido afastado.

Aos 15 anos, eu andava mais interessado que nunca em estudos de natureza social e política, e foi isso, em grande parte, o que me levou a procurar esse livro. Mais tarde (lamento dizer), esse interesse diminuiu, creio que pelo fato de tudo à minha volta apontar para a impossibilidade de qualquer mudança real. De qualquer forma, 1984 me abriu os olhos para numerosas questões que ainda me perturbam - como sei que também perturbam a muitos outros.

O fato é que George Orwell, apesar de todo o clima de paranóia (justificada) que permeia seu romance, ficaria de cabelo em pé se pudesse, como Nostradamus, efetivamente ver o futuro e tomar conhecimento de como as coisas são nos dias de hoje. A teletela que ele descreve é aquilo que as pessoas simples do tempo do autor imaginavam que fosse a televisão (na época, uma invenção recente, e que ainda inspirava desconfiança): "eles" nos mostram as imagens que querem que vejamos, mas, ao mesmo tempo, "eles" também nos observam - o tempo todo. Entretanto, assustadora como possa parecer, essa idéia pouco representa se comparada a certas coisas que não são ficção... Hoje em dia, informações a nosso respeito são coletadas a cada passo que damos, e é impossível saber para o que estão sendo usadas. Alguns meses atrás, a revista Superinteressante publicou uma matéria sobre o assunto, que (admito) me preocupou. Imagine: você solicita um cartão numa dessas hipermegalojas de hoje - essas onde se pode comprar de tudo, de rabanetes a aviões. Graças ao cartão, obtém descontos, condições facilitadas de pagamento, e muitas vezes nem precisa mais carregar dinheiro nos bolsos - mas, em contrapartida a essas vantagens, o banco de dados da loja registra tudo o que você compra. Essas informações podem ser vendidas a outras empresas - por exemplo, uma companhia de planos de saúde, que, analisando as suas listas de compras, passa a conhecer seus hábitos alimentares, e, por conseguinte, a ter uma estimativa das chances que você tem de vir a precisar de serviços médicos. Com base nisso, a companhia calcula o preço que você terá que pagar por um plano de saúde!...

Isso é apenas um exemplo das coisas que ocorrem num mundo onde a privacidade, outrora um direito básico de todo cidadão, passou a ser um luxo nem sempre disponível. Também é tristemente irônico que o Grande Irmão - Big Brother - criado por Orwell com o objetivo de alertar a humanidade para o perigo do totalitarismo, tenha-se transformado num ícone da cultura do voyeurismo, ao ter seu nome usado para batizar um programa de TV onde pessoas absolutamente vulgares e sem conteúdo expõem sem o menor constrangimento sua mediocridade e, o que é pior, transformam-se em ídolos para uma população carente de exemplos mais construtivos ou de referências mais sólidas... Um paralelo, contudo, existe: no livro de Orwell, Winston lembra-se que o rosto do Grande Irmão nos cartazes ainda é o mesmo de quando ele era menino, 30 anos atrás - o GI não envelhece, porque não é uma pessoa de verdade, apenas um personagem, um rosto que personifica o próprio regime. Da mesma forma, as pessoas que se exibem no zoológico hi-tech que é o Big Brother da TV não são, enquanto estão ali, propriamente pessoas - apenas imagens, personagens, rostos e corpos que simbolizam algo na cabeça dos telespectadores. "Reality show"? Show, sem dúvida; de realidade, parece haver muito pouco.

O fato de a amante de Winston, Júlia, trabalhar no "Departamento de Ficção", chamou-me a atenção ao ser relembrado pelo Prof. Fischer; o paradoxo de tal detalhe me havia escapado quando li o livro - em parte, acredito, devido à minha pouca idade, e em parte ao fato de as principais mídias de então serem ainda basicamente as mesmas que Orwell conheceu em vida, ou cujo desenvolvimento já podia ser previsto em sua época: em 1989, embora os telefones já fossem coisa corriqueira, ninguém achava estranho o fato de uma família de classe média não ter um (de fato, na minha casa ele só seria instalado quatro anos depois); videocassetes, muita gente tinha, e muita gente não tinha; computadores caseiros eram raros; DVDs e celulares não existiam, e de internet, então, nem se falava. Por tudo isso, não causou estranhamento a um garoto de 15 anos que, na sociedade totalitária prevista por Orwell, o governo usasse a literatura como instrumento de lavagem cerebral. Hoje em dia só podemos ficar pensando em como seria bom se a população em geral lesse seja lá o que fosse, não importa o quão ordinária fosse essa literatura. Já foi dito, e é certo, que a leitura é uma forma de vício (um vício que deveríamos estimular nossas crianças a contrair o mais cedo possível...), e, como em outros vícios, também no caso dela o "usuário" desenvolve tolerância e passa a sentir necessidade de coisas mais fortes: quem começa hoje lendo Paulo Coelho, daqui a um ano ou dois sentirá vontade de experimentar algo mais consistente e bem escrito, e talvez passe a Sidney Sheldon, e assim, de passo em passo, quem sabe não acabe um dia tornando-se um apreciador de Tolstoi, Machado de Assis ou Shakespeare?... Mesmo que esse leitor jamais vá além do nível Sidney Sheldon, isso já será incomparavelmente melhor do que seguir pela vida sem ler nada. Sei que estou repetindo coisas já ditas milhares de vezes, mas é fato: ao contrário da televisão e de outras mídias que simplesmente nos despejam coisas prontas, a leitura estimula a imaginação, o senso crítico, e leva a pessoa a fazer-se perguntas e procurar as respostas. Não existe livro tão vagabundo que não ensine alguma coisa nova, por menor que seja, a quem o lê. A leitura, com tudo o que ela traz à vida de uma pessoa, é como uma avalanche, que, uma vez iniciada, não pode ser detida. Enfim, o Grande Irmão do século XXI jamais teria a seu serviço um Departamento de Ficção!...

sexta-feira, junho 23, 2006

Heróis de verdade

Precisamente pelo fato de sempre ter sido um apaixonado por literatura, tenho o costume de passar longe de livros do gênero conhecido como "auto-ajuda" - primeiramente porque, tendo uma razoável experiência como leitor, estou ciente de que existe um sem-número de obras realmente merecedoras de que se dedique tempo à sua leitura, ao passo que a maioria das pessoas não tem essa sorte, e (para empregar uma metáfora) come capim, simplesmente por não ter sido apresentada ao filé mignon. Em segundo lugar, os poucos livros de auto-ajuda que cheguei a ler me permitiram constatar que a maior parte dos títulos do gênero realmente merece o nome, mas não pelo motivo pretendido: são de auto-ajuda porque foram a maneira que o autor encontrou para se auto-ajudar a ganhar dinheiro.

Entretanto, como toda regra tem exceção (inclusive esta), cá estou eu para falar de um livro de auto-ajuda que não só vale a pena ler, como deveria ser objeto de reflexão e discussão séria. Em Heróis de verdade, o psiquiatra Roberto Shinyashiki mostra-nos uma radiografia implacável de uns tantos absurdos que a vida na sociedade moderna acabou fazendo-nos achar normais, e aconselha sobre as atitudes que deveríamos tomar para não entrar nesse jogo.

De forma resumida, o objetivo do livro é nos alertar para o fato de que a mídia tenta constantemente nos vender uma imagem de "sucesso" irreal e por vezes absurda. Somos bombardeados dia após dia com regras, sugestões, exigências e cobranças que podem nos levar ao desespero se tentarmos atendê-las todas: publicidades de todo tipo de gulodices altamente calóricas nos atingem ao mesmo tempo que as de marcas de roupas exigindo corpos perfeitos. Pior ainda, parece que uma pessoa só poderá se considerar "bem-sucedida" se chegar à direção de uma megaempresa, com salário na casa das dezenas de milhares de reais e poder sobre o destino de centenas, milhares de empregados... Conseqüentemente, cria-se a noção de que os 99,9 % da população que jamais chegarão nem perto disso, são nada mais que uma multidão de "fracassados". Essa mentalidade leva a um sentimento generalizado de frustração e a uma atitude de competição destrutiva - de forma totalmente desnecessária e evitável. Ao lado disso, criou-se uma cultura onde o stress é visto como uma espécie de distintivo de honra: as pessoas incham o peito para dizer que não tiram férias há cinco anos, como se isso fosse motivo de orgulho. Lembro-me dos meus tempos de faculdade e de ter ouvido muitos colegas declararem - não em tom de lamento, mas de quem se vangloria - que geralmente não lhes sobrava tempo nem para almoçar direito. Sobre tudo isso, Shinyashiki é categórico: trabalhar 16 horas por dia e levar trabalho para casa no fim de semana não é sinal de dedicação, e muito menos de competência - é meramente coisa de quem sente necessidade de se provar, quer diante dos outros ou de si mesmo. É, em última análise, o mesmo mecanismo que leva muitas pessoas a sentirem necessidade de comprar o carro do ano, apesar de ainda terem um automóvel em perfeitas condições: precisam comprar o carro para mostrar - aos outros e a si - que podem.

Para definir as pessoas que o autor vê como os "heróis de verdade" do título, eu poderia juntar as idéias do livro com algumas considerações pessoais minhas. Um "herói de verdade", então, é alguém que busca progredir em seu trabalho como um caminho para a realização pessoal, e não para provar que não é um "fracassado". Alguém que exerce suas atividades de forma dedicada, mas não permite que isso o impeça de ter uma vida. Que tira seu tempo para ficar com a família, conversar com os amigos, dar um passeio ao ar livre, ler (e não ler o que precisa para o trabalho) sem ficar se sentindo culpado por tê-lo feito. Numa palavra, alguém que não negligencia nenhum dos aspectos do seu próprio ser, sabe combinar uma atitude humilde com uma saudável admiração por si próprio, e procura levar sua vida da melhor maneira possível - quer dizer, da maneira melhor para si, e não da maneira que os outros acreditam ser a melhor. Diante dessa pequena coleção de verdades tão simples, mas por vezes tão difíceis de enxergar, só resta mesmo aplaudir Shinyashiki por ter realizado essa raridade: um livro de auto-ajuda que pode verdadeiramente ajudar alguém.