sexta-feira, julho 13, 2018

HEX

Depois de Deixa Ela Entrar, de autoria do sueco John Ajvide Lindqvist, aqui temos outro exemplo de ventos frescos na literatura de terror vindo de países inesperados: Thomas Olde Heuvelt é holandês, embora a história de HEX esteja ambientada nos Estados Unidos – por boas razões, como veremos depois. É um pensamento comum acreditar que, à medida que a ciência e a tecnologia progridem, a tendência é que a crença no sobrenatural, ou o papel que ele desempenha na vida das pessoas, diminua… E já faz tempo que desmontar essa ideia em suas histórias é um caminho que diversos escritores de terror adotam. É o que Heuvelt faz aqui, mas de uma maneira inovadora e surpreendente.

Black Spring (nome dúbio, que pode significar "fonte negra" ou "primavera negra") é uma cidadezinha aparentemente pacata e normal do estado de Nova York, a pouca distância da famosa academia militar de West Point. O que um eventual forasteiro não imagina ao andar por suas ruas sossegadas é que a cidade sofre com uma maldição que já dura três séculos e meio e pesa sobre todos os seus habitantes, tanto os nativos quanto os que, seduzidos por sua aparência de tranquilidade ordeira, fizeram a bobagem de mudar-se para lá. Os bosques que a rodeiam são assombrados pelo espírito de Katherine Van Wyler, uma mulher que foi condenada à forca por bruxaria em 1664, quando aquela região era habitada principalmente por imigrantes holandeses, em sua maioria calvinistas, e por índios algonquinos. Isso, por si só, já seria bem ruim, mas acontece, ainda, que Katherine nem sempre se contenta em vagar pelos bosques, e volta e meia invade a pequena cidade, podendo aparecer em qualquer lugar – ruas, praças, lojas, ou dentro da casa de alguém (credo-em-cruz!). Outra peculiaridade de Katherine é que, ao contrário de outros fantasmas, ela não parece ser incorpórea, tendo uma presença física capaz de interagir com objetos, pessoas e animais (os cães costumam latir e uivar em desespero quando ela está por perto). O efeito da maldição que é sentido com mais frequência é o fato de que os habitantes de Black Spring não podem sair de lá. Não que haja algum tipo de barreira física (há quem pense que seria melhor se houvesse), mas porque bastam alguns dias longe do local para que até mesmo a pessoa mais centrada, ajuizada e satisfeita com a vida comece a ter ideias de suicídio – e, a menos que volte logo para casa, acaba concretizando essas ideias, em cem por cento dos casos.

A história acompanha uma família típica: Steve Grant, médico e professor universitário, sua esposa Jocelyn, ambos nos seus 40 e poucos ou 50 anos, e seus filhos Tyler, de 18 anos, e Matt, de 13. Ah, e tem o border collie Fletcher. Pode parecer inacreditável que essa seja uma família funcional e feliz, pois nosso primeiro e muito compreensível impulso é não achar possível que tal coisa exista numa cidade amaldiçoada, mas a História com H maiúsculo já nos forneceu muitas provas de que a capacidade de adaptação do ser humano beira o infinito – em grande parte, foi por isso que sobrevivemos. Como acontece em cidades pequenas, em Black Spring todo mundo conhece todo mundo, e, sendo assim, Steve e Jocelyn conhecem também um sujeito de nome Robert Grim, que trabalha num órgão chamado HEX. Para um desavisado, isso pode parecer uma sigla, mas na verdade é o som da palavra equivalente a bruxa em várias línguas de raiz germânica: a grafia varia um pouco, mas a pronúncia é quase a mesma, seja em alemão (Hexe), sueco (häxa), holandês, norueguês e dinamarquês (heks nas três). Em inglês também existe um cognato de todas essas palavras, hag, que, na origem, também significava bruxa, embora hoje em dia quase sempre se use witch para designar uma bruxa propriamente dita, enquanto hag comumente se refere de forma pejorativa a mulheres idosas, em especial quando feias e/ou de comportamento desagradável ("bruxa" também é por vezes usado dessa forma em português). A HEX foi criada por iniciativa dos militares de West Point, para lidar da forma mais discreta possível com a maldição de Black Spring. Sua função é monitorar as andanças de Katherine, resolver qualquer problema que surja, e evitar que a história vaze para o mundo exterior. Para facilitar sua tarefa, o órgão desenvolveu o aplicativo de celular também chamado HEX, que os moradores da cidade podem usar para saber onde Katherine está no momento; quem a vir deve informar sua localização, também por meio do aplicativo. O mais sensato a se fazer é evitar ao máximo qualquer proximidade com a bruxa; se ela resolver aparecer na sua casa, o aconselhável é não entrar no cômodo onde ela estiver. Se isso for impossível, pode-se, por exemplo, jogar um lençol ou toalha de mesa sobre ela (sem tocá-la!) e tentar ignorá-la; ela geralmente fica imóvel feito um poste, e desaparece em um dia ou dois. Desaparece literalmente, indo aparecer em outro lugar, como se fosse algum tipo de teleporte sobrenatural. A situação já está assim há muito tempo e, salvo por algum incidente medonho eventual, a convivência entre a população e a bruxa é relativamente tranquila. Quando pega antipatia por alguém, porém, ou acha que foi tratada sem o devido respeito, Katherine sussurra algo, e as consequências para a pessoa visada nunca são agradáveis.

Entretanto, nem mesmo Black Spring pode esperar ficar imune às transformações trazidas pelo avanço da tecnologia – e não estou falando apenas do aplicativo HEX. Enquanto os moradores adultos da cidadezinha parecem conformados com a situação, os mais jovens, não raro, têm dificuldade em aceitar esse estado de coisas. Cidades pequenas são sabidamente um ambiente claustrofóbico para adolescentes, e não é diferente para os que tiveram a pouca sorte de nascer em Black Spring. Como todos os jovens, eles têm vontade de sair, ver o mundo, perseguir ambições, mas são ensinados desde cedo que jamais poderão fazê-lo. Tyler, o filho mais velho de Steve e Jocelyn, é um rapaz especialmente inconformista, que, como quase toda a sua geração, utiliza a tecnologia com desenvoltura, e, além do mais, tem vocação jornalística. Além de todos os motivos acima para estar descontente, ele tem outro: sua namorada, Laurie, que é de fora da comunidade, de modo que só resta a Tyler a escolha entre desistir dela ou condená-la a também viver naquela prisão de muros invisíveis. Na opinião do rapaz, a melhor coisa a fazer seria acabar com o segredo, deixar o mundo saber o que acontece em Black Spring, para que alguma solução – fosse tecnológica, religiosa, mágica ou de outro tipo – pudesse ser tentada. Ele e um grupo de outros garotos começam a procurar deliberadamente por Katherine, filmando e fazendo experiências… Algo muito perigoso em qualquer caso, mas, para piorar, um desses rapazes é Jaydon Holst, filho da proprietária do açougue e empório local. O pai de Jaydon abandonou a família e foi embora de Black Spring, e, sem que isso surpreendesse a ninguém, pouco tempo depois chegou a notícia de seu suicídio. Por menos motivos que parecesse ter para gostar do pai (que, antes de abandoná-lo, o maltratou um bocado), Jaydon odeia Katherine por causa do acontecido. Trata-se de um rapaz mal-humorado, agressivo e pouco esperto. Enquanto Tyler e os outros se utilizam de câmeras digitais e outros aparatos para reunir o máximo possível de dados sobre a bruxa, que depois serão colocados na internet, Jaydon só está interessado em praticar violências contra ela. (Katherine, sendo, como dissemos, uma entidade corpórea, pode ser ferida, mas, na vez seguinte em que se teleporta, ela aparece no local de destino intacta de novo. É como se o processo a "resetasse"… o que não significa que ela se esqueça da agressão sofrida.)

Para tornar a situação ainda mais bizarra, a mãe de Jaydon, Griselda Holst (para quem o sumiço do marido abusivo foi um alívio), desenvolveu uma forma própria e distorcida de religião, com Katherine fazendo as vezes de divindade. Há basicamente duas maneiras de cultuar um ser divino no qual se acredite: se você crer que esse ser é bom, irá querer louvar, agradecer, talvez fazer pedidos; se crer que ele é algo a ser temido, então é provável que os seus ritos tenham como principal objetivo aplacá-lo para que ele o poupe de sua ira. O "culto" inventado por Griselda, como seria de se imaginar, tende muito mais para a segunda possibilidade, embora, uma vez ou outra, ela arrisque pedir algo. Ela procura por Katherine nas florestas, leva oferendas e conversa com ela durante horas – ou melhor, monologa, já que a bruxa nunca diz nada (a não ser pelo sussurro mortífero quando decide eliminar alguém) e raramente se move. Não é preciso dizer que nem a abordagem de Jaydon nem a de Griselda irão resultar em nada de bom.

HEX tem uma ideia excelente e bastante original, explorando o confronto sobrenatural versus modernidade, que tem um potencial fora do comum para amedrontar, porque nos leva a questionar a noção de "progresso", que é um dos pilares da escassa sensação de segurança que o homem moderno consegue desfrutar. Ainda assim, a essência da história talvez não seja a fragilidade dessa noção em si, e sim uma decorrência dela: a facilidade com que pessoas que se consideram civilizadas e esclarecidas podem recair num obscurantismo semelhante ao de séculos passados quando confrontadas com terrores que, no "modo século XXI" de ver as coisas, não deveriam existir, e para os quais essa visão de mundo não oferece soluções. Os moradores de Black Spring são cidadãos americanos modernos, normais em quase tudo, que acessam a internet, consultam tabelas de calorias, assistem a séries na Netflix e distribuem-se entre os eleitorados republicano e democrata, mas há cenas (principalmente as de assembleias populares) em que é difícil não imaginá-los em trajes de colonos calvinistas do século XVII, agitando tochas e forcados. A conclusão é que, por mais sofisticados que pensemos que somos, o medo nos reverte ao primitivismo, muitas vezes com uma facilidade absurda. A História nos oferece (infelizmente) muitos exemplos de casos em que isso foi habilmente explorado com finalidades políticas, resultando em guerras, genocídios e outros desastres.

Heuvelt tem a habilidade para criar personagens convincentes e cativantes, mas, a meu ver, existem algumas incoerências, como quando é dito que Steve Grant "não acredita no pós-vida". Em qualquer outro lugar que não Black Spring, seria perfeitamente crível que um homem do tipo dele fosse basicamente materialista, não crendo no divino nem em qualquer outra manifestação do sobrenatural – mas, se o homem em questão tiver vivido quase metade de sua vida numa cidade por onde uma mulher morta há 350 anos desfila pelas ruas, sendo corriqueiramente vista por todo mundo, qual o sentido lógico de que até mesmo um homem assim continue "não acreditando no pós-vida"? Também acho necessário criticar o final, pois eu realmente esperava que uma história que inova em tantas coisas tivesse um final surpreendente, nunca imaginado… Quando, na verdade, o final de HEX é idêntico (vá lá, quase idêntico) ao do conto A Pata do Macaco, de W. W. Jacobs. Entendedores entenderão.

Uma consideração final… Na parte de trás da capa, junto com a breve sinopse, constam palavras elogiosas a HEX, atribuídas a George R. R. Martin e Stephen King. A opinião de King, principalmente, terá sempre muito peso quando estivermos falando de um novo autor de terror, e eu ouso dizer que a ideia central de HEX é "nível Stephen King" – mas ter uma boa ideia não é tudo. Thomas Olde Heuvelt ainda terá bastante trabalho pela frente se pretender um dia ter uma escrita tão ágil, fluida e viciante quanto a de King, e talvez nunca chegue a isso, o que não o impedirá de ser um excelente escritor mesmo assim; o fato é que HEX é um tanto irregular, com muitos trechos arrastados e pouco empolgantes, embora, no saldo final, recompense bem o leitor. E, já que mencionamos Martin, não custa observar, como nota de rodapé, que em HEX, assim como em Game of Thrones, qualquer personagem pode morrer. Por último, é preciso ressaltar a edição, como sempre muito bem feita, da DarkSide, selo que está fazendo um grande trabalho em prol da literatura fantástica, especialmente a de terror, no Brasil.