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sábado, dezembro 09, 2017

Águias na Tempestade

Águias na Tempestade conclui a Trilogia das Águias de Ben Kane, cujos outros dois volumes já foram objeto de comentários aqui no blog (ver aqui e aqui), e que me proporcionou três sucessivos e deliciosos mergulhos no mundo do primeiro século da Era Cristã, e, mais especificamente, nas histórias por trás dos reveses sofridos pelos romanos na Germânia, que determinaram a cessação de sua expansão pelas terras a leste do Reno. Isso fez com que o rio continuasse, pelos séculos que se seguiram, a ser, na prática, a fronteira entre a área de influência de Roma e as terras que permaneciam sob o controle das tribos bárbaras; em termos modernos, isso significa que a maior parte do que é hoje a Alemanha nunca foi de fato incorporada ao Império, o que se refletiria em sua história, tanto no campo cultural quanto político. Novamente, Kane nos oferece uma narrativa empolgante girando em torno de Armínio, o chefe germânico que já foi um oficial do exército romano, e de Lúcio Comênio Tulo, centurião veterano que viveu altos e baixos (alguns deles muito baixos) durante os últimos anos servindo na Germânia.

Um ano depois dos eventos narrados em O Resgate das Águias, Armínio continua lutando com o mesmo problema de sempre: seus compatriotas germanos estão demasiado ligados a seu modo de vida tradicional para serem capazes de pensar e agir como um só povo. Cada chefe só pensa nos interesses de sua própria tribo e desconfia das outras – e, principalmente, desconfia dos outros chefes. Também as opiniões a respeito dele, Armínio, estão longe de formar um consenso. Alguns chefes o veem com bons olhos por causa da vitória à qual conduziu os germanos na floresta de Teutoburgo, seis anos antes, mas outros acham (e não sem razão) que ele pretende muito mais que apenas manter sua pátria fora dos domínios de Roma: Armínio ambiciona tornar-se um líder supremo, uma espécie de rei, pretensão que soa ofensiva aos ouvidos daquele povo tribal, para quem a ideia de fazer parte de um Estado centralizado não parece muito diferente da de escravidão. O contra-ataque romano do ano anterior, com a recuperação de uma das águias tomadas em Teutoburgo, foi um claro sinal de que é perigoso para as tribos dar a vitória como certa e achar que podem relaxar (ou, como diriam seus inimigos, "adormecer sobre os louros"), e Armínio, mais uma vez, se esforça para conseguir que todos se unam. Para isso, ele não lança mão somente de expedientes honestos; há momentos em que julga necessário manipular, e o faz por quaisquer meios ao seu alcance, seja bajulando ou intimidando. Assassinato também não é uma solução que ele se recuse a utilizar, quando se trata de tirar do caminho alguém que esteja se mostrando um obstáculo particularmente difícil. Há também o drama pessoal do qual Armínio ainda não se recobrou por completo: o rapto de sua esposa grávida, por volta da mesma época da revanche dos romanos. Ele sabe que ela deve estar viva e sendo bem tratada, que deve ter dado à luz o filho do casal e estar criando-o num cativeiro, confortável talvez, mas que nem por isso deixa de ser um cativeiro, sabe-se lá em que lugar dos vastos domínios de Roma – mas saber que a mulher e o filho estão vivos só oferece um consolo limitado, já que ele provavelmente nunca mais os verá.

Tulo, enquanto isso, vive uma fase que, embora dura e trabalhosa como nunca deixava de ser a vida de um legionário, está-lhe trazendo satisfação pessoal. Deve estar agora com seus 50 anos, ou quase isso, e, embora a ideia de reformar-se pareça cada vez mais tentadora, nota-se que ele só sentirá que seu dever foi cumprido quando a águia da Décima Oitava (sua antiga legião, uma das três aniquiladas por Armínio e seu exército na floresta de Teutoburgo) for recuperada. Depois de anos de constrangimentos por causa do que aconteceu em Teutoburgo, e de ter sido rebaixado de posto graças à influência do odioso jovem legado Túbero, ele merecidamente caiu nas boas graças de Germânico, sobrinho e filho adotivo do imperador Tibério, governador militar e general em comando das legiões da Germânia, e, no começo deste novo livro, é novamente promovido, passando a comandar a Segunda Centúria da Primeira Coorte da Quinta Legião (uma legião tinha dez coortes, e a autoridade e prestígio de um oficial eram inversamente proporcionais ao número da coorte na qual ele servia: um centurião da Primeira Coorte estava bem mais alto que um da Sexta, por exemplo). Em Teutoburgo, Tulo salvou uma menina germânica órfã a quem acabou adotando, mas, por não ser possível a um velho soldado solteirão tomar conta de uma criança, confiou-a aos cuidados de Sirona, madura e atraente viúva gaulesa, proprietária de uma taberna na vila próxima ao forte onde ele serve. Tulo sempre arrastou uma asa por essa dama, e agora o sentimento parece estar transbordando, levando-o a tomar atitudes (um tanto atabalhoadas) das quais, tempos atrás, nem teria se julgado capaz, o que rende uma ou duas passagens bastante divertidas.

Ocorre então que, certa tarde, Tulo, de folga, está justamente no joalheiro da vila, tentando escolher um presente para sua crush, como diríamos hoje, quando, através da porta da loja, vê passar na rua seu general, Germânico, acompanhado apenas de uns poucos guardas pretorianos que lhe servem de guarda-costas, rumo a sua loja de vinhos favorita – e, logo atrás, um grupo de guerreiros germanos armados. Com risco da própria vida, Tulo consegue salvar seu comandante, e já não pela primeira vez, mas fica abalado e preocupado ao reconhecer entre os assassinos um homem de nome Degmar, da tribo dos Marsi, cuja vida ele salvou tempos antes, e que, durante um curto período, foi seu escravo. Como ele escapa (é o único do grupo que consegue), as perguntas ficam sem respostas, e a apreensão gerada pelo incidente ainda está com Tulo quando, meses depois, o exército formado por oito legiões, mais tropas auxiliares, atravessa o Reno para uma nova investida contra os germanos.


E creiam, se a narração da batalha de Idistaviso (também referida como batalha do rio Visurgis, embora Ben Kane designe o rio por seu nome moderno, Weser) presente nos capítulos XX a XXIII não for a melhor narração de batalha que já li em romances históricos, está, pelo menos, no "Top 3". O modo como Kane conta sobre o desenrolar dos acontecimentos permite-nos ver com nitidez a diferença entre os estilos de combate de romanos e germanos, ainda que Armínio aproveite alguma coisa do que aprendeu no tempo em que servia a Roma – não pode usar tudo o que aprendeu, pois, para isso, precisaria de um tipo de soldado do qual não dispõe. Embora odeie os romanos do fundo da alma, ele sente uma admiração relutante e pontuada de inveja pela coragem disciplinada que eles demonstram no campo de batalha – um tipo de disciplina que seus guerreiros germânicos teriam que nascer de novo umas três vezes para conseguir. "Disciplina, era sempre a merda da disciplina deles que vencia", reflete enquanto tenta não se deixar levar pelo desespero quando a batalha começa a tomar um inconfundível ar de derrota. Mesmo quando isso não é formulado em palavras, é fácil imaginar que Armínio devia ficar pensando frequentemente sobre as "misérias" que poderia fazer contra o Império se seus seguidores fossem como os legionários. Um general romano não precisava perder um tempo muitas vezes precioso nem sabotar a própria autoridade persuadindo repetidamente os oficiais sob seu comando de que seria "melhor para todos" se fizessem o que ele dizia, ou, caso isso falhasse, recorrendo à bajulação e a promessas de recompensa. Bastava-lhe dar uma ordem, e não era preciso repeti-la.

Não é meramente como se os germanos não tivessem a capacidade para alcançar o mesmo grau de disciplina que os romanos: acontece que eles nem mesmo querem isso. A simples ideia soa-lhes revoltante. Isso fica bem ilustrado numa passagem em que Armínio repreende alguns guerreiros por fazerem algo sem sua autorização, e o mais idoso do grupo lhe retruca: "Toma lá isto para a tua autorização. – O velho guerreiro fez um gesto obsceno. – Segundo a última informação que tive, eras o chefe da tribo dos Queruscos, não eras nem rei nem centurião romano, e eu era um homem livre, não um escravo ou a merda de um legionário." Para a mentalidade dos germanos, a obediência pronta, sem discussão que um soldado romano prestava ao seu superior era uma coisa abjeta, indigna de um homem. O fato de ser precisamente essa disciplina o que dava aos romanos a capacidade de superá-los no campo de batalha não lhes entrava na cabeça.

Também conforme aquilo que já nos acostumamos a esperar dele nos dois primeiros volumes da saga, Ben Kane aproveita os ganchos da história para apresentar mais detalhes sobre as legiões e sobre como era a vida de seus integrantes – e mesmo quem, como eu, está longe de ser estranho ao assunto, sempre aprende mais alguma coisa. A "bola da vez" (bem, uma delas) são os pretorianos e sua relação com os legionários "comuns": há um trecho especialmente interessante e que chega a ser engraçado, em que Tulo, precisando falar com urgência a Germânico numa hora tardia, tem sua entrada barrada por um par de guardas emproados e acaba perdendo a paciência, dizendo umas tantas coisas que, sem dúvida, muitos legionários gostariam de dizer. Bem, para começo de conversa, quem eram os pretorianos? Na origem, o prætorium, ou pretório, era a casa (numa base permanente) ou tenda (num acampamento) onde o comandante de uma força militar se alojava e de onde exercia suas funções, tais como expedir ordens e receber os relatórios dos oficiais. Durante sua longa campanha na Gália, Júlio César decidiu criar uma guarda especial para sua segurança, e que seria composta por homens escolhidos, legionários experientes, de absoluta lealdade e sólida reputação por atos de valor. Por proteger o pretório e seu mais ilustre ocupante, essa força especial ganhou o nome de Guarda Pretoriana, e viria a tornar-se uma instituição tradicional no exército romano, diretamente responsável pela segurança do imperador e de sua família (certo, o próprio César nunca foi formalmente entronizado, mas, com exceção do título, foi imperador em tudo o mais). Durante o tempo de César, a Guarda existiu de maneira informal; seu sobrinho-neto, filho adotivo e sucessor, Augusto – o primeiro a usar o título de imperador – foi quem a institucionalizou e regulou. Tibério, enteado e sucessor de Augusto, e que era o imperador na época em que está ambientado o livro, fez construir um imponente quartel-general para a Guarda Pretoriana, que, por falar nisso, era a única força militar à qual era permitido estacionar na zona urbana de Roma. Em reconhecimento a esse gesto, a Guarda adotou como emblema um escorpião, o signo zodiacal de Tibério. Os pretorianos distinguiam-se dos demais legionários pelas túnicas escuras e pelos escudos, que eram ovalados, como os dos exércitos da época da República, em vez de retangulares.

Se a Guarda Pretoriana tivesse continuado a ser o que foi pensada para ser, é provável que não se houvesse instalado a antipatia com que homens como Tulo e seus soldados a encaravam; afinal, os pretorianos deveriam ser a elite do exército, deveriam ser exclusivamente heróis das legiões, dignos da admiração de todos. Deveriam. Só que ser um pretoriano era uma posição cobiçável, já que o soldo era duas vezes maior que o dos legionários regulares, o tempo de serviço era mais curto, e havia uma série de privilégios, para não falar no fato de que, salvo na eventualidade de algum membro da família imperial decidir ir para o campo de batalha, era pouco provável que viesse a ser preciso efetivamente lutar (os pretorianos que acompanham Germânico, por exemplo, não têm uma vida tão tranquila). E, como costuma acontecer em se tratando de posições cobiçáveis, uns e outros não demoraram muito a encontrar "formas alternativas" de ter acesso a uma vaga na Guarda, para quem tivesse uma família influente e/ou bastante prata disponível. Como resultado, na opinião de Tulo, pelo menos uma grande parte da Guarda Pretoriana em seus dias é composta de jovens bundões em armaduras reluzentes que se julgam superiores aos outros legionários, mas que, se estivessem em sua centúria, sentiriam o peso de sua vitis (vara de videira que os centuriões portavam) até virarem homens de verdade.

De toda a trilogia, Águias na Tempestade é, mais do que provavelmente, o volume com a mais farta quota de sangrentas cenas de batalha; eu ainda não tinha visto Tulo e seus homens causarem tamanha devastação entre as fileiras inimigas, e é digno de admiração o modo como Ben Kane consegue levar um trecho de até duas, três páginas narrando isso, sem que em momento algum a coisa pareça repetitiva ou desnecessária. As baixas do lado romano também não são poucas, ao menos quando Armínio, cuja capacidade estratégica não é desprezível, consegue forçar as legiões a lutar em terrenos e condições que tornam muito difícil colocar em prática as táticas e manobras engenhosas que os soldados romanos treinavam exaustivamente até serem capazes de executá-las de olhos fechados e com a precisão de um relógio – o que, em grande parte, era o segredo de suas vitórias contra inimigos fortes e corajosos, mas desorganizados, como era o caso dos guerreiros germanos. Como nos dois livros anteriores, não há aqui mocinhos nem bandidos, ou, pelo menos, ninguém é alguma dessas coisas o tempo todo: de ambos os lados são praticadas atrocidades e também atos heroicos. A guerra é sempre um negócio brutal e terrível, e talvez não haja nada como ela para trazer à tona o melhor e o pior que existe no homem.

Não é possível concluir o texto sem dizer uma ou duas palavras a respeito de Nero Cláudio Druso Germânico (filho), ou apenas Germânico, personagem histórico real aqui retratado. Em Eu, Claudius, Imperador, o autor Robert Graves pintou-o sob a ótica de seu irmão menor, Cláudio, que o idolatrava, talvez, mais que ao próprio pai, a quem quase não conheceu (Nero Cláudio Druso Germânico pai, normalmente referido como Druso, faleceu em 9 a.C., quando Cláudio tinha cerca de um ano de idade). Antônia, mãe dos dois, punha todo o seu orgulho e esperanças no filho mais velho, dedicando apenas desprezo ao pequeno Cláudio, a quem considerava um retardado inútil; da família, só Germânico gostava de Cláudio, e fez por ele tudo o que pôde. Não admira, portanto, que Graves, ao tentar escrever como o próprio Cláudio escreveria, tenha feito de Germânico a representação mais favorável possível. Já em Águias na Tempestade, a ótica é outra: Ben Kane baseou-se principalmente nos relatos dos historiadores Tácito e Dio Cássio; esse é Germânico em ação na guerra, conduzindo-se, muitas vezes, de modo implacável. Nas campanhas dos anos 15 a 17, as tribos que se haviam aliado a Armínio em Teutoburgo foram derrotadas, e várias delas, quase exterminadas, mas isso não foi seguido por uma ocupação massiva do território, e nem mesmo por um esforço sistemático no sentido de restabelecer a próspera província romano-germânica que estava tomando forma antes de Armínio orquestrar sua revolta; o principal motor dessas campanhas foi o fato de que o massacre na floresta de Teutoburgo não podia ser deixado sem resposta, por pelo menos duas razões. Primeiro, se o Império não revidasse, isso poderia assanhar as tribos do leste do Reno e levá-las a achar que a vitória uma vez obtida poderia ser reprisada, e, com isso, a margem oeste do rio passaria a sofrer com seus ataques. Segundo, as águias das legiões esmagadas em Teutoburgo continuavam em poder dos bárbaros, e, enquanto não fossem recuperadas, isso permaneceria como uma ferida aberta no moral de todo o exército. Uma vez concretizada a represália, os romanos retiraram-se; o imperador Tibério e o senado concordaram que as terras além do Reno exigiriam demasiado esforço para sua conquista, e não ofereciam em troca nada que não pudesse ser obtido mais facilmente em outros sítios. Portanto, pode-se dizer que o objetivo de Armínio e seus seguidores, de manter a maior parte da Germânia independente do Império Romano, foi alcançado, mesmo que o saldo final do confronto tenha sido de derrota para eles. Quanto a Germânico, só podemos ficar imaginando que grande imperador ele poderia ter sido (era filho adotivo de Tibério, e, portanto, o próximo na linha de sucessão) se não fosse por sua morte prematura, em 19, sem ter completado 34 anos. De qualquer forma, o principado de Tibério seria bem longo: ele governaria até sua morte no ano 37, e, não mais dispondo de Germânico para sucedê-lo, indicou o filho dele, Caio Júlio César Augusto Germânico… mais conhecido como Calígula. Um pouco mais sobre esses dois imperadores pode ser encontrado em meu post sobre o livro de Robert Graves, cujo link está logo acima neste parágrafo.

Ben Kane, sem dúvida e sem favorecimento algum, é um dos mais notáveis escritores atualmente em atividade a se dedicarem à ficção histórica, e estou grato por ter tido a oportunidade de ler a Trilogia das Águias, que me rendeu algumas horas de uma leitura muito intensa e agradável. Não tenham preguiça de ler na íntegra a nota do autor ao final do livro: há partes que são repetidas das notas dos dois primeiros volumes, mas outras não são e tratam de coisas que vale a pena saber. Certo, parece que Kane não quis dar-se ao trabalho de garantir que a nota ficasse tão bem escrita quanto o resto do livro, pois o texto é um tanto bagunçado, com vários assuntos jogados aparentemente a esmo num único parágrafo. Há indicações empolgantes de museus e sítios arqueológicos romanos que podem ser visitados na Alemanha – espero conseguir um dia – e uma pá de curiosidades. Kane assegura que a ronda noturna de Germânico pelo acampamento, disfarçado, para conferir como anda o moral de seus soldados (que eu poderia jurar ter sido inspirada numa cena da peça Henrique V, de Shakespeare!) é histórica, embora, no livro, tenha levado o toque ficcional de fazê-lo acompanhar por Tulo. E, fazendo uma brincadeira com seus leitores, o autor desafia: "Há duas homenagens ao filme Gladiador no livro – veja se as descobre". Uma delas eu encontrei facilmente, e embora, é claro, ainda não tivesse lido a nota, pensei comigo que não podia ser coincidência: o início de uma conversa entre Tulo e seu optio, Marco Fenestela, no capítulo XXXII, é idêntico ao diálogo do general Maximus com seu ajudante de ordens, Quintus, logo antes da primeira batalha no filme de Ridley Scott. "As pessoas deviam saber quando são conquistadas." "Você saberia, Quintus? Eu saberia?" (A propósito, o optio, que se pronuncia "ópcio", era o segundo oficial mais graduado numa centúria, auxiliar direto do centurião e, quando necessário, seu substituto.) Quanto à outra homenagem, creio que a achei também, mas, se for o que eu penso, é bem menos explícita que a primeira, e, de qualquer modo, não posso dizer aqui do que se trata, pois envolve um spoiler. Por fim, preciso confessar que estou, de certa forma, contente de que esses livros tenham sido publicados em Portugal. Adquiri-los é trabalhoso, demoram a chegar e custam caro, mas tenho calafrios só de imaginar o que noventa e nove por cento dos tradutores brasileiros de hoje em dia teriam feito com os textos de Kane, naquelas horrendas tentativas de "linguagem de época".


sexta-feira, abril 14, 2017

O Resgate das Águias

Cinco anos se passaram desde a traição de Armínio, que levou três legiões romanas à destruição na floresta de Teutoburgo. Como ele esperava que acontecesse, Roma não fez novas tentativas de estabelecer bases permanentes na margem oriental do Reno, mas fortaleceu suas posições na margem ocidental e, com toda a certeza, não se esqueceu da humilhação sofrida. Armínio esperava por isso também, e, embora ele próprio não possa transpor o rio – se o fizesse, seria um homem morto, em menos tempo do que leva dizê-lo –, não deixou de enviar regularmente espiões, que percorrem as ruas das cidades romanas da Germânia, ouvem a conversa dos legionários nas tabernas, e coisas assim. Graças a isso, ele sabe dos planos do imperador Augusto de tentar retomar o território perdido e punir exemplarmente as tribos que se rebelaram, e está fazendo seus próprios planos para que a "Germânia Livre" esteja preparada quando esse dia chegar, o que agora parece estar muito perto. Nesse período de cinco anos, Armínio tem levado a vida normal de um homem das tribos na Germânia, muito diferente da do oficial romano que ele já foi. Sucedeu ao pai como chefe da tribo dos Cherusci e casou-se com a bela Tusnelda, filha de Segestes – um chefe tribal leal a Roma, que inclusive tentou, inutilmente, alertar o governador Varo sobre a traição planejada por Armínio; como é fácil imaginar, o convívio entre genro e sogro não é dos mais tranquilos. As articulações de Armínio para ampliar seu poder até tornar-se uma espécie de rei (coisa que os germanos, divididos em tribos, nunca tiveram) ainda não deram frutos, mas ele não tem pressa.

Corre o ano 14 d. C. e Augusto ainda é o imperador, mas é agora um homem bastante idoso, tendo governado por mais de 40 anos. Como não tem filhos homens, nomeou como herdeiro o enteado, Tibério, que, também sem descendência masculina, por sua vez adotou o sobrinho Nero Cláudio Druso Germânico, filho de seu falecido irmão de mesmo nome. Germânico, portanto, já era o segundo na linha de sucessão ao trono quando assumiu o cargo de governador da Germânia, terra onde seu pai alcançou glória no campo de batalha e fez jus ao agnomen que lhe legou, embora seja mais correto dizer que o que ele realmente assumiu foi o governo da pequena parte da Germânia que Roma ainda controlava. Sua posse ocorreu no ano 13, mas O Resgate das Águias começa com um prólogo ambientado em 12, quando foi celebrado em Roma um triunfo em honra de Tibério, por suas vitórias na Ilíria. É aí que vamos reencontrar Lúcio Comênio Tulo, o protagonista de Águias em Guerra.

Apesar de seu comportamento heroico durante a malfadada batalha da floresta de Teutoburgo (se é que dá para chamar aquilo de batalha), Tulo, como a maioria dos sobreviventes, caiu em desgraça. No caso dele, isso se deu, principalmente, devido às maquinações de seu desafeto Lúcio Túbero, que também sobreviveu, mas, ao contrário dele, ficou bem na "foto", ocupando agora, aos 22 anos, o posto de legado, comandante de uma legião. Túbero conseguiu que Tulo fosse rebaixado de posto: anteriormente primus pilus de uma coorte, ele é agora um centurião comum, tendo sido realocado na Quinta Legião, junto com os soldados que conseguiu salvar. Muitos de seus novos colegas oficiais o respeitam, mas alguns – em especial os centuriões de patentes superiores à sua – gostam de fazê-lo alvo de chacota porque, de toda uma coorte, só conseguiu salvar 15 homens… Sendo que, se eles soubessem quais eram as condições em Teutoburgo, perceberiam que até mesmo isso foi um feito admirável.

(Para os raros mas obstinados nerds de história militar: a Quinta Legião aí referida é a própria Legio V Alaudae, 'Quinta Legião das Cotovias', em tradução literal. Formada por Júlio César na Gália, em 52 a. C., ela ganhou esse nome por causa dos penachos em estilo gaulês que os soldados usavam nos elmos nos primeiros tempos, e que lembravam o penacho do pássaro. Já seu emblema, um elefante, foi ganho após a batalha de Tapsos, em 46 a. C., na qual a Quinta enfrentou com sucesso uma carga de elefantes de guerra númidas. Não deve ser confundida com a Legio V Macedonica.)

Os historiadores registraram que os romanos que foram capturados vivos pelos germanos na floresta de Teutoburgo, e posteriormente libertados em troca de resgate, ficaram marcados pela desonra, e foram proibidos pelo imperador, sob pena de morte, de pisar na Itália durante o resto de suas vidas. Para seus objetivos literários, o autor Ben Kane estendeu a mesma proibição a todos os sobreviventes de Teutoburgo, mesmo aqueles (poucos) que escaparam sem terem sido capturados, como Tulo e seus homens. Portanto, ele e seu segundo em comando, Marco Fenestela, estão correndo um enorme risco quando decidem ir a Roma assistir ao triunfo – provavelmente o mais grandioso espetáculo que um cidadão romano da época podia esperar ver ao longo de sua vida, algo que, visto na infância, ainda era lembrado e contado na velhice. Esperam não ser reconhecidos por ninguém, mas Germânico, com outros generais, está acompanhando Tibério em seu triunfo…

Um dos motivos para que Germânico seja adorado por seus soldados é sua capacidade de olhar para cada um deles como indivíduo, não como um simples número que engrossa suas tropas, e parece que tal fama é merecida, pois, de seu lugar na procissão triunfal, ele avista Tulo, com quem se encontrou na Germânia anos antes – e o reconhece, mesmo em trajes civis e no meio de uma multidão de espectadores. O mais importante, porém, é que Germânico não o denuncia como "deveria" fazer. Numa conversa que os dois têm mais tarde, ele elogia Tulo pelo que fez em Teutoburgo e diz que precisará de homens como ele para concretizar seu plano de vingar o massacre e recuperar as águias perdidas da Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, que caíram nas mãos dos germanos e devem agora estar ornamentando como troféus os salões de diferentes chefes tribais. Para Tulo, que só vive pela esperança de ter a chance de fazer justamente isso, a fim de restaurar sua honra, essa promessa é um presente dos deuses.

E é assim que, dois anos depois, Tulo e Fenestela, assim como o restante dos soldados da Quinta e das outras três legiões locais, estão esperando pela chegada de Germânico. Quando ele por fim chega, entretanto, não pode dedicar-se imediatamente ao plano de punir os germanos e recuperar as águias, tendo primeiro que lidar com uma insurreição entre suas próprias tropas: parte dos soldados estão insatisfeitos por não terem seus soldos reajustados há muitos anos, e pelo fato de alguns deles já terem passado há muito do prazo regular para se reformarem, e mesmo assim não serem dispensados. A coisa já passou do estágio dos protestos verbais: os revoltosos tomaram o controle dos acampamentos e assassinaram vários oficiais contra os quais tinham queixas já antigas – e, é claro, seja qual for o desfecho das negociações, os homens que fizeram isso não podem ser deixados impunes. Isso coloca Tulo, junto com outros oficiais e soldados que se mantiveram leais, numa das situações mais repulsivas que um legionário romano poderia imaginar: a de receber a ordem de matar um camarada. Essa insurreição é histórica, e é mencionada também em Eu, Claudius, Imperador, de Robert Graves, mas aparece com bem mais detalhes aqui, provavelmente porque O Resgate das Águias é narrado sob o ponto de vista de um oficial das legiões da Germânia, que está lá e vê tudo acontecer, enquanto, no livro de Graves, o narrador é Cláudio, irmão de Germânico – um intelectual que mora em Roma, de modo que só sabe do caso através de informações de segunda ou terceira mão. Aquele movimentado ano 14 é marcado, ainda, pela morte de Augusto, sucedido por Tibério, com Germânico precisando esfriar o ânimo de suas legiões, que querem que ele derrube o tio e se faça, ele próprio, imperador.

Superadas todas essas turbulências, Germânico decide aproveitar o desusado bom tempo daquele outono para atravessar o Reno com suas quatro legiões, reforçadas por tropas auxiliares gaulesas e germânicas (das poucas tribos germanas ainda leais a Roma, claro está) e cair sobre um punhado de aldeias habitadas pela tribo dos Marsi, uma das que se juntaram ao exército de Armínio cinco anos antes. Quando as legiões romanas atacavam com ordens para riscar do mapa uma cidade ou aldeia, o procedimento padrão era matar todos os homens; mulheres e crianças normalmente eram poupadas, mesmo que fosse só para passarem o resto da vida como escravas. Desta vez, porém, as ordens são mais duras ainda: ninguém deve sobreviver – ninguém mesmo. A ideia é que fique absolutamente claro que não haverá misericórdia para os que se aliaram a Armínio. A narração do ataque aos Marsi é tanto mais perturbadora por se parecer muito com a do ataque dos Usipeti às aldeias sob proteção romana no livro Águias em Guerra: o leitor fica se perguntando onde foi parar a distinção entre barbárie e civilização, que os romanos pareciam prezar tanto. A verdade é que, como dizia Conan numa história que li certa vez, a guerra nunca é civilizada. É claro que, para Tulo, assim como para qualquer homem decente, a necessidade de chacinar mulheres e crianças é encarada com repugnância… Só que, como em qualquer grupo numeroso, não se pode esperar que todos no exército sejam decentes, de modo que é muito difícil impedir que estupros e outras crueldades desnecessárias aconteçam.

Seja como for, o "recado" é entendido por Armínio, que não perde tempo em, mais uma vez, chamar às armas as tribos germânicas, encorajando-as a deixar temporariamente de lado as rixas que têm umas com as outras para enfrentarem juntas o contra-ataque romano. Para se prepararem, os germanos dispõem do restante do outono, bem como do inverno de 14-15, já que, depois dessa investida rápida contra os Marsi, que estavam mais próximos, os romanos só poderão dar sequência à campanha na primavera.

O que o chefe dos Cherusci não esperava era receber um golpe tão doloroso: uma expedição furtiva liderada por Tulo e por seu próprio irmão, Flavo (que era um dos germanos leais a Roma) consegue penetrar em sua aldeia durante sua ausência, resgatar Segestes, que ele estava mantendo prisioneiro, e, o pior de tudo, raptar Tusnelda, grávida de seu primeiro filho. Por algum tempo, chega a parecer que os romanos vão conseguir exatamente o que esperavam com isso: desestabilizar o chefe germano, levá-lo a agir de forma precipitada e fazer alguma bobagem, mas, depois de se entregar a uma fase de desespero e bebedeira, Armínio se recupera o suficiente para retomar o complicado trabalho de coordenar as tribos para que ajam juntas contra o inimigo. Daí para diante, os capítulos se revezam entre os esforços de Armínio com esse objetivo e a narração da campanha romana, sob o ponto de vista de Tulo. As partes que narram as reuniões de Armínio com outros chefes evidenciam bem aquilo que foi, historicamente falando, a única coisa que o impediu de causar danos ainda maiores ao Império Romano: o zelo quase paranoico com que cada tribo germânica fazia questão de manter sua independência em relação a todas as demais, e a consequente fragilidade de qualquer aliança entre elas. Armínio sabe que é o mais preparado de todos os chefes, porque viveu entre os romanos, foi treinado para ser um oficial do exército imperial, aprendeu suas táticas e seu modo de pensar, mas os outros não gostam nem um pouco de sua tendência a querer mandar em tudo e a agir como se fosse o único ali com capacidade para liderar um exército contra os romanos, embora o seja. Suas ambições reais não passam despercebidas aos olhos de alguns mais perspicazes, que não perdem a oportunidade de lembrá-lo de que, ali, ele é apenas o que seus inimigos romanos chamariam em latim de primus inter pares ('primeiro entre iguais'), e, mesmo isso, somente em caráter provisório. A lealdade de cada chefe nunca pode ser tida como certa, e precisa ser ganha repetidamente, mais vezes por meio de bajulação que de boas ideias ou liderança inspiradora, o que leva Armínio a ter inveja dos generais romanos, que têm assegurada por juramento a obediência de seus soldados e oficiais, sendo que qualquer insubordinação é considerada traição.

O Resgate das Águias não fica devendo nada a Águias em Guerra nos quesitos tensão, ação, atmosfera, reconstituição histórica ou personagens convincentes, provando ser uma sequência perfeitamente condigna para seu antecessor. A Trilogia das Águias de Ben Kane é um prato cheio (e apetitoso!) para os fãs da Antiguidade, mais especificamente do Império Romano, e, mais especificamente ainda, das legiões. Há poucos livros tão bons em fazer você se sentir como se estivesse marchando por um território hostil, com uma cangalha de madeira sobre os ombros contendo 30 quilos de equipamento, um elmo fazendo correr suor pelo seu rosto, e a consciência de estar sendo observado por hordas de bárbaros desgrenhados escondidos no mato, que o matarão com o maior prazer na primeira oportunidade que tiverem. As legiões me fascinam, sem dúvida, mas só como objeto de estudo: não lamento nadinha o fato de não ter feito parte de uma!… Era uma vida dura e brutal. O século XXI tem muitos defeitos, mas também tem vantagens suficientes para que eu prefira estar aqui, confortavelmente instalado na minha poltrona, e apenas ler sobre as façanhas e as provações daqueles bravos soldados. Sendo assim, que bom que temos Ben Kane! Ave atque vale.

quinta-feira, março 21, 2013

Eu, Claudius, Imperador

Em seu clássico Declínio e Queda do Império Romano, Edward Gibbon define a lista oficial dos imperadores romanos como uma coleção completa de exemplos, tanto do mais alto grau de virtude quanto dos piores vícios de que os seres humanos são capazes (mais uma vez, estou citando de memória: sei que a frase não é exatamente assim, por isso não a pus entre aspas). E qualquer pessoa que haja estudado a história de Roma, mesmo que por simples curiosidade e sem nenhuma pretensão acadêmica, como este que vos escreve, concordará sem reservas com o célebre historiador britânico. Não deve surpreender a ninguém, portanto, que essa extensa e rica galeria do melhor e do pior do ser humano seja uma das mais interessantes fontes de assunto para um autor quando ele deseja escrever uma biografia, e não há de ser por outro motivo que várias biografias de imperadores romanos ocupam um lugar de destaque na literatura universal. De cabeça, no momento, lembro-me de César, de Max Gallo; Juliano, de Gore Vidal; e do belíssimo Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar – sem dúvida, um dos livros mais artisticamente escritos que conheço. E, nessa seleta lista, é preciso reservar um lugar para Eu, Claudius, Imperador (I, Claudius), originalmente publicado em 1934, de autoria de Robert Graves (1895-1985), intelectual britânico polivalente: além de romancista, foi poeta, ensaísta e historiador. Sua obra mais famosa é provavelmente A Deusa Branca, um erudito mergulho na religião e no folclore dos antigos celtas.

Vi que I, Claudius ganhou há pouco tempo uma nova edição brasileira, por uma editora diferente e provavelmente numa nova tradução, mas o exemplar que possuo é da edição de 1983 da Abril Cultural, que tem um detalhe interessante a mais para nós, gaúchos: embora publicada em São Paulo, por essa editora lá sediada, essa edição saiu sob licença da nossa tradicional e querida Livraria do Globo, de Porto Alegre (que possuía sua própria editora e foi a primeira a publicar o livro no Brasil), e usa a mesma tradução, feita por ninguém menos que o nosso "poeta estadual", Mário Quintana, que por muito tempo trabalhou para a Globo como tradutor de inglês e francês. Numa nota logo nas primeiras páginas, Quintana esclarece que o estranho sistema de nomenclatura adotado apenas procura ater-se ao que o autor utilizara no original: nomes de pessoas são grafados em suas formas clássicas latinas, ou o mais próximo possível disso – Claudius em vez de Cláudio, Tiberius em vez de Tibério, e assim por diante; já com os topônimos, um tanto bizarramente, ocorre o inverso: usa-se França ao invés de Gália, Alemanha no lugar de Germânia... Pessoalmente, não gosto disso, primeiro porque tira muito do "sabor de época", prejudicando a imersão do leitor na narrativa, e, segundo, porque me parece uma excessiva simplificação das coisas: as antigas províncias do Império Romano não são sinônimos das nações modernas a que deram origem. Pode-se estabelecer uma equivalência aproximada, porém as fronteiras nunca serão exatamente as mesmas, e, quanto à identidade étnica e cultural, então, nem se fala. A Gália de dois mil anos atrás não é a mesma coisa que a França de hoje, e, a meu ver, não deveria ser chamada assim. Outros "modernismos" de linguagem que eu preferiria que não existissem são os do âmbito militar: Graves chama as legiões de "regimentos", e utiliza patentes modernas como capitão, coronel e sargento, que, é claro, não são as mesmas que eram usadas no exército romano. Mas, como devem ter notado, preferi colocar os "senões" logo no começo, porque, feitas essas ressalvas, I, Claudius é um estupendo livro.

Cláudio (10 a.C.-54 d.C.) foi o quarto imperador de Roma sem contar Júlio César, e teve a chance de observar de perto os governos de seus três antecessores, já que era sobrinho-neto de Augusto, sobrinho de Tibério e tio de Calígula. A dinastia a que todos eles pertenciam – e que foi a primeira a governar o Império Romano – passaria à História com o nome de Julioclaudiana, por ter-se originado da união de duas famílias da velha aristocracia romana: os Júlios e os Cláudios. Essa, por assim dizer, aliança, teve início quando Lívia Drusa, avó do nosso Cláudio, tendo-se separado do primeiro marido, casou-se com Augusto. Nunca encontrei muita informação sobre Lívia em livros de História, mas Graves retrata-a como extremamente maquiavélica e inescrupulosa, com enorme influência sobre Augusto – ele próprio um homem essencialmente honesto e benevolente, embora tenha, por vezes, eliminado adversários de forma arbitrária, quando acreditava que isso visava a um bem maior. Lívia, por outro lado, manipula, chantageia e manda assassinar sempre que acha que deve, sem qualquer contemplação.

Não causa surpresa, portanto, que Tibério, filho do primeiro casamento de Lívia, tenha visto, ao longo da vida, desaparecerem de forma conveniente todos os outros sucessores imaginados por Augusto, que, dessa forma, foi mais ou menos forçado a indicá-lo, apesar de, pelo menos na versão de Graves, não gostar muito do enteado. Lívia e Augusto não tiveram filhos, e ele, de seu casamento anterior, tivera apenas uma filha, Júlia. Ainda levaria séculos para o Império tornar-se uma "monarquia eletiva" (a expressão é de Gibbon), sistema que daria muito mais certo; por enquanto, Augusto precisava encontrar um sucessor em sua própria família, e, na falta de filhos homens, aventou como possíveis candidatos diversos de seus sobrinhos e netos – que, como vimos, foram morrendo um a um. Ele precisou, então, contentar-se com Tibério.

Ninguém deve censurar-se se, por acaso, se perder por completo em meio à árvore genealógica dos Julioclaudianos, que é complicadíssima: eu mesmo, que não sou propriamente um iniciante em História romana, fiquei confuso algumas vezes. Houve tantos casamentos políticos e reviravoltas na disputa pelo poder durante as décadas que antecederam o nascimento de Cláudio, que os adversários mais notórios também eram, não raro, parentes ou contraparentes; só como um exemplo ilustrativo, o próprio Cláudio, ao mesmo tempo em que era sobrinho-neto de Augusto, era também neto de Marco Antônio, o maior rival daquele (pois, quando os dois ainda eram aliados, Antônio houvera desposado Otávia, irmã de Augusto). Para completar, o casamento, que, para os romanos dos séculos anteriores, era coisa muito séria, nessa época já podia ser desfeito com uma facilidade ridícula, de modo que os membros da aristocracia e da família imperial casavam-se em média quatro ou cinco vezes ao longo da vida, com todas as complicações adicionais que isso acrescenta à tal árvore. Por fim, é preciso assinalar que, aparentemente, todos os homens dentro de um mesmo ramo familiar tinham nomes muito parecidos, de modo que era costume cada um ser comumente identificado por um "pedaço" do nome. Enquanto Tibério chamava-se Tiberius Claudius Nero Cæsar, Cláudio chamava-se Tiberius Claudius Drusus Nero Germanicus, e tinha um irmão mais velho chamado Nero Claudius Drusus Germanicus, conhecido por Germânico. O pai de ambos (filho de Lívia, irmão de Tibério) ganhara postumamente o agnomen de "Germânico", como homenagem prestada pelo senado por sua notável participação em campanhas militares contra as tribos da Germânia, e, como acontecia nesses casos, o agnomen foi incorporado formalmente ao nome, sendo, inclusive, transmitido aos descendentes. E não, Germânico não era o Nero em quem vocês estão pensando, embora ainda vão ouvir falar nele antes do fim deste post. Ufa!


Germânico, aliás, foi, desde a infância e até sua morte, o melhor amigo e o ídolo de Cláudio, e talvez tenha sido mesmo um dos melhores homens de seu tempo: valente, austero embora generoso, inflexível no cumprimento do dever, e de um patriotismo a toda prova, personificava de modo exemplar as velhas virtudes romanas. Era adorado por seus legionários e respeitado por todos os cidadãos de bem de Roma. Segundo relatos da época, era, ainda, um homem bonito e de extraordinário vigor físico. Além de ter ocupado, sempre de forma irrepreensível, diversos cargos políticos de importância, foi um general brilhante, obtendo, tal como seu pai, expressivas vitórias na Germânia, inclusive recuperando as águias de duas das três legiões que, sob o comando de Publius Quinctilius Varus, haviam sido massacradas na desastrosa batalha da Floresta de Teutoburgo, no ano 9 (para entender a importância moral que a recuperação das águias tinha para o exército romano, deem uma olhada aqui). Por ocasião da morte de Augusto, em 14, as legiões da Germânia chegaram a aclamar Germânico como imperador, e, se ele o quisesse, poderia ter marchado sobre Roma e tomado o poder – o povo o receberia de braços abertos, já que era muito mais popular que seu tio Tibério. Porém, movido por aquele senso inflexível do dever de que eu falava há pouco, ele mesmo pôs fim às pretensões de seus soldados, submetendo-se a Tibério, o sucessor legítimo. Depois de saber tudo isso sobre Germânico, não há mais como discordar do velho provérbio romano que diz que maçãs estragadas podem nascer até dos melhores ramos: Calígula (sim, aquele) era seu filho. Germânico morreu na Ásia Menor em 19, com apenas 34 anos de idade, oficialmente de doença, embora as suspeitas de envenenamento nunca tenham sido provadas falsas.

Germânico e Cláudio: ver os dois irmãos lado a lado era como ver o dia e a noite. Cláudio era tímido, manco, gago e meio surdo, e, embora tivesse uma inteligência aguçada, seus parentes – com exceção, novamente, de Germânico, que o amava e fez tudo o que pôde por ele – tinham-no na conta de atrasado mental. O que, no cômputo final, pode ter sido uma sorte: Cláudio sobreviveu à onda de assassinatos que vitimou muitos de seus parentes, primeiro sob a batuta de Lívia, depois de Tibério (afinal, para que alguém se daria ao trabalho de eliminar aquele "retardado inofensivo"?). Desde a infância interessou-se por História, e dedicou-se a ela durante décadas, tendo aprendido com alguns mestres notáveis: pelo menos dois historiadores célebres, Tito Lívio e Asínio Pollio, aparecem como personagens no romance, embora eu não tenha certeza se Cláudio de fato os conheceu pessoalmente. Não é improvável, já que eles eram figuras de destaque na sociedade, e ele, membro da família imperial.

Enquanto Cláudio escreve seus livros de História e observa os acontecimentos de sua posição pouco gloriosa, mas relativamente segura, a política em Roma envereda por caminhos que teriam enfurecido Júlio e Augusto. Tibério fora em tempos um combatente corajoso e um general capaz, que, se por seu gênio rabugento não era exatamente estimado por seus legionários, ao menos contava com o respeito e a confiança deles, já que em muitas ocasiões demonstrara saber como conduzi-los à vitória. Tampouco fez má figura nos cargos políticos e administrativos que ocupou – e, de tudo isso, só se pode concluir que inteligência e talento não lhe faltavam. Ao subir ao trono, porém, ele converteu-se na prova viva da veracidade de outro velho aforismo: aquele que diz que, para conhecer o verdadeiro caráter de um homem, basta dar-lhe poder. O mau humor que o distinguia desde a infância demonstrou ser apenas a faceta mais visível de uma personalidade lúgubre, paranoica, rancorosa e invejosa, defeitos que a idade só viria agravar. Não hesitou em usar suas prerrogativas de imperador e influência junto ao Senado para vingar-se de antigos desafetos – coisa que seu pai adotivo Augusto classificava como "confissão pública de fraqueza, mesquinhez e covardia" –, e mais tarde patrocinou uma "caça às bruxas" estimulando a delação: qualquer um que houvesse (ou fosse suspeito de haver) falado contra o imperador ou "blasfemado" contra a memória de Augusto (a quem, por esse tempo, haviam deificado) poderia ser acusado, submetido a um simulacro de julgamento e, em pouquíssimo tempo, executado, caso em que seus bens eram confiscados, cabendo ao delator a quarta parte... Como seria de se esperar nessas condições, formou-se logo uma classe de delatores profissionais, e ninguém mais podia ter a certeza de continuar vivo até a semana seguinte. Como se não bastasse, Tibério era excessivamente supersticioso, mesmo para os padrões daquela época, quando todo mundo o era em algum grau: vivia cercado de magos, astrólogos, adivinhos e charlatães de toda espécie. A pessoa que quisesse livrar-se de outra tinha apenas que subornar um dos feiticeiros de Tibério para deixar cair no ouvido do imperador que fulano conspirava contra ele: era questão de dias que a cabeça do infeliz rolasse. Talvez o aspecto mais dramático de tudo isso fossem os suicídios. Muitos homens até então respeitados – cavaleiros e senadores idosos, veneráveis, com décadas de bons serviços prestados a Roma –, ao perceberem que não havia salvação, tiraram a vida com as próprias mãos, o que, para a cultura romana, era uma saída honrosa, preferível ao aviltamento de uma execução pública. Além disso, assim resguardavam os direitos de seus herdeiros, já que os bens que seriam confiscados com a execução não podiam sê-lo em caso de suicídio. Mas, em resumo, os últimos anos de Tibério foram um tempo de terror.

A parte bizarra é que, se é que um governante pode celebrizar-se por ter sido ao mesmo tempo um tirano sanguinário e um administrador sábio, foi isso o que Tibério fez. Manteve as boas práticas iniciadas por Augusto, lidou habilmente com a economia e com os conflitos nas fronteiras do Império, e nomeou governadores capazes para as províncias. O resultado foi que, enquanto a capital vivia a situação absurda já descrita, as províncias, e mesmo a maior parte da Itália, tinham dias de prosperidade, embora isso pouco ajudasse as vítimas de Tibério, e não servisse de consolo a seus parentes. Não admira que a notícia da morte do imperador, em 37, tenha sido recebida com festa nas ruas e grandes esperanças em seu sucessor. Pobre Roma: esse sucessor foi Calígula.

"Ora", pensaram por certo os romanos, "ele é filho de Germânico. Não pode ser tão diferente dele, pode?" Podia. Seu nome, aliás, era Caius Julius Cæsar Augustus Germanicus. Por conta da carreira do pai, passou boa parte da infância em acampamentos militares, principalmente na Germânia; os soldados o adoravam e consideravam uma espécie de mascote. Certa vez, num desses acampamentos, alguém, por brincadeira, fez para ele um par de sandálias como as usadas pelos legionários, adaptadas ao tamanho de seus pés infantis, e Caio gostou tanto que, daí por diante, recusava-se a calçar qualquer outra coisa. Em latim, esse tipo de sandália chama-se caliga, no diminutivo caligula; o apelido com que o jovem imperador ficaria tristemente célebre significa, portanto, "sandalinhas".

Se Tibério era paranoico, Calígula era um doido varrido. Se sempre o foi ou se o desarranjo mental deveu-se às sequelas de uma misteriosa "febre cerebral" que o acometeu meses depois de assumir o Império, historiadores discutem até hoje; em todo caso, a primeira impressão que ele deu foi de que seria um governante benévolo. Chamou exilados de volta e limpou os nomes de muitos dos que haviam sido condenados por traição durante o governo de Tibério, devolvendo às famílias os bens confiscados. E, é claro, não deixou de oferecer os espetáculos populares de praxe. O primeiro sinal visível de que o imperador não estava batendo bem (e que, coincidência ou não, manifestou-se logo após haver convalescido da tal febre) foi perder todo o senso de medida em relação a esses eventos: passou a promover festivais que duravam semanas, depois meses, com corridas de quadrigas e combates de gladiadores todos os dias, a população obrigada a comparecer. Daí em diante, as coisas só pioraram. Calígula esbanjava dinheiro de tal maneira que o tesouro, que Tibério deixara abarrotado, ficou pela metade em questão de meses. Obrigou um governador de província a separar-se da mulher para que ele, Calígula, pudesse casar com ela. Conduziu um exército ao litoral norte da Gália e ordenou um ataque contra o mar, alegando que Netuno o teria desafiado. Tentou nomear seu cavalo cônsul. Ao oficiar um sacrifício durante uma festa religiosa, bateu com o martelo cerimonial no sacerdote em vez de no animal que estava no altar. Todo imperador, inevitavelmente, tem seus aduladores, mas, em se tratando de Calígula, até puxar-lhe o saco era perigoso, pois seu comportamento era totalmente imprevisível: num dia podia cumular um "amigo" de honrarias e ricos presentes, para no dia seguinte mandar matá-lo sem o menor motivo. Tudo isso para não mencionar as supostas relações incestuosas com todas as suas três irmãs. Hoje em dia, estudiosos recomendam dar um desconto para algumas dessas histórias; parte das insanidades atribuídas a Calígula pode ser intriga da oposição, já que a maioria das informações que temos sobre seu governo foi escrita por seus inimigos. Em todo caso, parece ser fato que havia um bocado de gente que o odiava. Acabou assassinado, no ano 41, aos 29 anos de idade, por uma Guarda Pretoriana já farta de seus desmandos. Isso deixou o "pobre tio Claudius", como Calígula o chamava, como único membro masculino adulto sobrevivente da família imperial, de modo que as forças que haviam eliminado o imperador fizeram o óbvio: puseram-no no trono para que servisse de fantoche. Mas ele não seria um fantoche – longe disso.


Durante os quatro anos que seu terrível sobrinho permanecera no poder, Cláudio, sabiamente, esforçara-se por reforçar a imagem de débil mental que já tinha diante da corte graças a sua avó Lívia, que jamais escondera de ninguém seu desprezo pelo neto. Exagerara a gagueira e portara-se como um perfeito idiota em toda situação ridícula em que Calígula propositalmente o colocava. Embora haja exercido algumas funções políticas durante o principado do sobrinho – que, provavelmente, indicava-o mais por zombaria que por algum outro motivo –, somente ao chegar ao trono ele teve oportunidade de mostrar do que realmente era capaz.

O fato é que Cláudio, de idiota, nunca teve nada. Durante os 13 anos seguintes, provou ser mais digno de vestir a púrpura imperial do que outros que nela pareceram mais majestosos, antes e depois dele. Soube mostrar-se prudente, sagaz e, quando necessário, implacável. Foi durante seu principado, por exemplo, que a Bretanha foi verdadeiramente conquistada, pois a invasão liderada por Júlio César um século antes só tivera valor publicitário, não consolidando o domínio romano sobre a ilha. Cláudio também ampliou e melhorou a malha de estradas pelo Império, assegurou alguns direitos aos não-cidadãos (isto é, escravos, libertos e estrangeiros) e permitiu que os nativos das províncias tivessem seus representantes no Senado. Tomou, ainda, medidas contra a corrupção nos órgãos do governo e para agilizar as decisões da justiça. Isso tudo fez dele um imperador querido pelo povo, que até relevava algumas excentricidades suas, como na ocasião em que baixou um édito autorizando a todos a livre, hã... flatulência em qualquer lugar e momento (incluindo banquetes oficiais e cerimônias solenes), depois que ouviu de seu médico que ficar prendendo os gases fazia mal à saúde.

Sua vida pessoal/conjugal foi mais problemática. Antes de tornar-se imperador, Cláudio já passara por dois ou três casamentos (as fontes divergem), todos arranjados, é claro, e nenhum deles feliz. Por ocasião de sua ascensão ao trono, estava casado com Valéria Messalina, a quem, pelo menos na versão de Graves, ter-se-ia unido por sugestão de Calígula, e que seria uma parenta distante de ambos. Cláudio estava apaixonado por ela, que tinha apenas 15 anos (ele já estava nos seus 50) e era belíssima; ela não partilhava o sentimento, mas deu-lhe uma filha, Cláudia Otávia, e um filho, que levou o nome de Britânico em homenagem à conquista do pai. Com o tempo, a imperatriz revelou-se uma grande libertina (ao ponto de "messalina" ter virado substantivo comum em várias línguas, com o significado de mulher devassa ou imoral), que, não contente em ser infiel ao marido, conspirava constantemente contra ele com seus vários amantes. Cláudio acabou ordenando sua execução, juntamente com o amante da vez, Caio Sílio, em 48.

Seu último casamento foi com sua sobrinha Agripina, irmã de Calígula e digna herdeira de sua bisavó Lívia: primeiro conseguiu, por meios que não sabemos, que Cláudio adotasse seu filho Lúcio Domício e o nomeasse seu herdeiro, preterindo Britânico; depois, para garantir, deu um fim no rapaz (em 55). Não poucos biógrafos de Cláudio, aliás, também atribuem a ela a morte do próprio imperador, um ano antes da do filho, embora seja verdade que ele já estava com 64 anos – idade considerável para os padrões da época – e que sua saúde jamais fora das melhores. A propósito: Lúcio Domício, ao ser adotado por Cláudio, passou a chamar-se Nero Claudius Cæsar Augustus Germanicus, e a ser chamado comumente de Nero. Sim, O Nero – eu disse que ele ainda apareceria antes do fim do post...

Na verdade, I, Claudius, apesar do título que recebeu na tradução, não chega a mostrar o protagonista como imperador: termina com o assassinato de Calígula e a coroação de Cláudio. A continuação da história está em Claudius the God and his Wife Messalina (Claudius, o Deus, e Messalina), também publicado no Brasil pela Globo. Recomendo ambos a todos os apaixonados pela Antiguidade clássica como eu, pois, de uma forma muito agradável de acompanhar, narram uma vida que vale a pena conhecer – e da qual há algumas lições a tirar.