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terça-feira, março 26, 2024

Nefarious


O mal prega a tolerância, até que se torne dominante. A partir daí, ele procura silenciar o bem. (São John Henry Newman)

Nunca encontrei um diabo ateu. (Pe. Gabriele Amorth, exorcista-chefe do Vaticano)

Ele fez vocês à Sua imagem… mas nós os refizemos à nossa. (Nefarious)

*          *          *

Se Nefarious tivesse sido filmado dez anos atrás, teria alcançado uma notoriedade discreta, sendo saudado por um segmento de aficionados do terror que muito apreciariam a chegada de um filme sobre possessão demoníaca que faz a proeza de fugir da maioria dos estereótipos desse subgênero – estereótipos esses que se consolidaram por meio das toneladas de imitações de O Exorcista (1974), baseado no livro de William Peter Blatty e dirigido por William Friedkin, que praticamente criou sozinho o referido subgênero e é hoje aclamado, com justiça, como um clássico e como um dos melhores filmes de terror já feitos, embora, infelizmente, a vastíssima maioria dos filmes que ele inspirou durante esses 50 anos sejam esquecíveis… com uma honrosa exceção aqui e outra ali. E, sim, Nefarious realizou essa proeza, oferecendo como resultado um filme de possessão (sem exorcismo) que investe na tensão psicológica e no debate de ideias, deixando de lado os sustos fáceis, os efeitos visuais mirabolantes e a "exibição vulgar de poder" (e aqui dou o devido crédito às palavras do demônio Pazuzu através dos lábios da garota Regan, no filme de Friedkin).

Hoje, embora ainda seja tudo isso, Nefarious se reveste também de um significado maior. Na atual conjuntura, em meio à guerra cultural que estamos vivendo, um filme com pontos de vista conservadores, com uma premissa baseada numa visão de mundo cristã, e potencial para fazer sucesso e suscitar o debate, deixa o pessoal "do lado de lá" de orelha em pé, como é fácil verificar ao procurarmos saber qual foi a reação dos "especialistas": mais de 70 por cento da crítica detonou o filme – para surpresa de ninguém, pois sabemos que, com raríssimas exceções, esse povo é fortemente woke, de modo que não poderiam dizer nada de bom sobre uma obra alinhada com as pautas da "extrema-direita", como esta; o julgamento deles é puramente ideológico, sem nada a ver com o mérito artístico. E, como também sabemos, para a beautiful people e para a mídia, que está quase toda nas mãos deles, se você defende que a vida humana é sagrada, que pátria e família são importantes, que um ser humano com pênis e testículos é um homem e um ser humano com vagina e ovários é uma mulher, que a liberdade de pensamento e de expressão é base para a existência de qualquer outro tipo de liberdade, então você é "extrema-direita".

(Sim, sabemos o quanto a galera woke ama a liberdade de expressão: eles amam tanto que têm ciúme, querem só para eles.)

Na primeira cena de Nefarious, temos um suicídio: o Dr. Alan Fischer, que, como viremos a saber, é um psiquiatra de grande renome, joga-se do terraço do edifício onde tem seu consultório. O doutor estava prestes a emitir o parecer final a respeito de um serial killer condenado à morte; se sua conclusão fosse a de que o homem era insano, a sentença não poderia ser aplicada. Ante a necessidade de que esse parecer seja dado, o caso é assumido pelo Dr. James Martin (Jordan Belfi), um ex-aluno de Fischer especialmente brilhante. O condenado, Edward Wayne Brady (Sean Patrick Flanery) está detido numa penitenciária em Oklahoma, um dos 27 estados americanos que têm previsão legal para a pena de morte, e é para lá que o Dr. Martin se dirige para uma entrevista com ele – na manhã do próprio dia marcado para a execução de Brady, que deverá ocorrer naquela noite, a menos que Martin o declare insano. Portanto, o ônus de decidir sobre a vida ou a morte do assassino pesa unicamente sobre os ombros do médico.

A maior parte do filme consiste nos diálogos entre James e Edward… ou entre James e aquele que todos supõem ser Edward. Logo no começo da conversa, o prisioneiro se identifica como sendo na verdade um demônio, que está apenas ocupando o corpo de Brady. Seu verdadeiro nome, segundo ele diz, está num dialeto fenício extinto há milênios, então ele o traduz para o inglês moderno e diz a James que pode chamá-lo de Nefarious. Temos a palavra nefário em português, mas é raramente usada a não ser por quem esteja procurando deliberadamente falar difícil, então "nefarious" pode ser traduzido por vil, perverso, maligno. Um sujeito como James, ateu e sem o mínimo interesse em qualquer assunto relacionado a religião, não saberia disso, é claro, mas o primeiro e um dos mais sérios problemas enfrentados quando se está lidando com um demônio é aquilatar o tamanho do desafio: a entidade pode ser desde um reles demônio soldado raso (e mesmo um desses não é um oponente que se deva subestimar) até um grão-duque infernal que comande 60 legiões. Nefarious, no entanto, mostra-se desusadamente franco e objetivo para um demônio, e facilita essa parte declarando-se "lorde e alto príncipe". Portanto, dispõe de poderes que lhe permitiram induzir o Dr. Fischer ao suicídio, porque queria ser entrevistado não por ele, mas por James… E, quando o jovem psiquiatra pergunta por quê, o demônio responde que quer que ele escreva sua história.

Não é preciso dizer que James (no começo) não leva a sério de maneira nenhuma o que Edward/Nefarious diz. Para ele, demônios não existem – simples assim. Sua tarefa, ou assim ele pensa, consiste apenas em descobrir se o condenado acredita realmente no que está falando (e, nesse caso, é um doido de pedra, que não pode ser executado, mas passará o resto da vida num manicômio judicial) ou se só está jogando com ele, tentando convencê-lo de que é louco para escapar da execução (e, se for assim, é seu dever endossar a condenação dele). Porém, o suposto demônio inesperadamente vira o jogo ao dizer a James que, antes que o dia termine, ele – James – terá cometido três assassinatos… E não posso dizer mais sobre esse ponto para não dar spoiler; posso apenas adiantar que o psiquiatra se arrependerá do ceticismo com que a princípio recebe essas palavras.

Nefarious é um filme cuja força não está na ação, mas nos diálogos – e, nesse ponto, a dupla de atores principais impressiona com o desempenho que entrega: Belfi está bem, mas Flanery dá um show, praticamente interpretando dois papéis, e fazendo-o com maestria. Edward Brady parece um animal acuado, gagueja muito, evita o contato visual, está trêmulo, encolhido, com toda a sua linguagem corporal demonstrando a vergonha dos crimes que cometeu e o sofrimento de estar sob o domínio de Nefarious – enquanto este último se mostra à vontade, como quem tem total controle de uma situação e sabe disso, e fala pelos cotovelos, sempre de modo lógico e articulado. Isso nos leva a um ponto muito importante: o único momento em todo o filme em que o demônio demonstra medo é quando, a pedido de James, o capelão da penitenciária, Pe. Louis, entra na sala onde está ocorrendo a conversa – mas não demora nada para que ele perceba que o medo é desnecessário. Quando o padre e o psiquiatra se apresentam, ao apertarem as mãos, o capelão diz "Padre Louis… Mas pode me chamar de Louis, ou de Lou", ao que James replica: "Doutor James Martin". O título de padre deveria ser, de longe, muito mais importante e honorável que o de doutor, mas, enquanto James faz questão de ser tratado por seu título, Louis pouco parece ligar para o dele, o que já diz uma coisa ou duas sobre o tipo de padre modernex que ele é – um tipo bem comum, infelizmente. Na vida real, um padre desses provavelmente estaria em trajes civis; no filme ele veste clergyman para que o espectador possa identificá-lo facilmente como padre, mas usa também uma estola toda colorida, que simboliza seus pendores progressistas. Ao perceber que está diante de um padre, Edward/Nefarious pula da cadeira, tentando afastar-se dele o quanto lhe permite a corrente que prende suas algemas à mesa, e berra: "O que quer comigo, filho de Deus?" Essa é também a única vez que ele pronuncia o nome de Deus, o que durante todo o resto do tempo evita cuidadosamente fazer, referindo-se a Ele apenas como "o Inimigo"; é só o pânico do momento que o leva a esquecer-se de fazer isso. (Trataremos da importância dos nomes daqui a pouco.) Porém, como dito acima, bastam poucos minutos de conversa com o sacerdote para o lorde-demônio se tranquilizar:

Pe. Louis: Não estou aqui para lhe fazer mal, Edward. Estou aqui para ajudá-lo. (…) Pessoalmente, nunca encontrei um demônio, nunca tomei parte num exorcismo, nem espero fazê-lo. Muitas das coisas que nos incomodam são apenas nossos próprios medos e pensamentos desordenados.

Nefarious (depois de uma longa pausa): Então… você não considera a possessão demoníaca uma possibilidade?

Pe. Louis: Nossa compreensão evoluiu além disso.

Nefarious (depois de uma pausa ligeiramente mais curta): Bem, eu… estou contente de que você diga isso. Eu me sinto muito melhor. E eu estava errado sobre você. Deveria tê-lo convidado a me visitar muito antes, mas estou contente de que tenha vindo. Estou contente por estarmos todos nos dando bem.

Pe. Louis: Você gostaria que eu ficasse?

Nefarious (prontamente): Não. Já terminamos.

Por causa de sua unção apostólica, tendo validamente recebido o sacramento da ordem, o Pe. Louis está investido de uma parcela do poder de Cristo, incluindo a capacidade de expulsar demônios – e isso Nefarious teme. Mas, quando percebe que Louis não tem fé nesse poder e não vai usá-lo, até porque acha que demônios não passam de "metáforas", ele relaxa. Sua interação com o padre passa a ser amigável, e ele chega a tentar apertar-lhe a mão, o que Louis não permite – talvez por via das dúvidas. O recado que o roteiro quer passar com isso tudo fica claro: há certas alas dentro da Igreja que estão fazendo pouco ou nada para atrapalhar os planos de Satanás e seus asseclas. Para estes últimos, a infiltração de uma mentalidade progressista no meio cristão é ótima.

Nefarious é um filme difícil de comentar sem dar spoilers, porque 80 por cento de seu interesse está no campo da discussão de ideias, de modo que a tentação de descambar para longas dissertações que entregariam tudo é grande. Vou tentar contentar-me em sublinhar dois ou três pontos essenciais, que servirão para dar uma noção básica a algum leitor que porventura encontre este post sem ter ainda visto o filme. Disse acima que Nefarious se sente no pleno controle da situação, e isso literalmente, pois foi ele quem tramou para que sua conversa com James acontecesse exatamente nas circunstâncias em que de fato acontece. Isso fica evidente neste diálogo:

James: Edward, você entende por que eu estou aqui? Entende que eu tenho o poder de salvar sua vida ou de condená-lo?

Nefarious: O que eu entendo, James, é que você não teria nenhum poder sobre mim se eu não lhe tivesse dado esse poder lá de baixo.

James, ignorante de religião, jamais perceberia, mas o que temos aí é a paráfrase de um trecho de outro diálogo, este entre Jesus e o governador romano Pilatos (Jo 19, 10-11). Nada mais adequado, já que, segundo a teologia, Satanás esforça-se por imitar Deus, embora sempre de maneira distorcida ou invertida, o que nos remete às descrições de missas negras, com suas cruzes de cabeça para baixo e orações recitadas de trás para frente… Foi Nefarious quem propositalmente se pôs naquela situação, e o fez com um objetivo bem determinado.

O demônio vai mais longe, falando a James sobre algumas das grandes chagas da sociedade moderna, a maioria delas engendradas por seu mestre Lúcifer, com sua ajuda e a de outros demônios – mas também afirma que há algumas nas quais eles "lá de baixo" nem tinham pensado: essas os homens inventaram sozinhos, para grande satisfação das hostes infernais. O pior (ou, dependendo do ponto de vista, melhor) é que James, do alto da sua arrogância woke, acha que tudo lá fora está indo às mil maravilhas.

Nefarious: Olhe, James não se trata apenas de você ou do Edward. Trata-se de todos: toda a raça humana. Todos nós (demônios) contra todos vocês.

James: Se é assim, o seu lado não está se saindo muito bem. (…) Nunca fomos tão livres. Alcançamos altos índices de alfabetização. Estamos acabando com o racismo, com a intolerância, com a desigualdade de gênero. As pessoas podem amar quem elas quiserem, ser o que quiserem, fazer o que quiserem. A diversidade não é mais um sonho. O discurso de ódio não é mais tolerado. Chegamos a uma posição moralmente superior.

Nefarious: James… Acho que eu te amo.

Para Nefarious e sua "patota", é ótimo que James e milhões de outros abestados pensem dessa forma. O que o demônio enxerga e o psiquiatra não, é que o que o mundo moderno chama de "liberdade" consiste em não assumir responsabilidade por nada; que, se hoje em dia quase todo mundo é alfabetizado, isso não acontece sem que uma tonelada de ideologias nocivas sejam ensinadas junto com as letras a crianças que ainda não têm como se defender; que agora dizer a verdade, ou chamar as coisas pelo nome que elas têm, é considerado "discurso de ódio", e assim por diante. As sociedades modernas estão caminhando a passos largos para o maior e mais enlameado buraco em que alguma sociedade já se meteu em toda a História – e estão indo para esse buraco na maior das alegrias, crentes de que estão fazendo grandes progressos. Satanás deve estar às gargalhadas. Ele e seus servos sempre tiveram a mentira como uma de suas principais armas, mas não significa que não possam dizer a verdade quando lhes convém, e é o que Nefarious faz quando cruamente mostra a James que o que ele chama pelo antisséptico nome de "interrupção eletiva" (ou seja, aborto) não é diferente do que os fenícios faziam na Antiguidade como ato de adoração a ele e a outros demônios (que eles tinham na conta de deuses), queimando bebês vivos diante de imagens antropozoomórficas de bronze.

Satanás e seus demônios também parecem ter familiaridade com as lições de Sun Tzu sobre a importância de conhecer o inimigo. Quando James (afetadamente, como é próprio dele) se mostra surpreso ao ouvir conversa teológica vir da boca de um demônio, Nefarious lhe dá a real: "Eu conheço mais teologia que qualquer ser humano que já tenha vivido." E isso faz todo o sentido. Há gente que diz "eu acredito em Deus" como se isso, por si só, significasse grande coisa; bem, todos os demônios também acreditam. Outras pessoas, equivocadamente, veem uma afinidade entre satanismo e ateísmo – quando, na verdade, se admitirmos que Deus não existe, então, por óbvio, Satanás também não. Satanismo significa revolta contra Deus, e não faz nenhum sentido revoltar-se contra algo em cuja existência não se acredita. Isso me leva a outro ponto: o inimigo, ou melhor, "Inimigo", com letra maiúscula, é como Nefarious se refere a Deus; já Jesus, ele chama de "o Carpinteiro". Evita nomeá-los porque, como ele mesmo diz, nomes têm poder. Na certa não foi por outro motivo que se escusou de dizer a James seu verdadeiro nome, substituindo-o por uma versão adaptada. (Não que um pateta como James fosse saber o que fazer com tal informação, mas para que correr riscos desnecessários?) Padres exorcistas sempre dizem que, uma vez que se consiga fazer com que um demônio diga seu nome, um grande passo foi dado para vencê-lo – mas que eles se negam com todas as forças a fazê-lo, porque sabem que… bem, que os nomes têm poder.

Há outros pontos dos diálogos entre o demônio e o psiquiatra que eu gostaria muito de abordar, mas aí já estaria entregando muita coisa; acho que o que detalhei até aqui é suficiente para dar uma ideia do que espera por quem decidir ver o filme – e vale muito a pena vê-lo. Não apenas os pontos discutidos, mas também o final, que reserva diversas surpresas, ficarão na mente do espectador durante um bom tempo. Nefarious é um bom exemplo de como é possível fazer filmes notáveis com um baixo orçamento – segundo informações da internet, cinco milhões de dólares, o que, para os padrões da indústria cinematográfica, é o troco da padaria. Também não é um filme que fosse receber atenção da grande mídia, ao menos nenhuma atenção positiva, e, se chegou a ser exibido nos cinemas nacionais, eu não fiquei sabendo. Foi assunto forte no YouTube há alguns meses, recebendo comentários positivos de produtores de conteúdo cujas opiniões eu prezo – e negativos de outros cujo desagrado, para mim, é sinal de coisa boa. Na época, consegui ver o filme na internet, depois de muita procura, e não me senti muito bem de não estar contribuindo com minhas moedas para que ele fosse bem-sucedido e pudesse ajudar a encorajar outras iniciativas semelhantes – mas que opção eu tinha? Era assistir assim ou então não assistir. Foi por isso que agora, que ele finalmente ficou disponível no YouTube Premium, fiz questão de não meramente alugá-lo, mas comprá-lo, o que, acredito, quita minha dívida, fora o fato de que é um desses filmes que vale a pena ter, e rever de tempos em tempos. Por sinal, acabo de revê-lo, e precisava disso para me sentir razoavelmente seguro para escrever sobre ele – um mau hábito meu que torna minhas resenhas sobre filmes basicamente inúteis, já que só consigo postá-las meses depois do lançamento. Paciência! Eu só escrevo sobre um filme quando acho que ele tem relevância duradoura (ou quando acho que perdeu a oportunidade de tê-la…), e, analisando por esse lado, talvez as resenhas tenham sua razão de existir, afinal de contas.

A direção de Nefarious é a quatro mãos, assinada por Chuck Konzelman e Cary Solomon, também produtores; este último também é responsável por Deus Não Está Morto (2014), um filme muito simples, quase amadorístico, mas que também apresenta um ponto de vista claramente cristão e tem o debate de ideias como eixo de seu roteiro, o que o torna interessante, mesmo com as deficiências que tem. A comparação deixa evidente que Solomon progrediu muito como cineasta: considero Nefarious muito bem feito, embora pessoas que entendem mais de cinema que eu (e que gostaram do filme) tenham apontado certas falhas que, para mim, passaram por alto. Não é demais elogiar de novo o soberbo desempenho de Sean Patrick Flanery, que, vejam só, eu descobri que já conhecia há muito tempo, embora não fosse reconhecer nunca: lá no início dos anos 90, ele protagonizava a série de TV O Jovem Indiana Jones, que, como o título já entrega, conta as aventuras da juventude do célebre arqueólogo imortalizado no cinema por Harrison Ford. Eu adorava essa série, mas de lá para cá, que me lembre, não tinha tornado a ver Flanery.

Em nossos dias, um filme como Nefarious está nadando contra a correnteza da mídia mainstream. Foi-se o tempo em que Hollywood apostava em produções de forte apelo religioso, como Os Dez Mandamentos ou O Manto Sagrado, que faziam sucesso porque dialogavam com um público indelevelmente conectado à mensagem e ao modo de vida cristão que (gostem os modernetes ou não) tornaram possível o nascimento da civilização ocidental como a conhecemos, e a mantiveram de pé durante séculos. O próprio O Exorcista, um filme assustador e perturbador, termina com a inevitável conclusão de que a fé em Deus é o único antídoto verdadeiramente eficaz contra o mal que ensombrece a alma humana – e que tantas vezes se manifesta sem necessidade de possessão alguma. Hoje, a indústria do cinema nem considera a possibilidade de permitir o surgimento de coisas assim, e não é porque não fossem dar lucro: a maioria das pessoas ainda crê em Deus e nos valores humanos fundamentais, e ainda deseja consumir obras que reflitam sua visão de mundo; acontece que a referida indústria está fechada com um lado da guerra cultural, e, para esse lado, desmantelar o cristianismo é essencial, porque ele é o maior obstáculo à instauração de uma nova forma de totalitarismo, desta vez de alcance global. É por isso que, já há décadas, tudo o que seja cristão só é representado, na grande mídia, de duas maneiras: ridícula ou maléfica. Quem tentar fazer algo diferente jamais encontrará, na esfera dessa grande mídia, apoio ou investimentos para tirar sua ideia do papel. Para os realizadores que desejam produzir obras que deem voz aos valores cristãos e tradicionais, e para o público ávido por obras assim, resta o caminho das produções independentes, e Nefarious é um dos melhores exemplos disso que vi nos últimos anos.

terça-feira, fevereiro 22, 2022

Cobra Kai


Pratiquei caratê durante uns seis anos, dos 12 aos 18 (isso foi de meados dos anos 80 até o início dos 90), chegando à faixa verde, que é a terceira na categoria kyu ('discípulo'; a contagem é das mais altas para as mais baixas). A outra categoria chama-se dan ('mestre') e também tem suas graduações, embora todos os dan usem faixa preta. Como minha namorada, Cintia (neta de japoneses) já me ouviu recordar, receio que mais de uma vez, aprendi a contar até quatro em japonês graças a um dos vários exercícios que fazíamos no dojo ('academia'). Esse exercício era assim: obedecendo à contagem do sensei ('mestre'), dávamos um passo em frente, acompanhado do golpe que estivéssemos praticando no momento, a cada número que ele enunciava. Ao chegar à parede, fazíamos meia-volta e a contagem recomeçava. Ou seja, se a sala fosse maior, eu teria aprendido mais números!

Essa piadinha pueril que circulava no dojo ilustra bem o fato de que, ainda que o caratê nos desse um nível de foco e disciplina que a maioria não tem na nossa idade, mesmo assim éramos garotos (garotOs: em seis anos no dojo, acho que vi umas quatro ou cinco meninas, e uma era filha do professor), e, como nove entre dez garotos, adorávamos filmes de artes marciais. Entre os mais populares estava a trilogia Karate Kid, cujos filmes saíram em 1984, 86 e 89; vi o primeiro quando fazia cerca de um ano que treinava – passou na TV, que era como a gente via filmes na época, de modo que todo mundo viu ao mesmo tempo, e, a partir daí, ele foi o assunto forte na academia durante semanas. O segundo chegou aos cinemas pouco depois que o primeiro passou na TV, e o terceiro, alguns anos depois, e eles também causaram seu impacto, ainda que menor. Nosso sensei nunca disse uma palavra sobre esses filmes; pensando a respeito hoje, creio que ele apreciava a motivação que aquilo nos trazia, e preferia não nos desiludir explicando que muito do que os filmes mostravam era pura fantasia. De todo modo, descobriríamos isso mais cedo ou mais tarde, caso continuássemos treinando.

Acho difícil que alguém que esteja me lendo não tenha visto o primeiro Karate Kid, ou não teria se interessado em ler a respeito de Cobra Kai, então talvez eu nem precisasse falar sobre ele, mas não parece certo não dar ao menos um resumo básico (prometo tentar mantê-lo realmente básico). O jovem Daniel Larusso (Ralph Macchio) começa a frequentar uma nova escola depois de mudar-se, e nela conhece e se interessa por Alison "Ali" Mills (Elizabeth Shue), uma garota bonita, rica e popular que é animadora de torcida (é um filme para adolescentes, então relevem os clichês). Ela também gosta dele, embora Daniel seja apenas um calouro magrelo, pobre e sem nada de excepcional (relevem também as inverossimilhanças). Ocorre que Ali, até pouco tempo antes, namorava Johnny Lawrence (William Zabka), que por acaso é o campeão regional de caratê e não aceitou a decisão dela de terminar. Como resultado, Daniel passa a sofrer bullying violento com frequência – e nem sempre de forma inocente: por vezes ele bem que provoca. Quando está levando uma surra particularmente dura aplicada por Johnny e vários de seus amigos que também são lutadores, o garoto é salvo pelo Sr. Miyagi (Noriyuki "Pat" Morita), que trabalha como zelador e faz-tudo no condomínio modesto onde ele mora. Ao ver aquele japonês idoso e baixinho nocautear cinco atletas de caratê de uma vez só, Daniel percebe que o homem é muito mais do que aparenta, e o convence a lhe ensinar caratê para que possa se defender. Durante seu treinamento, ele recebe de Miyagi uma série de lições que, embora direcionadas ao caratê, encontram aplicação nas mais diferentes situações da vida. O filme termina com Daniel e Johnny se enfrentando no torneio regional, e o final dá a entender que a vitória (dramática, como teria que ser) alcançada pelo primeiro deve ter posto fim ao seu tormento.
 
Os outros dois filmes são apenas desdobramentos do primeiro. O segundo, ambientado na maior parte em Okinawa (a província natal do Sr. Miyagi, no sul do Japão, e provável local de origem do caratê) é legal; o terceiro é fraco, praticamente uma reciclagem do roteiro do primeiro, mudando apenas os detalhes. Existe um quarto filme que, apesar de contar com Morita novamente no papel de Miyagi, é considerado constrangedor por quase todos os fãs da saga; nele, o mestre treina uma nova aluna, interpretada por Hilary Swank. Ralph Macchio não participa – não que sua ausência seja o motivo da ruindade do filme, pois no terceiro ele está tão irritante que dá vontade de socá-lo, não fosse ele um lutador treinado. Esse quarto filme é solenemente ignorado nos roteiros de Cobra Kai, que têm sempre o maior cuidado em levar em consideração cada mínimo detalhe dos três primeiros.

A série estreou em 2018 no YouTube Premium, mas, depois de duas temporadas bem recebidas pelo público, foi adquirida pela Netflix. A terceira temporada saiu no início de 2021, e a quarta, no final do mesmo ano; a quinta já foi confirmada e é esperada para algum momento de 2022. A primeira coisa que chama atenção é o fato de os produtores terem conseguido trazer de volta praticamente todos os atores principais dos filmes (com exceção de Morita, que faleceu em 2005) e até mesmo muitos dos secundários. Os protagonistas são Daniel Larusso e Johnny Lawrence, novamente interpretados por Ralph Macchio e William Zabka, mas, diferente do que acontecia nos filmes, aqui a história é narrada, a priori, do ponto de vista do segundo. Isso fica evidente já no início do primeiro episódio, que exibe as cenas finais do primeiro Karate Kid, com Daniel nocauteando Johnny com o hoje clássico golpe do grou (ou garça), mas, depois do chute que decidiu a final do torneio em 1984, a câmera deixa de lado a comemoração de Daniel e seus amigos para focar em Johnny caído no tatami, atordoado e vencido. A seguir, corta para os dias atuais. Trinta e poucos anos depois de perder o título de campeão de caratê, Johnny sobrevive fazendo serviços de manutenção residencial e mora num condomínio humilde, muito parecido com aquele onde Daniel morava na adolescência – de certo modo, os papéis se inverteram, pois, na época, Johnny parecia ser um rapaz rico, que circulava numa imponente moto e frequentava o elitista country club local. Ficamos sabendo então que ele tem um padrasto rico, mas com quem nunca se deu bem e de quem não quer aceitar favores. Para piorar, tem uma tendência a beber demais. Daniel, em contrapartida, subiu na vida, e agora é dono de várias concessionárias de veículos espalhadas pelo Vale de San Fernando, um distrito de Los Angeles, bem perto de Hollywood e famoso por concentrar as produtoras de filmes adultos (não que isso tenha algo a ver com a história – risos). É casado com Amanda (Courtney Henggeler) e tem dois filhos, a patricinha Samantha (Mary Mouser) e o caçula Anthony (Griffin Santopietro), típico pré-adolescente pé-no-saco que sofre crise de abstinência se ficar uma hora sem celular ou videogame. Samantha, na infância, chegou a aprender caratê com o pai e com o Sr. Miyagi (agora já falecido), mas não pratica há anos, enquanto Anthony nunca teve o menor interesse na arte marcial.
 

Johnny encontra algum estímulo para sair de sua estagnação ao conhecer Miguel Diaz (Xolo Maridueña), filho de uma imigrante equatoriana, que acaba de se mudar para o mesmo condomínio junto com a mãe e a avó. Meio por acaso, salva-o de levar uma surra de um grupo de valentões da escola (é curioso como o mundo dá voltas), e nota-se sua satisfação, apesar de tudo, ao constatar que ainda é um excelente lutador. Começa por recusar os pedidos de Miguel para ensiná-lo, mas acaba não só aceitando, como decide recriar o Cobra Kai, nome do dojo no qual treinava na juventude. O Cobra Kai foi originalmente fundado por John Kreese (Martin Kove), um veterano da Guerra do Vietnã que, ao ensinar caratê, punha ênfase na agressão, inculcando em seus discípulos que "compaixão é para os fracos", o que explica, ao menos em parte, o comportamento truculento de Johnny e seus amigos nos velhos tempos. Portanto, as recordações de Johnny a respeito de seu mestre e do lugar onde aprendeu a lutar são ambivalentes: ali ele não aprendeu apenas como dar golpes e como defender-se deles – aprendeu também sobre disciplina e autoconfiança, lições que lhe podem ser úteis agora, que ele está novamente tentando dar um rumo a sua vida; por outro lado, sofreu uma lavagem cerebral que o transformou num indivíduo irracional e violento, um condicionamento do qual ele ainda luta para se livrar. Seu objetivo é passar aos jovens somente o que havia de bom nos ensinamentos que recebeu: como ele próprio diz, quer ensiná-los a "serem durões sem serem babacas". Infelizmente, nem todos os seus alunos assimilam essa lição, e alguns se aproveitam do fato de agora saberem lutar para virarem eles próprios os bullies.

Daniel fica inconformado ao saber que Johnny trouxe o Cobra Kai de volta e decide contra-atacar abrindo seu próprio dojo, o Miyagi-do, para ensinar caratê focado na autodefesa, tal como aprendeu com seu falecido sensei. Isso reacende a rivalidade entre os dois, mas nota-se que ambos amadureceram (embora nem sempre aparentem) e que têm respeito um pelo outro como lutadores, ainda que cada um ache que sua abordagem do caratê é superior. Em vários momentos chega a parecer que estão a ponto de se tornar amigos, mas, é claro, algo sempre acontece para estragar tudo.
 
 
Paralelamente ao conflito entre os dois senseis, a série também acompanha o que se passa com seus discípulos. Miguel, o primeiro aluno de Johnny, faz progressos impressionantes e torna-se um lutador de primeira linha, ao mesmo tempo que se envolve com Samantha, a filha de Daniel, que, por sua vez, redescobre o interesse pelo caratê e volta a treinar. Johnny, embora nunca tenha se casado, tem um filho com uma ex-namorada; o rapaz, Robby (Tanner Buchanan), tem a mesma idade de Miguel e Samantha e faz o tipo adolescente revoltado. Não quer ver o pai nem pintado e vive com a mãe, mas ela também não é nenhum grande exemplo de comportamento, nem se responsabiliza de fato por ele, de modo que Robby aprendeu a se virar sozinho desde muito cedo – a se virar do jeito errado, diga-se de passagem. Anda nas piores companhias, não estuda e se dedica a praticar pequenos furtos e outras contravenções. Consegue um emprego na concessionária de Daniel apresentando um currículo falso, e, na verdade, é tudo parte de um plano que fez com seus amigos pilantras para infiltrar-se no local e mais tarde roubá-lo, mas acaba se afeiçoando a seu chefe, que o trata de forma justa e lhe ensina muitas coisas – caratê inclusive – sem saber que ele é filho de seu velho rival, pois o garoto usa o sobrenome da mãe. Os ensinamentos de Daniel e o equilíbrio trazido pela prática do caratê vão gradualmente colocando Robby nos eixos; para Johnny, é como se Daniel estivesse roubando seu filho, tal como lhe "roubou" o título de campeão tanto tempo atrás. A certa altura, as coisas entre Miguel e Samantha desandam, e, por treinarem juntos no Miyagi-do, a garota já tinha proximidade com Robby, que sempre foi a fim dela (que é muito bonita, meiga, e ao mesmo tempo corajosa) e aproveita o afastamento entre ela e o namorado para "atacar"; esse triângulo amoroso está destinado a render muita história ao longo da série. Outros personagens jovens também têm lugar na trama, e a maior parte do elenco teen se sai surpreendentemente bem.

Sem dar muito spoiler, adianto que outros rostos do passado vão surgindo e trazendo reviravoltas que obrigam Johnny e Daniel a trabalharem juntos, o que, no entanto, nunca acontece sem atritos. A série tem roteiros ágeis, com as doses certas de ação e drama; as partes românticas não são exageradas a ponto de se tornarem enjoativas, nem as partes de luta a ponto de cansarem (há também momentos de humor aqui e ali). Como dito acima, muitos atores da trilogia de longas-metragens (muitos mesmo) vão reaparecendo um por um, dando vida novamente a seus antigos personagens, o que é empolgante e divertido – puro fan service da melhor qualidade! Para dar uma ideia, até Randee Heller, que interpretava Lucille Larusso, mãe de Daniel, está de volta, velhinha como sua personagem teria que estar depois de mais de 30 anos. Rob Garrison, que fazia o papel de Tommy, um dos lutadores do Cobra Kai original e amigo de Johnny, retorna num episódio que investe na nostalgia – já muito debilitado pela doença que o mataria pouco depois.
 
No que diz respeito ao caratê em si, não sou um especialista, mas, como contei, cheguei a ter contato com a coisa e digo que, nesse quesito, Cobra Kai supera bastante os filmes que lhe deram origem. Nos filmes, sempre me incomodaram a falta de postura (postura mesmo, física) e os movimentos moles de Ralph Macchio; mesmo um aprendiz como eu podia ver que ninguém conseguiria lutar um caratê decente daquele jeito. Nosso sensei sempre nos cobrou energia e firmeza: cada movimento devia ser feito com força, os músculos precisavam funcionar. Em comparação com os filmes, a série cuidou muito melhor dessa parte; com certeza contou com mestres de artes marciais como consultores, e provavelmente os atores tiveram que treinar de verdade, o que não significa que tudo ali seja realista. Entre outras coisas (naturalmente), no mundo real ninguém se torna um lutador em questão de algumas semanas, como os alunos de Johnny e Daniel, mas, na minha opinião, dá para perdoar essa "licença poética" numa boa.
Vou confessar, tive um certo receio do que iria encontrar quando decidi assistir Cobra Kai; teria sido péssimo descobrir que o legado dos filmes Karate Kid só estava sendo usado como pretexto para empurrar um monte de lacração (o que não seria inesperado vindo do YouTube, e ainda menos da Netflix), mas, depois de ver alguns episódios e ter tempo de sentir a vibe da série, a sensação foi de alívio, além da empolgação. Pois Cobra Kai, surpreendentemente, não só nos poupa do insuportável discurso politicamente correto, como até mesmo tem a ousadia de tirar um leve sarro dele. Johnny é o próprio estereótipo do "macho hétero top" que, para os progressistinhas de Twitter, resume tudo o que há de errado no mundo (em muitos círculos, "hétero" virou pejorativo): gosta de cerveja, de rock das antigas (nada posterior aos anos 80), de carros, motos, filmes de ação (tem uma epifania ao assistir a uma reprise do clássico Águia de Aço), esportes de combate (claro!!) e não entende muito bem o mundo moderno com sua tecnologia e suas frescuras – e isso tudo rende momentos engraçados, mas não é apresentado de forma negativa. Mesmo com seu passado de vilão, Johnny é um personagem com quem nos importamos e por quem torcemos. Há uma cena impagável em que uma nova aluna se apresenta à turma e, depois de dar o nome, acrescenta que seus pronomes são "ela" e "dela". (Parêntese: para quem não sabe que besteira é essa, é costume na Lacrolândia colocar no seu perfil nas redes sociais os pronomes que você quer que as pessoas usem para falar de você, porque, no mundo do politicamente correto, é considerado violência presumir o sexo [ou "gênero", como eles dizem] de alguém mediante uma mera inspeção visual; se um sujeito barbudo, peludo e musculoso, cujo RG o identifica como Alcides, declarar que está se sentindo mulher, quiser ser chamado de Shirley e que se refiram a ele como "ela", todo mundo tem que fazer isso. Fim do parêntese.) Johnny replica que os únicos pronomes que importam ali são "sensei" e "aluno". A garota diz que esses são substantivos, e o mestre encerra o papo: "Oh, desculpe. Eu quis dizer CALE A BOCA!" Perfeito!! Ao longo da série, mais de um garoto moloide e cheio de não-me-toques se transforma depois de algum tempo no dojo – em qualquer dos dojos.

Colocando a questão em palavras simples, o fato é que o caratê e outras artes marciais são a antítese dessa cultura da glorificação da fraqueza que nos cerca hoje. O mundo está cheio de jovens "floquinhos de neve" – mimados, frágeis, hipersensíveis – que se ofendem e se magoam com tudo e são absolutamente incapazes de qualquer coisa que exija um mínimo de determinação ou sacrifício, e isso nem é o pior: o pior é que a mídia e grande parte da sociedade incentivam e recompensam esse tipo de atitude. No caratê, você precisa de força de vontade para obter qualquer progresso, precisa se acostumar à obediência pronta, a treinar sempre, não importa se está disposto ou não, a conviver com a dor, a esforçar-se pela vitória mas encarar serenamente a possibilidade da derrota, e precisa aprender a não se abalar com um corretivo severo aplicado pelo seu sensei; precisa fortalecer o corpo e o espírito. Enfim, ele desenvolve virtudes que aqueles que controlam a mídia atual não querem que as pessoas tenham. Portanto, apostar numa série com essa temática foi uma iniciativa corajosa, e a excelente recepção que ela vem tendo é um bem-vindo sinal de que ainda podemos ter alguma esperança de que a humanidade não acabe morrendo afogada num oceano de cancelamentos e pronomes neutros.

quinta-feira, outubro 28, 2021

Duna, o Filme (2021)

Como um fã da obra de Frank Herbert desde a adolescência, eu tive o cuidado de dizer a mim mesmo, antes de ir ao cinema conferir a nova versão de Duna dirigida por Denis Villeneuve, para não ser exigente demais – além de orar fervorosamente para que o diretor (que também é corroteirista) não tivesse desfigurado muito a história original só para fazer concessões à tirania politicamente correta que afeta praticamente tudo nesses anos loucos que estamos vivendo. Por outro lado, estava empolgado para ver o que as novas tecnologias a serviço do cinema poderiam ter feito para recriar o universo de Herbert com um visual ainda mais espetacular.

A primeira surpresa não tardou a surgir, e nem era relacionada a roteiro ou imagens: ocorre que nada na (intensa) publicidade que tenho visto na internet a respeito do filme dava a entender que esta era só a primeira parte. Entrei no cinema acreditando que fosse ver um filme único, e sua mui considerável duração de duas horas e 36 minutos parecia confirmar isso, já que é maior que a do filme de 1984, dirigido por David Lynch, que contava, ou tentava contar, a história de cabo a rabo. Mas não: era mesmo só a primeira parte, e acabo de ver, depois de uma rápida pesquisa, que as filmagens da segunda ainda nem começaram, e que sua estreia está prevista para o distante outubro de 2023, se o mundo não acabar antes, naturalmente. Teria sido legal deixar isso claro com antecedência, mas não me importei: se os dois filmes de Villeneuve, juntos, tiverem um resultado satisfatório, a espera terá valido a pena, e talvez, dispondo de mais tempo (tempo de filme, quero dizer), o diretor consiga contar a história de uma maneira mais redondinha, mais inteligível para quem não leu o livro, como já acontecia na minissérie de 2000 do Sci-Fi Channel, que é bem mais amigável ao espectador não iniciado que o filme de Lynch, embora eu, pessoalmente, não goste muito de sua parte visual.

E contar uma história como Duna na tela, de uma maneira que possa ser acompanhada até por quem não conhece bulhufas sobre seu universo (o que sempre será o caso da maior parte do público no cinema), é muito, mas muito difícil. A todo momento aparecem coisas que parecem impor ao diretor uma escolha entre incluir um diálogo expositivo totalmente artificial ou deixar o público boiando. Um exemplo banal, mas bem prático, é o dos campos de força individuais que os personagens usam e chamam simplesmente de "escudos": o livro explica que eles repelem objetos que se aproximem em alta velocidade, mas podem ser penetrados se a lâmina, projétil ou o que for, se aproximar lentamente, o que exigiu o desenvolvimento de técnicas de combate muito específicas. O problema é como explicar isso a quem não leu o livro sem recair no famigerado diálogo expositivo, aquele tipo de cena forçada em que dois personagens começam a falar sobre algo que, pela lógica do enredo, ambos já deveriam estar carecas de saber, mas falam mesmo assim, só para que o espectador receba essas informações. Em algumas situações, Villeneuve encontrou maneiras de evitar isso, como, por exemplo, ao incluir uma cena em que Paul está estudando e, de carona com ele, captamos o que o livro-filme que ele está vendo ensina a respeito da especiaria e de sua importância dentro do universo conhecido. É verdade que em sua idade, e sendo filho de um governante planetário, ele certamente já saberia tudo isso, mas todos sabemos que é impossível estudar, seja qual for a matéria, sem acabar revendo coisas que já se sabe.

Porém, ao ver o filme, não foi esse o primeiro comentário que me veio à cabeça, e sim (inevitavelmente) um a respeito do protagonista: dos três atores que já encarnaram Paul Atreides nas telas, Timothée Chalamet, americano de origem francesa, é sem dúvida o que tem mais a cara do personagem. Tanto ele quanto Kyle MacLachlan, que fez o papel no filme de 1984, já tinham cerca de 25 anos ao interpretarem o personagem de 15, mas Chalamet aparenta muito menos, convence mais como adolescente, e não só pela aparência: o cara é bom de atuação, conseguindo passar aquela sensação de insegurança, de incerteza a respeito da própria capacidade de fazer o que é esperado dele – enfim, a própria essência da adolescência. Não estou de forma alguma tirando o mérito de MacLachlan: o Paul que ele fazia era mais do tipo arrogante e mimado (no início), o que não seria nada inesperado no herdeiro único de uma poderosa casa nobre; o personagem seria, muito em breve, forçado a amadurecer muito depressa, amadurecimento esse que MacLachlan também conseguiu expressar com eficiência. Quanto a Alec Newman, da minissérie, não sei, não é que o cara não tenha feito um bom trabalho, mas eu simplesmente não consigo olhar para ele e pensar "eis aí Paul Atreides". É subjetivo sim, admito.

(Nota de rodapé: entre outros papéis, Timothée Chalamet interpretou Henrique V num filme da Netflix de 2019 intitulado simplesmente O Rei. Considerando suas origens francesas, é curioso ele ter sido selecionado para esse papel.)

Ainda dando rápidas pinceladas sobre o elenco, Oscar Isaac (o Poe Dameron de Star Wars)  me surpreendeu como o duque Leto Atreides, sendo tudo o que o personagem deveria ser: imponente, com uma presença marcante, um ar de nobreza transparecendo até nos gestos mais simples, e uma combinação equilibrada de severidade e gentileza. Rebecca Ferguson está OK como Lady Jessica, companheira de Leto e mãe de Paul, mas confesso que sempre imaginei Jessica como uma mulher linda, e quem chegou mais perto de preencher esse requisito foi Francesca Annis, do filme de David Lynch. Stellan Skarsgård aparece quase irreconhecível como o vilão barão Vladimir Harkonnen, mas mostra a mesma versatilidade de sempre. Dave Bautista está adequadamente bestial interpretando Rabban, o sobrinho do barão, por ele nomeado governador de Arrakis, mas, curiosamente, o outro sobrinho, Feyd-Rautha, não aparece. Será que ele aparecerá na segunda parte, ou Rabban acumulará seus atributos e ações? Só o tempo vai dizer.

O papel de Chani, a futura companheira de Paul, ficou com uma para mim desconhecida Zendaya, que tem uma aparência interessante, uma beleza não óbvia (quero dizer, você precisa se acostumar com ela antes de começar a achá-la bonita) e plausível considerando que, no filme, ela é filha da ecologista imperial Liet-Kynes, interpretada por Sharon Duncan-Brewster, que é negra, de modo que o estilo mestiço de Zendaya vem a calhar. Kynes, por sinal, foi a única grande concessão feita por Villeneuve ao "sistema de quotas" politicamente correto, já que, tanto no livro quanto nas duas produções anteriores, esse personagem era homem. Este também é o primeiro Duna a apresentar uma grande variedade étnica, com muitos personagens negros e pelo menos um oriental (o Dr. Yueh, cujo nome até combina bem com isso), e não creio que esse fato seja coincidência, mas a coisa não foi feita de maneira forçada, então não há do que reclamar.

Josh Brolin (o Thanos dos filmes dos Vingadores) captou bem o estilo de seu personagem, o guerreiro-trovador Gurney Halleck, que, em geral, faz o tipo fleumático, embora uma das primeiras cenas em que ele aparece (cena essa, aliás, indispensável em qualquer adaptação de Duna que se preze) seja justamente uma em que perde a paciência: aquela em que Paul declara que "não está com disposição" para treinar, e Halleck, indignado, lhe dá uma bronca dizendo que "disposição é coisa para gado, para tocar baliset e fazer amor", e que "você luta quando é necessário, independentemente de disposição". Além disso, me agradou muito que essa nova versão tenha resgatado uma característica de Gurney que tanto o filme de David Lynch quanto a série do Sci-Fi haviam deixado de fora: como um bom trovador, ele sempre tem uma citação de poesia na ponta da língua para qualquer situação.

E, claro, não dá para não mencionar o mestre espadachim Duncan Idaho, que, além de ser professor de Paul (junto com Gurney, Thufir Hawat e o Dr. Yueh), também é provavelmente o melhor amigo do rapaz. No novo filme, o papel foi dado a Jason Momoa, já nosso conhecido por ter interpretado Conan no sofrível filme de 2011 dirigido por Marcus Nispel, além de ter sido Aquaman nos filmes da DC e também o bárbaro Khal Drogo em Game of Thrones. Momoa está ótimo na pele desse guerreiro valente e leal.

(Chegou o momento de falar, mesmo que só brevemente, sobre a história, ou melhor, sobre o jeito como o novo filme a conta, e, ao me preparar para isso, acho necessário observar que não vou repetir aqui tudo a respeito de Arrakis, da especiaria e outras coisas que já comentei do plot de Duna e do universo no qual ele se ambienta, uma vez que já existe no blog um post referente ao livro, que contém muito disso; sugiro que sigam o link que está no início deste post e leiam também aquele.)

A história, no filme, começa de uma maneira interessante, com uma breve narração em off feita por Chani, falando sobre seu planeta natal, Arrakis (ou Duna) e sobre a opressão sofrida por seu povo, os Fremen, durante 80 anos por parte dos Harkonnen, até um decreto do imperador forçá-los a ir embora, para serem substituídos pelos Atreides, que, até onde a garota sabe, podem não ser melhores. Funciona bem como introdução, e a transição para outro ponto de vista ocorre suavemente, quando o filme passa a se ocupar da casa Atreides, que, até então, ainda governa Caladan, planeta onde existem oceanos e chuva, o que produz um contraste chocante quando eles se mudam para Arrakis. O duque Leto, líder da casa, vive há muitos anos de forma conjugal com Lady Jessica; os dois se amam e são marido e mulher em tudo, exceto no nome: Leto não se casou porque, mantendo-se solteiro, podia usar a possibilidade de um eventual casamento como trunfo político. Paul é o filho único (até então) em quem o casal deposita grandes esperanças, e, de fato, o rapaz possui muitas capacidades, inclusive algumas inesperadas: tem visões, sonhos premonitórios, percebe muitas coisas de maneira instintiva, e, se tudo isso já era verdade quando ele vivia em Caladan, aumenta ainda mais em Arrakis, onde, querendo ou não, é impossível não se entupir da especiaria, que está literalmente em toda parte, suspensa no ar, impregnada nos alimentos… E, como se sabe, ela amplia a percepção em todos, e muito mais em quem já possui poderes latentes. E aqui o filme tropeça em outro problema: embora as visões e os sonhos de Paul sejam uma peça importante na história (já era assim no livro), tive a sensação de que o roteiro abusa um pouco disso, colocando diante de nós várias e várias cenas representando essas visões, o que prejudica o ritmo da narrativa – por vezes de forma desnecessária.

Passando a falar sobre a parte visual, eu babei ao ver os veículos conhecidos como ornitópteros, embora a concepção deles no filme tenha pouco a ver com seu nome, que significa, literalmente, 'asas de pássaro': os ornitópteros que aqui vemos parecem um cruzamento de helicópteros com gigantescas libélulas dotadas de vários pares de asas que vibram tão depressa que se tornam invisíveis, como as das libélulas mesmo. As cenas deles voando sobre o deserto de Arrakis são magníficas – e o visual do deserto também é diferenciado, alguma coisa ali sugere uma ambientação alienígena, talvez o padrão das dunas ou a coloração da areia; ainda é identificável como o que chamaríamos de deserto, mas sem se parecer completamente com os desertos da Terra.

E do deserto, é claro, chegamos aos vermes. Minha versão favorita deles é a do filme de David Lynch, diretamente baseada nas ilustrações feitas para as capas dos livros de Frank Herbert nos anos 60 e 70; nessa versão, a bocarra da criatura possui mandíbulas triplas, que se abrem como uma gigantesca flor de três pétalas, tendo o interior guarnecido por centenas de dentes que lembram facas – e não por acaso, já que esses dentes são a matéria-prima para a fabricação da faca cristalina, a arma sagrada dos Fremen (na dublagem nacional do filme de Villeneuve, a palavra usada é dagacris, ou coisa parecida; suponho que seja como se lê na tradução brasileira mais recente, publicada pela editora Aleph; a edição que tenho é a antiga, da Nova Fronteira. Qualquer uma das duas formas seria uma adaptação possível a partir do original crysknife). No novo filme, eles têm a boca circular, desprovida de mandíbulas, o que lhes dá uma aparência mais semelhante à dos vermes terráqueos… E confesso que essa concepção não me agrada muito, justamente porque o verme da areia de Arrakis deveria ser algo de admirável, grandioso, e, portanto, bem distinto dos vermes que conhecemos aqui na Terra, e que normalmente achamos repulsivos. Usa-se, inclusive, como insulto: você chama alguém de "verme" para dar a entender que a pessoa é insignificante ou desprezível; os Fremen, com toda a certeza, jamais usariam essa palavra dessa forma. Ainda sobre o novo design dos vermes, os dentes também mudaram, ficaram parecidos com barbatanas de baleia, e preciso admitir que essa aparência, embora menos estética, faz mais sentido, já que a criatura filtra a maior parte de seu alimento a partir da areia tal como as baleias fazem na água. Talvez, então, a faca seja feita com uma parte do dente, possivelmente a raiz ou a parte logo acima dela.

Os Sardaukar, ou as Legiões do Terror do imperador, também merecem ser mencionados, pois, no filme de Villeneuve, foram pela primeira vez retratados da maneira tenebrosa e cruel que lhes é adequada. No livro consta a informação de que, tal como os guerreiros espartanos, eles são recrutados ainda crianças e submetidos a um treinamento brutal – mais brutal que o dos espartanos, já que a maioria nem mesmo sobrevive até a idade adulta, mas os que sobrevivem tornam-se soldados terríveis. O fato de Shaddam IV ter cedido um grande número de Sardaukar para reforçar o exército Harkonnen no ataque a Arrakeen (a capital e maior cidade de Arrakis) foi o principal motivo para que o barão Vladimir tenha apostado tudo no sucesso desse golpe traiçoeiro, confiando numa vitória contra as bem treinadas tropas Atreides.

Na verdade, o universo de Duna é tão vasto e cheio de detalhes que nenhum filme ou série jamais conseguirá explorar todas as riquezas dos livros, mas foi agradável ver que, nesse novo filme, o diretor (também corroteirista, lembrem-se) decidiu incluir algumas pequenas coisas que os realizadores anteriores deixaram de lado, e que, mesmo pequenas, são fascinantes e significativas. Exemplo: nas paredes do  Castelo Caladan (a fortaleza ancestral de onde os Atreides governaram durante séculos o planeta de mesmo nome) há um quadro retratando o velho duque, pai de Leto, paramentado como toureiro, e lá está também a cabeça empalhada do enorme touro que o matou. O livro menciona de passagem que ele morreu na arena, dando um espetáculo para seu povo, o que não é essencial para a história, mas rende um detalhe cheio de significado: como Paul conhece a história de como seu avô morreu, a cabeça do touro, que ele vê todos os dias, torna-se para ele um memento mori, como aquelas caveiras que pintores cristãos punham em seus quadros para lembrar a quem os visse que a vida humana é finita, e que é assim para ricos e pobres, para poderosos e gente comum.

Como inevitavelmente aconteceria em qualquer adaptação de Duna, seu universo futurista possui algumas características muito próprias, que impactam o roteiro e o visual. Por exemplo, graças ao Jihad Butleriano (também referido como a Grande Revolta, ou ainda como a Cruzada das Máquinas), na época retratada não existem robôs nem grandes computadores – é por isso que a especiaria é essencial para as viagens espaciais, pois, sem a ajuda de computadores, só mesmo capacidades extrassensoriais poderiam guiar um piloto com segurança em deslocamentos em velocidade superior à da luz. Armas laser existem, mas não parecem ser comuns, talvez porque seu custo seja muito alto para que seja possível equipar grandes exércitos com elas, de modo que as batalhas envolvem um amplo uso de armas brancas como punhais e espadas – quem diria: as batalhas do futuro se assemelham às medievais, pelo menos nesse aspecto. E uma das poucas ressalvas que preciso fazer ao filme é justamente a respeito das batalhas: achei a maior parte das cenas de combate confusas, aquela balbúrdia visual em que você não consegue distinguir direito o que está acontecendo, uma coisa que, pessoalmente, me incomoda. É uma pena ainda maior se considerarmos que Duna poderia ter cenas de batalha do nível das de Coração Valente ou O Último Samurai – claro que com um clima e um visual compatíveis com o universo criado para o filme. Tais cenas não ficariam deslocadas, não pareceriam gratuitas, e com certeza empolgariam o público. Quem sabe na segunda parte?

Por falar em continuações, é inevitável nos perguntarmos: será que, uma vez feita a segunda parte e concluída a história de Duna, e admitindo-se que o resultado nas bilheterias seja bom, Denis Villeneuve e os outros realizadores se darão por satisfeitos, ou prosseguirão com a saga adaptando os livros seguintes de Frank Herbert? (Sempre me perguntei se David Lynch teria continuado, caso seu filme tivesse feito sucesso, o que, infelizmente, não foi o caso.) O autor concluiu seis volumes antes de sua morte em 1986, e seu filho, Brian Herbert, tentou continuar o trabalho do pai, tendo lançado vários livros em parceria com Kevin J. Anderson, expandindo ainda mais o universo de Duna e aprofundando pontos que só eram tratados por alto nos escritos do criador original. Não li nenhum desses ainda, mas sei que existem volumes dedicados a várias das casas nobres (Atreides, Harkonnen, Corrino etc.) e também um a respeito do Jihad Butleriano, entre outros. Sei o que estão pensando e concordo: mesmo que esses livros sejam bons, é difícil dizer se eles são realmente uma parceria criativa, ou se Anderson escreveu quase tudo enquanto Brian Herbert contribuía, basicamente, com o peso de seu nome. Viajando bastante na maionese, eu diria que os seis volumes escritos por Frank Herbert poderiam ser adaptados para o cinema, enquanto as obras de Brian Herbert e Kevin J. Anderson talvez rendessem uma ou mais séries de TV… Mas estou pondo o carro na frente do verme: como disse, não li os livros dessa dupla, não sei se a adaptação valeria a pena, e, mesmo que a resposta seja positiva, quem garante que algum produtor se interessaria? Já os livros de Frank Herbert, esses não há dúvida de que valem a pena. Se pelo menos o segundo volume, O Messias de Duna, chegar às telas, prevejo que a escolha da atriz que interpretará Alia, a irmã de Paul, será uma questão sensível para mim. A história desse livro passa-se alguns anos depois da de Duna, e Alia, que no final do primeiro livro era pouco mais que uma criança de colo, está com 15 anos; eu tinha a mesma idade quando li o livro pela primeira vez, e me apaixonei pela personagem. Ou seja, não sou ninguém pra julgar as meninas que se apaixonam pelo Edward de Crepúsculo.

Tirando uma média geral, Duna 2021 é um baita filme, não perfeito, é claro, mas que corresponde com honra às expectativas. Preciso ver a segunda parte antes de formar uma opinião definitiva, mas parece ter potencial para vir a ser a melhor das adaptações audiovisuais do romance de Frank Herbert, e também para ser o piloto de uma saga cinematográfica que poderá se tornar legendária. Resta-nos torcer para que esse potencial não seja posto a perder.

sábado, abril 17, 2021

DVD: Devoção Verdadeira a D.

Os que leram VHS viram com curiosidade e expectativa a chegada deste novo livro de Cesar Bravo, que nos leva de volta àquele mesmo universo para nos mostrar o que mudou e o que continua igual, alguns anos depois, na cidade fictícia de Três Rios e sua região. A paixão pelo cinema em geral e o de terror em particular (naturalmente) continua escorrendo de cada página, unindo o autor, os leitores e os personagens, e fornecendo a lente através da qual iremos ver uma nova coleção de horrores e bizarrices. Se vocês se identificam com tudo isso, preparem a pipoca, pois o livro vai mantê-los absortos por horas, tanto quanto ficariam ao assistir a um bom filme.

VHS, se não me falha a memória, não mencionava datas específicas, mas dava para inferir que os acontecimentos envolvendo a locadora FireStar e os personagens Pedro, Dênis e Renan deviam passar-se entre o final dos anos 80 e o início dos 90, podendo os outros contos ambientar-se um pouco antes ou depois; já DVD informa que o ano em curso é 2002. Pedro e Dênis, que eram meros sócios-proprietários de uma videolocadora, expandiram o escopo de seus negócios, embora continuem lidando com o universo dos filmes: agora são produtores cinematográficos, e, além disso, a FireStar virou uma rede, da qual eles são os franqueadores – e, na qualidade de franqueado, o outrora ajudante Renan é agora o proprietário e gerente da Loja Um, a primeira FireStar, aquela mesma onde ele começou, e que segue funcionando no centro de Três Rios. Acompanhando a mudança dos tempos, a locadora está trocando seu acervo de fitas VHS pelo novo formato… Mas, seja em fitas analógicas ou em discos digitais, o famigerado Lote Nove continua respondendo por boa parte do movimento, constituindo, inclusive, o principal interesse de alguns clientes. Como o mundo não para de dar voltas, há um novo jovem ajudante, conhecido simplesmente por "Guri", em quem Renan frequentemente se vê tal como era em seus primeiros tempos de FireStar, e em quem agora já confia o suficiente para chamá-lo para uma conversa mais franca, a portas fechadas, sobre o Lote Nove, tal como Pedro e Dênis um dia fizeram com ele. Isso tudo é revelado em FireStar DVD & Vídeo, o primeiro conto propriamente dito do livro, que vem depois de dois enigmáticos introitos intitulados Águas Turvas e Prelúdio em Dó Menor. Nessa história, além de Renan, revemos também Millôr Aleixo, o sujeito que amputou a própria perna utilizando um trem como instrumento cirúrgico no conto Torniquete, do primeiro livro – ele agora vive numa cadeira de rodas, fuma compulsivamente e parece ter envelhecido umas três vezes o que seria normal nos poucos anos transcorridos desde o incidente. Além disso, nunca superou o término com sua antiga namorada, Kelly Milena, cujo nome está, de alguma forma misteriosa, ligado aos fatos tenebrosos que aconteceram e talvez ainda aconteçam no Matadouro 7, em cuja administração ela trabalha.

Pandemonium lida com certos dramas e desafios que todo mundo que já foi adolescente conheceu, com a possível exceção dos mais populares – que, na certa, enfrentaram problemas de outros tipos para compensar. Gabriel, um garoto aparentemente comum de 13 anos, decide aproveitar uma saída dos pais para promover uma sessão de cinema em sua casa, com a aparente intenção de galgar alguns degraus na pirâmide social do colégio; para tanto, convida um pequeno grupo escolhido a dedo, composto de garotas bonitas e caras "descolados". Normalmente, tais pessoas ignorariam um convite desses vindo de um pária como Gabriel, mas ele conta com um trunfo: depois de seu nome ficar por semanas numa lista de espera, ele acaba de conseguir alugar na FireStar o "filme maldito" do momento, o tal Pandemonium do título, cujas cenas chocantes, ao que se diz, já "maluqueceram" algumas pessoas; para adolescentes, e mesmo para muitos adultos, não poderia haver propaganda melhor que essa para um filme – é ainda melhor (ou pior, vai saber) que "proibido em trocentos países" escrito em letras berrantes na caixa da fita. Anda todo mundo doido para ver esse filme, mas, por alguma razão inimaginável, uma cláusula no contrato de licenciamento estabelece que a distribuidora só pode vender uma cópia para cada locadora. Com tudo isso, a sessão de cinema de Gabriel tem tudo para ser um sucesso… mas o final não será feliz. A ação transcorre em 1989, o que só ficamos sabendo bem depois de ler o conto, embora já tivesse ficado evidente que devia ser por volta dessa época, já que, nele, Dênis e Pedro ainda administram a FireStar, e Renan ainda é apenas um ajudante, ou seja, cronologicamente, Pandemonium poderia fazer parte de VHS.

Em A Voz que Caminhava, a pequena Rafaela, ajudando o irmão a esvaziar o quartinho dos guardados na casa da família, encontra uma relíquia: um velho walkman que pertencia a seu pai, que não o usa há mais de 20 anos. A menina se encanta com a velha engenhoca, e o pai, achando graça, permite que fique com ela. O primeiro sinal de que nem tudo está normal vem quando Rafa se mostra assustada ao ouvir, nas estações de rádio que ela sintoniza em seu novo-velho brinquedo, notícias sobre uma iminente guerra nuclear que poderá acarretar o fim do mundo – notícias essas que refletem a situação mundial lá pelos anos 80, quando a catástrofe foi evitada por um triz mais de uma vez. Ela ouve também sobre um menino que foi achado morto no banheiro do mesmo colégio onde ela e o irmão estudam, o tradicional Aureliano Gomes, na cidade de Velha Granada, vizinha de Três Rios – e, embora ela não guarde o nome, o menino não era outro senão o encrenqueiro Jonas Duna, mencionado no conto Branco Como Algodão, de VHS. Quando Rafa começa a fazer coisas estranhas (e perigosas), totalmente alheias ao seu comportamento habitual, o pai se vê forçado a admitir que tudo está  interligado… e que o walkman vagabundo de seus tempos de escola, que sua filha agora carrega para todo lado, pode estar assombrado. O conto é curto, eficiente, e sua ligação com algo que os leitores de Cesar Bravo já conhecem parece potencializar o efeito tenebroso.

O título de Ballet Royale é um trocadilho com "battle royale", expressão que se popularizou a partir do romance homônimo do escritor japonês Koushun Takami publicado em 1999 e acabou dando nome ao que se tornou praticamente um subgênero dentro da ficção distópica, tendo seu mais famoso exemplo na franquia Jogos Vorazes: é aquele tipo de enredo em que um grupo de pessoas é jogado em alguma espécie de arena e obrigado a lutar entre si até que só um reste vivo. Aqui, as regras são um pouco diferentes, mas tão brutais quanto: várias mulheres aparentemente sem qualquer ligação umas com as outras são sequestradas e levadas ao que parece ser uma mansão isolada no meio da mata, onde são forçadas por três carcereiras mascaradas a dançar balé – coisa que a maioria delas jamais fez na vida –, sendo exigido que executem com perfeição os mais difíceis movimentos, e qualquer falha é punida com violência absurda. A lógica do conto é a mesma de Bicho-Papão (que chega a ser mencionado dentro da história!): no começo ficamos chocados, penalizados e torcendo por alguma reviravolta que faça as cativas levarem a melhor sobre suas algozes, mas depois há certas revelações que mudam tudo; essas revelações mostram também que, ao contrário do que parecia, todas essas mulheres têm, sim, alguma coisa em comum.

Em Sopa de Letrinhas, somos apresentados a Bia, uma menina pequena, e a sua avó, D. Eslovena, com quem a garotinha vive desde que sua mãe (a filha de Eslovena) foi embora não se sabe para onde. Por várias páginas nos perguntamos o que aquela história está fazendo num livro de terror, pois o que lemos é uma sucessão de cenas fofas que mostram Bia descobrindo o mundo sob o olhar da avó carinhosa, que a educa com infinita bondade e paciência. Mas, como sei que já escrevi em algum lugar deste blog (e talvez mais de uma vez), começar com cenas da vida normal é um recurso que o terror usa há muito tempo e que parece nunca perder a eficácia: as coisas começam a ficar estranhas quando Bia, que ainda nem chegou à idade de alfabetização, mas já consegue ler palavras simples, passa a ver as letrinhas de macarrão na sopa que a avó lhe serve formarem mensagens, como numa espécie de tábua Ouija para crianças do pré-maternal. Talvez a sinopse, colocada assim, pareça boba, mas, se for o caso, a culpa é minha, e não de Bravo: a justaposição da inocência infantil com sugestões preternaturais tem um efeito poderoso quando a coisa é bem feita, tanto que, mesmo sendo muito mais curta, muitíssimo mais simples, e não tendo qualquer semelhança notável em termos de enredo, Sopa de Letrinhas me fez pensar em O Povo Branco, de Arthur Machen. Ah, e existe uma conexão entre Sopa de Letrinhas e Pandemonium, conexão essa que evidencia novamente que é melhor o leitor não fazer muita questão de uma cronologia precisa, primeiro porque cada conto pode transcorrer num ano diferente e eles não estão colocados em ordem, e segundo porque, no universo de Cesar Bravo, existem certas, digamos, singularidades no que diz respeito ao tempo.

Lar, Doce Lar segue os personagens Duque e Paloma – um gângster do interior paulista e sua amante –, que acabam de assaltar um banco, escapar da polícia e, em sua fuga, utilizam estradas secundárias que os levam em direção à microrregião maldita formada por Três Rios e os municípios menores que a cercam. Nessa viagem, vários fenômenos estranhos se manifestam: tanto a aparência do céu quanto a dos campos que ladeiam a estrada muda de repente, trovões ensurdecedores soam do nada, sem que haja sinal de chuva e, o mais desconcertante, olhando pelo espelho retrovisor veem-se coisas que simplesmente não estavam ali quando o carro passou pelos mesmos locais, segundos antes. A região parece ser uma encruzilhada, mas não de estradas: uma encruzilhada no tempo, e talvez também entre dimensões.

O Homem da Terra leva-nos de volta ao final do século XIX para nos apresentar a Ítalo Dulce, um imigrante italiano e personagem arquetípico, já que, como ele próprio observa, "ítalo" é a mesma coisa que italiano (falta uma boa explicação para que seu sobrenome seja "Doce" em espanhol). Ele e sua esposa, Gemma (não poderia haver nome mais adequado) vivem todas as durezas que os imigrantes enfrentavam naqueles anos; são colonos, quer dizer, receberam do governo um lote de terra para trabalhar por conta própria, diferentemente de outros imigrantes que vinham como empregados para as fazendas de café, para, na prática, substituir a mão de obra dos escravos, que haviam sido libertados pouco antes. Não tenho conhecimento suficiente para dizer em qual das duas situações um imigrante batia mais cabeça; é provável que ambas fossem igualmente ferradas de maneiras diferentes, embora ainda fosse melhor que ficar no país de origem, onde, na época, a imigração era para muita gente a única alternativa para (tentar) escapar da miséria. Tudo indica que Ítalo terá o mesmo destino de muitos outros italianos em terras brasileiras, que era o de trabalhar de sol a sol pela simples sobrevivência enquanto tivesse forças para tanto e, depois disso, só Deus sabe… Até que certo dia, tirando mel numa gruta junto à nascente do rio Escuro (um dos três que dariam nome à cidade que mais tarde existiria ali), não muito longe de sua casa, o imigrante encontra um misterioso personagem que lhe propõe um pacto. Para evitar spoilers, direi apenas que, nos tempos nos quais se ambienta a maior parte das histórias de VHS e DVD, Ítalo Dulce é considerado um vulto histórico, uma espécie de patriarca, um dos homens que tornaram possível a prosperidade econômica de que a região viria a gozar – e o Mel da Gruta ainda é um produto muito apreciado, com "tradição de mais de um século".

Gladiadores em Technicolor é protagonizado por Lívia, filha de Renan (ela já havia aparecido, pequenininha, em FireStar DVD & Vídeo, e aqui ressurge um pouco mais velha, mas não muito). Ela e seus amigos Juliano e Cléber estão fazendo um filme, uma fita caseira de ação/fantasia inspirada nos clássicos dos anos 80, como Os Aventureiros do Bairro Proibido, filme estrelado por Kurt Russell que chega a ser citado, entre outros. A história é curta e tem um sabor nostálgico de infância e de amizades separadas, pois Lívia está prestes a mudar-se de Três Rios com os pais – Renan, muito a contragosto, está tentando vender a locadora. Chega a parecer que o conto vai ser feito apenas desse misto de diversão e melancolia, mas boatos sobre acontecimentos estranhos em Três Rios e arredores aparecem na conversa das três crianças, e ela termina num elo explícito com Lar, Doce Lar. Ah, e tem um detalhe que não se pode deixar passar: o título do filme que os garotos estão fazendo é A Batalha de Devorac – e Devorac é um nome que voltará a aparecer.

Em Solo Sagrado, lemos sobre o esforço de Saulo Renan Sampaio, um jovem pastor evangélico que chega a Três Rios decidido a instalar uma nova igreja, e, para tanto, adquire o terreno da antiga locadora FireStar (e digo isso apenas para deixar vocês curiosos; não contarei o que aconteceu com a locadora). Conforme encara a luta para erguer sua igreja e depois para fazê-la começar a funcionar, Saulo vai ficando menos cético a respeito das histórias macabras que ouviu sobre Três Rios: é como se alguém, ou mais provavelmente algo, estivesse tentando impedir ou ao menos dificultar o máximo possível a pregação da palavra de Deus naquele lugar – sendo que "lugar" pode significar o local específico onde ficava a locadora, ou a cidade como um todo. Perto do final do conto, o pastor se vê dialogando com um misterioso "homem de camisa vermelha" que lhe desperta sensações não muito agradáveis, e que menciona de passagem ter conhecido há muito tempo um sujeito de nome Deodoro… Leitores atentos e de boa memória que leram VHS matarão a charada. Por falar nisso, conforme vamos nos aproximando do final de DVD, vai crescendo um impulso de, ao terminá-lo, emendar com uma releitura do livro anterior, pois há uma viva sensação de que, agora que temos novas informações, muitas coisas dele serão melhor compreendidas e se encaixarão melhor no grande e tenebroso quebra-cabeça que Bravo está criando.

Em Devorac, a região de Três Rios está sendo aterrorizada pelos ataques do que a polícia e a imprensa assumem ser um serial killer que, por alguma razão, mata apenas idosos – mas que, fora isso, não parece fazer nenhum tipo de distinção, atacando homens, mulheres, brancos, negros, o que for. Os corpos dos anciãos são sempre encontrados com terríveis mutilações que desafiam os peritos da polícia e enchem de pavor qualquer um que as veja. Como acontece tanto no terror, há aquela teimosa obstinação por parte das pessoas "racionais" em tentar obrigar a realidade a encaixar-se dentro da moldura do "plausível": um serial killer é uma coisa horrenda, mas que ainda pertence ao campo dos fatos explicáveis, e portanto (pensam as tais pessoas "racionais") essa deve ser a resposta. Tem que ser. Por favor, seja, porque a alternativa é muito pior! As mutilações nas vítimas são coisas que não poderiam ter sido feitas por nenhum ser humano, não importa o quão louco, e nem mesmo por qualquer animal conhecido, mas ninguém quer pensar nisso. Mais uma vez, o leitor atento terá reunido pistas, ao longo da leitura deste livro e do anterior, que lhe permitirão ir construindo uma teoria sobre o que pode ser o tal Devorac. A AlphaCore Biotecnologia, empresa do magnata Hermes Piedade, pode ter algo a ver com isso. Piedade (eita sobrenome irônico) é considerado por muitos um homem de visão e um benfeitor que trouxe o progresso para a região – e por outros tantos uma cria do demônio, que, junto com o tal “progresso”, pode ter trazido também outras coisas bem menos desejáveis. O conto Bom pra Cachorro, que vem logo depois de Devorac, fornece mais algumas pistas nessa direção, mas sem revelar demais. Ainda sobre Devorac, preciso confessar que o jeito como o narrador fala sobre o predador misterioso me fez pensar na igualmente misteriosa Besta de Gévaudan (caso essa referência não lhes seja familiar, vejam o excelente filme O Pacto dos Lobos, de Christophe Ganz, com Vincent Cassel e Monica Belucci).

Polaroid Colorpack 80 leva o nome de um tipo de câmera fotográfica que já foi bastante popular graças ao diferencial de não precisar de revelação (a garotada que já nasceu na era das fotos digitais talvez nem entenda do que estou falando, mas, se for o caso, basta ir até a Wikipédia e pesquisar um pouco sobre história da fotografia). Você tirava a foto e, em segundos, ela saía por uma fenda na câmera, já impressa e pronta. Quem chegou a ter uma Polaroid conta que as fotos não eram tão boas, deixavam a desejar em nitidez e colorido, e, além disso, desbotavam depois de alguns anos, mas, mesmo assim, a praticidade da coisa conquistou alguns fãs – sem contar que essa câmera era a favorita dos serial killers e outros freaks para registrar seus "feitos", já que as câmeras convencionais tinham o sério inconveniente de que seus filmes precisavam ser levados até um estúdio ou loja de fotografia para serem revelados – e o laboratorista que topasse com imagens de natureza potencialmente criminosa, sem dúvida notificaria a polícia… a menos que o próprio serial killer soubesse revelar, como alguns de fato sabiam, mas isso não vem ao caso aqui. A história tem como protagonista um sujeito de nome Leone Dantas, proprietário, gerente e atendente da Paraíso Perdido, loja em Três Rios especializada em comprar e vender todo tipo de item usado, desde móveis até discos e revistas, passando por antigos eletrodomésticos (ou "eletromésticos", como diz o anúncio da loja nos classificados) que agora têm basicamente o valor de curiosidades. Certo dia, Jaime Extremo (sobrenomes improváveis, e às vezes nomes também, são meio que uma peculiaridade regional em Três Rios e arredores), um idoso que é uma espécie de ajudante informal de Leone, aparece com uma notícia potencialmente interessante: um cidadão chamado Amâncio Gruta acaba de morrer e, como vivia sozinho e não tinha esposa, filhos ou outros parentes chegados, sua casa passou em herança à família extensa, e vai ser leiloada. Enquanto isso não acontece, os bens móveis que o falecido deixou na casa podem ser arrematados em lote por um valor razoável, e, com alguma sorte, alguns itens podem dar lucro ao serem postos à venda na Paraíso Perdido. Há um detalhe que pode fazer bastante diferença: apesar de não levar o sobrenome, Amâncio era descendente dos Dulce, talvez um bisneto do semilendário Ítalo Dulce, e, considerando a estreita ligação dessa família com a história da região, há uma possibilidade real de que a casa do velho guarde alguns objetos dotados de valor histórico. Assim, Leone aceita o negócio e, tempos depois, ele e Jaime vão até a casa para conferir seu conteúdo. Entre a esperada coleção de itens comuns, com variados graus de interesse para venda, eles encontram uma caixa contendo fotos – fotos que mostram, muitas delas, pontos conhecidos de Três Rios e cidades vizinhas, mas, naqueles panoramas familiares, há por vezes alguma coisa que não parece estar certa, e Leone acaba entendendo o que é: algumas das imagens mostram os lugares com alterações que ainda vão acontecer, tal como o atual local da locadora FireStar ocupado por uma igreja evangélica… Outras fotos mostram imagens perturbadoras e inexplicáveis, que o leitor reconhecerá como sendo registros de cenas descritas em vários dos contos de VHS e DVD, e examiná-las acaba afetando a sanidade do lojista. Na minha humilde opinião, Polaroid Colorpack 80 merece um lugar entre as melhores histórias do "bravoverso" publicadas até agora.

A penúltima história do livro é Tomada En Passant, cuja maior parte é dedicada a narrar uma reunião dos Filhos de Jocasta, que parecem ser uma espécie de "maçonaria" local, congregando as figuras mais destacadas da sociedade desse noroeste paulista fictício. O ponto de vista é o de um homem chamado Almirante Querido (!!!), que veio de origens humildes e agora é um rico homem de negócios, tão importante, de fato, que até ganhou uma cadeira nesse seleto clube. Inesperadamente, a sessão é invadida por ninguém menos que Hermes Piedade, que, por sinal, já foi por várias vezes convidado a tornar-se membro dos Filhos, mas nunca aceitou. O magnata veio apresentar à assembleia seu novo parceiro nos negócios, um jovem empresário que, diz ele, veio para "revolucionar" a economia local. Considerando o que já sabemos sobre as atividades de Piedade, é difícil esperar boas coisas dessa tal "revolução", e Almirante encara a novidade com bastante ceticismo… mas descobrirá que ficar no caminho de Hermes Piedade significa arriscar muita coisa. Esse conto parece ter sido bolado para preparar certos acontecimentos que podem estar por vir em volumes futuros dessa… série? Também parece ser esse o objetivo de algumas notícias enigmáticas dos jornais da região, "reproduzidas" nas últimas páginas do livro. Em tempo: eu me pergunto se eventualmente receberemos uma explicação para o nome dessa irmandade. "Filhos de Jocasta" evoca associações de incesto e/ou tragédia, e, como se fosse para assinalar que a escolha do nome não foi casual, o "mestre da ordem" recebe o título de “Édipo”.

DVD termina com Sete Vidas, que narra (com detalhes agoniantes) o destino final de Sagitário Piedade, filho caçula de Hermes Piedade e mau elemento irremediável desde sempre: era colega de Gabriel Cantão (o do Pandemonium) em fins dos anos 80, sendo já então um dos piores bullies do colégio, e sua carreira a partir daí consistiu numa sucessão de roubos, sequestros, assassinatos, estupros e coisas que tais, tendo constante necessidade da intervenção do pai, com sua influência e seu dinheiro, para repetidamente livrá-lo das garras da justiça e mantê-lo livre para praticar novas vilanias – até ser apanhado por dois personagens misteriosos, decididos a fazer justiça com as próprias mãos e, aproveitando a oportunidade, usar "Sági" como cobaia para uma curiosa experiência envolvendo memória e viagem no tempo. Mais uma vez, o esporear de emoções causado pela história segue o mesmo itinerário de Bicho-Papão e Ballet Royale, como se lançasse um desafio ao leitor: e aí, vai ficar com peninha, ou acha que ele só está recebendo o que merece? De todo jeito, a leitura é pra lá de incômoda, e os resultados da tal experiência, ainda que inconclusivos, abrem uma infinidade de possibilidades.

Tal como já havia feito em VHS, atribuindo a essa conhecida sigla o novo significado de "Verdadeiras Histórias de Sangue", Cesar Bravo também brincou com o título de DVD: ao mesmo tempo que designa o novo formato de vídeo com o qual a FireStar e demais locadoras passaram a trabalhar, essa é também a sigla de "Devoção Verdadeira a D.", mas ainda não é neste livro que ficamos sabendo o que significa essa inicial misteriosa: ela aparece aqui e ali, mas não é objeto de explicações. Com esse novo livro, Bravo promove uma considerável ampliação em seu universo sombrio, deixando seus leitores fiéis (pois ele já os tem) cada vez mais curiosos e ansiosos por mais. Em algum canto da internet, já vi alguém se referir ao escritor como o "Stephen King tupiniquim", uma comparação que, tenho certeza, o deixaria satisfeito, já que, assim como (pelo menos) grande parte de seu público, ele é provavelmente um fã do mestre do Maine, e, de fato, o que Bravo está fazendo com sua Três Rios lembra o que King fez com Jerusalem's Lot, Derry e Castle Rock – está construindo uma mitologia, tijolo por tijolo. Como só os realmente bons conseguem fazer, Bravo foi capaz de aprender com King (e com outros mestres do terror) sem se transformar num mero copycat: seu estilo é muito pessoal, marcante e fácil de reconhecer. Se a DarkSide topou publicar mais este livro, é porque o anterior deve ter sido bem-sucedido, e com muito mérito. Torço para que essa parceria continue.