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sexta-feira, agosto 17, 2012

O Livro de Areia

Antes tarde do que nunca! Perdoem a frase surrada, mas a absoluta falta de premeditação que costuma reger as minhas incursões ao mundo dos livros acaba por vezes gerando situações embaraçosas, como o fato de eu ter demorado mais de quatro anos a fazer uma lição de casa (detalhes aqui). Mas o importante é que finalmente li O Livro de Areia, último volume de contos publicado pelo mito das Letras argentinas que atendia pelo nome de Jorge Luís Borges (1899-1986), autor que não me era totalmente desconhecido, mas de quem só havia lido até agora um ou outro prólogo, artigo ou conto isolado. Este foi o primeiro livro do homem que li de cabo a rabo.

Permitam-me uma pequena digressão (ao menos prometo tentar mantê-la pequena...). Em minha primeira e, até o momento, única visita a Buenos Aires, várias coisas me chamaram a atenção. Embora eu pudesse facilmente passar vários parágrafos discorrendo sobre a beleza da cidade, seus infinitos lugares interessantes e seu astral todo especial, acho que é mais pertinente aqui mencionar o fato de que lá, aparentemente, todo mundo lê, ou, pelo menos, os leitores são a regra, e os não-leitores, a exceção – precisamente o inverso do que ocorre aqui no Brasil. Duas caras estão por toda parte: livrarias, bancas de jornal, pontos de interesse cultural (dos quais a cidade está cheia) e simples cartazes afixados aparentemente a esmo pelas ruas. Uma dessas caras é a da Mafalda, aquela menininha cheia de espírito crítico e sempre preocupada em entender como o complicado mundo dos anos 60 funcionava. Criada pelo cartunista Joaquín Salvador Lavado, o Quino, ela já foi chamada de "um Calvin de saias" – uma boa definição, de certa forma, embora eu, pessoalmente, goste mais da Mafalda! A outra cara onipresente é justamente a do Borges. E se era para eleger dois ícones de sua cultura para lhes servirem de representantes perante o resto do mundo, nossos hermanos dificilmente poderiam ter escolhido melhor.

A importância de Jorge Luís Borges para a literatura latino-americana já foi suficientemente sublinhada por muitos estudiosos e comentaristas, dos mais abalizados aos mais amadores, e é uma alegria para nós, apreciadores da literatura do insólito, constatar que também aqui, ao sul do equador, o preconceito mofado de que a "boa literatura" deveria ser obrigatoriamente pautada pela "verossimilhança" está desabando. Borges foi um intelectual do mais alto calibre e um escritor versátil que se aventurou por muitos temas e gêneros, mas é como autor de contos fantásticos que ele é mais frequente e reverentemente lembrado. E, depois de percorrer as páginas deste pequeno volume, que não toma mais de duas horas de leitura, fica fácil entender o porquê.

Todos nós, latino-americanos, temos muitas coisas em comum uns com os outros, uns mais, outros menos. No meu caso, sou um gaúcho "dos quatro costados", como dizemos aqui: neto de uma avó uruguaia, filho de pais nascidos na fronteira, e vindo de uma família na qual qualquer memória de imigração já desapareceu há séculos, o que significa que posso, modéstia à parte, considerar-me, com justiça, mais gaúcho que meus vizinhos cujos avós nasceram na Alemanha ou na Itália. Com essa bagagem histórica e cultural sobre os ombros, devo dizer que muitas coisas na escrita de Borges e em sua visão de mundo soaram-me bem familiares – um claro sinal de que, apesar de estarmos em países diferentes, nós, gaúchos (ao menos os gaúchos "de raiz", conforme a definição acima) estamos muito mais próximos, culturalmente falando, dos argentinos e uruguaios, que dos nossos próprios compatriotas do norte ou nordeste, por exemplo. Ao mesmo tempo, acho estimulante notar nas obras de Borges a ausência daquela obsessão com o regionalismo que pontua os trabalhos de tantos escritores da nossa parte do mundo – não raro tornando-os enfadonhos por baterem sempre na mesma tecla. A latinidade, em Borges, tem sempre um bom motivo para existir. Não é forçada, não é artificial: ele não demonstrava qualquer preocupação de levantar bandeiras para ser bem visto em certos círculos. Tanto assim, que não tinha o menor pudor de mostrar o quanto era fascinado pela cultura dos povos nórdicos, germânicos e célticos, tendo chegado ao ponto de estudar o idioma anglo-saxão, o ancestral do inglês moderno. O conto O Espelho e a Máscara, por exemplo, começa assim: 

Travada a Batalha de Clontarf, na qual o norueguês foi humilhado, o Alto Rei falou com o poeta e disse-lhe: "As proezas mais ilustres perdem o brilho se não forem cunhadas em palavras. Quero que cantes minha vitória e em meu louvor. Eu serei Eneias; tu serás Virgílio. Julgas-te capaz de realizar essa empresa, que tornará imortais a nós dois?"

Na Batalha de Clontarf (1014), os irlandeses, liderados pelo semilendário rei Brian Boru, derrotaram os invasores vikings que haviam se estabelecido na região de Dublin. Impossível deixar de lembrar, embora não tenha nada a ver com o assunto, que também foi na mesma Clontarf que, séculos depois, nasceu Bram Stoker.

(E ainda tem uma referência a Virgílio! Esse Borges era o cara!)

A linguagem de Borges é um prazer para o leitor acostumado a textos um pouco mais elaborados. Com um vocabulário refinado e um estilo por vezes melancólico (pontuado por inesperadas demonstrações de um aguçado senso de humor), seus contos parecem, não raro, mais poemas em prosa que outra coisa qualquer, não impondo ao leitor nenhuma conclusão, deixando significados em aberto, demonstrando que o autor era da opinião de que percorrer uma história belamente narrada é mais importante que simplesmente chegar ao fim dela para saber como termina. O elemento fantástico parece estar ali para lembrar que as pessoas realmente inteligentes sabem reconhecer que seu intelecto não pode desvendar tudo: o mundo sempre nos reservará surpresas, sejam de maravilhas ou de horrores, que zombarão da noção contemporânea de que a razão pode explicar todas as coisas ― veja-se o conto There Are More Things (com o título em inglês mesmo, citando a famosa frase de Shakespeare em Hamlet), uma homenagem a H. P. Lovecraft, na verdade algo que Lovecraft poderia ter escrito se fosse latino-americano. O Outro explora o tema do duplo, que já apareceu tantas vezes na literatura, às vezes a serviço do terror, outras dando lugar a situações hilárias, mas, que eu conheça, nunca da maneira como Borges fez nesse conto, no qual ele (na história, Borges usa a si mesmo como personagem), já idoso, encontra o rapazote que foi há mais de 50 anos e constata, para sua consternação, que a primeira reação que dele obtém é a de desconfiança. Todos nós já desejamos, ao menos uma vez, encontrar nosso eu mais jovem e poder dar-lhe alguns conselhos, ou pelo menos alguns avisos, o que seria, de certa forma, consertar uma parte de nossos erros, mas o que fazer quando quem encontramos é um adolescente cético e com uma ideia exagerada da própria sabedoria, que está claramente se perguntando "o que pretende esse velho caduco"?

O conto que dá título ao livro talvez não seja considerado por todos os leitores como o melhor, mas foi o que achei mais saboroso. Nele, o autor parece usar-se novamente como personagem, embora não cite o próprio nome (o que fizera em O Outro). O personagem que parece ser Borges adquire de um errante vendedor de Bíblias o livro mais estranho que já se imaginou. Seu número de páginas é infinito: não se pode encontrar a primeira nem a última, pois novas páginas parecem brotar das contracapas conforme o volume é folheado. Uma página que foi vista uma vez nunca mais pode ser reencontrada, e a numeração parece totalmente arbitrária. À parte as muitas coisas para as quais esse livro espantoso pode servir de metáfora, o conto revela a genialidade de Borges ao descrever como o personagem (autor?) passa da fascinação ao horror enquanto percorre as páginas intermináveis, acabando por concluir que o livro é "monstruoso"... Para saber o desfecho, leiam o conto – e o livro. Vale a pena! Espero ainda ler muito mais desse autor absolutamente único.

terça-feira, abril 15, 2008

Literatura Fantástica

"Trust the tale, not the teller!" (D.H. Lawrence)

Esta tarde passei duas horas muito agradáveis participando da aula inaugural da oficina literária O Fantástico no Conto, ministrada por Maurício Chemello, mestre em Letras, na livraria/café Letras & Cia (Av. Osvaldo Aranha, 444). Adoraria poder participar de todos os encontros, que acontecerão até fins de junho, sempre às terças-feiras, mas, infelizmente, trabalho no interior e geralmente fico de segunda a sexta-feira longe de Porto Alegre. Pude estar presente à aula inaugural (aberta a todos os interessados, sem necessidade de inscrição) por estar de férias no momento. Ao me despedir do Maurício, sugeri que promova uma oficina aos fins de semana, o que seria ótimo para diversas pessoas que gostariam de participar e têm o mesmo problema que eu.

Sendo eu um graduado em Letras, não sou estranho à nomenclatura particular da Teoria Literária, mas, como, na faculdade, o currículo dedicava pouquíssimo espaço à literatura fantástica, saí desta aula com algumas noções novas. Aprendi, por exemplo, que o que comumente chamamos de literatura de fantasia (exemplo: todas as sagas heróicas ambientadas em mundos próprios e/ou envolvendo seres imaginários) é conhecido, dentro da Teoria Literária, como realismo mágico. Imagino que a palavra realismo, aí, aponte para o fato de que essas histórias descrevem uma determinada realidade - não a nossa, mas uma realidade - onde as coisas acontecem de modo a serem coerentes com a lógica interna desse universo próprio. Já o conto fantástico, assunto propriamente dito da oficina, é aquela história que, em princípio, retrata a realidade cotidiana - onde o autor introduz algum elemento incomum, inusitado, inesperado, que vai contra a ordem "normal" das coisas, podendo, ou não, ter caráter sobrenatural. Forçando um pouco (não muito) essa definição, poderíamos até dizer que todo conto é fantástico!... Pois toda história, para existir, precisa envolver um conflito - algo que perturba o andamento da vida cotidiana -, sendo que o enredo falará basicamente das ações dos personagens com o objetivo de restabelecer o equilíbrio. Isso se aplica tanto a Os Três Porquinhos como a Guerra e Paz; é um princípio universal. Daí temos que, se for para escrever uma história apenas narrando fatos comuns do dia-a-dia, onde nada de diferente acontece, melhor não escrevê-la. Por outro lado, se, em meio ao cotidiano, destaca-se um fato qualquer digno de ser narrado, isso não encaixa a história na definição acima? Pois!...

Claro que sabemos que não é bem assim, mas não dá pra resistir a fazer um pouco de "terrorismo" contra aquelas criaturas cansativas que gostam de torcer o nariz para livros, filmes, etc., dizendo que são "inverossímeis", como se isso fosse um defeito...

Como "tema" para a próxima aula, da qual, infelizmente, já não poderei participar, o Maurício nos recomendou ler a coletânea de contos O Livro de Areia, do argentino Jorge Luís Borges, um grande autor do conto fantástico e também ensaísta, que vem a ser um dos (inúmeros) escritores com os quais já estou há muito tempo devendo a mim mesmo um contato mais aprofundado. Mesmo não podendo seguir a oficina, pretendo fazer o tema: depois escrevo aqui sobre o livro.

Para pensar: cá entre nós: para que a literatura (ou, se pensarmos bem, todas as artes) serviria, se nada mais pudesse fazer do que copiar a realidade?

sábado, abril 30, 2005

Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino

Alguns anos atrás, li um ensaio bastante curioso, de autoria do escritor americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), intitulado O Horror Sobrenatural na Literatura. Publicado postumamente em 1945, o livro pretendia ser um guia para os interessados em conhecer as obras e os autores mais importantes da moderna literatura fantástica ― campo do qual o autor podia falar com conhecimento de causa, pois, para quem não o conhece, Lovecraft, discípulo aplicado de Edgar Allan Poe, é hoje considerado um dos nomes mais importantes da literatura de terror e fantasia de todos os tempos nos Estados Unidos. Esse ensaio era uma leitura muito interessante, mas acabava deixando no leitor (ao menos no leitor brasileiro) um sentimento de frustração, já que a vasta maioria dos trabalhos citados por Lovecraft nunca tinham sido publicados por estas plagas, nem havia perspectiva próxima de que viessem a sê-lo, pois a literatura de imaginação nunca foi considerada, dentro do restrito mercado editorial brasileiro, um campo em que valesse a pena investir, já que não falava ao gosto da maioria do ainda mais restrito público leitor.

Ultimamente, entretanto, pode-se arriscar dizer que a situação está mudando. A tremenda popularidade que a obra de J. R. R. Tolkien começou a ganhar no país por volta de meados dos anos 90, e que estourou de uma vez por todas com o lançamento da vitoriosa trilogia cinematográfica O Senhor dos Anéis, trouxe em sua esteira uma ampliação radical do mercado potencial para a literatura de imaginação como um todo. O estilo que em alguns círculos é chamado de "fantasia medieval", do qual Tolkien é o maior expoente, era praticamente desconhecido no Brasil até há alguns anos ― já agora, a maioria das livrarias tem dezenas de títulos do gênero para oferecer, sendo alguns até de autores nacionais. E não causa estranheza que o leitor já acostumado com a literatura de fantasia através de Tolkien e seus seguidores, tenha maior facilidade em interessar-se pelo lado mais sombrio da ficção fantástica.

Assim, por meio da antologia Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino, eu, e presumo que um bom número de outros leitores do ensaio de Lovecraft, tive por fim o prazer de realmente conhecer diversas das histórias resenhadas com tanto entusiasmo pelo autor americano. O nome do organizador da antologia já há que ser considerado uma recomendação: Calvino, autor de uma obra mundialmente aclamada, tanto como ficcionista quanto como teórico da literatura, escreveu, entre muitas outras coisas, uma pequena pérola intitulada Por Que Ler os Clássicos, livro que deve fazer parte do arsenal de todos os que trabalham na área da literatura ou dos que simplesmente a amam, pois nos abastece com uma fartura de respostas para dar aos onipresentes imbecis (desculpem-me, mas a palavra é essa mesmo) que vêm perguntar "para que serve" ler Homero, Cervantes ou Shakespeare. Com o estofo proporcionado por sua vasta bagagem de conhecimentos sobre literatura universal, Calvino selecionou com rara felicidade uma série de textos que representam o que de melhor se produziu em matéria de ficção fantástica no século XIX.

A antologia contempla desde textos e autores famosos como os americanos Nathaniel Hawthorne (O Jovem Goodman Brown) e Edgar Allan Poe (O Coração Denunciador) até os praticamente desconhecidos, ao menos entre nós, como o polonês Jan Potocki (História do Demoníaco Pacheco), além de cobrir uma surpreendente diversidade de estilos dentro do que se convencionou chamar "horror gótico": temos oportunidade de percorrer desde os exageros emotivos e estilísticos (intencionais?) do romantismo alemão (E. T. A. Hoffmann com o seu O Homem de Areia), passando por climas sombrios como no já citado Goodman Brown de Hawthorne, e indo até coisas que dificilmente seríamos capazes de classificar como "horror", pois o efeito que produzem é bem outro, como no caso da hilária O Nariz, do russo Nikolai Gogol. Há ainda textos nos quais o macabro e o engraçado se entrecruzam de forma magistral, como em A Mão Encantada, de Gérard de Nerval ― aliás, dono de um estilo absolutamente delicioso, cheio de frases pitorescas e tiradas engraçadas. As histórias encadeiam-se umas nas outras sem a menor intenção de ilustrar uma "evolução" da literatura fantástica ao longo do século, mas antes uma variação natural de tons, conforme a índole de cada autor e o ambiente cultural onde seu talento se desenvolveu. Calvino faz questão de nos mostrar tanto autores cujos nomes são automaticamente associados ao conto fantástico ― Poe ou Guy de Maupassant, por exemplo ― quanto aqueles que se celebrizaram em outros ramos da literatura, mas que eventualmente se dedicaram a explorar o campo do insólito: Hans Christian Andersen, Balzac, Walter Scott...

Se tivesse que escolher as melhores histórias do livro, eu apontaria A Vênus de Ille, de Prosper Merimée, que expressa com tremenda força ― mas sempre com sutileza ― a sensação de um horror que ressurge depois de ter ficado adormecido desde a Antiguidade, tudo girando em torno do achado de uma antiga estátua romana; Amour Dure, em que um jovem estudioso de História se vê apaixonado por uma dama bela e terrível, morta há trezentos anos; O Demônio da Garrafa, de Robert Louis Stevenson, que consegue a proeza de manter o leitor acorrentado à narrativa, mesmo lidando com um tema tão batido quanto o que lhe dá título; quanto a Poe e Hawthorne, nem é preciso dizer que seus trabalhos estão entre os melhores.

Mas a melhor história de todas é a que Calvino, sabiamente, reservou para o fim: Em Terra de Cego, do grande H. G. Wells. O conto fala de um vale encravado no meio dos Andes, onde um grupo de exilados, mestiços de espanhóis e índios, se refugiou no século XVI, e onde existe todo o necessário para que uma pequena população humana viva em paz e fartura ― com o inconveniente de que, por alguma razão misteriosa, lá todas as crianças nascem cegas. Devido à erupção de um vulcão que fecha sua única saída, o vale acaba ficando isolado do mundo exterior, e durante três séculos só nascem lá pessoas cegas. Um dia, já no século XIX, Nuñez, um guia de alpinismo, perde-se de seu grupo e é arrastado por uma avalanche para dentro do vale. Por algum tempo ele acredita que, pelo fato de poder ver, será admirado e invejado por aquele bizarro povo cego ("Em terra de cego, quem tem um olho é rei"), mas logo se decepciona: depois de catorze gerações só de cegos, os habitantes do vale esqueceram tudo sobre o mundo exterior. Ao longo dos séculos surgiram entre eles alguns de espírito filosófico que começaram a questionar as lembranças transmitidas pelos ancestrais, passaram a considerá-las meras crendices ("Por que temos que crer em coisas que nenhum de nós nunca viu?"), e acabaram por negá-las completamente e por convencer os demais. Agora, todos ali ignoram completamente que existe um mundo lá fora: para eles, o universo é aquele vale. E não é tudo: palavras como luz e trevas, dia e noite, olhar, ver, simplesmente não existem em seu vocabulário, nem tampouco a palavra cego, pois esqueceram por completo tudo o que diz respeito ao sentido da visão. As histórias de Nuñez sobre o mundo exterior soam para eles como delírios de um louco, assim como tudo o que ele lhes diz sobre poder "ver". A história é uma alegoria extremamente inteligente que critica certos postulados filosóficos e a maneira como geralmente o conhecimento humano é construído.

É claro que nem tudo é perfeito: há coisas sem as quais o livro poderia passar muito bem, como Os Buracos da Máscara, de um tal Jean Lorrain, texto sem pé nem cabeça cujo único mérito é ser curto, e que simplesmente descreve as alucinações da mente de um drogado, ou Os Amigos dos Amigos, de Henry James ― não tenho a menor intenção de pôr em dúvida a importância ou os méritos de James, mas esse conto em particular, a meu ver, não tem por que ser considerado literatura fantástica, já que as brevíssimas menções que faz a aparições fantasmais não passam de um pretexto para páginas e mais páginas descrevendo as inseguranças sentimentais da heroína narradora.

Apesar desses tropeços, cada conto do livro reserva ao leitor uma ou várias surpresas, e, como guia nessa viagem pelo mundo da imaginação visionária, dificilmente poderíamos querer alguém melhor que Ítalo Calvino, que nos situa no contexto através de uma interessantíssima introdução, além de ter escrito para cada história um pequeno prefácio que fornece informações importantes sobre o autor ― embora seja muito incômodo o fato de o organizador, por alguma razão misteriosa, ter decidido várias vezes bancar o desmancha-prazeres, contando ao incauto leitor o final do conto que ele ainda nem começou a ler. Depois de três ou quatro dessas, passei a adotar o expediente de simplesmente pular o prefácio e depois voltar atrás para lê-lo ― após ter terminado o conto, é claro. Recomendo aos demais leitores fazer o mesmo, e basta tomar esse pequeno cuidado para ter garantidos alguns momentos de arrepios inesquecíveis.