quinta-feira, fevereiro 20, 2020

VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue

Essa geração acostumada a ver filmes e séries por meio de serviços de streaming deve achar bizarro o próprio conceito de "videolocadora", fosse qual fosse o formato de mídia utilizado. Um lugar até onde você precisava se locomover, e onde ficava circulando por entre prateleiras cheias de caixinhas vazias, cada uma tendo na frente uma reprodução do cartaz do filme, atrás uma pequena sinopse (geralmente mal traduzida) e às vezes algumas fotos – e essa costumava ser toda a informação que você tinha para decidir se iria ou não investir seu tempo e seu dinheiro para vê-lo, a menos que se tratasse de um filme famoso ou que você tivesse alguma informação prévia a respeito dele, o que, naqueles tempos sem internet, não era frequente. (Certa prima minha tinha por método de seleção descartar automaticamente qualquer filme não famoso, declarando em tom de desprezo: "nunca ouvi falar", como quem diz "nunca ouvi falar, logo não é bom".) Aí você levava essas caixinhas vazias até o balcão, onde um atendente as recebia e ia até o acervo buscar as fitas (mais tarde, discos). Você saía da locadora transportando essas mídias físicas (!) e as levava para casa, onde tinham que ser inseridas no aparelho adequado, conectado à sua TV por meio de uma selva de cabos, para que você pudesse ver o filme. Sei o quanto isso tudo parece absurdamente primitivo e trabalhoso para quem hoje escolhe seus filmes do conforto de sua poltrona, usando nada além de seu smartphone ou controle remoto; parece tosco mesmo se você pensar em DVDs ou blu-rays, mídias razoavelmente confiáveis e que oferecem um bom desempenho de imagem e som, que dirá então se formos falar nas velhas fitas de vídeo VHS, coisas enormes e pesadas que pareciam (e, no fundo, eram) uma versão maior e mais desajeitada das fitas cassete de áudio, tinham uma qualidade de imagem sofrível e uma desesperadora tendência a embolar, enguiçar e dar mil e um outros defeitos. Ah, e antes de devolvê-las à locadora, você tinha que rebobiná-las.

Apesar de tudo isso, a era do VHS deixou saudade. Quem for da minha faixa etária, ou ligeiramente mais velho ou mais novo, certamente se lembra do porquê, e quanto à garotada, peço que considere isso como uma pequena lição de História. Acontece que o advento do videocassete nos trouxe, pela primeira vez, a liberdade de escolher o que queríamos assistir. Até então, só havia duas maneiras de se ver um filme: ir ao cinema ou assistir aos que fossem veiculados nos canais da TV aberta, em horários muitas vezes pouco convenientes, com comerciais no meio e, não raro, em versões tesouradas, fosse por conta de alguma cena mais "ousada" ou simplesmente para que o filme pudesse ser encaixado na grade de programação sem atrasar o programa seguinte. Ou seja, o vídeo VHS representou um enorme progresso para a época. Que época?, perguntarão vocês. Bem, pelo que me lembro, já ouvíamos falar em videocassete desde o início dos anos 80, mas era "coisa de rico". Ele só foi se popularizar lá pelo fim dessa mesma década, e viveu seu auge durante a seguinte. Passar na locadora na sexta-feira à tardinha fazia parte da magia da chegada do fim de semana. Era bom.

E eis que Cesar Bravo, paulista de Monte Alto, escritor em franca ascensão no ainda limitado campo do terror made in Brazil, decidiu revestir sua mais nova obra (por enquanto, a única que li) de uma atmosfera saudosista, ambientando-a precisamente na era de ouro do VHS. O palco dos acontecimentos é a fictícia Três Rios, no noroeste paulista (há uma Três Rios real no estado do RJ, mas não tem nada a ver com esta), onde, em fins dos anos 80, a videolocadora FireStar vai de vento em popa, liderando o segmento na cidade. Devido ao crescimento da clientela, os sócios-proprietários Pedro e Dênis, que até então cuidavam sozinhos do estabelecimento, decidem contratar um ajudante, o adolescente Renan. Além disso, implementam uma ideia destinada a tentar reduzir a prática da pirataria: quem trouxer fitas de vídeo usadas ganha um desconto na locação de lançamentos. Quando, por engano, uma das fitas caseiras recebidas na promoção vai parar entre as locações de um cliente esquisitão, surpresa: em vez de reclamar de ter pago para ver a gravação de uma reles festa de aniversário com gente que nem conhece, o sujeito pergunta se a locadora não tem mais fitas do mesmo tipo… É assim que Pedro e Dênis descobrem que podem aumentar seus lucros oferecendo (na surdina) a seus clientes a oportunidade de ver imagens da intimidade de outras pessoas. Esse seria um negócio supimpa em qualquer lugar (o conceito de reality show só surgiria nos anos 90, se não me engano, mas seu sucesso só foi possível graças à tendência voyeurística preexistente numa grande parcela do público), e mais ainda numa cidade pequena, onde, em geral, as pessoas estão sempre interessadíssimas na vida alheia e a fofoca é uma espécie de esporte popular. Certo, de acordo com as informações presentes no livro, Três Rios não é tão pequena assim, tendo pouco mais de 310 mil habitantes no censo de 2019, mas é fato que esses 30 anos são tempo suficiente para uma cidade crescer bastante, e, além disso, talvez os critérios de cidade grande ou pequena variem de um estado para outro.

Quando Renan já está trabalhando na locadora há algum tempo e conquistou uma certa confiança por parte de seus chefes, eles lhe revelam esse novo filão que estão explorando por baixo dos panos e lhe fazem uma proposta: ele deve levar para casa as fitas do Lote Nove (um codinome que usam para as gravações caseiras), algumas de cada vez, e assistir ao seu conteúdo para então classificá-las. Seu salário terá um aumento substancial, não tanto para compensá-lo por levar trabalho para casa quanto para comprar seu silêncio a respeito dessa atividade ilegal. O que ninguém esperava era que o conteúdo de algumas das fitas pudesse se mostrar tão perturbador quanto acaba se mostrando. Para saber mais, vocês terão que ler o livro.

O conto FireStar Videolocadora, do qual acabo de falar, é o primeiro, e, considerando a caprichada apresentação visual do livro, confesso que eu tinha a ideia de que a locadora e os personagens Pedro, Dênis e Renan compusessem uma espécie de painel que englobaria as outras histórias, como naqueles filmes-antologia, geralmente de terror, que eram tão populares nos anos 80 – havia uma história principal, e as outras eram encaixadas dentro dela por meio de um personagem que as narrava, ou de um livro, manuscrito etc. Mas não é o que acontece aqui: FireStar Videolocadora termina e os contos que se seguem não parecem ter ligação com ele, exceto pelo fato de todos se ambientarem na mesma microrregião fictícia que engloba Três Rios e vários municípios vizinhos. A apresentação visual a que me refiro já fica evidente antes de abrirmos o livro: a capa faz com que ele pareça uma fita VHS, não as que você encontrava nas locadoras, que normalmente já vinham das distribuidoras com uma embalagem oficial do filme (que era a tal caixinha vazia que ficava nas prateleiras), mas as fitas que você podia comprar ainda virgens e usar para gravar programas de TV ou copiar o conteúdo de outras fitas; elas também podiam ser usadas em filmadoras caseiras – como no caso das fitas do Lote Nove. A inspiração direta para o design da capa veio da embalagem de uma fita da marca TDK, que era comercializada nos anos 80. Ao abrirmos o livro, o cuidado com a parte visual continua: há recortes de jornais fictícios (completos, incluindo até mesmo fotos com aquela textura granulada que fotos de jornais tinham na época) e anúncios classificados que imergem o leitor no cotidiano de uma cidade do interior e traçam ligações com os elementos presentes em um ou outro conto – é num desses classificados que ficamos sabendo, por exemplo, que a FireStar está localizada na rua George Orwell, n.° 1984 (risos). Essas notícias e anúncios já começam a nos fazer repensar aquela impressão de que não há relação entre o primeiro conto e os outros, e mais indícios do contrário vão aparecendo. Ou seja, o livro pode não seguir o esquema dos tais filmes-antologia, mas certamente é bem mais que uma simples coleção de contos.

(Alguns de vocês devem estar pensando, e não sem alguma razão, que a existência de uma "rua George Orwell" numa cidade com as características da Três Rios de Cesar Bravo é um tanto dura de "engolir". Nomes de ruas são, em geral, sugeridos por vereadores, e, em cidadezinhas do interior, quase sempre homenageiam personalidades locais – seria muito improvável que algum vereador de um lugar assim conhecesse Orwell, para não falar na coincidência inimaginável de a numeração do prédio ser justamente 1984! Concordo com tudo isso, mas, independentemente de sua verossimilhança, a homenagem é legal!)

Os contos contemplam desde o terror sobrenatural até outro tipo de horror, aquele gerado por atos humanos, e às vezes as duas coisas se entrelaçam, como em Chuva Forte, no qual a cidade de Cordeiros é atingida por uma chuva de sangue – sangue humano de verdade, e não alguma coisa explicável que apenas se pareça com ele: análises laboratoriais demonstram que é sangue mesmo. O fenômeno fantástico e inacreditável, como ficamos sabendo depois, está relacionado a um segredo obscuro que ficou oculto durante muitos anos, e que se refere a uma decisão tomada em conjunto por vários figurões da sociedade local, decisão essa que custou vidas humanas. E agora parece que alguns espíritos querem vingança.

Um dos contos de que mais gostei foi Branco Como Algodão, que lida com a conhecida lenda urbana da "loira do banheiro", que, com diferentes nomes e certas variações nos detalhes, parece existir no mundo todo, e a cidade de Velha Granada não é exceção: quando um aluno da escola local é encontrado morto no banheiro sob circunstâncias estranhas, o detetive de polícia Louis Trindah vai investigar. Louis é aquele típico policial durão e cético, que tem certeza de que há uma explicação racional e provavelmente bem simples para a coisa toda – mas descobrirá que não é bem assim.

Três que Capturaram o Diabo apresenta uma conversa entre o velho homem do campo Deodoro e seu neto Tavinho; ao ouvir o avô mencionar aleatoriamente o diabo, o garoto quer saber mais sobre esse misterioso personagem, e recebe em resposta uma história da juventude de Deodoro, sobre como o coisa-ruim já andou por aquelas bandas sob disfarce humano. Cesar Bravo obtém um belo efeito nesse conto ao retratar esse mundo interiorano que muitos de nós chegamos a conhecer pelo menos um pouco, onde as pessoas de mais idade geralmente tiveram pouca ou nenhuma instrução, não têm qualquer intimidade com livros, mas mesmo assim, sem saber, dominam uma forma de literatura, já que, para elas, ouvir e contar histórias sempre foi uma parte normal do cotidiano.

Bicho-papão causa mal-estar (e não há a menor dúvida de que a intenção era essa), e eu não o chamaria realmente de terror, pelo mesmo motivo pelo qual, para mim, filmes como Jogos Mortais e O Albergue também não fazem parte do gênero: não há nada de sobrenatural e também não há mistério, ou, se há, ele é acessório. Esse conto é basicamente sobre tortura e degradação, mostrando o dia a dia de um homem que vive há meses acorrentado num porão imundo onde constantemente recebe visitas de três sujeitos fardados como policiais, que o submetem a todo tipo de tratamento horripilante, chamando isso de "terapia". Ao longo de várias páginas o autor usa e abusa do privilégio de chocar o leitor, levando-o a sentir horror e pena, e principalmente a ficar perplexo, querendo saber qual o sentido daquilo tudo… Até revelar que o homem está ali por causa de algo que fez, o que pode fazer muitos dos leitores mudarem de ideia. Não vou criticar, mas não é o tipo de literatura que eu, pessoalmente, estou procurando quando abro um livro de terror.

(Acho pertinente uma rápida observação sobre Jogos Mortais, já que o citei como exemplo de "não-terror": acho difícil falar dessa franquia como uma coisa só. Gostei do primeiro filme, que considero um suspense na tradição de Seven e O Silêncio dos Inocentes – não é tão bom quanto eles, mas segue numa pegada parecida, o clima é parecido, e o sadismo que existe está a serviço da narrativa, não o contrário, como aconteceria nos filmes seguintes, que, a meu ver, não são nem suspense nem terror, e sim mero torture porn. Vi, se não me engano, o segundo e o terceiro, depois perdi o interesse, junto com a esperança de que a franquia eventualmente voltasse a apresentar as qualidades do primeiro filme.)

Torniquete é um conto agoniante, mas que te pega de uma maneira que não dá para interromper a leitura. É totalmente subjetivo dizer isso, mas ele me causou uma sensação semelhante à de Eu Sou o Umbral da Porta, de Stephen King, e aí não sei dizer se é só porque as duas histórias têm em comum protagonistas que tomam a decisão drástica de "cortar o mal pela raiz" livrando-se de uma parte do próprio corpo, ou se existe alguma semelhança mais sutil. Millôr Aleixo é um jovem morador de Três Rios que ganha a vida trabalhando pendurado num rapel, limpando janelas de prédios altos, e de repente, por motivo nenhum, começa a sentir uma coceira atroz na perna direita, que nenhum tratamento consegue resolver, simplesmente porque não parece ter qualquer causa que se possa detectar para tratar. Quando a coceira se transforma numa dor, também sem causa aparente, e o rapaz está a ponto de enlouquecer, sem conseguir trabalhar, nem dormir, nem nada, ele decide amputar a perna com o "auxílio" de um trem. Para narrar a história, o autor pega carona numa entrevista na qual Millôr conta o acontecido a um repórter – pois, é claro, um caso grotesco e sanguinolento como esse tem muito valor para a imprensa, e nesse caso nem dá para criticar muito, pois, afinal, estamos aqui lendo o conto, não estamos?… O entrelaçamento de histórias continua, pois a ex-namorada de Millôr, que o largou quando ele começou a ter o problema com a perna, era uma certa Kelly Milena, nome que o leitor, nessa altura do livro, já "ouviu" antes.

O Último Centavo da Sra. Shin conta-nos sobre uma senhora idosa, descendente de japoneses, que, apesar de ter nascido e, pelo que entendemos, sempre ter vivido no Brasil, nunca realmente se adaptou ao país; o jeito espalhafatoso dos brasileiros, a falta de disciplina e de respeito para com os mais velhos, e em especial o famoso "jeitinho" a deixam exasperada. Não dá para deixar de refletir que o Japão do qual ela sente saudade (o que é paradoxal, pois como alguém pode ter saudade do que não conheceu?) é provavelmente um Japão que já não existe há muito tempo. Para encontrar um pouco de paz, ela costuma ir ao templo budista que existe em sua cidade (não é explicitado de qual cidade se trata), onde tem conversas com a estátua de Shinigami, o deus da morte. No conto, "Shinigami" é usado como um nome individual, como sendo o nome desse deus específico, mas, se formos pesquisar nos contextos do budismo e xintoísmo, veremos que "shinigami" designa toda uma classe de deuses (talvez "espíritos" seja mais adequado) que teriam por função determinar o momento da morte dos seres humanos – é mais ou menos o que quem viu Death Note já conhece. De qualquer forma, hoje em dia a maioria dos japoneses considera tais entidades como figuras puramente simbólicas, o que não é bem o caso nesta história… Pode parecer mórbido, ou ao menos esquisito, alguém orar para um deus da morte, mas a cultura japonesa tradicional lida, ou lidava, com a morte de uma maneira mais filosófica que a nossa, vendo-a como uma coisa natural e inevitável, uma passagem que todos nós faremos mais cedo ou mais tarde e que, portanto, é melhor aceitar com tranquilidade desde já. Tínhamos algo parecido no ocidente: os romanos (seguindo a tradição de outros povos pagãos antes deles) e depois os cristãos dos primeiros séculos, encaravam a morte com serenidade, mas essa atitude se perdeu com a secularização e o avanço do materialismo, até chegarmos à sociedade atual, na qual o simples ato de mencionar a morte é considerado de mau gosto. Em tempo: O Último Centavo da Sra. Shin está evidentemente ambientado alguns anos depois da maior parte dos outros contos do livro – em 1994 ou depois, já que a moeda mencionada é o real.

Assim como Torniquete, Lugar Algum também tem um feeling stephenkinguiano, mas neste não dá para apontar uma história específica do mestre do Maine como possível inspiração, já que a situação da qual ele parte aparece em várias: alguns homens (somente homens) estão num bar, tomando umas e outras e conversando sobre assuntos aleatórios, quando chega um cliente esquisito, e a partir daí a aura de normalidade começa a se deformar. Em Lugar Algum, a participação desse cliente vai além de contar histórias estranhas, embora ele comece fazendo justamente isso: parece trazer consigo alguma coisa sombria e malévola, que costuma se manifestar, diz ele, às três da madrugada – a "hora morta", a hora inversa à da morte de Cristo na cruz, que foi às três da tarde, e que por isso os demônios, por zombaria, teriam escolhido como "sua" hora. A atmosfera de tensão vai aumentando à medida que o desconhecido, de nome Estêvão, vai contando sua história e os ponteiros do relógio vão caminhando implacavelmente rumo às três… Concordo que algumas interrupções bobas por parte dos ouvintes são um recurso eficiente para dar um ar de "verdade" à narrativa, mas, no lugar do autor, teria sido mais parcimonioso ao usar esse truque, pois o excesso de interrupções deixa o leitor impaciente. Tirando esse pequeno problema, é um excelente conto.

Talheres de Ossos do Rei Invertebrado tem o título mais enigmático e curioso dentre todos os contos em VHS. Na primeira vez em que o li (em que li o título, quero dizer), ele me evocou vislumbres da obra de Robert W. Chambers, não sei ao certo se só por causa do "rei" aparecendo num livro de terror ou por mais alguma coisa. Em todo caso, não tem nada a ver: não há aqui nada de sobrenatural. A história é narrada por Julian, filho de um homem que foi durante anos um dos mais temidos chefões do tráfico do estado de São Paulo e provavelmente de todo o país, e que era apelidado de "Rei Invertebrado" por causa de sua capacidade de escapar de qualquer lugar, como se "não tivesse ossos". É uma alcunha interessante, levemente macabra, mas que nunca "pegaria" na vida real: bandidos e traficantes notórios precisam de apelidos que caiam facilmente na boca do povo. Uma palavra comprida e de sentido (para a maioria das pessoas) obscuro como essa não teria chance de se tornar corrente. E, vejam só, o Rei, ao mesmo tempo em que era um criminoso da pior espécie, era também um bom pai – sempre foi presente na vida do filho, além de justo e afetuoso com ele, e inclusive diz com todas as letras ao adolescente Julian que ficará furioso caso venha a saber que ele anda metido com drogas. Quando Julian está contando a história, ele já é adulto e seu pai está morto há muito tempo (seu fim, como o da maioria das pessoas de seu ramo, não foi agradável); a narrativa é feita de reminiscências e gira em torno do dia em que, quando ele tinha 14 anos, o Rei Invertebrado o levou a certo lugar para que ele "entendesse o negócio da família" e "se tornasse homem".

Whey Protein é surpreendente! Também não tem nada de sobrenatural e, no começo, dá a impressão de que será apenas um vulgar "conto de polícia" (não é conto policial, é "conto de polícia" mesmo, coisa massivamente praticada por escritores brasileiros e para a qual eu, pessoalmente, tenho pouca paciência). A premissa é simples: um detetive de polícia, denominado apenas de "Prestes", está tomando o depoimento de um homem de nome Cassiano, cuja esposa desapareceu. Como era do conhecimento de muitos que o casamento já não ia bem há anos, e, além disso, Cassiano não deu parte do sumiço da mulher, pairam suspeitas sobre ele. Até aí, é tudo comum; o que torna o conto surpreendente é a habilidade com que o autor trabalha os perfis psicológicos dos dois personagens, criando um paralelo e até uma empatia entre eles. Conforme Cassiano conta sobre o inferno em que o mau gênio da mulher havia transformado sua vida, e confessa repetidamente que, apesar de tudo, ele ainda a amava, Prestes acredita cada vez menos que ele a tenha assassinado e começa a gostar do rapaz – sendo que, para isso, contribui o fato de o detetive ter passado por coisas parecidas em seu próprio casamento, como é revelado por meio de pensamentos que ele não partilha com o suspeito, mas aos quais nós, leitores, temos acesso. Na última página há uma reviravolta, que ainda mantém a possibilidade da dúvida quanto à culpa ou inocência do cara, mas abala todas as quase-certezas que Prestes tinha e nós também.

Os dois últimos contos, Zona de Abate: Matadouro 7 e HSBF6-X, estão nitidamente interligados e tratam de uma combinação pavorosa de horror sobrenatural com corrupção e ganância empresarial que passa por cima de qualquer lei ou preocupação com a preservação ambiental ou a vida humana. O primeiro se alonga na descrição dos "horrores" de um matadouro, como se tentasse motivar o leitor a tornar-se vegetariano, e acompanha um detetive particular (ex-policial) que está investigando o desaparecimento de um homem que foi visto pela última vez nesse local. O conto termina de repente – mais que isso, dá a impressão de estar inacabado, mas na verdade já lemos seu final, lá no início do livro, na descrição do conteúdo de uma das fitas recebidas pela FireStar. O outro leva o nome de um produto corrosivo que é usado para sumir com os restos das carcaças dos animais abatidos, e deixa no ar a dúvida sobre quem estará por trás dos acontecimentos macabros que têm lugar no matadouro: um empresário inescrupuloso? Um demônio? Ambos?

Com os altos e baixos que são normais em livros de contos, VHS é uma adição de peso à lista das obras de terror de autores brasileiros disponíveis nas nossas livrarias, e não se pode negar que a apresentação visual diferenciada conta pontos quando se trata de atrair o interesse de leitores em potencial; o autor e a DarkSide Books (selo que, por sinal, é sempre garantia de edições caprichadas) estão de parabéns. Há algumas falhas, a bem dizer inevitáveis num projeto tão intrincado e cheio de detalhes, que poderão ser facilmente consertadas nas próximas edições. Lembro agora, por exemplo, que, no conto FireStar Videolocadora, uma personagem cujo nome era Alessandra é de repente chamada de Cris. Sei exatamente o que aconteceu: com o texto já pronto (provavelmente já revisado, inclusive) o autor, de última hora, decidiu trocar o nome da personagem, e o fez utilizando o recurso "localizar e substituir" no Word – só que, numa de suas ocorrências, o nome tinha sido digitado diferente das outras, e por isso escapou da busca. A mesma coisa acontece em Branco Como Algodão, na qual o  menino assassinado se chama Jonas Cravinho na primeira vez em que é mencionado, e depois passa a ser Jonas Duna. No mesmo conto, a escola onde o fato ocorre chama-se Aureliano Gomes, já numa página de classificados que aparece depois, é Aureliano Chaves.

Como de costume ao escrever sobre livros de contos, não estou mencionando todas as histórias, apenas aquelas de que mais gostei, as que apresentam alguma curiosidade, ou as de particular relevância para a compreensão do universo do autor. Segundo comentários que rolam na internet, VHS não é a primeira incursão de Cesar Bravo nesse universo: um livro anterior, Ultra Carnem, também publicado pela DarkSide, já explorava os segredos sombrios de Três Rios e região. E tenho a sensação de que ainda ouviremos falar muito sobre esses lugares e sobre o que acontece neles.