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segunda-feira, outubro 31, 2016

Águias em Guerra

No início do primeiro século da Era Cristã, o então recém-instituído Império Romano parecia estar levando adiante com sucesso a conquista da Germânia, que, ao que tudo indicava, seguiria o mesmo caminho de muitas outras nações da Europa, Oriente Médio e norte da África: o de tornar-se mais uma província romana. Nas batalhas de Arbalo e do rio Lúpia, ambas em 11 a. C., o general romano Nero Cláudio Druso, enteado do imperador Augusto, havia obtido vitórias importantes sobre diversas tribos germânicas, as quais, desde então, polarizavam-se entre as que aceitavam o domínio de Roma e as que não o aceitavam – o que também era uma parte normal do processo de conquista. De todo modo, e muito graças a essas vitórias, a região do vale do Reno passou os vinte anos seguintes em relativa tranquilidade, experimentando um intenso desenvolvimento. Novas fortificações militares iam sendo construídas, e, em volta delas, surgiam vilas planejadas, mais limpas e seguras que os aldeamentos nativos. Boas estradas e pontes sólidas facilitavam a circulação de pessoas e mercadorias. Pela primeira vez, aquelas plagas até então selvagens ganhavam ares de civilização, e muitos dos nativos se adaptavam à nova realidade, passando a ganhar seu sustento graças às oportunidades que a presença dos romanos havia trazido, nos ramos do comércio e da indústria. Artesanias de diversos tipos, tabernas e pequenos comércios prosperavam como nunca, já que agora tinham como fregueses os soldados e os funcionários do Império Romano, que tinham salários regulares (!), o que, salvo algum imprevisto, significava dinheiro para gastar todos os meses – algo que, para os germânicos pobres, parecia coisa de outro mundo. Com isso, o padrão de vida médio da população da região sofreu uma melhora significativa, de modo que, apesar dos impostos que agora precisavam pagar a Roma, muitos não estavam descontentes. Em suma, no ano 9 d. C., a fase inicial e violenta da conquista parecia ter sido superada; daí em diante, ela se consolidaria na base da integração e da aculturação. Era o que parecia.

(A propósito: Druso, depois de sua morte, ganhou do senado de Roma o título de "Germânico", em homenagem a suas vitórias na Germânia. O título foi incorporado a seu nome, que passou a ser Nero Cláudio Druso Germânico, e foi herdado por seus filhos. O mais velho deles levou o mesmo nome que o pai e foi praticamente uma segunda edição dele, pois também se tornou um general de renome e praticou façanhas notáveis na Germânia; o mais jovem, Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, foi imperador de 41 a 54, com o nome de Cláudio.)

Da integração de que falávamos há pouco fazia parte, entre outras coisas, o costume de aceitar o alistamento de nativos no exército; eles serviriam nas auxiliae (tropas auxiliares) como cavalarianos, arqueiros, ou como infantaria leve, dotando a máquina de guerra romana com alcance e mobilidade, coisas que não eram o forte das legiões. Depois de arremessar os dois ou três dardos (pila, plural de pilum) que levavam, os legionários tinham que passar ao combate corpo a corpo; tampouco podiam mover-se muito depressa com suas pesadas armaduras e escudos. Por isso as auxiliae eram necessárias, embora, verdade seja dita, geralmente não gozassem de muito prestígio: os legionários regulares tendiam a olhar os soldados auxiliares com certo desprezo, já que, afinal, eram "bárbaros", que só ganhariam a cidadania romana – e, por consequência, o direito de ficar em pé de igualdade com eles – ao final de seu tempo de serviço, se vivessem até lá, é claro. Porém, também era tendência que esse preconceito fosse abrandando ao longo do tempo, pois, como a cidadania era extensiva aos descendentes, os filhos de soldados auxiliares podiam ser legionários, e essas novas gerações (ao menos, era o que se esperava) veriam os auxiliares com outros olhos.


Esse status mais baixo de que padeciam os soldados das auxiliae tinha exceções. Uma delas foi Ermin, ou Irmin (nome que os romanos latinizavam para Armínio, e que evoluiu para Hermann no alemão moderno), filho de Segímero, um dos líderes da tribo germânica dos Cherusci ('queruscos'). Ainda durante a fase inicial da tentativa de conquista da Germânia, o general e mais tarde imperador Tibério (irmão de Nero Cláudio Druso) tentara convencer Segímero a se aliar ao Império, e, para demonstrar benevolência, tomou Armínio, ainda menino, sob sua proteção, e o enviou para ser educado em Roma. Armínio retornou à Germânia por volta do ano 2, com cerca de 18 anos de idade, tendo ganho a cidadania romana (um caso excepcional, devido a suas origens aristocráticas e ao papel-chave que esperava-se que tivesse na política Roma/Germânia durante os próximos anos) e a patente de tribuno militar. Sua missão consistiria em liderar a cavalaria formada por seus compatriotas, apoiando as legiões em qualquer luta que fosse necessário travar contra as tribos que ainda não reconheciam a soberania de Roma. Públio Quintílio Varo, que ocupou o cargo de governador da Germânia no ano 6, repetidamente demonstrou estima pessoal pelo jovem oficial, e gostava de citá-lo como exemplo de bárbaro que se adaptara com sucesso ao modo de vida romano. Mal sabia Varo que Armínio, no íntimo, nunca havia sido sincero em sua aliança com Roma: em segredo, ele imaginava maneiras de unificar as tribos germânicas divididas por rivalidades para, aproveitando-se da confiança que os romanos agora depositavam nele, orquestrar uma insurreição que os expulsasse para sempre das terras ancestrais de seu povo.

(Tudo até aqui é histórico; de agora em diante, passo a comentar o romance Águias em Guerra, no qual o escritor queniano Ben Kane recria a história da batalha da Floresta de Teutoburgo, cujo desfecho frustrou em definitivo os planos romanos de conquista para a maior parte do território germânico.)

A narrativa do livro acompanha dois homens: um germano, Armínio, e um romano, o veterano centurião primus pilus Lúcio Comênio Tulo. Lembrando: o primus pilus (latim para 'primeira lança', às vezes traduzido como primeiro-centurião) era o comandante da primeira centúria de uma coorte, e tinha, na prática, uma patente mais alta que a dos outros centuriões, sendo responsável pela coorte toda (seis centúrias formavam uma coorte, e dez coortes formavam uma legião). Tulo é um homem enrijecido por muitas batalhas nas diferentes províncias onde já serviu, e está numa altura da vida em que a ideia de reformar-se vai assumindo contornos mais concretos. Com 40 e poucos anos, passou os últimos 25 no exército – ou seja, já poderia estar reformado, mas optou por prorrogar seu tempo de serviço, provavelmente por não conseguir imaginar-se vivendo como civil. Agora, no entanto, até seu vigor físico já não é o mesmo de outros tempos, e ele considera que pode ser uma boa ideia ir descansar, deixando as lides militares para oficiais mais jovens e ambiciosos.

O que Tulo não esperava era ser agraciado com a missão de servir de ama-seca para um desses jovens oficiais. O tribuno Lúcio Túbero acaba de chegar de Roma, tem 17 anos e está empolgado com seu primeiro comando militar. Ansioso por mostrar seu valor em combate, ele não recebe bem a notícia de que sua primeira missão será uma patrulha de rotina pela margem leste do Reno, na qual as probabilidades de ocorrer alguma luta são quase nulas: as tribos da região são aliadas de Roma, e aquelas que permanecem hostis estão, em princípio, bem distantes. Essas patrulhas, além de servirem para exercitar os soldados em longas marchas, tinham uma função eminentemente ostensiva: a visão de tropas romanas em movimento era considerada salutar mesmo para as tribos nativas já pacificadas, pois as inspirava a pagar seus impostos sem resmungar e desestimulava qualquer ideia infeliz que pudesse andar revolvendo nas cabeças dos menos satisfeitos. Nenhum incidente é esperado durante os vários dias que esse deslocamento deverá durar, mas há um fio de esperança para Túbero: nos últimos tempos, germanos Tencteri, cuja tribo ainda não aceita o domínio romano, têm feito incursões à região do rio para roubar gado de outras tribos, e há alguma chance de que a patrulha tope com um desses bandos de ladrões. Naturalmente que, embora Túbero tenha a patente mais alta, Tulo é quem de fato comanda a operação – mas o centurião percebe logo que deve ser sutil e diplomático: Túbero é afoito e arrogante. O consolo de Tulo reside no fato de que muitos tribunos que começaram desse jeito amadureceram e acabaram por tornar-se bons oficiais… O que não muda a antipatia instantânea que ele logo sente pelo moleque.

Só para esclarecer aos que não estiverem familiarizados com a hierarquia do exército romano, os tribunos militares eram os oficiais diretamente subordinados a um legado, que era o comandante de uma legião (um general podia comandar diversas legiões). Cada tribuno tinha sob suas ordens vários centuriões e, teoricamente, cerca de mil legionários, embora, na prática, fossem quase sempre menos, pois era raro que uma centúria tivesse exatamente cem homens. A questão delicada aí é que o posto de tribuno era muitas vezes ocupado por jovens oriundos das famílias patrícias (isto é, aquelas de berço nobre e normalmente ricas), formados numa academia, mas sem qualquer experiência militar real, que estavam dando seus primeiros passos no cursus honorum (detalhes aqui). Enfim, Túbero é um exemplar típico. Colocar um rapazola inexperiente numa posição de comando era uma concessão política, mas ninguém era louco de não tomar precauções para evitar que isso acabasse em desastre: os tribunos sempre tinham junto de si centuriões experientes para auxiliá-los e aconselhá-los, e, na maioria das vezes, eram espertos o suficiente para ouvir o que eles diziam. Havia um mecanismo que visava garantir isso: ao mesmo tempo em que estavam sob as ordens do tribuno, os centuriões tinham o poder de avaliá-lo. Se os relatórios que eles encaminhassem ao legado ou ao general em comando fossem continuamente desfavoráveis, o tribuno podia perder seu posto – o que seria um grande problema para sua carreira futura. Esse sistema, de modo geral, era eficiente, embora, é claro, não fosse à prova de influências e "amizades". E, como também é claro, era impossível evitar que alguns desastres efetivamente acontecessem.

Um deles tem lugar durante a patrulha pela margem leste: Túbero, acompanhado de alguns outros oficiais montados, decide explorar o caminho à frente das tropas e acaba topando com alguns guerreiros germanos que vêm conduzindo uma boiada. Assumindo logo que se trate dos ladrões Tencteri e sem falar a língua dos germanos, que tampouco falam latim, o tribuno arma uma confusão que resulta na morte de vários homens – que não são Tencteri coisa nenhuma, e sim da tribo local dos Usipeti, há muito aliados a Roma. A única maneira de evitar que a justa indignação do restante da tribo degenere numa revolta seria que o governador Varo fizesse um pedido formal de desculpas e aplicasse a Túbero uma punição exemplar… Mas o governador não se atreve a tanto, já que o rapaz é filho de um homem importante de Roma, amigo do próprio imperador. Armínio, que já antes disso vinha fazendo contatos com o objetivo de articular uma rebelião, habilmente tira proveito do ressentimento gerado pelo incidente para estimular um ânimo de rebeldia inclusive entre as tribos que até aí estavam do lado dos romanos. Tudo de forma discreta, até que chegue o momento certo para "virar a mesa". Desnecessário dizer que convencer as tribos germânicas de que tinham um inimigo comum – no caso, Roma – era o único meio factível de conseguir que cooperassem entre si, pois, sob condições normais, as relações de umas com as outras variavam da desconfiança à inimizade mortal.

Águias em Guerra é uma leitura empolgante! A recriação histórica parece perfeita aos olhos de alguém com um conhecimento bastante razoável sobre a época (modéstia à parte, esse sou eu – risos); Kane tomou umas poucas liberdades, as quais ele esclarece na nota ao final do livro. Além disso, há uma atmosfera de tensão ininterrupta, pois o autor consegue fazer o leitor sentir a enormidade do que está se preparando para acontecer. Armínio, ardiloso, esforça-se por parecer o oficial perfeito aos olhos do governador Varo: eficiente, solícito… Um pouco eficiente e solícito demais para o gosto de Tulo, que, apesar de manter relações cordiais com o germano, conserva, durante todo o tempo, uma certa reserva a respeito dele. Por mais de uma vez o centurião tenta expor sua desconfiança ao governador, mas este sempre o repreende duramente por "ousar" pôr em dúvida a lealdade de Armínio, a quem ele considera não só um fidelíssimo aliado de Roma, como seu amigo pessoal – uma opinião que Armínio trata de reforçar, repetidamente visitando o governador para longas conversas regadas a vinho e convidando-o para caçadas. Varo, apesar de também já haver exercido comandos militares, é essencialmente um político; Tulo, por outro lado, é um soldado até o último fio de cabelo, e a intuição que tantas vezes salvou sua vida (e as de seus homens) no campo de batalha, parece alertá-lo a manter um pé atrás em relação a Armínio. Enfim, se Tulo, e não Varo, fosse o governador da Germânia naqueles dias, é possível que os alemães de hoje falassem uma língua neolatina… Certo, Tulo é um personagem fictício, mas é provável que houvesse diversos homens parecidos com ele à volta do Varo histórico, e, se tivessem conseguido que ele os ouvisse, a História poderia ter tomado outro rumo. O pior é que vários indícios do que ia acontecer chegaram ao conhecimento de Varo, que os ignorou porque confiava cegamente em Armínio. E, se pensarmos bem, não havia como não vazarem informações: para conseguir a adesão de uma tribo a sua causa, Armínio precisava expor seu plano, que então era discutido entre os chefes e todos os guerreiros – e todos sabemos que um segredo que é confiado a muita gente nunca permanece secreto por muito tempo. O desastre poderia ter sido evitado se o governador tivesse sido mais esperto, o que tornou o caso todo ainda mais difícil de descer pela goela dos romanos.

Voltando ao livro, o momento que Armínio esperou durante tantos anos finalmente chega no outono do ano 9, quando a Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, lideradas por Varo em pessoa, estão retornando de seu acampamento próximo à vila de Porta Westfalica para suas bases permanentes na cidade de Vetera (a atual Xanten), onde deverão passar o inverno – e onde o relativo sedentarismo imposto pelas condições do tempo durante a estação fria será um descanso mais do que bem-vindo para os soldados, depois de uma primavera e verão de marchas exaustivas e algumas lutas. Acontece que, durante a marcha, Armínio procura Varo com a notícia (falsa) de uma sublevação entre os Angrivari, uma tribo cujo território fica relativamente próximo dali. Garantindo ao governador que ele e seus cavaleiros conhecem bem os caminhos da região e sabem exatamente por onde o exército deve marchar para chegar ao local o mais depressa possível, Armínio consegue que as legiões se metam numa trilha estreita e tortuosa, por dentro da floresta de Teutoburgo, na atual Baixa Saxônia, Alemanha. Na floresta, as três legiões, totalizando cerca de 14 mil homens, seriam emboscadas por uma confederação de tribos germânicas com cerca de 20 mil. Em circunstâncias normais, esse grau de inferioridade numérica nem chegaria a preocupar as legiões romanas, acostumadas a enfrentar – e derrotar – inimigos duas, três vezes mais numerosos que elas, mas desorganizados e pouco disciplinados. O problema foi o local onde o ataque ocorreu: para poderem transitar por aquela trilha estreita, as legiões tinham sido obrigadas a se afunilar até estarem marchando quase em fila indiana; isso, mais a densa mata que as rodeava, tornou impossível aos soldados entrarem em formação com a rapidez necessária ao serem atacados de surpresa por inimigos que, ao contrário deles, estavam acostumados com a floresta e com o terreno acidentado e lamacento. Os germânicos emergiam das sombras da floresta, faziam ataques-relâmpago e tornavam a desaparecer, para, pouco mais tarde, repetirem a manobra, e assim sucessivamente, causando baixas e minando o moral dos soldados. Ou seja, tudo correu conforme os planos de Armínio, que desde o início pretendia colocar as legiões no terreno mais desfavorável possível para elas, onde seus homens pudessem atacar sem precisar enfrentar os romanos em combate direto, pois ele sabia que, se o fizessem, eles perderiam. De cada legião não restou mais que um punhado de sobreviventes, e, ainda pior que isso, suas águias caíram nas mãos dos bárbaros. O episódio entraria para a história romana com o nome de Clades Variana (o 'Desastre de Varo'). Conta-se que, ao saber do acontecido, o imperador Augusto, então já um homem idoso, chorou, e que durante meses teve pesadelos, dos quais acordava gritando: "Vare, legiones redde!" ('Varo, devolva minhas legiões!')

Um dos muitos méritos de Águias em Guerra é que o autor não cai no simplismo tolo de eleger um lado como o "bem" e o outro como o "mal": alguns romanos podem ser arrogantes e prepotentes, mas também há os que são justos; os germânicos anseiam por recuperar sua liberdade (mesmo que seja para voltarem a viver como selvagens, lutando idiotamente uns contra os outros sem qualquer motivo real), e ninguém pode culpá-los por isso, mas também cometem atos bárbaros e brutais. Como eu disse, a indignação dos Usipeti ante os assassinatos perpetrados por Túbero é mais do que justa – mas não se pode dizer o mesmo da retaliação que praticam, saqueando várias vilas (habitadas por germanos como eles), assassinando e estuprando, até serem detidos, e por quem? Pelos romanos… Enfim, nesta história as coisas são bem mais complicadas que um mero confronto entre o bem e o mal: são mais parecidas com a realidade. Seguindo o mesmo espírito, as descrições das batalhas pouco têm de glorioso: são assustadoras e, não raro, repugnantes, como uma batalha de verdade. Também é uma realização notável do autor o fato de conseguir que o leitor experimente uma sensação de suspense enquanto acompanha os eventos, apesar de já saber qual será o resultado; isso é alcançado principalmente porque, a partir de certo momento, o fato de que a causa romana na Germânia está perdida é aceito por todos, e, daí em diante, o núcleo da história não é mais esse. Em face dessa realidade, cada personagem tem a reação que lhe cai melhor: Armínio e seus germanos comemoram, Varo suicida-se, Tulo se esforça de forma heroica para tirar dali com vida o maior número possível de seus homens – e a atitude deste último assegura-nos uma linha de ação eletrizante para seguirmos com a respiração suspensa até o final do livro.

Kane menciona que a ala ('asa', nome dado a uma unidade de cavalaria) que Armínio comanda é vinculada à Décima Sétima Legião, enquanto a coorte sob as ordens de Tulo pertence à Décima Oitava, mas tem o cuidado de só designar essas legiões pelos números, nada dizendo sobre seus nomes ou seus emblemas, e por uma razão muito boa: essas informações são desconhecidas. As duas, junto com a Décima Nona, tiveram um fim que foi considerado ignominioso, e, por isso, os cronistas da época e os das gerações seguintes parecem ter achado que quanto menos falassem sobre elas, melhor. Houve, mais tarde, uma série de expedições punitivas sob o comando do já citado Germânico, filho de Druso e sobrinho de Tibério, e as águias foram recuperadas, restaurando, ao menos em parte, o orgulho ultrajado de Roma, mas, mesmo assim, os números 17, 18 e 19 nunca voltaram a ser atribuídos a nenhuma outra legião. Também não houve reconquista definitiva dos territórios perdidos como resultado do Desastre de Varo; com isso, o Reno permaneceu como fronteira, e a Germânia romana limitou-se, daí em diante, a um pequeno território a oeste desse rio, incluindo partes das atuais Holanda e Bélgica, além da região alemã da Renânia, e tendo como principais cidades Maguntiacum (pronuncie Maguncíacum), hoje Mainz, e Augusta Treverorum, hoje Trier, onde ainda pode ser vista a imponente Porta Nigra ('Porta Negra'), edificação defensiva romana do século III.


Apesar da vitória obtida contra o exército mais poderoso do mundo, as ambições de Armínio de unir os germanos numa nação (da qual ele se faria rei) fracassaram por completo. As tribos só permaneceram lado a lado durante o tempo necessário para derrotar os romanos, retomando depois o seu costume ancestral de disputas territoriais, pilhagem mútua e guerras fratricidas; os primeiros progressos mais duradouros na direção de uma unificação da Germânia só seriam alcançados oito séculos depois, pelo franco Carlos Magno. Ainda assim, Armínio era um dos vultos históricos mais prezados pelos integrantes dos movimentos intelectuais e artísticos alemães que ganharam força a partir do fim do século XVIII, como o Sturm und Drang ('Tempestade e Ímpeto') e outros que o sucederam, todos marcados por um forte sentimento nacionalista, e que formariam o substrato cultural e filosófico para o surgimento do movimento Völkisch, que, por sua vez, teria como principal desdobramento a ascensão do nazismo. Entretanto, mesmo na Alemanha atual, Armínio possui status de herói, não obstante o fato de a vitória que o imortalizou ter sido alcançada por meio da mentira e da traição; talvez o pensamento por trás disso seja que invasores não merecem lealdade.

Ben Kane é uma amostra de quanta coisa interessante se publica mundo afora e não chega às estantes das livrarias brasileiras; felizmente, a editora portuguesa Top Seller decidiu investir nele, e o resultado foi esta edição de alta qualidade. Para os olhos cansados de um leitor acostumado a se horrorizar com os absurdos gramáticos que pipocam das páginas dos livros ambientados na Antiguidade publicados no Brasil, o maior mérito consiste em algo que, para os portugueses, é normal: como eles comumente já usam o pronome tu no dia a dia, também sabem como conjugar os verbos nessa pessoa, uma "arte" que, aqui no Brasil, perdeu-se completamente; sendo assim, não têm necessidade de ficar tentando recriar nenhuma "linguagem de época", o que as edições brasileiras fazem, quase sempre, de forma tão tosca e artificial. Há sutilezas que só quem já leu muitos livros em português europeu (ou estudou essa variante da língua) percebe: o você também é empregado, mas, em Portugal, esse é um tratamento um pouco mais formal, usado com indivíduos com quem não se tem maior proximidade; nós, brasileiros, nunca nos damos conta disso, mas você é uma contração de vossa mercê, que era um tratamento bastante cerimonioso. Entre os dois, existiu a forma de transição vosmecê. E, é claro, há uma série de palavras e expressões que, para nós, não são usuais (por exemplo, não se diz que alguém levou uma surra, e sim que "tomou uma tareia"), mas nada que uma rápida pesquisa na internet não resolva, e ampliar o vocabulário é sempre bom. Sem contar que quem, como eu, cresceu lendo livros de aventuras importados de Portugal, já sente carinho por esse linguajar pitoresco, que embalou tantos momentos empolgantes de nossas vidas de leitores. O texto do livro está quase perfeito; curiosamente, por alguma razão que não imagino, "romanos" ora é escrito com letra maiúscula, ora minúscula, mas, fora isso, não encontrei mais que três ou quatro pequenos erros de digitação. Um detalhe na sinopse da contracapa entrega que, pelo visto, em Portugal, assim como aqui, esses textos "periféricos" costumam ser preparados por pessoas diferentes das responsáveis pelo livro propriamente dito, e que, muitas vezes, não entendem muito do assunto: a sinopse fala em "ano 9 a. C.", em vez de 9 d. C., como se lê no miolo do livro e é o correto. Mesmo com a diferença brutal de nível cultural médio que existe entre brasileiros e portugueses, parece que lá, como aqui, também há essa tendência ingênua de pensar que, se o assunto é a Antiguidade, então todas as datas precisam ser obrigatoriamente a. C. Mas não é uma falha banal como essa que vai pôr a perder a excelência do livro, em todos os sentidos.

Por fim, para quem, como eu, gosta de metal, deixo duas dicas de "trilhas sonoras" perfeitas para dar ainda mais sabor à leitura de Águias em Guerra. Ambas são da banda canadense Ex Deo, e uma, chamada Teutoburg (Ambush of Varus), como o título já entrega, é diretamente inspirada no episódio. Essa é do segundo álbum dos caras, Caligvla, lançado em 2012. A outra é Legio XIII, do primeiro álbum, Romulus, de 2009; essa não tem relação direta com a batalha da Floresta de Teutoburgo, mas, pelo menos para mim, embala perfeitamente qualquer história cheia de ação protagonizada por legionários romanos, especialmente seu solo de guitarra, um dos mais empolgantes que já ouvi.

quinta-feira, setembro 25, 2014

Inverno do Mundo

Foi longa a espera pelo segundo volume da trilogia O Século, e, mesmo depois de o livro ser lançado, motivos diversos (leia-se: tempo escasso e livros que estavam na fila há muito tempo) fizeram com que eu demorasse a pegá-lo de fato, mas, uma vez que peguei, a leitura progrediu com uma velocidade que me surpreendeu, pois nunca fui um leitor rápido. A prosa de Ken Follett realmente transporta o leitor, e, se este for, além disso, um interessado em História, aí sim é que a "viagem" está garantida.

Diferente de Queda de Gigantes, no qual era difícil apontar um único personagem central, Inverno do Mun­do tem como protagonista Lloyd Williams, filho da ex-criada, depois jornalista, militante socialista e deputa­da Ethel Williams e (embora não saiba) do conde Edward Fitzherbert. Lloyd pensa que seu pai biológico morreu na Grande Guerra (que era como a Primeira Guerra Mundial era conhecida então), e, no que lhe con­cerne, o único pai que conhece, e a quem adora, é Bernie Leckwith, também um militante socialista, com quem Ethel se casou quando ele era pequeno. Lloyd vive no East End, a parte proletária de Londres, com a mãe, o pa­drasto e a meia-irmã, Millie. Porém, a história começa de fato em Berlim, onde Walter Von Ulrich e Maud Fitzherbert (agora Maud Von Ulrich) vi­vem com seus filhos pré-adolescentes, Erik e Carla. O ano é 1933, e o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Ar­beiterpartei)  o Partido Nacional-Socialista dos Traba­lhadores Alemães, popularmente conhecido como Par­tido Nazista – está ganhando poder e apoio popular num ritmo assusta­dor. Assustador, claro, para gente como Walter, Maud e seus amigos, que valorizam a paz e a demo­cracia e sabem até onde uma ideologia ex­tremista como a dos nazistas pode levar uma nação. Já para grande parte da população da Alemanha, os na­zistas são os heróis que devolveram ao país uma aparên­cia de ordem, elimi­nando o desemprego e pondo fim ao caos econômico que se seguiu à derrota na Grande Guerra. Adolf Hitler, re­cém-nomeado chanceler, e seus correligionários, agora têm em mira outra ambição: a aprovação da Lei Ple­nipotenciária, que dará ao Partido o poder de baixar novas leis e decretos sem precisar da aprovação do Rei­chstag, o Parlamento alemão. E estão em meio a uma furiosa campanha para isso quando Ethel chega a Ber­lim, acompanhada do filho Lloyd, de 18 anos, a convite de sua grande amiga Maud, para proferir uma sé­rie de palestras e colher dados para um livro que está escrevendo, e que espera que sirva para alertar a po­pulação dos outros países europeus contra a perigosa sedução do nazifascismo.

Essa primeira parte do livro pinta um quadro atordoante do que era a sociedade alemã naqueles dias, quando os membros do Partido Nazista podiam fazer o que quisessem, enquanto os não-membros eram praticamente párias. A SS – Schutzstaffel ('Tropa de Proteção', uma organização paramilitar ligada ao Partido) tinha os mes­mos poderes que a polícia regular, poderes esses dos quais muitos de seus integrantes abusavam cons­tantemente, prendendo, espancando e às vezes matando qualquer um de quem não gostassem. Quem ousas­se con­testá-los tornava-se um "inimigo do Estado", e sua vida, a partir daí, não valia mais nada.

Aos fatores políticos, sociais e econômicos, estava-se juntando na época uma série de noções "científicas" de­rivadas de uma interpretação distorcida da teoria de Darwin. Agremiações como a Sociedade Thule e outras menos famosas postulavam a superioridade da "raça ariana", à qual pertenciam os alemães "puros", e prega­vam que essa raça tinha tanto o direito quanto o dever de proteger-se da "contaminação" trazida pela misci­genação com outras – sendo que alguns grupos étnicos eram bem mais execrados que outros. O sentimento antissemita já existia entre os alemães (como, de resto, entre outros povos) há séculos, e sua origem não é fá­cil de rastrear; existem aí componentes históricos, religiosos e de outros tipos. Como a Sociedade Thule tinha estreitas ligações com o NSDAP – ou, melhor dizendo, o NSDAP foi mais ou menos apropriado pela Thule, passando a atuar como seu braço político –, não deve surpreender a ninguém que o Partido tenha-se aprovei­tado da antipatia que muitos alemães já nutriam contra os judeus e açulado a opinião pública contra eles, usando-os como bode expiatório para todo o sofrimento que a Alemanha tinha enfrentado desde a derrota em 1918. Hitler, brilhante orador que era, e apoiado por uma gigantesca máquina de propaganda, convenceu a opinião pública alemã de que a coalizão de nações que havia vencido a Grande Guerra era controlada por uma conspiração judaica que visava destruir a Alemanha. Além disso, conseguiu que os alemães partilhassem de seu sonho megalomaníaco de uma "Grande Alemanha", que, além do povo alemão propriamente dito, en­globaria as populações de língua e etnia germânicas espalhadas por vários países da Europa. Para isso, a Alemanha precisava do que os intelectuais nazistas chamavam de Lebensraum ('espaço vital'), o que, segundo a propaganda oficial, justificava a invasão de países vizinhos – outra ideia que Hitler e a mídia a seu serviço conseguiram que a maior parte da população alemã comprasse.


Com a ascensão dos nazistas ao poder, o significado de "democracia" virou uma simples lembrança na Ale­manha. Quem ainda não tem muito conhecimento da matéria pode ficar confuso com o fato de que uma ideo­logia de extrema direita como a do NSDAP pudesse se intitular Nacional-Socialismo; acontece que os nazis­tas atribuíam à palavra "socialismo" um significado totalmente diferente do que conhecemos. Para eles, esse termo queria dizer que a sociedade – Estado, nação, coletividade – devia ter prioridade absoluta, enquanto os direitos e interesses dos indivíduos ficavam em segundo plano, ou nem isso. Enfim, o "socialismo" de Hi­tler e seus companheiros era, no fim das contas, uma das formas daquilo que passaria à História com o nome de totalitarismo. E totalitarismo, como se sabe, pode ser de direita ou de esquerda, tanto faz – e nunca resultou em bem para as pessoas comuns.

É mais ou menos o que Lloyd Williams descobre ao alistar-se como voluntário para lutar na Guerra Civil Es­panhola (1936-1939), conflito que historiadores consideram um dentre vários "prelúdios" que antecederam a Segunda Guerra Mundial propriamente dita. Essa guerra estourou, basicamente, porque a Espanha, na época dando seus primeiros passos como país republicano, havia eleito um governo de esquerda, o que os fascistas do país não aceitaram. O conflito, então, envolvia as tropas leais ao governo socialista, de um lado, e rebeldes de direita do outro. Na prática, foi uma "guerra por procuração", pois, enquanto a Alemanha nazista de Hitler e a Itália fascista de Mussolini forneciam armas, suprimentos e treinamento aos rebeldes, a União Soviética fazia o mesmo pelas tropas do governo. Enquanto durou a guerra, muitos voluntários vindos de vários países se apresentaram – "lutar na Espanha" foi muito romantizado, era visto como o ato supremo de idealismo por muitos jovens, e outros nem tão jovens assim, que viviam o sonho do socialismo. Só para dar um exemplo, um desses voluntários foi o inglês Eric Arthur Blair, mais tarde imortalizado com o nome de George Orwell, que retratou a guerra em Homage to Catalonia (publicado no Brasil como Lutando na Espanha), um de seus livros mais aclamados.

Na Espanha, Lloyd não demora muito a perceber que a realidade da guerra é muito diferente daquilo que sua jovem cabeça idealista imaginava. Como se não bastasse o terror dos sangrentos combates, ele é defrontado com a irracionalidade da máquina bolchevique: os soviéticos, de cujo apoio ele e seus companheiros dependem, estão acorrentados a uma burocracia estatal que é um verdadeiro monstro. O ditador Josef Stalin é vis­to como uma espécie de deus, cegamente obedecido em qualquer circunstância, mesmo que todos estejam vendo que suas decisões são erros desastrosos. Pessoas sem preparo são colocadas em cargos importantes, unicamente por sua lealdade a Stalin e ao Partido Comunista. Todos são obrigados a prender-se a uma infinidade de regras inflexíveis, das quais não é permitido desviar-se um milí­metro sequer, não importa que isso custe vidas humanas. Ao menor sinal de qualquer comportamento não ortodoxo, a pessoa passa a estar na mira da NKVD, a temida polícia política russa, que, é claro, estende seus tentáculos a qualquer lugar onde os interesses da União Soviética estejam em jogo, como era o caso da Espa­nha naqueles dias. E estar na mira da NKVD significa, na melhor das hipóteses, ter toda a vida minuciosa­mente investigada e seus segredos mais íntimos irem parar numa pasta de arquivo; na pior, significa tortura e morte. Isso faz nosso herói com­preender que nenhum tipo de extremismo irá criar um mundo melhor, e o leva a concluir que o comunismo deve ser combatido com o mesmo afinco que o nazismo. Isso irá influenci­á-lo mais tarde, quando, a exemplo da mãe, torna-se deputado na Inglaterra, alinhado com os socialistas mode­rados.

Também é na Espanha que Lloyd conhece o tenente Vladimir "Volodya" Peshkov, um jovem oficial do Exérci­to Vermelho que, como ele, chama de pai alguém que não é seu pai biológico – mas, diferente de Lloyd, Vo­lodya não sabe disso: acredita ser mesmo filho de Grigori Peshkov, agora um importante general, que foi quem o criou. Na verdade, Volodya é o filho que Lev, irmão de Grigori, deixou na barriga da namorada ao sair às pressas da Rússia, no já distante ano de 1914, fugindo da polícia. Grigori casou-se com Katerina, a mãe de Volodya, e os dois têm uma filha, Anya. Lev, por sua vez, radicou-se nos Estados Unidos, onde casou-se com Olga Vyalov, filha de um gângster russo, e, graças a sua muita astúcia e poucos escrúpulos, ampliou e diversificou os negócios herdados do sogro; agora, é muito mais rico e muito mais temido do que o velho Josef Vyalov alguma vez foi. Com Olga, Lev teve uma filha, a linda Daisy, agora uma socialite cabeça-oca; com uma de suas amantes, teve um filho, Greg, um rapaz ambicioso, que admira o pai, de quem herdou a astúcia. Cir­culando em meio à alta sociedade da cidade de Buffalo, no estado de Nova York, Daisy e Greg convivem com muitos outros jovens de famílias influentes, entre eles os irmãos Woody e Chuck, filhos do agora senador Gus Dewar. Enquanto Woody sem­pre quis seguir os passos do pai na política, Chuck deseja entrar para a Mari­nha.

Só por esse parágrafo, já deve ter dado para sentir o impressionante entrelaçamento de vidas e destinos cria­do por Ken Follett. Caramba, chega a ser difícil dar uma breve ideia geral do enredo do livro, pois falar de um personagem me obriga a falar de outro, e assim vai! É verdade que Follett, por vezes, recorre a coincidências improváveis, estilo Jane Eyre, mas, ainda assim, não dá para não admirar a engenhosidade com que ele ar­quiteta toda essa trama, conseguindo fazer com que haja sempre um personagem no lugar certo e na hora certa para lhe permitir abordar um acontecimento histórico importante. O que achei discutível, em contra­partida, foi a op­ção do autor por aumentar o número de páginas dedicadas aos dilemas pessoais (geralmente amorosos) dos personagens, em relação ao volume anterior. Compreendo que, para que se tenha uma obra de ficção históri­ca, é preciso ter personagens vivendo o momento dos acontecimentos apresentados, e que, para que haja per­sonagens, tem que haver também um background e problemas particulares para cada um deles – só fiquei um pouco decepcionado ao ver que namoros, casamentos e desilusões acabaram ocupando tanto espaço, que vários eventos importantes ou significativos da guerra, ou ligados a ela, ficaram sem ao me­nos uma menção. Posso citar, entre outros exemplos, a Noite dos Cristais, em 09 de novembro de 1938, tal­vez o primeiro regis­tro de uso de violência em caráter oficial e em grande escala, pelo governo nazista, contra os judeus; a Guerra de Inverno, entre o final de 1939 e o início de 1940, entre União Soviética e Finlândia – é interessante lemb­rar que os soviéticos só puderam dar-se ao luxo de travar essa guerra porque ainda estava em vigor o pacto de não-agressão com a Alemanha; ou o heroico episódio do Levante de Varsóvia, em 1944, no qual civis polo­neses, armados com o que puderam encontrar, lutaram nas ruas contra o bem-treinado e bem-equipado exército alemão a fim de tentar libertar sua cidade da ocupação nazista. Follett silencia total­mente sobre tudo isso – e deve haver muito mais, pois não tenho a pretensão de conhecer tudo sobre a guerra.


Por outro lado, o autor merece aplausos por não perpetuar aquela visão simplista que pinta a Segunda Guerra Mundial como uma luta entre o "bem" e o "mal", e por desconstruir alguns mitos hollywoodianos sobre ela. Alguns poderão achar chocante saber que a Alemanha, no início, limitava seus ataques aéreos à Inglater­ra a alvos militares, e que, quando começou a lançar bombas sobre áreas residenciais, foi como re­presália, pois os ingleses fizeram isso primeiro nas cidades alemãs. E essa tática fazia parte de uma estraté­gia cruel: como um personagem do livro explica a outro, a Inglaterra fazia pouco progresso na guerra ao bombardear indústrias na Alemanha, pois os alemães simplesmente as reconstruíam. Surtia muito mais efeito bombarde­ar os bairros onde se concentravam as moradias da classe operária, já que os trabalhadores mortos não podi­am ser substituídos com a mesma rapidez que prédios ou máquinas. Aterrador.

Se formos falar em mitos hollywoodianos sobre a Segunda Guerra Mundial, não há como negar que o maior deles diz respeito à relevância geral da participação norte-americana no conflito. Quem assiste aos filmes que andam por aí fica com a impressão de que os ianques foram a força vital que possibilitou a vitória dos Alia­dos, e de que os outros foram meros coadjuvantes. Por estranho que pareça em face do que foi dito poucos parágrafos acima, a realidade é que, se hoje não vivemos num mundo moldado pela ideologia nazifascista, devemos isso aos comunistas: entre os Aliados, a União Soviética foi, de longe, o país que mais fez pela vitó­ria, e também o que mais sofreu com a guerra. Há sempre dois lados na moeda, porém: os soviéticos eram combatentes corajosos, mas, ao invadirem a Alemanha, semearam o terror entre a população local com estu­pros e saques – e o pior, eram estimulados a isso pela propaganda oficial soviética, que os incitava a se "vingar" pelo que os alemães tinham feito à Rússia, como se as pessoas comuns da Alemanha fossem culpa­das. Ken Follett mostra essa realidade também.

Tirando o excesso de romance, como dito acima, Inverno do Mundo é uma digna continuação para a trilogia O Século, iniciada de forma tão magistral com Queda de Gigantes. Fico imaginando como será o próximo e último volume, A Eternidade por Um Fio, que, segundo as informações, tratará da Guerra Fria – um desdob­ramento natural da corrida armamentista entre Estados Unidos e União Soviética, cujo início é mostrado em Inverno do Mundo. Talvez esse terceiro livro não seja tão emocionante quanto os dois primeiros, já que pro­vavelmente não envolve combates propriamente ditos, mas tem tudo para ser tenso e cheio de intriga. Vamos aguardar.

sexta-feira, julho 06, 2012

O Fortim

Estamos no ano de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial – que ainda não era chamada assim, é claro. Por enquanto, tratava-se de uma guerra europeia, na qual os Estados Unidos ainda não haviam tomado partido; o pacto de não agressão entre Alemanha e União Soviética estava por um fio, mas ainda vigorava, e os alemães venciam uma batalha atrás da outra, parecendo ter chances reais e concretas de ganhar a guerra num prazo relativamente curto. Nesse cenário, o alto comando do exército alemão decide prevenir uma pouco provável ofensiva russa, em caso de quebra do tratado (o que aconteceria ainda naquele ano, mas por iniciativa alemã), e envia um destacamento para o Passo Dinu, um desfiladeiro nos Alpes da Transilvânia, a fim de guardar o acesso aos campos petrolíferos do interior da Romênia. A tropa recebe ordem de ocupar um fortim do século XV, que domina todo o desfiladeiro e constitui uma posição defensiva ideal.

O comandante desse destacamento é o capitão Klaus Woermann, veterano da Primeira Guerra Mundial, um homem que sempre se orgulhou de fazer parte do Exército alemão, e que não vê com bons olhos a ditadura de Hitler nem a ideologia do Partido Nazista em si. Como muitos soldados de sua geração, Woermann desejou essa nova guerra, que imaginava como uma revanche contra os Aliados, que não se contentaram em derrotar a Alemanha na guerra anterior, mas também a submeteram a todo tipo de humilhação, obrigando-a a concordar com tratados de paz obviamente injustos e sobrecarregando-a com exigências de indenizações impossíveis, o que instaurou o caos na economia e na sociedade alemãs. Para sua decepção, porém, quando a Alemanha tornou a se erguer, não foi em busca de uma justa reparação de sua honra como nação, e sim impulsionada por um movimento político cuja cartilha estava baseada em ódio étnico e nos projetos pessoais megalômanos de um pequeno grupo. Para piorar, parece a Woermann que ele é o único em seu destacamento a compreender isso: os soldados e suboficiais sob seu comando são, em sua maioria, jovens no início da casa dos 20 anos, recém-egressos da Juventude Hitlerista (da qual todo adolescente alemão tinha obrigatoriamente que participar), onde suas mentes ainda em formação foram submetidas a uma cuidadosa lavagem cerebral a fim de que considerassem a visão nazista como a única visão possível. Woermann, portanto, representa todos aqueles soldados que desejavam lutar pelos direitos de sua nação, mas percebem agora, amargurados, que estão sendo usados como instrumentos de um regime insano.


Tudo isso se revolve na cabeça do capitão Woermann enquanto ele e seus homens ocupam o fortim, preparando-se para no mínimo alguns meses de serviço de vigilância contra um ataque que dificilmente virá. Entretanto, suas expectativas de que esse serviço vá ser tranquilo e até tedioso não podiam estar mais equivocadas.

O fortim, curiosamente, não está ligado a qualquer acontecimento histórico conhecido; geração após geração, uma família da aldeia vizinha dedica-se à sua manutenção, tendo seus salários pagos por um fundo anônimo num banco estrangeiro; graças a isso, a estrutura se manteve como nova durante os últimos cinco séculos. Muitos dos blocos de pedra que formam suas paredes internas estão ornados com cruzes metálicas em forma de T, feitas de bronze e níquel – "quase como ouro e prata". Ninguém sabe o porquê disso, mas um dos soldados de Woermann tem a mirabolante teoria de que o fortim teria sido construído por ordem de um papa para esconder um tesouro – um tesouro que ele acredita que ainda pode estar por ali. Numa canhestra tentativa de encontrar o suposto tesouro, o soldado Lutz acaba abrindo uma câmara oculta no subsolo da fortaleza. Logo depois, seus companheiros o encontram morto – decapitado. Por mais louca que pareça tal ideia, tudo indica que, ao abrir a tal câmara, Lutz libertou algo que estava cativo há séculos.

A partir daí, a cada noite um soldado vai sendo morto, cada corpo encontrado com a garganta estraçalhada, embora mais nenhum chegue a ter a cabeça arrancada. Depois de tentar de tudo para apanhar o assassino, sem sucesso, Woermann, sem alternativa, telegrafa ao Alto Comando solicitando permissão para mudar de local. Em vez disso, recebe a ajuda que menos desejaria no mundo: é enviado um destacamento da SS (Schutzstaffel, 'Tropa de Proteção' – a força paramilitar a serviço do Partido Nazista), composto pelos temíveis Einsatzkommandos de uniformes negros – temíveis não por serem combatentes notáveis, mas por sua especialização em massacrar civis desarmados. Esses homens representam tudo o que Woermann mais despreza na "nova Alemanha", e, para tornar sua miséria completa, quem vem no comando dos reforços é um antigo desafeto seu, o major Erich Kaempffer, que, como Woermann não ignora, tampouco gosta dele, além de temê-lo pelo que pode revelar sobre seu passado: Woermann foi a única testemunha de um ato de covardia de Kaempffer, décadas atrás, quando ambos eram recrutas adolescentes durante a Primeira Guerra.

O major Kaempffer tem certeza de que as mortes são causadas simplesmente pelas atividades de algum grupo de guerrilheiros nacionalistas romenos, e as providências que toma estão de acordo com tal convicção – todas consistindo de atos de brutalidade contra a população da aldeia, à guisa de represália. Como isso não faz pararem as mortes, Kaempffer lança mão de uma informação que obteve sob tortura do estalajadeiro local: o maior especialista vivo na história da região, e quem mais tempo passou estudando o misterioso fortim, é um professor da Universidade de Bucareste chamado Theodor Cuza. O oficial manda buscá-lo, e o professor, gravemente doente, vem acompanhado de sua filha, Magda, que lhe serve de secretária e enfermeira. O irônico nisso tudo é que o homem em quem o empedernido nazista Kaempffer se vê obrigado a depositar todas as suas esperanças é precisamente um... judeu! O que nem os alemães, nem o professor Cuza, nem o povo da aldeia imaginam, é que, no outro extremo do continente, nas praias de Portugal, um misterioso homem de cabelos vermelhos sentiu um inexplicável instinto dar o alerta quando a câmara secreta do fortim foi aberta, e agora dirige-se apressadamente ao Passo Dinu a fim de realizar uma missão de vida ou morte, que está fora do alcance das forças de qualquer pessoa que não ele...

O Fortim é um achado surpreendente, um livro extraordinário de um autor que, se produzisse em maior quantidade, poderia ter vindo a ser tão grande quanto um Stephen King! Infelizmente para nós, leitores, o norte-americano Francis Paul Wilson optou por manter a medicina como profissão e ter a literatura como atividade paralela. O Ciclo do Inimigo, iniciado com este romance, inclui cinco outros, sendo que o último, Nightworld, ainda aguarda tradução para o português. Wilson demonstra ser um mestre da narrativa tensa e do clima sombrio, e só não afirmo que o livro nos oferece isso do início ao fim, por causa das anticlimáticas partes românticas protagonizadas por Magda e pelo tal estranho ruivo – não sei se outros leitores terão sentido da mesma forma, mas essas partes me deixaram sempre impaciente, ansioso para que a narrativa voltasse logo ao horror no fortim. Mas não é esse pequeno percalço que torna o livro menos recomendável, ainda mais porque, para além de sua maestria no horror, Wilson ainda demonstra um sólido conhecimento histórico, que aparece na ambientação da narrativa durante a Segunda Guerra – até onde pude perceber, impecável.

Ah: não podia deixar de destacar que, nos agradecimentos do início do livro, Wilson reconhece sua dívida para com Robert E. Howard, H. P.  Lovecraft e Clark Ashton Smith. Tal é a admiração de Wilson por Lovecraft, que ele adere à tradição, já honrada por tantos mestres do horror, de homenagear o autor introduzindo o Necronomicon em sua história, embora só se refira a ele como Al-Azif, que, segundo Lovecraft, seria o título original em árabe. Uma homenagem que, realizada num romance de tal qualidade, sem dúvida deixaria Lovecraft satisfeito.

sexta-feira, janeiro 13, 2012

Queda de Gigantes

Vou confessar: eu tinha um certo preconceito com Ken Follett. Não sei por que, mas ele sempre me pareceu ser um outro Sidney Sheldon - que, por sua vez, embora não seja o melhor escritor do mundo, está longe de ser o pior: como já escrevi antes, é incomparavelmente melhor ler Sidney Sheldon do que não ler coisa nenhuma. Em todo caso, neste momento estou dando a mão à palmatória: como sempre acontece com os preconceitos, esse ruiu assim que travei verdadeiro conhecimento com a coisa sobre a qual pensava saber algo. Queda de Gigantes é um livraço, e não só por ter mais de 900 páginas. Aliás, se não fosse um livraço também no outro sentido, chegar ao fim de um livro dessa extensão seria praticamente impossível.

Este é o primeiro volume de uma trilogia intitulada O Século, que, conforme informações presentes nas orelhas do livro, prosseguirá com outro a respeito da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, e um terceiro sobre a Guerra Fria. Queda de Gigantes está ambientado durante a segunda década do século XX, e seu título, muito bem dado, refere-se ao colapso dos impérios coloniais europeus que haviam ditado as regras ao resto do planeta durante os dois séculos anteriores. Embora esses impérios já mantivessem seu equilíbrio com dificuldade há décadas, um evento específico precipitou o fim quase simultâneo de todos eles e redesenhou de forma radical o mapa geopolítico da Europa. Esse evento foi a Primeira Guerra Mundial, que serve de eixo à narrativa de Follett.

O livro não tem propriamente um protagonista, pois não há um personagem único que capitalize as ações mais importantes da narrativa. Ao invés disso, a história foca os acontecimentos da vida de cinco diferentes famílias: os Williams, galeses; os Peshkov, russos; os Fitzherbert, ingleses; os Von Ulrich, alemães; e os Dewar, norte-americanos. Enquanto as duas primeiras famílias são das classes trabalhadoras, as três últimas são privilegiadas: tanto os Fitzherbert quanto os Von Ulrich, além de ricos, fazem parte das aristocracias seculares de seus respectivos países; já os Dewar, embora sem origens ilustres, são igualmente abastados. Como romance histórico extremamente bem escrito, Queda de Gigantes leva a um alto grau de maestria aquilo que define esse gênero: uma história dentro da História, personagens ficcionais movendo-se sobre um pano de fundo real, reconstituído com base numa pesquisa extensa e minuciosa, que englobou desde táticas e armamentos de guerra até o que era servido tanto nas mesas humildes quanto nas mais luxuosas, e o que estava na moda em matéria de música e vestuário na época - além, é claro, da intrincada situação política que o mundo vivia.

A princípio, o leitor pode até achar cansativo o grande número de personagens cujas características, backgrounds e atos é preciso lembrar e concatenar a fim de compreender o desenvolvimento do romance, mas, aos poucos, o próprio entrelaçamento de todas essas vidas vai tornando essa tarefa mais fácil: um personagem está ligado a outro, que está ligado a outro, e assim sucessivamente, numa cadeia que abrange vários países. O galês Billy Williams, um jovem mineiro e mais tarde soldado, é o que de mais próximo do ideal heroico encontramos no livro: corajoso, gentil, dono de um caráter irrepreensível, Billy é filho de David Williams, líder sindical na pequena cidade mineradora de Aberowen, no país de Gales, e irmão de Ethel, uma jovem bonita, inteligente e ambiciosa que trabalha como criada na mansão dos Fitzherbert, donos das minas onde trabalha quase toda a população da cidade. O atual chefe da rica família é o jovem conde Edward Fitzherbert, chamado pelos amigos de "Fitz", um homem vaidoso e arrogante, como seria de se esperar de alguém de sua posição social; apesar de não ser desprovido de bons sentimentos, Fitz parece ter um caráter demasiado fraco para agir de acordo com sua consciência, quando isso significar desafiar convenções e talvez perder o apreço de seus pares. Em compensação, sua irmã, lady Maud, é uma feminista convicta, que, ao invés de gastar seus dias no absoluto ócio que era considerado a "atividade" normal para as mulheres da aristocracia inglesa de então, dedica-se com ardor à causa do voto feminino, que era uma das grandes lutas sociais e políticas em andamento na época. Maud acaba apaixonando-se pelo jovem diplomata Walter Von Ulrich, antigo colega de colégio de Fitz e filho de Otto Von Ulrich, também da carreira diplomática, amigo e conselheiro direto do Kaiser alemão Wilhelm (ou Guilherme) II. Ainda falando em Fitz, o conde é casado com Elizaveta, apelidada de "Bea", uma princesa russa, que, juntamente com seu irmão, o príncipe Andrei, tem um histórico de anos de abusos e arbitrariedades para com camponeses e operários em seu país natal. Entre esses, estão os irmãos Grigori e Lev Peshkov, atualmente trabalhando numa metalúrgica em São Petersburgo, que perderam o pai na infância, enforcado por ordem de Andrei, e a mãe na adolescência, morta pelos guardas do czar ao participar de uma manifestação da classe operária. Com cinco anos de diferença, e tão parecidos fisicamente que as pessoas chegam a confundi-los, os dois irmãos são personalidades opostas: Grigori é um sujeito tranquilo, sério e responsável, acostumado a fazer as vezes de pai e mãe para o irmão mais novo - que, por sua vez, é um boêmio e mulherengo incorrigível, chegado ao jogo e à vodka. Grigori sonha em emigrar para os Estados Unidos, que ele e muitos outros russos da época veem como uma espécie de terra prometida, pelo simples fato de que lá não existe czar nem nobreza, e de que os donos de terras ou de indústrias não podem mandar açoitar ou enforcar seus trabalhadores a seu bel-prazer (!). Só que, quando ele finalmente consegue juntar dinheiro suficiente para sua passagem de navio, devido a um imprevisto quem acaba viajando é Lev, deixando o pobre Grigori sem nada e, de quebra, responsável pela namorada grávida que o irmão deixou para trás.


E, como Grigori acaba descobrindo, se fosse só isso ele ainda não teria do que se queixar... É 1914 e o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-húngaro, é assassinado na cidade bósnia de Sarajevo, pelo estudante e nacionalista sérvio Gavrilo Princip. Em represália, os austríacos e seus aliados alemães invadem a Sérvia, que está sob a proteção da Rússia... Inicia-se uma reação em cadeia que mexe com antigos rancores e interesses políticos e econômicos de todas essas e de outras nações, como a França e a Grã-Bretanha, ambas aliadas à Rússia. A Europa entra em guerra, desta vez uma guerra de proporções jamais imaginadas antes, devido aos avanços tecnológicos e ao encurtamento das distâncias pelos novos meios de transporte e de comunicação. Das consequências dessa guerra, ninguém é poupado: Grigori Peshkov, Billy Williams, Walter Von Ulrich e o conde Fitzherbert, todos se veem às voltas com o perigo e o terror dos campos de batalha, sem ao menos a chance de escolherem ao lado de quem preferem estar: Billy serve sob as ordens de Fitz, a quem detesta por ter seduzido e engravidado sua irmã, levando ao rompimento dela com a família, enquanto Walter se vê diante da possibilidade muito concreta de precisar atirar no conde, seu amigo desde a adolescência e, ainda por cima, cunhado.

Enquanto o exército russo invade a região alemã da Prússia, do outro lado do continente os alemães enfrentam britânicos e franceses. A Primeira Guerra Mundial forçou uma transição brusca entre as formas de guerrear antigas e modernas: nas primeiras batalhas ainda se tentou utilizar a cavalaria, que desde a Antiguidade era considerada uma arma decisiva na maioria das guerras, mas que logo se mostrou impotente diante de tanques e metralhadoras. Pela primeira vez foram usados aviões e bombas de alta potência, elevando a guerra a um novo patamar de horror. As metralhadoras fixas (ainda não existiam as leves, que poderiam ser usadas por soldados de infantaria) eram um poderoso instrumento para a defesa de posições, praticamente à prova das formas tradicionais de ataque, o que teve como consequência uma taxa terrível de baixas: a infantaria precisava atravessar correndo as várias centenas de metros da "terra de ninguém" que separava as trincheiras de cada lado - e tinha que fazer isso indo ao encontro das rajadas das metralhadoras inimigas.

Os Estados Unidos entraram tardiamente na guerra, em 1917, oficialmente em resposta ao torpedeamento de navios americanos por submarinos alemães no Atlântico norte com o objetivo de cortar o fornecimento de suprimentos a ingleses e franceses, mas fica claro com uma análise mais cuidadosa que isso foi apenas parte do motivo: os americanos sabiam bem o que perderiam no campo econômico se alemães e austríacos vencessem a guerra e ficassem senhores da Europa. Para a Inglaterra e a França, a adesão dos ianques foi, literalmente, a salva
ção, principalmente depois que a Rússia se retirou da guerra por causa da Revolução Comunista ocorrida em outubro desse mesmo ano. Para relatar o que acontece na Casa Branca, Follett usa o jovem Gus Dewar, então um dos assessores diretos do presidente Woodrow Wilson.

Queda de Gigantes é um daqueles livros cuja leitura torna-se rapidamente compulsiva - você começa a ler e, quando se dá conta, percorreu 50 páginas sem sentir, e ainda fica contrariado por ter outros afazeres que o obriguem a deixar a leitura de lado por algum tempo. Por tratarem basicamente de guerra, estas páginas mostram um pouco (na verdade, muito) do melhor e do pior que existe nos seres humanos, pois talvez nenhuma outra situação seja tão propícia à revelação desses extremos. É fascinante ler um autor com a capacidade de nos fazer entender como a História é construída, pedra por pedra, pelas ações de seres humanos iguais a nós, tanto os milhares de anônimos que lutaram na guerra e os milhões que sofreram seus efeitos, quanto os grandes líderes que precisaram arcar com o peso de decisões que definiriam o futuro de países inteiros - e, infelizmente, nem sempre se mostraram à altura de tal responsabilidade. E a guerra não é mostrada de uma maneira simplista, como se tivesse sido um confronto do "bem" contra o "mal": o leitor conhece personagens de ambos os lados, estima-os igualmente e torce para que sobrevivam e voltem para suas famílias, o que dá à coisa toda, antes de mais nada, um sentido profundamente humano.

sábado, março 07, 2009

Alexandre Nevsky

Hoje, finalmente, consegui ver um filme sobre o qual andava curioso há anos. Datado de 1938 e dirigido por Sergei Eisenstein – um dos poucos cineastas da União Soviética a terem feito alguma fama no ocidente, ainda que não toda a que teria merecido –, Alexandre Nevsky é obviamente uma peça de propaganda ideológica, mas trata-se de um daqueles raros exemplares dessa categoria que se mostram capazes de sobreviver ao seu momento histórico e até mesmo ao regime que os produziu, continuando a ser admirados pelas gerações seguintes, por seu valor artístico intrínseco.

O filme trata de um momento-chave da história russa. Em meados do século XIII, a Rússia, que já sofria com repetidas tentativas de invasão por parte dos tártaros ao leste, passa a conviver com outra ameaça, oriunda das pretensões expansionistas do Império Germânico. O exército alemão é encabeçado pelos célebres e temidos cavaleiros teutônicos, cujo característico manto branco adornado por uma cruz negra aparece no filme como um símbolo do Mal. Depois de diversas cidades russas terem se rendido ao invasor, os cidadãos de Novgorod enviam uma mensagem a Alexandre, príncipe de Pereslavl, pedindo que os lidere numa tentativa de resistência. Alexandre, nessa época, tinha apenas 22 anos de idade, mas já gozava de certa fama por ter derrotado os suecos na batalha do rio Neva, em 1240 – episódio que lhe valeu o apelido de Nevsky.

O enredo do filme é simples, sem grandes tortuosidades, e os fãs de épicos recentes como Coração Valente ou Gladiador devem ter em mente que, num filme produzido na Rússia e em 1938, não podem esperar ver batalhas hiper-realistas de encher os olhos como as mostradas nesses filmes; sem a ajuda de efeitos especiais ou outros recursos modernos, os atores precisavam ter muito cuidado, pois mesmo as armas cenográficas utilizadas eram capazes de causar danos sérios, e em vários momentos ao longo do filme essa precaução fica patente nas imagens – ou seja, as cenas de batalha não são espetaculares. O que seduz em Alexandre Nevsky é a solenidade quase exagerada com que celebra o amor à pátria, num momento em que a Rússia se preparava para encarar o que talvez tenha sido a maior provação de sua história: toda pessoa bem informada já estava ciente de que a Alemanha de Hitler se preparava para a guerra, e de que a União Soviética seria um de seus alvos principais, de modo que a história se repetiria. Trabalhando sob a chancela do governo soviético, Eisenstein fez deste filme um apelo para que todo cidadão russo se espelhasse no exemplo do herói semilendário para fazer sua parte no esforço de resistência durante a guerra prestes a estourar. Em vez do Niemetz, o cavaleiro teutônico, a Rússia encararia agora um inimigo ainda mais impiedoso, o nazismo; não cabem aqui considerações sobre o fato de o regime comunista soviético nada ter ficado a dever à Alemanha nazista no quesito assassinato em massa, como se sabe.


É curioso observar como a História dá voltas, e esse é um dos exemplos mais notáveis que conheço. Apenas um ano após o lançamento do filme, ele foi tirado de circulação porque o líder Josef Stalin (1878-1953) havia celebrado um pacto de não-agressão com as potências do Eixo. Ou seja, o inimigo de há pouco era agora um aliado... Mas não por muito tempo, pois em 1941 o pacto foi rompido e os exércitos do Eixo invadiram a União Soviética. A resistência ao agressor germânico voltou a estar na ordem do dia.

E parece que Santo Alexandre Nevsky (sim, ele foi canonizado em 1547 pela Igreja Ortodoxa, e mais tarde reconhecido também pela Igreja Católica) estava de fato olhando por seus compatriotas e animando-os, pois a obstinada resistência dos russos quebrou as pernas do poderoso exército do Reich 
– com alguma ajuda do clima: a exemplo do que acontecera com Napoleão um século e meio antes, também Hitler viu seus planos serem arruinados pela intervenção do "general Inverno". Sem esquecer que o contra-ataque soviético também foi essencial para a vitória dos Aliados, já que foi o exército russo que tomou Berlim em 1945, sepultando de vez as esperanças alemãs de vitória na Segunda Guerra Mundial.

Engraçado eu ter mencionado o fato de Alexandre ter sido canonizado pela Igreja Ortodoxa, pois esse era um lado do personagem que o "patrão" de Eisenstein – o governo soviético dos anos 30 –, com certeza não desejava ver enfatizado: o regime comunista era oficialmente ateu. De fato, em Alexandre Nevsky a Igreja Ortodoxa (religião majoritária na Rússia, e que manteve milhões de devotos fiéis, mesmo tendo ficado na clandestinidade por 80 anos) é "diplomaticamente" deixada de fora: os religiosos que aparecem são representantes da Igreja Católica e são apenas a cereja do bolo de crueldade preparado pelos Teutônicos, abençoando a matança de camponeses pacíficos e outros atos de brutalidade. Para o governo comunista, o ideal seria colocar toda e qualquer forma de religião ou crença no sobrenatural num mesmo e ignominioso cesto, pintando Deus como uma superstição anacrônica que seria melhor abolir de vez – mas ele deve ter percebido que, atacando a Igreja Ortodoxa, seria difícil ganhar a simpatia de muitos russos para a mensagem trazida pelo filme, pois grande parte da população continuava a ser fortemente religiosa, mesmo sendo obrigada a cultivar sua fé às escondidas
. Assim, o governo contentou-se em demonizar a Igreja Católica, que, mesmo antes da Revolução de 1917, tinha poucos fiéis no país e parecia uma coisa "distante". Pode-se considerar isso como uma concessão.


Além disso, traços (na verdade, "traços" dá a idéia de algo demasiado sutil, mas não encontro palavra melhor) do comunismo e sua visão das coisas aparecem ao longo de todo o filme: Alexandre, embora seja um príncipe, trabalha ombro a ombro com seus súditos mais humildes, pescando no lago Plestcheveio; quando ele chega a Novgorod, é recebido como herói salvador pelo povo humilde, mas repudiado pelos ricos, que de bom grado entregariam seu país aos invasores se a margem de lucro fosse suficientemente alta; durante a preparação para a guerra, um velho ferreiro doa todas as armas e armaduras que tem em sua oficina pelo bem da causa; dois guerreiros russos, Vassili e Gavrilo, que no começo são rivais pelo amor de uma mesma jovem, abraçam-se fraternalmente antes de entrarem em combate com os alemães – ou seja, o interesse da Mãe Pátria deve passar por cima de diferenças pessoais. Não há sutileza: o filme é uma obra fortemente ideológica e não faz nenhuma tentativa de ocultar isso. A própria música, por vezes exótica para ouvidos ocidentais, é claramente feita para mexer com as emoções, e em vários momentos acaba por causar uma reação empolgada no espectador, mesmo a contragosto: uma vontade de pegar uma lança e ir ajudar Alexandre e seus seguidores a expulsar o invasor.

Mesmo com todo o doutrinarismo político existente por trás de sua criação, Alexandre Nevsky ainda é um filme interessante. A história fascina por tratar de uma das infindáveis facetas da eterna questão do heroísmo, além de falar sobre esforço e superação, de modo que sempre terá o que ensinar a pessoas de qualquer lugar ou época.

Uma curiosidade: numa pesquisa realizada no ano passado por um jornal russo, apurou-se que, para a maioria da população do país, Alexandre Nevsky ainda é a personalidade mais importante de sua história, superando por uma boa margem os próprios Lenin e Stalin (!). Seria isso um sinal de que os russos não têm vergonha de reconhecer sua necessidade de ter heróis? E nós?...

domingo, novembro 25, 2007

As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica

Preenchendo uma velha lacuna no mercado editorial brasileiro, os autores gaúchos A. S. Franchini e Carmen Seganfredo chamaram a si a tarefa de recontar numa linguagem acessível as antigas histórias, lendas e fábulas que a humanidade acumulou ao longo de milênios de experiências e sonhos. O primeiro volume a me chegar às mãos, oriundo dessa parceria, foi este As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica. Já existem vários outros, enfocando as mitologias grega, egípcia, a Bíblia, ou sagas e ciclos específicos, como O Anel dos Nibelungos ou o recente Beowulf. Trata-se de uma sacada publicitária inteligente o fato de a capa deste livro trazer a frase "A mitologia na qual J. R. R. Tolkien se baseou para escrever O Senhor dos Anéis", pois, desde o boom de popularidade que a obra de Tolkien experimentou no Brasil após o lançamento da trilogia cinematográfica alguns anos atrás, isso tem quase o mesmo efeito que teriam, na capa de uma nova edição de algum romance brasileiro, os dizeres "Obra que deu origem à minissérie da TV Globo"... Mas vamos falar do livro.

Para quem já é familiarizado com a mitologia greco-romana, um primeiro contato com a nórdica pode causar um certo estranhamento, pois esta reflete os valores e crenças de um povo cuja mentalidade distava anos-luz da dos habitantes da bacia do Mediterrâneo ― embora curiosas semelhanças, por vezes evidentes demais para serem casuais, também existam. Franchini e Seganfredo tiveram o cuidado de traçar paralelos, sempre que necessário, entre a mitologia nórdica propriamente dita ― aquela originária dos países escandinavos ― e a germânica, das regiões que hoje correspondem à Alemanha e Holanda. Os deuses e os heróis são basicamente os mesmos, com nomes ligeiramente diferentes, e o mesmo se dá com muitas das narrativas, que diferem em pequenos ou grandes detalhes. Por exemplo, na primeira parte do livro está narrada a versão nórdica das aventuras de Sigurd ― o mesmo herói que os alemães chamam de Siegfried e que protagoniza o ciclo d'O Anel dos Nibelungos, que pode ser lido na segunda parte, permitindo que se comparem as duas versões, o que dá lugar a observações curiosíssimas. Tanto em sua versão nórdica quanto na germânica, essa narrativa orbita em torno de um anel amaldiçoado e dotado de estranhos poderes, um objeto capaz de transtornar a mente das criaturas a tal ponto que o desejo de possuí-lo supera qualquer escrúpulo moral ou da razão. Esse é o principal ponto de contato entre a obra de Tolkien e a mitologia nórdica, mas não o único: a espada que é quebrada e depois reforjada faz parte do mesmo mito, assim como o dragão que guarda um tesouro com o maior ciúme e ferocidade, embora este seja para ele completamente inútil. Além disso, as passagens em que o deus supremo Odin aparece sob disfarce humano ― na figura de um velho misterioso portando um cajado e uma espada ― lembram de forma irresistível a figura tolkieniana do mago imortal Gandalf. Coincidência? De jeito nenhum!

Deixando Tolkien um pouco de lado (mas não muito, já que tudo está interligado), também não dá para crer que seja coincidência a maneira como Sigmund, pai de Sigurd/Siegfried, vem a possuir a espada mágica Notung, que será mais tarde empunhada pelo filho: Sigmund a remove do tronco de uma imensa árvore onde fora cravada e de onde centenas de guerreiros já haviam tentado retirá-la, inutilmente, já que só um predestinado poderia possuí-la. Não lembra nada?? Pode ser impossível dizer se a lenda nórdica inspirou a britânica, se foi o contrário, ou se ambas simplesmente tiveram origem em algum arquétipo ou símbolo que está no inconsciente coletivo de todos os povos, mas que esse tema merece profundos estudos, disso não há dúvida. Talvez não se chegue a uma resposta final, mas, ao longo do caminho, esses estudos podem revelar coisas essenciais para nosso autoconhecimento e para a compreensão do mito do herói, que, direta ou indiretamente, inspirou todos os seres humanos que já realizaram algo de notável, em qualquer época.

O livro tem alguns pequenos problemas de língua portuguesa, o que é bem estranho, se considerarmos que a orelha informa que Carmen Seganfredo é "bacharelada em Letras e tradutora", mas isso é uma falha menor e perdoável, se comparada à excelente ideia em que se baseia a obra da dupla de escritores e a pesquisa cuidadosa que obviamente existe por trás de cada capítulo. Jung dizia que "os mitos são sonhos públicos, e os sonhos são mitos privados". Tal como os sonhos (tanto os que temos ao dormir quanto os que criamos de olhos abertos) são peças-chave para a compreensão da mente do indivíduo, conhecer os mitos é essencial para quem nunca se cansa de tentar (só tentar!) compreender esse oceano de contradições, esse universo de grandezas e misérias que é a condição humana.