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quarta-feira, janeiro 18, 2017

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada

Depois de Morte Súbita e dos romances policiais escritos sob o pseudônimo de Robert Galbraith, eis J. K. Rowling de volta ao universo de Harry Potter, nove anos depois de Harry Potter e as Relíquias da Morte, conclusão oficial da saga. Os azedos de plantão, é claro, já deram seu veredito: "ela só está a fim de ganhar mais dinheiro!" Rowling simplesmente não precisa disso: ela já tem o suficiente para assegurar uma vida mansa a todos os seus descendentes até a vigésima ou trigésima geração, com folga. Portanto, ela não está nisso pelo dinheiro – pelo menos, não mais. Se continua escrevendo, é porque gosta, e seus fãs certamente não vão reclamar.

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada é algo um tanto diferente. A história, escrita por Rowling em cooperação com John Tiffany e Jack Thorne, foi concebida como roteiro para uma peça de teatro, a ser dirigida por Tiffany, e que estreou (com ingressos esgotados e todo o alarde que seria de se esperar) no Palace Theatre, em Londres, em 30 de julho de 2016. O livro foi lançado no Brasil em 31 de outubro – nada mais adequado: em pleno Dia das Bruxas. Confesso que fiquei meio decepcionado ao folheá-lo pela primeira vez, pois, embora soubesse que a história teve origem no teatro, imaginava que a autora tivesse reescrito o roteiro sob a forma de romance para a publicação, mas não: o que temos no livro é o próprio roteiro. Ler desse jeito causa estranheza a quem está acostumado a acompanhar as peripécias do jovem bruxo, mas não será isso que irá impedir os potterheads (fãs apaixonados da saga) espalhados pelo planeta de devorar essa nova aventura.

A história contada na peça inicia-se 19 anos depois dos eventos narrados em Harry Potter e as Relíquias da Morte – portanto, em 2016 mesmo – e se estende alguns anos para o futuro. Harry está agora com 37 anos de idade, trabalha no Ministério da Magia (para ser exato, é chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia), está casado com Gina Weasley e tem três filhos: Tiago, Alvo e Lílian (a tradutora Anna Vicentini teve que seguir o controverso sistema de nomenclatura adotado por Lia Wyler, que traduziu os sete volumes anteriores e tinha por hábito traduzir nomes próprios e até mesmo – sei lá com qual critério – rebatizar certos personagens). Tiago, o mais velho, e a caçula, Lílian, foram batizados em homenagem ao pai e à mãe de Harry, e parecem ser filhos perfeitos. A ovelha negra da família é o do meio, Alvo Severo Potter. Seu primeiro nome homenageia o lendário diretor da não menos lendária Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, Alvo Dumbledore; o segundo, Severo Snape, o professor que Harry odiou durante sete anos, só para descobrir ao final que, na verdade, o homem era um herói. A peça começa quando Alvo está indo para Hogwarts pela primeira vez, junto com sua prima Rosa – filha de Rony Weasley, irmão de Gina e melhor amigo de Harry desde sempre, e de Hermione Granger, outra grande amiga e aluna mais brilhante de Hogwarts em sua época. Rosa é de opinião que, na viagem de um dia inteiro de trem até a escola, ela e Alvo, a exemplo do que aconteceu com seus pais, poderão ter a chance de fazer as amizades que irão influenciar seus destinos pela vida afora, e mais, também acredita que, por serem quem são, todos vão querer ser amigos dos dois, de modo que poderão escolher à vontade. Para a decepção da garota, o único amigo que seu primo faz é Escórpio Malfoy… Por ironia, filho de Draco Malfoy, arqui-inimigo de Harry durante toda a vida escolar de ambos.

(Toda vez que eu lia o nome Escórpio, era impossível não pensar na arma de cerco romana.)

As surpresas não param por aí. Na cerimônia de seleção, na qual o Chapéu Seletor decide para qual das quatro casas de Hogwarts cada novo aluno será mandado, Alvo acaba sendo designado para a Sonserina, que foi desde sempre a casa dos Malfoy, além de ter sido a de Tom Riddle, antes de ele se tornar o temido Lorde Voldemort. Embora isso vá lhe permitir ter a companhia de seu novo amigo quase em tempo integral, não deixa de ser um choque, pois, até onde se tem lembrança, todos os ancestrais e parentes de Alvo, pelos dois lados da família, sempre foram da Grifinória.

Seja como for, Alvo e Escórpio logo percebem que é uma sorte terem um ao outro: nenhum dos dois tem praticamente qualquer outro amigo. Alvo não demonstra talento para nada em particular, nem mesmo para o voo de vassoura, o que acaba com as esperanças que muita gente alimentava, de que ele viesse a honrar os feitos de seu pai e seu avô no campo de quadribol; Escórpio é inteligente e estudioso, mas tímido. De modo que os dois rapidamente assumem seu papel como aquele tipo de estudante que pode ser encontrado em qualquer escola, mágica ou não, esgueirando-se pelos corredores, procurando evitar ser visto, já que é presa fácil para bullies. Alvo se sente de forma oposta ao que acontecia com o pai em sua idade: enquanto Harry detestava as férias (porque tinha que passá-las com seus insuportáveis tios trouxas) e contava os dias para voltar a Hogwarts, Alvo detesta a escola, se bem que em casa não pareça se sentir muito melhor. Embora Harry se esforce por ser um bom pai, o garoto não gosta nem um pouco do fato de ser filho do famoso Harry Potter, e menos ainda de todas as expectativas que isso naturalmente cria nas pessoas – expectativas essas que, em sua própria opinião, ele sempre irá frustrar.

Todavia, por pior que Alvo ache sua vida, a de Escórpio é ainda pior. Muita gente ainda associa os Malfoy a Voldemort, de quem o avô de Escórpio, Lúcio Malfoy, foi um fiel servidor – e correm boatos persistentes de que Astória, esposa de Draco e mãe de Escórpio, foi enviada para o passado a fim de engravidar do próprio Voldemort, presumivelmente quando ele ainda era Tom Riddle, e humano o suficiente para gerar filhos. Ou seja, se esses boatos tiverem fundamento, significa que o verdadeiro pai de Escórpio é… Você-Sabe-Quem. Porém, verdade seja dita, o garoto não parece lembrar em nada o grande bruxo das trevas: segundo Alvo, Escórpio é bom, o que nenhum filho de Voldemort poderia ser; já segundo Draco, ele é por natureza um seguidor, e não um líder, o que tampouco combina com uma possível ascendência "voldemortiana". E há mais: se Astória tivesse viajado ao passado, só poderia ter sido por meio de um viratempo, um dispositivo mágico capaz de realizar esse feito – e todos os viratempos de cuja existência se tinha conhecimento estavam guardados no Ministério, onde foram destruídos durante uma batalha entre Comensais da Morte (os servos de Voldemort) e os membros da Ordem da Fênix, comandada por Dumbledore; esse episódio está narrado num dos últimos livros da saga, não lembro ao certo qual. Portanto, e por vários motivos, os boatos parecem um completo disparate, o que não impede que continuem a ser um doloroso espinho na carne de Escórpio.

Os primeiros três anos de Alvo Potter em Hogwarts passam em rápidos flashes. O importante para os fins da peça é o que acontece em seu quarto ano, quando ele e seu amigo Escórpio estão com 14 – não por acaso, a mesma idade que Harry tinha ao tomar parte no Torneio Tribruxo, como sabe quem leu Harry Potter e o Cálice de Fogo, o quarto volume da série. O torneio, realizado durante o ano letivo de 1994-95, terminou de forma terrível e trágica, com o retorno de Voldemort e a morte do outro campeão de Hogwarts, Cedric Diggory (a Sra. Lia Wyler que me desculpe, mas eu me nego a chamar o coitado de "Cedrico"!). Durante todo o torneio, os dois garotos haviam vivido uma relação de rivalidade e admiração mútua ao mesmo tempo, e, ao concluírem a última tarefa da competição, que daria a vitória a quem o fizesse, nenhum dos dois achou justo que o outro fosse derrotado: decidiram vencer juntos, e, para isso, pegaram ao mesmo tempo a taça da vitória – que, sem que eles imaginassem, estava enfeitiçada para levar instantaneamente quem a tocasse até a presença de Voldemort. O bruxo das trevas só estava interessado em Harry, de modo que, ao ver que havia outro rapaz com ele, displicentemente ordenou a um de seus servos que o matasse. Cedric, portanto, teve uma morte tola e desnecessária, coisa pela qual Harry jamais se perdoou – como se tivesse culpa.


Alvo, naturalmente, conhece essa história. Acontece então que, pouco antes de ele partir para seu quarto ano em Hogwarts, Harry e seus homens dão uma batida na qual estouram um covil de bruxos das trevas, e apreendem, entre outras coisas, um viratempo clandestino. O ocorrido chega aos ouvidos do jovem Alvo, enquanto o perigoso objeto fica sob custódia no Ministério – e, por falar nisso, a atual Ministra da Magia é ninguém menos que Hermione Granger (agora Granger-Weasley). Por uma daquelas coincidências fatais, Alvo também ouve uma conversa entre seu pai e Amos Diggory, o pai de Cedric, hoje um ancião solitário e inválido que vive num lar para bruxos idosos. Sabendo que Harry agora tem acesso a um viratempo, Amos implora que ele o use e volte no tempo para impedir a morte de seu filho, mas Harry, com dor no coração, tem que se recusar: de acordo com os mais conceituados teóricos da magia, o máximo que uma pessoa pode voltar no passado sem perigo de causar perturbações graves no fluxo do tempo é de cinco horas – quem pode prever as possíveis consequências de uma intervenção num fato ocorrido há 22 anos? Alvo, por outro lado, compadecido do velho, fascinado pela possibilidade de corrigir o que considera um dos erros de seu pai e sem um pingo de juízo na cabeça, decide empreender a arriscada missão. Para isso, conta com a ajuda de seu inseparável Escórpio e de uma jovem que diz chamar-se Delfine ("Delfi") e ser sobrinha de Amos Diggory, prima de Cedric. Os dois garotos fogem do Expresso de Hogwarts em plena viagem – o que, até onde se sabe, ninguém antes deles jamais conseguiu fazer, embora tenha sido tentado por transgressores legendários como Sirius Black e os gêmeos Fred e Jorge Weasley –, reúnem-se a Delfi, e os três invadem o Ministério em busca do fatídico viratempo… E, embora essas já pareçam ser façanhas notáveis, isso é apenas o começo. No decorrer da história, fica provado algo que quem, por enquanto, só leu Harry Potter talvez ainda não tenha percebido, mas que todo leitor de ficção científica sabe: que mexer no passado é extremamente perigoso, não importa se por meios tecnológicos ou mágicos. Por mais tentadora que pareça a ideia de ser testemunha ocular de grandes acontecimentos históricos ou de fazer um safári em meio a dinossauros ou mamutes, acho que, no fim das contas, é uma boa coisa que a viagem no tempo seja, por tudo o que se sabe, impossível segundo as leis da física… Embora seja verdade que já se disse o mesmo a respeito de ultrapassar a barreira do som, coisa que, hoje em dia, até meras aeronaves comerciais fazem tranquilamente.

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, sem dúvida, mantém o espírito da saga; se reescrito, talvez não rendesse um romance, mas daria um conto de boa extensão e, certamente, irresistível para qualquer um dos milhões de "órfãos" que tiveram pelo menos alguns dias de depressão quando terminaram de ler o que acreditavam ser o último livro das aventuras de Harry. Além de nostálgico (inevitável…), é também empolgante rever, agora na idade adulta, aqueles personagens cuja infância e adolescência acompanhamos tão de perto. Muita coisa continua igual e muita coisa mudou. O próprio Draco Malfoy tornou-se menos arrogante, imagino que tanto por ter amadurecido quanto por causa das coisas que passou ao tentar seguir os passos do pai como um Comensal da Morte, e, levado pela necessidade de proteger o filho, aceita o que duas décadas antes teria, sem dúvida, considerado impossível: colocar-se ao lado de Harry como aliado. Talvez, até, como amigo, possibilidade que fica em aberto numa cena da peça. Senti muita falta do gentil e atrapalhado meio-gigante Rúbeo Hagrid, que só aparece em cenas que retratam o passado; não temos nenhuma notícia dele, por onde anda ou o que está fazendo na época em que se passa a ação principal. No mais, assistir a essa peça deve ser uma experiência e tanto. Há coisas que o roteiro descreve e que só podemos ficar imaginando como, em nome de Merlim, podem ser apresentadas num palco: os efeitos especiais devem ser de deixar no chinelo muita coisa que se vê no cinema (não nos filmes de HP, é claro). Quem sabe não tenhamos uma surpresa e seja anunciada uma montagem brasileira? O surgimento de um filme é inevitável, mas ainda deve demorar, e eu realmente torço para que seja um filme – não uma totalmente desnecessária "trilogia", ou coisa que o valha. É esperar pra ver.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Henrique V

A peça Henrique V, de William Shakespeare (1564-1616), começa com um pedido de desculpas. O coro, ao introduzir o tema, roga ao público que seja indulgente, já que é impossível, no acanhado espaço de um teatro (uma "rinha de galos", como diz o texto) e com um elenco de número limitado, reproduzir de forma digna a grandiosidade dos eventos que vão ser narrados. Segue-se uma exortação, pedindo aos espectadores que usem a imaginação para transformar aquele modesto palco nos vastos campos da França, para visualizar os cavalos quando estes forem mencionados, e para multiplicar em grandes exércitos o escasso punhado de atores vestidos de soldados. No filme baseado na peça, lançado em 1989, essa indulgência é muito menos necessária, pois as amplas possibilidades novas a serviço do cinema permitem recriar as cenas narradas de uma forma até que bem satisfatória, pelo menos para os olhos do espectador moderno. Mesmo assim, o coro (no filme, reduzido a uma única voz, a do excelente Derek Jacobi) ainda pede por indulgência – talvez para preservar a atmosfera teatral, ou apenas porque seria uma pena suprimir esses belos versos. Numa avaliação do conjunto, de qualquer forma, coisas como cenários, figurinos e uma boa produção, embora importantes, são secundárias: o essencial é a força inigualável do texto de Shakespeare, e essa eu acredito que permaneça relativamente intacta, apesar de muitos dos diálogos originais da peça terem sido adaptados para um inglês mais próximo do que se fala hoje. Vi o filme pela primeira vez em VHS, poucos anos depois de seu lançamento; dias atrás, relendo meu post sobre o livro O Marechal das Trevas, a breve menção que fiz dele me trouxe a vontade de revê-lo (adquiri o DVD há algum tempo) e de ler a peça, o que nunca havia feito. O resultado disso tudo está aqui.

Uma observação: embora eu domine o inglês, os escritos originais de Shakespeare são praticamente outra língua. Os quatro séculos de lenta e gradual transformação (as línguas nunca param de mudar), mais os floreios e imagens poéticas dos quais o autor fazia largo uso, tornam sua leitura um desafio, de modo que evitei morder mais do que podia mastigar: achei melhor ler a peça em tradução.

Henrique V é a parte final de uma quadrilogia que também inclui Ricardo II, Henrique IV, parte 1 e Henrique IV, parte 2 – mas não se preocupem, pois não é indispensável conhecer aquelas peças para poder apreciar esta. Retratado em Henrique IV, parte 2 como um adolescente turbulento e indisciplinado, mais interessado em prazeres irresponsáveis que em aprender a ser rei, Henrique V parece ter sofrido uma transformação radical com a chegada da idade adulta e sua coroação, em 1413, aos 27 anos, pois foi considerado, em sua época, um monarca competente, corajoso e dotado de múltiplos e variados talentos. E com uma ambição acima de todas as outras:

Rei Henrique:

Partamos, pois, meus caros compatriotas.
Nas mãos de Deus ponhamos nossa força
e demos logo início à expedição.
Alegres, para o mar! A guerra avança;
só serei vosso rei se o for da França.

(Ato II, Cena II)

A pretensão de Henrique ao trono da França era baseada em laços sanguíneos derivados de antigos casamentos políticos entre as famílias reais inglesa e francesa, e ele já havia, antes disso, reivindicado seu suposto direito por meios diplomáticos – só que os franceses, é claro, não iriam, de livre vontade, entregar o poder supremo de seu país a um monarca estrangeiro, fosse herdeiro de sangue ou não, e menos ainda em se tratando precisamente do rei da Inglaterra, rival da França desde os primórdios da história das duas nações. Sem esquecer, ainda, que estava-se em plena Guerra dos Cem Anos, que foi mais como uma sequência de diversos períodos de guerra intercalados por intervalos de uma paz frágil (e bota frágil nisso). Para negar a petição de Henrique, os franceses invocaram a Lei Sálica, do século V, que, entre muitos outros assuntos, tratava de direitos de sucessão e herança. Conforme essa lei, mulheres não podiam herdar bens imóveis: nem terras, nem tampouco casas, castelos etc. Numa interpretação extensiva, isso significava que elas também não podiam herdar títulos de nobreza (já que estes se ligavam estreitamente à posse da terra), incluindo o mais alto de todos os títulos, a realeza. Como, portanto, mulheres não podiam herdar a coroa (segundo essa interpretação), isso, por consequência, retirava a legitimidade de qualquer candidato ao trono que não fosse ligado à família real por linha masculina – e Henrique era parente dos reis franceses somente por intermédio de ancestrais femininas. Acontece que essa lei nunca havia sido aplicada com muito afinco até 1328, quando outro rei inglês, Eduardo III, havia feito a mesma reivindicação – que foi negada com o mesmo argumento. Ou seja, Henrique poderia alegar que os franceses só se lembravam da existência da Lei Sálica quando lhes convinha. Em adição a isso, o arcebispo de Canterbury, seu conselheiro, asseverou que essa lei, em sua origem, só vigorava na região de Meissen, na atual Alemanha, entre os rios Sala (e daí o nome de Lei Sálica) e Elba, e que tal região só se tornou possessão francesa sob o imperador Carlos Magno, séculos depois da criação da dita lei, de modo que não haveria motivo algum para afirmar que ela devesse ser seguida em todo o território francês. Uma vez aceita essa premissa, decorria como conclusão lógica que o rei francês de então, Carlos VI, só estava no trono porque este havia sido negado indevidamente, no passado, aos ancestrais de Henrique – que, portanto, estaria amparado pela razão e pelo direito.

Era tudo o que o jovem e ambicioso rei queria ouvir. Ele adotou um brasão pessoal cujo principal elemento, o escudo, era particionado em quatro; no jargão da heráldica, um escudo assim é dito esquartelado, e cada partição é um quartel. Dois dos quartéis desse novo escudo exibiam os leões da Inglaterra, dourados em campo vermelho, e os outros dois, os lírios da França, também dourados, em campo azul. Com esse símbolo, Henrique anunciava ao mundo que se considerava rei dos dois países, que estava disposto a sê-lo não só de direito, mas também de fato, e a fazer o que fosse necessário para isso. Ainda nesse mesmo espírito, ele também incluiu no brasão da coroa britânica a divisa em francês que ele ostenta até hoje: Dieu et mon droit ('Deus e meu direito').

(Na peça de Shakespeare, o desejo de Henrique por uma guerra é atiçado por um fator a mais: a petulância do delfim [título dado ao príncipe herdeiro do trono da França], que lhe envia de presente uma arca cheia de bolas de tênis… O tênis havia sido um dos passatempos favoritos de Henrique durante sua adolescência tresloucada, de modo que mandar as bolas é uma maneira de o delfim insultá-lo, deixando claro que ainda o considera o mesmo rapazinho tolo, indigno de temor ou sequer de respeito. Não sabemos se isso de fato aconteceu; tenho para mim que Shakespeare tenha inventado o episódio, inspirando-se em outro parecido, esse sim atestado por historiadores, que teria acontecido com Alexandre: Dario, rei da Pérsia, teria lhe mandado uma bola e um chicote de brinquedo como presentes, com o mesmo objetivo insultuoso. E, tal como o grande conquistador da Antiguidade, Henrique também não deixaria barata a brincadeira. Aliás, no ato IV, cena VII, a comparação de Henrique com Alexandre é explícita, na voz do capitão Fluellen, personagem meio heroico, meio cômico, que se gaba de ser conterrâneo do rei, e, como se fosse para sublinhar o fato, fala com um carregado sotaque galês).

Em agosto de 1415, Henrique desembarcou na Normandia (norte da França) com seu exército, que incluía, é claro, um contingente de cavaleiros, homens de berço nobre, treinados para a guerra desde a infância e equipados com armadura pesada e excelentes cavalos de combate, e também infantaria, lanceiros na maioria – esses, em geral, homens do povo, recrutados, treinados e equipados às expensas da coroa. Porém, a confiança do rei repousava de modo especial nos famosos arqueiros do País de Gales, que lhe eram particularmente devotados, já que também era galês. A arma desses soldados era o arco longo, assim chamado porque tinha quase a mesma altura de quem o manejava, e, embora fosse conhecido em toda a Europa, parece que a maioria dos exércitos o subestimava. Mas não os britânicos. Em Gales, principalmente, seu manejo era uma tradição. Apesar da construção simples, sendo feito numa única peça de madeira (geralmente teixo, às vezes carvalho ou bétula), esse arco, bem utilizado, tem um formidável alcance de até 500 metros, oferecendo boa precisão até mais ou menos a metade dessa distância. Naturalmente, o bom manejo exige muito treino, além de braços fortes. Cerca de sete mil desses arqueiros integravam o exército de Henrique, além de uns cinco mil lanceiros e algumas centenas de cavaleiros. As fontes divergem, mas o número total devia estar em torno de 13 mil homens.

O primeiro e bem-sucedido ataque do exército inglês foi contra a cidade portuária de Harfleur, que se rendeu depois de um cerco que se prolongou bem além do esperado e foi cruel para os dois lados. Henrique comandou pessoalmente suas tropas, participando do combate direto. Pode-se questionar a sensatez disso, já que sua morte em plena campanha causaria um caos e traria consequências terríveis não só para o exército, mas para a própria Inglaterra; por outro lado, não havia modo mais claro de mostrar a seus soldados que seu rei não estava pedindo a eles nenhum sacrifício que ele próprio não estivesse disposto a fazer. Também consta que Henrique enviou uma mensagem ao delfim, desafiando-o a ir a Harfleur para enfrentá-lo num combate singular. E parece que o delfim não respondeu.

Shakespeare nos conta que, na tomada de Harfleur, Henrique foi misericordioso, ordenando a seus soldados que tratassem com civilidade todos os cidadãos, proibindo a pilhagem e toda e qualquer violência desnecessária – mas só agiu assim porque o governador da cidade concordou com a rendição. No filme, a negociação entre ambos acontece numa pausa da batalha, com o governador falando do alto das muralhas, Henrique diante dos portões, montado em seu cavalo e coberto de sangue; o rei inglês aconselha a rendição, prometendo clemência, mas ressalva que, caso o governador não aceite, será ele o responsável por condenar seu povo:

Rei Henrique:

Que terei eu que ver, se sois vós próprios
os culpados de virem vossas filhas
a ser presas da mais intolerável
e feroz violação? (…)
Tão pouco resultado alcançaríamos
procurando pôr cobro nos excessos
dos soldados entregues à pilhagem,
como se ao Leviatã determinássemos
que viesse para a praia. Por tudo isso,
homens de Harfleur, mostrai-vos compassivos
com vosso próprio povo e com a cidade,
enquanto os meus soldados me obedecem (…).

(Ato III, Cena III)

A expressão de alívio no rosto de Henrique ao ouvir o governador concordar com seus termos é uma pequena amostra da capacidade dramática do ator Kenneth Branagh, que, por sinal, também é o diretor do filme. Um alívio que o rei, na certa, sentiu mesmo, pois seu exército, além de pouco numeroso, começava a padecer com o cansaço e doenças; uma epidemia de disenteria estava se anunciando, e pioraria muito durante as semanas seguintes. Além disso, era fim de verão, conta-se que chovia muito e havia lama por toda parte, condições realmente miseráveis para se manter um cerco. O rei Carlos, o delfim e seus oficiais também sabiam disso, de modo que abstiveram-se de ir em socorro de Harfleur (a cidade era um sacrifício que eles podiam dar-se ao luxo de fazer) e adiaram o quanto puderam o momento do confronto, à espera de que os ingleses ficassem tão debilitados quanto possível.


Depois da capitulação de Harfleur, Henrique deixou parte do exército como guarnição na cidade e marchou com o restante em direção ao leste, para Calais, na época um enclave britânico na França. O corpo principal do exército francês, que não havia se movido até então, saiu em seu encalço, mas, mesmo debilitados, os ingleses contavam com a vantagem da mobilidade, pois dispunham de cavalos em número superior ao da soma total de seus soldados e pessoal de apoio – quer dizer, mesmo quem, na hora da batalha, lutava a pé, ou nem lutava, tinha uma montaria para a viagem. É claro que a celeridade teve seu preço: as catapultas e os canhões (estes, uma grande novidade na época) que haviam sido usados para tomar Harfleur, tiveram que ser deixados lá mesmo, assim como toda carga não essencial: Henrique ordenou a seus homens que não levassem consigo nada além de armas, armaduras, o equipamento indispensável, e provisões – que já começavam a ficar escassas. O plano do rei era reunir-se a suas tropas estacionadas em Calais e, ou passar o outono e o inverno lá, ou navegar de volta para a Inglaterra e retornar no ano seguinte, pois, naquela região do mundo e com a tecnologia bélica existente na época, campanhas militares só eram praticáveis na primavera e verão, e, naquele momento, já se estava entrando no outono.

Mesmo viajando leves, a marcha foi dura. Chovia torrencialmente, as estradas eram verdadeiros atoleiros, e, depois de alguns dias, as rações tiveram que ser reduzidas, sob pena de, em breve, ficarem sem nada para comer. A má qualidade da água agravou as doenças que já castigavam o exército. Ao chegarem às margens do Somme, que teriam que transpor para alcançar Calais, os ingleses enfrentaram outro problema: todas as pontes tinham sido demolidas, e os pontos onde o rio podia ser vadeado estavam fortemente defendidos por tropas francesas – e um exército cruzando um rio fica muito vulnerável. A solução foi marchar cada vez mais para o interior ao longo do rio, à procura de um vau que não estivesse defendido, o que tomou vários dias, tempo esse durante o qual o exército britânico ficava cada vez mais cansado, faminto e fraco devido à doença.

Quando, por fim, conseguiram atravessar o Somme, Henrique e seus homens viram-se numa extensão de terra agrícola perto um vilarejo chamado Azincourt (Agincourt na forma inglesa), dominado pelo castelo de mesmo nome. A essa altura, o exército de 13 mil homens estava reduzido a uns seis mil ainda em condições de combater: os 13 mil originais, menos as baixas sofridas durante o cerco de Harfleur, menos os que foram deixados lá como guarnição, menos os que morreram ou ficaram incapacitados por causa da doença durante a marcha. Nos campos de Azincourt, o depauperado exército inglês viu-se encurralado entre duas forças francesas que, somadas, o superavam em número por uma diferença de, no mínimo, cinco para um, e provavelmente mais, para não mencionar que os franceses estavam descansados e bem alimentados. Era ao entardecer de uma quinta-feira, 24 de outubro de 1415.

A madrugada tensa que antecede a batalha é, sem dúvida, um dos trechos mais magistrais da peça. Tensa, é claro, para os ingleses, que temem a chegada da aurora, porque acreditam que não verão o próximo pôr-do-sol. Quanto aos franceses, esses anseiam pela manhã, reclamam da demora do dia em despontar, antegozando a batalha como se fosse uma festa, enquanto conversam despreocupadamente sobre quem tem o melhor cavalo e a mais bela armadura. Henrique, disfarçado, percorre o acampamento inglês, ouvindo o que dizem seus soldados, apresentando-se com um nome inventado para falar com eles. Ouve seu desalento e procura encorajá-los, sem nunca revelar sua verdadeira identidade. Por fim, ao ver-se sozinho, desabafa num monólogo a respeito do pesado fardo da realeza:

Rei Henrique:

Só sobre o rei! Ponhamos nossas vidas,
nossas almas, as dívidas, os filhos,
as esposas ansiosas, os pecados,
tudo, em cima do rei! Forçoso é tudo
suportarmos. Oh dura condição!
Ser gêmeo da grandeza e estar sujeito
ao capricho do sopro dos estultos
que só sabem sentir suas próprias dores.
Quantas satisfações são proibidas
aos reis para que os súditos se alegrem!
Que têm os reis a mais que seus vassalos,
além do rito, além das cerimônias
exteriores? Que vales, rito ocioso?
Que espécie és tu de deus, para sofreres
muito mais do que os teus adoradores
a condição humana!

(Ato IV, Cena I)

Entretanto, esse momento de fragilidade não é mais do que isso: um momento. Quando o dia finalmente desponta – sexta-feira, 25 de outubro, dia de São Crispiniano –, o rei profere aquele que é, sem sombra de dúvida, a "mãe" de todos os discursos inspiradores que outros reis e comandantes fazem a seus soldados em inúmeros filmes épicos, geralmente logo antes de uma batalha que tudo indica ser impossível vencer:

Westmoreland:

Oh, se agora tivéssemos ao menos
dez mil dos homens que imobilizados
se encontram na Inglaterra!

Rei Henrique:

Quem deseja
tal coisa? Westmoreland? Não, caro primo;
se fadados estamos para a morte,
a pátria, em nós, já perde muitos filhos;
mas se vivermos, quanto menos formos,
maior será nosso quinhão de glória.
Deus o decida. (…)
Hoje é dia de São Crispiniano. (…)
Quem neste dia não perder a vida
e chegar à velhice, há de todo ano,
na véspera, dizer para os vizinhos:
"Mais um dia de São Crispiniano!"
Arregaçando as mangas, mostra as marcas
e dirá: "Todas estas cicatrizes
são do dia de São Crispiniano".
Tudo os velhos esquecem; mas embora
fique tudo esquecido, hão de lembrar-se
com minúcias dos feitos deste dia. (…)
Esta história os valentes hão de aos filhos
transmitir, e de agora ao fim do mundo
não poderá jamais ser pronunciado
o nome de Crispim Crispiniano
sem que lembrados todos nós sejamos.
Nós, poucos; nós, os poucos felizardos;
nós, pugilo de irmãos! Pois quem o sangue
comigo derramar, ficará sendo
meu irmão. Por mais baixo que se encontre,
confere-lhe nobreza o dia de hoje.
Todos os gentis-homens que ficaram
na Inglaterra julgar-se-ão malditos
por não terem estado aqui presentes,
e hão de fazer ideia pouco nobre
de sua valentia, quando ouvirem
alguém dizer que combateu conosco
neste dia de São Crispiniano!

(Ato IV, Cena III)

(Fico com os olhos rasos d'água cada vez que leio isso, e sou macho o suficiente para admitir!)

Sim, eu sei: é fácil imaginar os soldados magros, esfarrapados e cobertos de lama saudando com um brado ensurdecedor o final desse discurso, e ainda mais fácil ter a sensação de que já ouvimos e vimos algo parecido antes, seja em Coração Valente, O Retorno do Rei ou, literalmente, dezenas de outros. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Para dar um toque final no moral de suas tropas, Henrique assegurou que não seria capturado vivo: em caso de derrota, morreria com seus soldados. Faz bem ao coração acreditar que isso não era só uma bravata, e, de qualquer forma, além de um ato de coragem pessoal, expressava a vontade de não causar ainda mais sofrimento a seu país: se os franceses o apanhassem vivo, a soma que pediriam por sua libertação poderia quebrar a Inglaterra (a expressão isso custa o resgate de um rei, usada em várias línguas para dizer que o preço de algo é abusivo, não surgiu do nada).


Se o discurso de Henrique deixou seus soldados ansiosos para lutar, eles precisaram ter um pouco de paciência. Ao romper do dia, os franceses estavam prontos, mas não fizeram nenhum movimento para atacar, e por bons motivos. É quase sempre mais vantajoso para um exército manter sua posição e esperar que o inimigo tome a iniciativa, e, no presente caso, o tempo era aliado dos franceses, para quem suprimentos não eram um problema: no que dependesse deles, podiam esperar ali até que os últimos ingleses morressem de fome. Lá pelo meio da manhã, Henrique fez o primeiro movimento, ordenando que seu exército avançasse cerca de 200 metros, até uma posição da qual seus arqueiros já tivessem o inimigo ao alcance de suas flechas. Analistas militares avaliam que, se a cavalaria francesa tivesse aproveitado a momentânea desorganização dos ingleses durante esse pequeno deslocamento, poderia ter quebrado a espinha do exército de Henrique e assegurado uma vitória fácil, mas, por algum motivo, a ordem para a carga não foi dada. Os franceses só se moveram ao serem forçados a isso, quando as flechas inglesas começaram a chover sobre suas posições. E foi aí que as coisas começaram a dar errado para eles.

Como vimos, o local da batalha era uma terra de cultivo, que havia sido recentemente arada, esperando pela semeadura do trigo; isso, combinado às chuvas pesadas dos últimos dias, havia convertido o terreno num grande lodaçal, onde os cavalos afundavam até os joelhos – que dirá então os enormes e pesados animais da cavalaria francesa, cada um levando sobre o dorso um cavaleiro em armadura completa. Com isso, a carga aconteceu em câmera lenta, facilitando as coisas para os arqueiros de Henrique, que, para a ocasião, haviam recebido aljavas carregadas das assim chamadas flechas-punhal, providas de pontas alongadas, desenhadas para concentrar toda a força do disparo num único ponto; impulsionadas por seus robustos arcos longos, essas flechas eram capazes de perfurar a maioria das armaduras. A topografia do local também conspirou a favor dos ingleses, pois o campo, relativamente estreito, era ladeado, à direita e à esquerda, por densos bosques onde a circulação de tropas montadas era impossível, o que livrava Henrique e seus homens da preocupação com a possibilidade de serem flanqueados. Para completar, a vanguarda francesa era formada pelos nobres e suas guardas pessoais: esses cavaleiros haviam feito questão de estar à frente, para garantir a própria glória no que esperavam ser uma vitória rápida e fulminante, e para ter a chance de capturar vivos alguns nobres ingleses, pelos quais seria possível obter gordos resgates. Os besteiros, únicos no exército francês que poderiam ter respondido aos arqueiros, estavam atrás, sem possibilidade de intervir. Os poucos cavaleiros franceses que conseguiram se aproximar do inimigo deram de cara com uma floresta de estacas longas e pontudas, que os arqueiros haviam fincado em diagonal no chão, e nas quais os cavalos se estripavam. Onda após onda de franceses atacou e encontrou seu fim sob as flechas inglesas. O próprio número enorme dos franceses trabalhou contra eles: os que vinham atrás, ainda sem perceber o tamanho do desastre, impediam que os da frente recuassem para se reorganizar. A pressão vinda de trás foi forçando milhares de franceses para dentro de uma espécie de corredor, entre duas colunas de arqueiros que os massacravam sem parar – e, ao fim desse corredor, os cavaleiros e lanceiros ingleses esperavam por eles. Quando ficaram sem flechas, os arqueiros empunharam o que quer que tivessem à mão (alguns tinham espadas, a maioria apenas machadinhas, facas e outros objetos que eram mais ferramentas que armas) e caíram sobre os flancos do inimigo, agora cansado, confuso e aterrorizado demais para conseguir lutar decentemente. Muitos franceses foram feitos prisioneiros, na maior parte homens nobres e/ou abastados, cujos resgates poderiam mudar a vida de seus captores. Entretanto, uma vez mais, o número excessivo foi sua perdição. Ainda havia um grande contingente de franceses descansados preparando-se para atacar, e o rei Henrique sabia que precisaria que cada homem que ainda tinha estivesse em seu posto de combate; não podia dar-se ao luxo de deixar boa parte deles vigiando prisioneiros. Além disso, estes últimos eram tão numerosos que, mesmo desarmados, poderiam rebelar-se, com boas chances de conseguir dominar seus carcereiros, apossar-se de armas que facilmente achariam entre os mortos no campo de batalha, e obrigar os ingleses a uma luta em duas frentes, que, sem a menor dúvida, seria o seu fim. Nessas circunstâncias, Henrique tomou uma decisão difícil, mas que se mostraria acertada: mandou seus homens executarem os prisioneiros e depois se prepararem para receber a última onda do exército francês, que não teve melhor sorte que as anteriores. Foi uma carnificina – mas parece que, nessa fase final da batalha, novos prisioneiros foram capturados; ou isso, ou os mais importantes do grupo anterior foram poupados da matança, pois os registros históricos fazem referência a cativos sendo levados até Calais e depois à Inglaterra, e a resgates que teriam sido efetivamente pagos.

Na peça, Shakespeare fala em dez mil franceses mortos, um número razoavelmente realista segundo os historiadores, mas "viaja" longe ao mencionar apenas 29 baixas fatais do lado inglês, sendo quatro nobres e 25 homens comuns – um "exagero ao contrário", claramente destinado a reforçar a ideia de que a vitória fora um milagre. O número real de mortos deve ter sido algo em torno de 500, sendo impossível saber quantos foram feridos; ainda assim, uma impressionante média de vinte para um! Henrique, que sempre acreditara ter Deus ao seu lado, atribuiu totalmente a Ele essa vitória impossível. No filme, o rei começa a entoar uma belíssima e comovente versão para o Non Nobis (do Salmo 113), dizendo, em síntese, que a glória desse dia não cabe a ele nem a seus homens, mas unicamente a Deus. Aos poucos, os soldados vão juntando suas vozes à dele em meio àquele campo enlameado e juncado de cadáveres, na cena mais emocionante do filme.

Ao colher os frutos de sua vitória, Henrique preferiu mostrar benevolência, talvez na intenção de dar início a um tempo de entendimento entre os dois reinos que esperava governar. Naturalmente, fez uma série de exigências de cunho territorial, econômico e estratégico, mas, em vez de destronar Carlos VI, como poderia ter feito, contentou-se em receber em casamento sua filha, a princesa Catarina, então com 15 anos (pelo costume da época, essa era a idade de casar; Henrique é que estava atrasado, ainda solteiro com quase 29), e em ser formalmente nomeado o próximo na linha de sucessão ao trono da França, o que, é claro, implicou em deserdar o delfim, o que muito deve ter agradado a Henrique. Infelizmente para ele e para a Inglaterra, porém, Henrique nunca se sentaria nesse trono: morreu repentinamente em 1422, com 36 anos de idade. Seu filho, Henrique VI, também foi um rei notável (e também assunto de peças de Shakespeare), que, além de reinar sobre a Inglaterra, disputou longamente o trono da França com seu tio, Carlos VII – o ex-delfim, coroado, em grande parte, graças aos feitos de Joana d'Arc.


Só a título de curiosidade, algumas fontes informam algo interessante: o popular gesto obsceno de mostrar o dedo médio esticado, que quase todos pensam tratar-se de um símbolo fálico (tanto, que o gesto é normalmente acompanhado da expressão fuck you, ou do equivalente no idioma local), teria tido origem, na verdade, num episódio relacionado à batalha de Azincourt. Os cavaleiros franceses tinham um ódio antigo aos arqueiros britânicos, em especial os galeses, por causa das derrotas sofridas em Crécy (1346) e Poitiers (1356); aos olhos deles, essas derrotas pareciam um ultraje, até mesmo algo antinatural: como era possível que arqueiros, que não passavam de camponeses, tivessem tido a ousadia de liquidar centenas de cavaleiros, que eram nobres?! Para eles, isso era uma subversão da ordem "natural" das coisas, um crime que merecia punição exemplar. Então, certos de vencer em Azincourt, dada a vasta superioridade numérica de seu exército, os nobres franceses teriam prometido cortar o dedo médio da mão direita de todos os arqueiros que fossem capturados, a fim de que nunca mais pudessem manejar um arco… Uma ameaça sem muito sentido, na verdade, pois os arqueiros eram homens do povo, sem famílias ricas que pudessem pagar resgates; portanto, não tinham valor como prisioneiros, e, se capturados, seriam muito provavelmente executados sem mais delongas. De qualquer forma, quando, contra todas as expectativas, os britânicos venceram, conta-se que os arqueiros divertiam-se ao passar pelos cercados improvisados para os prisioneiros franceses e zombar deles exibindo o dedo médio, para mostrar que ainda o tinham, de modo que a ameaça dera em nada. Talvez nunca saibamos se essa é de fato a origem do tal gesto, mas esse é bem o tipo de curiosidade do qual eu gosto!

Henrique V, claro, é um épico, mas não é só isso. O perfil psicológico do protagonista é sólido, detalhado, fazendo dele um personagem complexo, o que deve ser ainda mais difícil de conseguir no teatro que num romance. Como disse, não conheço as peças anteriores da quadrilogia, mas, pelo que fiquei sabendo ao pesquisar o assunto, a mudança de Henrique, do jovem irresponsável para o rei intrépido, é convincente e marcante. Dois episódios de Henrique V ilustram isso; ambos são tratados brevemente na peça e um pouco mais detalhados no filme, acredito que retomando elementos de Henrique IV, parte 2, e ambos envolvem antigos companheiros de farra do rei na época em que este era príncipe. No primeiro, ainda na Inglaterra, um velho fidalgo, Sir John Falstaff, está doente, à beira da morte, e todos os seus amigos são unânimes em dizer que ficou assim devido à tristeza de ter sido destratado e renegado pelo rei, que, no último encontro dos dois, afirmou não conhecê-lo, apesar de terem virado tantas noites bebendo, cantando e arrumando confusão juntos em tabernas. No segundo, ocorrido já durante a campanha na França, Bardolfo, soldado do exército de Henrique e também seu velho chapa de bebedeiras, rouba de uma igreja e, por tal crime, deve ser condenado à morte; o rei poderia, se quisesse, mandar prendê-lo e, mais tarde, depois da poeira baixar, libertá-lo discretamente, aplicando alguma pena mais branda – mas opta por não fazer nada disso: Bardolfo é imediatamente enforcado, sem favorecimento algum. Nesse caso, Henrique mostra-se apenas justo e, pode-se dizer, inflexível; com Falstaff, ele é decididamente cruel. Entretanto, os dois episódios deixam entrever no espírito do rei uma mesma decisão: a de enterrar de vez seu passado de loucuras. E esses dois homens faziam parte desse passado.

Henrique V acaba de passar a dividir com Macbeth o primeiro lugar na minha preferência entre as peças de Shakespeare (o que pode mudar, é claro, pois, por enquanto, li poucas delas), e apresenta em traços vigorosos a marca da genialidade de seu criador. As partes que tratam de pessoas comuns são um tanto maçantes, mas isso é largamente compensado pelas cenas grandiosas que colocam em jogo o destino de nações, com um protagonista de um carisma indescritível e mais um punhado de personagens notáveis. Nas mãos habilidosas de Kenneth Branagh, essa grande peça tornou-se um filme inesquecível, um sinal visível de que Henrique não estava dizendo palavras vazias ao prometer a seus soldados uma fama que o tempo não apagaria. Seis séculos depois, seus feitos ainda inspiram os que encontram em histórias de heroísmo, fictícias ou reais, uma fonte de força e coragem para enfrentar seus próprios desafios.